A Mortalha de Alzira/II/II

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Ângelo vinha profundamente pálido e abatido, mas com a fisionomia serena. Um quê de tranqüilo cansaço imobilizava-lhe o rosto, não deixando distinguir bem qual a fonte da expressão que nele predominava. Seria a piedosa resignação do justo que, seguro da sua fé, caminhava de olhos fitos no divino ideal, passando, sem rasgar os vestidos da alma, por entre todos os espinhais mundanos; ou seria o surdo desfalecimento de quem, a pura violência, esmaga dentro do próprio peito a fecunda semente das suas mágoas, como a mãe desnaturada sufoca nas entranhas o palpitante fruto dos seus amores?

Vagarosamente atravessou a sala e foi sentar-se numa velha cadeira, ao lado da tosca mesa de carvalho.

A criada e o hortelão acompanhavam-lhe os movimentos com um lastimoso olhar.

— Boas noites, tia Salomé, boas noites, mestre Jerônimo, disse ele, cumprimentando-os humildemente.

— Deus Nosso Senhor lhe dê as mesmas, senhor vigário! respondeu a criada, quase que ao mesmo tempo que o hortelão.

E a boa velha, pensando em Robino, que continuava a dormir a um canto, foi tratar de afastá-lo dali, para poupar a Ângelo o espetáculo daquela imoralidade.

Mal, porém, lhe pôs as mãos em cima, 0 pequeno gritou acordando:

— É de virar! É de virar! Hup! Hup! Hurra!

— Que é isto?. . . perguntou Ângelo, voltando o rosto.

— Ora! Que há de ser?... explicou a criada, enquanto Jerônimo carregava o pequeno lá para dentro. É o mariola do Robino que está que se não pode ter nas pernas! Se não fosse o hortelão, ficaria aí estendido pelo caminho e talvez se afogasse na enxurrada, que vamos ter muita chuva! Seria bem feito!

— Coitado!. . . murmurou Ângelo.

— Coitado?! Ainda o sr. vigário diz: "Coitado!"?. . . nunca vi cousa assim! Isto já não é bondade é tolerância demais! ter pena de um maroto que se vai meter na taverna do Bruxo até ficar a cair!. . . O sr. vigário faz mal em proteger semelhante biltre, que para nada serve! Queria ver se o despedissem daqui, onde ele encontraria quem o aturasse!. . .

— Por isso mesmo não devemos despedi-lo... Observou o cura. Se ele não tem para onde ir, como quer a tia Salomé que o ponhamos fora de casa? Seria matá-lo de penúria!. . .

A criada abaixou a cabeça e disse, de si para si, a endireitar o seu avental:— E mesmo um coração de anjo! . . .

— Ouça, minha boa Salomé. . . acrescentou Ângelo, pousando-lhe a mão no ombro; você às vezes finge-se má... aposto que, se eu expulsasse daqui o Robino, seu coração, minha irmã, sofria com isso mais CO que o dele próprio. . .

— Não digo o contrário, sr. vigário, mas. . .

— Por que então há de fingir-se aquilo que não é?... por que há de dizer o que não sente?... por que fazer-se má, quando os seus sentimentos são humanos e compassivos?. . . Saiba, pois, que tanto se ofende a Deus com a falsa maldade, como com a verdadeira. Com a falsa ainda mais se ofende, porque a outra tem a sua absolvição na fatalidade dos instintos, ao passo que esta é toda produto do raciocínio, e como tal deve ser punida. Se Robino é um miserável, é um perdido, por isso mesmo devemos socorrê-lo; se não dispõe de ninguém por si, devo eu estar ao lado dele e, se eu também o abandonasse, ainda ficaria Deus, que não abandona nunca os desgraçados.

E prosseguiu, depois de uma pausa, deixando-se arrebatar no vôo do seu amoroso enlevo pelas cousas místicas:

— O santo missionário Francisco Xavier, quando percorreu a longa Índia com a sua esfarrapada sotaina, tocava uma campainha para atrair o povo, e entre este ia escolhendo os desgraçados de toda a espécie, para socorrê-los e dividir com eles a melhor parte do seu pão e do seu coração. Schwartz, Marshman, e quantos outros soldados de Jesus, afagaram toda a escala das misérias humanas, como se percorressem o doce teclado de um órgão, entoando hino de amor à Virgem Puríssima! Vicente de Paulo, reduzido à escravidão em Argel, humilhou-se de tal modo e com tamanha devoção, que acabou convertendo o seu herético senhor à fé católica. E mais tarde, em Marselha, ei-lo que desdenha a honrosa companhia do conde de Joigny, para ir coabitar com os galés, até chamá-los, a todos, um por um, ao caminho da moral e da religião de Cristo! Mas o próprio Cristo?.. . Não foi ele quem recolheu nos seus braços a pecadora das pecadores, a desgraçada repelida por todas as multidões? Não foi ele quem fez de Madalena o louro arcanjo da regeneração?... Não foi ele quem dela fez uma santa? Sim! Sim, Jesus, meu Mestre! toda a tua religião e toda a tua sabedoria se reduzem a esta palavra:— Amor!

E um longo suspiro saiu-lhe do fundo da alma.

Salomé, que do meio para o fim da divagação do presbítero se fora comovendo progressivamente dava agora repetidos soluços, limpando os olhos com o avental.

— Perdoe-me!... gaguejou ela; perdoe-me, sr. vigário!. . . Vossa reverendíssima tem toda a razão. . . Vossa reverendíssima é um santo. . . mas que quer?. . . Eu estava contrariada... Eu estou muito zangada! Tenho que ralhar!

— Por que, minha boa irmã?. . .

— Ora, porque! porque vossa reverendíssima pelo modo que vai, dá cabo de si!. . . Tem lá jeito! Levar até a estas horas com o estômago vazio, a andar por aí todo o santo dia, em risco de lhe acontecer como ao frei Ozéas!...

— E todavia não tenho fome. ..

— Mas há de sempre comer alguma cousa, senão é que me zango deveras!...

— Tenho é muito cansaço...

E assentou-se.

— Pudera não! Fazendo destas!... Isto até ofende a Deus!

E, de carreira, foi lá dentro em busca do que havia para cear.

Ângelo, mal se viu a sós, deixou pender a cabeça e pousou as mãos sobre os joelhos.

— Ah!... pensou ele. Como estou transformado, meu Deus! . . . Como eu próprio me desconheço! . . . Como sou miserável e fraco!. . . (E agarrando o peito, desesperado). Carne traiçoeira e maldita! de que lama és tu feita?. . . E não poder quebrar-te num instante, imundo barro sensual e pobre!

Mas Salomé voltava com a ceia.

— Ingrato! exclamou ela. Eu que lhe havia preparado uma sopa tão apetitosa! . . . Vamos! Coma alguma cousa. . .

E enchendo-lhe o copo com o vinho que trouxe num cangirão:— Beba, sr. vigário! beba um bom trago de vinho! Este ainda é da colheita do defunto padre René... Ah! o padre René!... Esse é que tinha sempre um apetite. . . que metia gosto vê-lo comer!. . . Comia tão bem o santo homem que, às vezes, vendo-o jantar, jantava segunda vez! Um dia pregou-me uma formidável indigestão!... Santa criatura!...

— Você o estima muito, não é verdade, tia Salomé?... perguntou Ângelo, tomando uma colherada de sopa.

— Como não?. . . Pois se o servi durante dezoito anos seguidos! . . . Se não fosse a congestão que o raspou, ainda. ..

— A congestão?! interrompeu o vigário. Pois ele não morreu atacado pela peste?. . .

— Qual o que! negou a criada, rindo. Isso foi uma balela que se arranjou aqui em Monteli!... Os amigos dele entenderam que lhe não ficava bem, como sacerdote, morrer de congestão, havendo tanta peste na aldeia. . .

— Ah!

— Coitado! Foi lástima! Belo homem! Não parecia ter setenta anos! Forte, sadio e trabalhador como gente!. . . As vezes, depois do almoço, agarrava-se a uma enxada e dava-lhe para labutar, que três ou quatro trabalhadores não lhe levariam a melhor! Não vê o senhor vigário toda aquela parte do muro do cemitério que está reconstruída?. . . Pois quem foi que a levantou?. . .

— Ah! Ele também trabalhava de pedreiro?. . .

— Se trabalhava! Queria que o visse em mangas de camisa e calças arregaçadas, pé no chão, a fazer barro e a carregar terra! Mas também, quando caía na cama, era aquela certeza!

— Dormia bem?. . .

— E roncava, senhor vigário! roncava, que se ouvia de longe! Uma vez. . .

Um trovão mais forte estalou no espaço, fazendo tremer as folhas da janela.

— Chit! gritou Salomé, correndo até à porta; que tempestade vamos ter! Olha se o senhor vigário se demora mais um pouco!... Felizmente tenho aí alecrim bento para queimar!. . .

Mas Ângelo já não a ouvia. Tinha os olhos cravados no teto.

— Então que é isso?. . . perguntou ela, tocando-lhe familiarmente do ombro. Já caiu na cisma?... Vamos! coma ainda alguma cousa! Vá uma fatia de queijo. (Ângelo repeliu o prato). Sempre queria que me dissessem o que foi que o senhor vigário comeu!. . . Não sei do que se sustenta!. . . Se isto continua assim, mando pedir ao boticário o remédio que ele deu ao filho do tio Curvado. Aquele também não comia, nem à mão de Deus Padre, mas o boticário deu-lhe uns papelinhos, e o rapaz endireitou logo! Hoje, de gordo, não passa por aquela porta!

Interrompeu-a um novo trovão, mais forte ainda que o primeiro.

— Valha-me São Jerônimo e Santa Bárbara! Parece que vem hoje o mundo abaixo! Vou acender uma vela benta!

E saiu da sala, a correr, benzendo-se com ambas as mãos, estonteada de medo.

Ângelo, imóvel na posição em que cairá esquecido, só daí a pouco moveu com os lábios, para murmurar entredentes:

— "E se, apesar de tudo, encontrares alguma mulher, que te leve a sonhar estranhas venturas. . ."

— Oh! disse em voz alta; meu pai tinha razão!. . . tinha toda a razão!. . .

E erguendo-se, como se acordasse de um letargo:

— Pois eu não terei energia bastante para reagir contra esta fraqueza?... Não poderei estrangular a matilha que me rosna no sangue?. . . Pois a idéia daquele demônio matará em mim todas as outras idéias?. . . Oh, meu Deus, não é possível! seria uma injustiça! Uma tremenda injustiça!

Salomé reapareceu, para perguntar:

— Então, sr. vigário! que faz que se não recolhe?. . . Vamos! Deite-se, que precisa de repouso. Já acendi o oratório da Virgem. Não fique aí a cismar!

— Vá! vá descansada, tia Salomé, que eu me recolho imediatamente. Boa noite.

Ângelo, uma vez recolhido ao quarto, começou a passear de um para outro lado, entregue todo à sua implacável preocupação.

— Não! protestou ele, estacando no meio do aposento, depois de longo meditar. Não! A idéia daquela mulher não matará meu coração e minha alma! Preciso não pensar nela! preciso arrancar daqui de dentro esta terrível loucura, que me absorve, gota a gota, toda a substância do meu espírito!. . .

E circunvagou em torno o olhar ansioso e desvairado.

— Mas, prosseguiu o mísero, como poderei não pensar nela, se, mal me vejo a sós, sinto-a comigo?. .

Sim! Sim! Ela aqui está e em tudo se denuncia!... Sinto-a perfeitamente; sinto-a no perfume dos seus cabelos, no farfalhar do seu vestido, na tentadora luz de seus olhares!... Parece-me que, ao voltar-me, darei com ela, face a face, a sorrir-me de amor e a estender para mim seus braços pecadores. . .

E atirou-se de joelhos defronte da Virgem com a cabeça pousada no rebordo do altar. Depois ergueu o rosto, e, de mãos postas, tentou dizer uma oração. Mas o seu espírito não acompanhava a religiosa palavra que seus lábios proferiam, e o desgraçado, louco de desespero, deixou-se cair por terra, soluçando, estendido ao longo do chão, como um cadáver.

Perdeu os sentidos.

Lá fora a tempestade continuava, roncando no espaço.

No fim de algumas horas, Ângelo passou da síncope ao sono, e começou a sonhar:

— Alzira minha amada... sussurrava ele, entreabrindo os lábios; teu rosto é formoso como o rosto da Virgem, teus olhos são como os dela— fonte de amor e de ternura, são negros, são doces, augustos e suplicantes; teus cabelos cor de ouro valem pelo seu diadema de rainha dos céus, a carne do teu colo é tão macia como o cetim do seu manto constelado. . . mas eu não te posso dar o meu amor, adorável pecadora, porque me casei com a igreja e dei o meu coração a Maria. . .

Nisto, bateram lá fora três fortes pancadas com a aldrava da porta.

— Não! não me chames!. . . continuava a sonhar o pároco. Não te aproximes de mim, flor de perdição! que eu morreria de pena se te fugisse, mas também morreria de remorsos, se tu ficasses nos meus braços. (Bateram de novo e mais forte). Não! não irei abrir-te a porta! mas não desesperes, minha pobre amada!... Ainda nos havemos de reunir no Paraíso!. . . Seremos dois espíritos inseparáveis, que percorrerão abraçados os páramos de Deus! Então, como duas asas de anjo, viveremos unidos para sempre e sempre acordes.

Bateram de novo, ferozmente, e Salomé gritou lá de dentro:

— Quem é?

— Queremos falar ao sr. cura, respondeu uma voz de fora.

— Agora não é possível! Voltem pela manhã!

— É caso urgente!

— Mas ele está dormindo!. . .

— Precisamos falar-lhe no mesmo instante!

E no entanto... sonhava o pároco; o teu amor deve ser mais doce que o mel das flores. . . mais suave que o perfume da mirra, e melhor e mais saboroso do que os vinhos de Canaã!. . .

Salomé, deveras contrariada, entrou na sala de jantar, trazendo na mão uma candeia acesa, e foi até à porta do quarto de Ângelo.

— Tem lá jeito!. . . resmungava ela a gesticular com o braço que trazia livre. Tem lá jeito! . . . Incomodarem o pobre homem, que ainda não há muito se recolheu tão cansado!. . .

E bateu na porta do quarto.

Ângelo acordou sobressaltado, ergueu-se e correu a saber quem era.

— Estão aí dois desalmados, que querem por força falar ao senhor vigário. Eu disse logo que não era possível; eles, porém, insistiram tanto, que...

— Fez bem em chamar-me, tia Salomé. Faça-os entrar imediatamente. São, com certeza, viajantes que precisam de agasalho!. . . Que entrem sem demora!. . . Veja o que há aí para comer. Eles devem trazer fome. . .

A criada pousou a candeia sobre a mesa, e afastou-se resmungando.

Daí a pouco penetravam na sala dois homens corpulentos, envolvidos em longas capas de pano escuro.

Um deles era negro e tinha os olhos vermelhos de chorar.

— Com licença! disse o outro sacudindo o chapéu encharcado de chuva. Por Baco! pensei não chegar aqui! Boa noite, senhor cura!

Ângelo cumprimentou-os.

— Os senhores, disse, são sem dúvida forasteiros e querem agasalho, não é verdade? Vou dar as providências para. . .

— Não, senhor cura, muito obrigado, agradeceu aquele, detendo o pároco. Não queremos agasalho, temos até de voltar incontinenti!. . .

— Por este tempo?. . . observou Ângelo.

— Viemos pedir a vossa reverendíssima para ir dar a extrema-unção a uma agonizante, que a reclama com insistência

— Pois não! pois não! respondeu o padre, correndo a tomar o chapéu e a capote. Estou pronto! Vamos! Onde é?...

— Logo ao entrar na avenida de Blancs-Manteaux, castelo d'Aurbiny.

— Avenida de Blancs-Manteaux! exclamou a criada que até aí estivera de mãos nas cadeiras, a sacudir a cabeça furiosa. Quase uma légua de distancia! Isso não pode ser! Não consinto!

Ângelo foi ter com ela e disse-lhe em voz baixa:

— Cale-se, boa Salomé. . . Não me queira desviar das minhas obrigações!

E foi ainda lá dentro buscar o necessário para dar a extrema-unção.

— Mas é uma imprudência o que o senhor vigário quer fazer! . . . insistiu aquela. Sair de casa a estas horas e com este tempo!. . .

Ouviu-se um trovão.

— Valha-me Deus! exclamou ela. Os caminhos com certeza estão piores que o mar!

— Trouxemos um cavalo para o senhor cura.

— Nem sequer trouxeram um carro! Não! Definitivamente o senhor vigário não vai, porque eu não consinto!

— Então, Salomé! disse Ângelo; cale-se, minha irmã. . . O dever não deve olhar maus tempos e perigos mesquinhos . . .

A boa velha, em vez de calar-se, colocou-se defronte dele, com os braços erguidos, e exclamou:

— Mas, por amor de Deus! repare que esta loucura vai fazer-lhe muito mal!. . . Lembre-se de que não está bom de saúde!. . . Lembre-se de que. . .

Ângelo interrompeu-a:

— E supõe que eu poderia ficar aqui tranqüilo, sabendo que alguém morre, pedindo inutilmente a confissão?... que eu poderia dormir descansado, lembrando-me que nesse momento um moribundo me amaldiçoava, porque lhe faltei com os derradeiros socorros à sua alma!. . .

E voltando-se para os dois homens:

— Vamos! vamos, irmãos! Estou às vossas ordens!

E traçou a capa e saiu, acompanhado pelos outros dois.

Daí a pouco, três cavaleiros negros cortavam a estrada e entranhavam-se na floresta, galopeando na treva, como fantasmas.

Pareciam voar nas asas da tempestade. E, a cada relâmpago, os cavalos aterrados relinchavam, acelerando a vertigem do galope.

Só pararam defronte do velho e sombrio castelo d'Aurbiny.

Ângelo apeou-se, e ao transpor o largo portão de pedra, em cujo frontal havia ainda as armas fidalgas de uma grande família extinta, sentiu a alma tolhida por uma vago e áspero pressentimento de desgraça.

Mas entrou sem hesitar e subiu a longa e esborcinada escadaria de mármore, conduzido por um pajem de libré vermelha, que o veio receber à porta.