A resistência individual

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Muito antes que o foco luminoso dos princípios ingleses, enfeixados, há quase oitocentos anos, na Magna Carta, se projetassem além da periferia insular, reverberando, em fins do século passado, na revolução americana, para mais tarde amadurecer, no atual, o gérmen de todas as constituições livres, já o direito comum, nos livros dos jurisconsultos, em países que não conheciam a liberdade política, sagrava a resistência individual.

Ninguém, por exemplo, o condensou melhor, ou achou, até hoje, do seu alcance uma fórmula mais clara, mais prática, mais justa, mais expressiva que a do velho Farinaccius, neste lance das suas Questões: “Si judex, dum non facit justitiam, amplius judex non est, sed privatus, sicut quilibet permittitur resistere adversus violentiam factam per privatum, ita pariter et resistere licebit adversus judicem nec ejus officiales injustos et agentes et exequentes, cum, sic agendo et exequendo, habeantur pro privatis, ut dixi”. (Quaest. XXII, nºs 88-91). O que, tirado em linguagem, significa: “Se o magistrado, faltando à justiça, já se não reputa magistrado, e passa a não ser mais que um sujeito particular, do mesmo modo como nos é dado resistir à violência que qualquer particular nos faz, lícito semelhantemente nos será também resistir à injustiça do magistrado e seus oficiais, pois, obrando injustamente, não têm, repito, mais autoridade que se meros particulares fossem.”

Aí está, num enunciado singelo, nitidamente expresso o limite dos direitos e deveres mútuos entre o indivíduo e os agentes de autoridade. Esta resulta da lei, e com ela coincide. De sorte que o funcionário, transpondo o círculo da lei, ipso facto da sua autoridade se despiu. Não é desde então um funcionário: é um delinqüente. Resistir-lhe será mais que o direito do homem livre: será, em certos casos, o seu dever.

Já no começo deste século, em 1812, a Constituição siciliana dizia: “O cidadão tem o direito de resistir a quem quer que, sem lei que o autorize, o pretenda compelir, com ameaças, ou por força, a fazer alguma coisa.” Os regimens, que precederam à idade liberal da Itália, não obliteraram na jurisprudência essa doutrina, em cujo sentido citam ali com orgulho os publicistas modernos um aresto adotado, sob o governo absoluto, contra as conclusões do ministério público, pela Rota toscana (Paoli, not. a Forti: Conclusioni criminali. 1874. Pág. 50). “Quando o executor não traz mandado, não o exibe, ou o não executa na forma prescrita da lei”, reza a sentença que traduzimos à letra, “não se pode qualificar de resistência a oposição, ainda que violenta, dos cidadãos, e, procedendo destarte, os executores se equiparam a meros particulares (sono da parificarsi alle persone private)”.

Em tempos menos remotos outras sentenças reforçam a antiga tradição. Por decisão de 25 de junho de 1868, a cassação de Palermo anulou um veredicto concernente ao delito de revolta, porque nos quesitos postos ao júri não se perguntara se o oficial público estava no exercício das suas funções. Outra, de 4 de novembro de 1871, no mesmo tribunal, assenta a máxima, literalmente vertida por nós, de que “justa é a resistência, oposta, AINDA COM VIAS DE FATO, pelo cidadão ao agente da força pública, que, abusando das próprias funções, se entregar a excessos de poder, e com violência aberta infringir o direito de liberdade individual”.

Má instituidora em pontos de liberdade é a França. Não admira, pois, que a sua jurisprudência varie, titubeie, recue, e se contradiga no assunto. Na sua Constituição não se garante a liberdade individual; mas nos demais estados, cuja lei fundamental a proclama, os códigos penais definem o delito de resistência, quando existe o concurso da legalidade no ato do funcionário, a que se desobedece; de onde a intérpretes e julgadores se impõe a conseqüência de que, reagindo contra a ilegalidade, não se incorre em delito. A Áustria, na sua lei constitucional de 21 de dezembro de 1867, art. 8º, estabelece, até, que “toda prisão operada ou dilatada contra as leis obriga o estado, para com a parte lesada, à reparação do dano”.

Na carta italiana, o art. 26, declarando assegurada a liberdade individual, acrescenta: “Ninguém pode ser preso, ou submetido a julgamento, senão nos casos previstos da lei e nas formas por ela prescritas.” É muito menos do que faz a nossa Constituição no art. 72, §§ 13 a 16. Vede, entretanto, a conseqüência, que dali extrai a exegese jurídica naquele país: “Está inserido este artigo na seção, que dos direitos do cidadão se ocupa. Indiscutível é, pois, ser direito do cidadão o não poder ser preso, senão guardadas aquelas garan­tias e aquelas formas. Estas, logo, não se instituem tão-somente no interesse geral do estado, o que se dá, ou poderia dar-se também sob os governos absolutos: constituem positiva e especificamente direito­ do cidadão. Ora a noção de um direito é inerente à faculdade de defendê-lo. O princípio de que ninguém se pode fazer justiça a si mesmo supõe já verificada a lesão. Se um me fere, não posso assaltá-lo e maltratá-lo no outro dia, sob pretexto de o punir: hei de aguardar­ que a justiça punitiva me dê razão. Ninguém dirá, porém, que eu, pela regra de que ninguém se pode fazer justiça pelas próprias mãos, não esteja no direito de impedir que ele me fira. Tal qual na ordem do jus privado. Se um estranho abusivamente abre uma passagem pelo meu terreno, e eu lho deixo fazer, não a poderei depois fechar de minha própria autoridade: tenho de requerer ao magistrado que remova a invasão turbativa da minha posse. Mas, se, quando o intru­so lida em perpetrar o fato danoso, o repulsar eu até à força, nada me poderão levar a mal, pois outra coisa não fiz que propugnar o meu direito.” Assim Orlando, o jurista italiano que se ocupou ex professo,­ num sólido volume, com a teoria jurídica das garantias da liberdade.­

Acompanhemos o sábio escritor; que mais preclaro guia não poderíamos eleger. “Os criminalistas”, diz ele, “em cujos livros se sustenta que a ilegalidade do proceder no oficial público exclui da resistência o delito, assim discorrem incisiva e eficazmente. Bem considerando, ver-se-á que o delito de resistência consta de dois fatores indispensáveis. Um é, no agente, o maligno intento de contrariar a execução de um ato de justiça (elemento intencional); o outro, a circunstância de que o ato de justiça foi atalhado e obstado por causa daquele cidadão (elemento material). Ora, quando o funcionário obra ilegalmente, para logo perde a sua qualidade: preposto à custódia do direito, se o quebanta, cessou a santidade do seu ministério e, com ela, a sanção, que o circunda. Emparelha com qualquer particular, que moleste a outrem, e o moleste, ainda em cima, com a circunstância agravante de se valer de uma aparente qualidade, cuja existência lhe havia de impor a ele a mais escrupulosa observância do dever, ao cidadão o justo respeito catado a quem opera em nome da lei. Logo, não se verificará nenhum dos dois elementos constitutivos do delito: não o elemento intencional, visto que a resistência se determinou pela ilegitimidade do ato; não o elemento objetivo, porquanto não se tolheu um ato de justiça, antes se obstou à consumação de um ato injusto. Nenhum outro limite, portanto, cumprirá que o indivíduo respeite, além do limite comum na legítima defesa, o moderamen inculpatae tutelae, não já o da qualidade do funcionário, que dela voluntariamente se destituiu, transformando-se, ao revés, em órgão da violência e do arbítrio.” Notai bem as duas tônicas no pensamento do jurisconsulto: Quando il funccionario procede illegalmente, egli perde la sua qualità. Egli si assimila ad un privato qualunque, che molesti un altro.

A teoria é completa, continua ele, “e resiste vitoriosamente às objeções, que se lhe movem”. Tem-se dito que devemos presumir a legalidade da ação no agente oficial. “Mas este argumento contém, antes de mais nada, logicamente encarado, uma petição de princípio, pois não se trata de saber senão precisamente se e por que havemos de presumir essa legalidade. Por outro lado, a presunção será juris tantum? Mas então o fato não a liquidará, e o julgamento do magistrado é que terá de decidi-la. Nesse caso, porém, para que serve estabelecer presunção semelhante? Quererão, pelo contrário, que seja juris et de jure? Enormidade tal não haveria mister de refutação. Deste princípio (baste apontar isto) seguir-se-ia que nem a sanção de uma sentença ulterior dos tribunais contra a ilegalidade se poderia admitir; o que nunca ousou dizer nenhum dos apologistas da obediência absoluta. Acrescentam ser necessário manter a todo custo essa força moral, que deve acompanhar sempre o funcionário. Pretendem que, politicamente, é sempre escandaloso ver a força pública desrespeitada pelo cidadão. Poderíamos redargüir que escândalo muito maior e, mais do que escândalo, verdadeiro detrimento político, é o espetáculo de um cidadão oprimido por uma violência. Alega-se, outrossim, que os agentes da polícia e da justiça são pessoas públicas de todo modo e sempre. Mas então hão de sê-lo também, quando, por motivo particular, quiserem insultar-me, e atropelar-me. Repugna a conse­qüência, e querem admitir um limite? Então já se vê que é falsíssima a proposição articulada, e não se pode encontrar esse limite, senão no legítimo exercício das funções confiadas ao oficial.”­

Continuemos a escutar a douta autoridade:

“Singelo e evidentíssimo é o modo como a nossa ciência considera o assunto. O moderno direito constitucional assenta a organização dos poderes públicos no pressuposto da liberdade. Seja mais ou menos lato o sentido, em que os escritores hodiernos definem esta ciência, desse pressuposto partem, explícita, ou implicitamente. Não cai aqui a propósito insistir no significado e alcance desta noção da liberdade. Mas, como quer que seja, o certo é que ela é indissociável da do Estado moderno. O certo é, ainda, que dentre os pincipais o principal (principalíssimo) aspecto, sob que ela se patenteia e afirma, é a segurança afiançada a todos os cidadãos contra as lesões, sejam quais forem, ao livre senhorio do indivíduo sobre o próprio corpo. Do livre alvedrio em relação a este só poderá ser privado em graves contingências, obra do indivíduo mesmo, ao delinqüir, ou pela necessidade amarga, mais inevitável, de que a justiça repressiva, ao inquirir dos crimes, ponha em seguro pessoas, talvez inocentes, que os indícios desgraçadamente acusam. Mas, para se realizar legitimamente esse fato, gravíssimo entre todos, de tirar a um homem a sua liberdade individual, se requerem formas severas, garantias solenes, cuja observância interessa, não só ao cidadão particularmente, senão à mesma vida jurídica de todo o Estado. Ora, firmado assim solenemente este direito de liberdade, se pergunta que sanção terá ele, sendo certo não existir idéia de direito sem a sanção correlativa. E tal sanção não a podemos encontrar em um julgamento posterior, que condene e castigue o funcionário público, autor do ato ilegal, por onde a liberdade individual se cerceou: sua defesa se concebe, antes de tudo, como reação imediata e direta. Assim acontece com o direito supremo da integridade pessoal. O caso não diversifica, tratando-se destoutro supremo direito, que se traduz na liberdade da pessoa. Mais exata e preferível, por isso, se nos figura a doutrina dos escritores, que, em vez de enumerar os direitos de resistência entre os direitos de liberdade, o têm pela garantia comum aos vários direitos de liberdade individual”.

Sabeis quais são esses direitos? Eis como os define Palma, no seu Diritto costituzionale (V. III, pág. 66) e Brunialti (Libertà nello Stato moderno, p. CLX): “Não abrange a liberdade individual unicamente a liberdade física de ir e vir donde e aonde se queira, a de todos os movimentos da pessoa, isenta de dar contas a ninguém, a de sair e emigrar do Estado e, sobretudo, por tudo isso, a de não poder ser arbitrariamente preso ou detido. Compreende ainda o direito de fechar a sua casa (que é um anexo da personalidade) a quem quer que for e com especialidade aos agentes do poder público, salvo, está sempre entendido, a exceção de justa causa. Inclui, enfim, a inviolabilidade das cartas, dos telegramas, da correspondência, que formam parte igualmente preciosa e melindrosa da nossa personalidade”.

De todos esses direitos é abrigo, é instrumento, é braço o direito de resistência: abrigo e escudo para a defesa passiva da imobilidade espectante; instrumento e braço para a reação ativa pela força.­

Nem na enunciação desta verdade, axiomática nos países livres, a ciência comporta “as teorias médias, que, distinguindo, admitem, ou negam o direito de resistir. Não tem sentido, a este respeito, o discrime entre dano reparável, ou irreparável, uma vez positivamente reconhecido o direito a resistir. Tampouco é séria, juridicamente falando, a distinção entre injustiça evidente, ou não evidente. Nada mais errôneo que introduzir variáveis elementos subjetivos, quando de direito se fala. Manifesto, ou não, quando objetivamente um atentado existe, existirá sempre o direito de rebeldia a ele”.

Sob as instituições despóticas, banidas pela inauguração do reino peninsular, houve, nesta questão, suas dissidências entre os criminalistas italianos. Nos tempos mais recentes quase as não há. E, para sentir a vitória absoluta do princípio liberal, basta percorrer o estudo de Masucci, no Filangieri, sobre o Direito e delito de resistência, a justificação desta por Pessina no Tratado de criminalidade especial e a apologia desse direito pelo príncipe dos criminalistas italianos (Carrara: Programa, parte espec., §§ 2.760-2.779). Quanto aos publicistas, aos expositores do direito político, sob a Constituição atual, “todos se têm declarado energicamente pelo direito de resistir”. A opinião unânime deles poderia resumir-se nas palavras categóricas de Aly Brunalti (Dir. cost., I, p. 383), reconhecendo ao indivíduo o jus inquestionável de tratar o agente da autoridade, que lhe viola o domicílio, ou o prende sem as formas da lei, como trataria o mais vil dos malfeitores:

“Quando un pubblico funzionario entra in una casa, o mette le mani addosso ad un cittadino non colto in flagranza di reato, noi ci possiamo difendere da lui come dall’ultimo dei malfattori.”