A Novella Semanal/O 22 da "Marajó"
Esse delirio que por ahi vae pelo futebol tem seus fundamentos na propria natureza humana. O espectaculo da luta sempre foi o maior encanto do homem; e o prazer da victoria, pessoal ou do partido, foi, é e será a ambrosia dos deuses manipulada na terra. Admiramos hoje os grandes philosophos gregos, Platão, Socrates, Aristoteles; seus coevos, porém, admiravam muito mais aos athletas que venciam no estadio. Milon de Crotona, campeão na arte de torcer pescoços a touros, só para nós tem menos importancia que seu mestre Pythagoras. Para os gregos, para a massa popular grega, seria inconcebivel a idéa de que o mestre pudesse um dia offuscar a gloria do lutador.
Em França o homem verdadeiramente popular é George Carpenties, mestre em soccos de primeira classe. Se derem nas massas um balanço sincero, verão que elle sobrepuja em prestigio aos proprios chefes supremos vencedores da guerra.
Nos Estados Unidos ha sempre um campeão de boze tão entranhado na idolatria do povo, que está em suas mãos subverter o regomen politico.
Entre nós ha o exemplo recente de Friedenreich, um pé de boa pontaria pelo qual milhares de creaturas, sobretudo creanças, são capazes de sacrificar a vida.
E os delirios collectivos provocados pelo embate de dois campeões em campo ? Impossivel assistir-se a espectaculo mais revelador da alma humana que os jogos de futebol em que disputam a primasia paulistanos e italianos, em S. Paulo.
Não é mais esporte, é guerra. Não se batem duas equipes, mas dois povos, duas nações, duas raças inimigas. Durante todo o tempo da luta, 40, 50.000 pessoas deliram em transe, extacticas, na ponta dos pés, coração aos pulos e nervos tensos como cordas de viola. Conforme corre o jogo, ha pausas de silencio absoluto na multidão suspensa ou deflagrações violentissimas de enthusiasmo que só a palavra delirio classifica. E gente pacifica, bondosa, incapaz de sentimentos exaltados, sae sóra de si, torna-se capaz de commetter os mais horrorosos desatinos.
A luta de 22 feras no campo transforma em feras os cincoenta mil espectadores, capazes todos de se esfaquearem mutuamente num conflicto horrendo, caso um incidente qualquer funda em corisco as electricidades psychicas em ponto supremo de concentração.
O jogo do futebol teve as honras de despertar o nosso povo do marasmo de nervos em que vivia. Antes delle só nas classes medias a luta politica tinha prestigio necessario para uma exaltaçãosinha periodica.
E isso porque de todos os esportes tentados no Brasil só o futebol conseguiu acclimar-se, como o café. Hoje, alastrado de norte a sul, transformou-se quasi em praga, conseguindo só elle, interessar vivamente, exaltadamente, delirantemente, ao nosso povo.
No Estado de São Paulo não ha recanto, villoca, fazenda, bairro onde se não veja num chão plaino e batido os dois rectangulos oppostos, assignaladores dum groand. Pelas regiões novas, de virgindades só agora atacadas pelos invasores, é commum topar-se, de subito, em plena matta, uma clareira aberta e limpa onde, nas horas de folga, os derrubadores de páo vêm bater bola.
já assistimos um match em certa fazenda. Tudo muito bem arrumado; os players uniformisados, de meia grossa e botinas ferradas, tal qual como nos clubs das cidades. E falando em corners, goals, hands, halfs-times, a inglezia inteira dos termos technicos. Ao nosso lado um fazendeiro explicava :
— Aquelle goal-keeper é carreiro; amanhã de madrugada está de pé no chão puxando lenha. O center-half é madeireiro; está me lavrando umas perobas na roça velha. Os full-backs são tropeiros e os forwards, simples puxadores de enxada.
Era assombroso! Estavamos deante da maior revolução de costumes operada em terras de Santa Cruz desde o dia de Cabral. E tudo por arte e obra de uma simples esphera de couro estufada de ar !...
Antes do futebol só a capoeira conseguiu um cultozinho entre nós e isso mesmo só nas classes baixas. Teve seus períodos aureos, produziu seus Friedenreichs, afinal, acabou, perseguida pela policia, com grande magua dos tradicionalistas que viam nella uma das poucas coisas de creação indigena.
Infelizmente não se guardou memoria escripta desse esporte, cujos annaes se encheram de maravilhosas proezas. Não teve poetas, não teve cantores, não teve sabios que a salvaguardassem do olvido ; e de todo o nosso rico passado de capoeiragem só restam impressões esparsas, em via de se diluirem, na memória dos velhos contemporaneos.
Que bellos themas a nossa literatura deixa á margem, victima que é da eterna fascinação franceza !
Que se fixe pois, em letra de forma ao menos o caso do 22 da "Marajó", com tanto chiste narrado pelo maior humorista brasileiro, esse prodigioso Marck-Twain inedito que é o senhor Felinto Lopes.
O 22 da Marajó era um imperial marinheiro, mestre em desordens e amigo de revirar de pernas para cima kiosques de portuguez. Rapazinho bonito, esguio, branco de côr, bigode espetado, imperava na Saude, onde suas proezas de capoeira excepcional andavam de boca em boca, discutidissimas, como façanhas de Rolando. E taes fez que o governo,incommodado, deportou-o para o norte, a servir no Alto-Amazonas em canhoneira da flotilha estacionada no Pará. A mudança de clima regenerou-o e o rapaz, resolvendo tirar partido de seus dotes plasticos, ferrou namoro com a mulher de um shipchandler, da qual se tornou logo amante.
Pouco durou o trio.
O shipchandler morreu e o 22 casou-se com a viuva, herdeira dum paço de quatrocentos contos. Pediu baixa, obteve-a e foi com a esposa em viagem de nupcias á Europa, onde permaneceu dois annos. Ao cabo, regressou á pátria, elegendo o Rio de Janeiro para residencia definitiva.
Mas quanto mudara ! Transformado num perfeito gentleman, embasbacava a rua do Ouvidor com seu apuro de trajes, suas polainas, suas luvas, sua cartola clara.
— Quem é ? Quem é ? Ninguem sabia.
— Algum fidalgo, certamente, cochichavam. Não vêem que modos distinctos ?
E o 22 impavido, petroneando, de monoculo no olho, a olhar de cima para homens e coisas.
Tinha habitos certos, e todos os dias passava pelo largo de S. Francisco, como paca pelo carreiro.
Aconteceu, porém, que ali era ponto de uma roda de rapazes chiques, fortemente despeitados ante a esmagadora elegancia do desconhecido, rival perigoso, sem duvida. Os quaes rapazes, depois de muito cochicho, deliberaram quebrar a prôa ao novo concurrente, aguardando para isso apenas a opportunidade.
Certa vez em que o Petronio passava mais imponente que nunca, coincidiu approximar-se da roda chique um capoeira, mordedor que se gabava de ser mestre em "soltas".
Quem sabe hoje o que é "solta", nesta época de kikes e shootes ? "Solta" era uma cabeçada sem hands, isto é, sem encostar a mão no adversário.
Mas o capoeira chegou e mordeu-os em cinco mil réis.
— Perfeitamente, responderam os rapazes, mas primeiro has de sapecar uma solta naquelle freguez que ali vae de monoculo ! . . .
— E' já! exclamou o capoeira gingando o corpo. E tirando o chapéo foi. postar-se na calçada por onde vinha o 22, de cartola e monoculo, sacudindo passos de lord, muito esticado dentro do seu croisé cortado em Londres.
Um, dois, tres . . . Quando Petronio defrontou o capoeira, despejou-lhe este uma formidavel e primorosa cabeçada.
O desconhecido, porém, quebrou o corpo, e a cabeçada do atacante foi de encontro á parede, ao mesmo tempo que um pé bem manejado plantava-o no chão com elegantissima rasteira. O mordedor, tonto e confuso, mal ergueu-se e já desabou de novo, cerceado por outra gentil rasteira. Passára, imprevistamente, de aggressor a aggredido e, desnorteado, deu sebo ás canellas, indo apalpar o gallo a cem passos de distancia.
Emquanto isso o Petronio, concertando a gravata, com grande calma, dirigiu a palavra aos moços elegantes, assombradissimos:
— Só uma besta destas dá soltas sem negaças ! Já dizia o Cincinato Quebra-Louças: soltas sem negaças só em lampeão de esquina. Se grampeasse, inda vá lá. O- Trinca-Espinhas, o Estrepolia, o Zé da Gambôa e outros praxistas admittem-n'a neste caso, e isto mesmo só quando o semovente não é firme de letra.
E gyrando a bengala de unicornio entre os dedos annelados, finamente superior, concluiu, com saudades:
— Já gostei desse divertimento. Hoje, minha posição social e o meio em que vivo não m'o permittem mais. Vejo, porém, que a arte está decaindo...
E lá se foi, imperturbável e superior, murmurando comsigo:
— Soltas sem negaças . . . Forte besta !
Os elegantes, passado o momento de estupor, planearam solenne desforra.
Contratariam o famoso Dente de Ouro, da Saude, para quebrar a prôa ao prosa.
Tudo ajustado, no dia marcado postaram-se no carreiro, com o rompe-e-rasga á frente.
— E' aquelle! disseram, quando repontou ao longe a cartola clara do Petronio.
Dente de Ouro avançou feito para o desconhecido. Ao fronteal-o, porém, entreparou, e abriu-se num grande sorriso palerma :
— O' 22! Você por aqui ? ! . . .
— Cala o bico moleque, e toma lá para o cigarro. Mas afasta-te, que hoje sou gente e não ando em más companhias, disse o Petronio, correndo-lhe uma pellega e seguindo caminho.
Dente de Ouro voltou ao grupo dos elegantes, alisando a nota.
— Então ? perguntaram elles, desnorteados com o desenlace imprevisto.
— 'cês 'tão bestas! Pois aquelle é o 22 da "Marajó", corpo fechado para sardinha e pé que nunca malou saque. Estrompar o 22? ! 'cês 'tão bestas !. . .
MONTEIRO LOBATO
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