Amor de Perdição/Prefacio

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PREFACIO


Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartorio das cadêas da Relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:

Simão Antonio Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na occasião de sua prisão na cidade de Vizeu, idade de dezoito annos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castello-Branco, estatura ordinaria, cara redonda, olhos castanhos, cabello e barba preta, vestido com jaqueta de baetão azul, collête de fustão pintado e calça de panno pedrez. E fiz este assento, que assignei. Filippe Moreira Dias.

Á margem esquerda d’este assento está escripto:

 

Foi para a India em 17 de Março de 1807.

 

Não será fiar demasiadamente na sensibilidade do leitor, se cuido que o degredo de um moço de dezoito annos lhe havia de fazer do. Dezoito annos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não sonha em fructos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito annos! O amor d’aquella idade! A passagem do seio da familia, dos braços de mãe, dos beijos das irmās para as caricias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mesmos aromas, e á mesma hora da vida! Dezoito annos!... E degradado da patria, do amor, e da familia! Nunca mais o ceo de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem rehabilitação, nem dignidade, nem um amigo!... É triste!

O leitor de certo se compungia; e a leitora se lhe dissessem, em menos de uma linha, a historia d’aquelles dezoito annos, choraria! Pois não? A olhos enchutos poderia ouvil-a a mulher, a creatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes traz comsigo do ceo um reflexo da divina misericordia, essa, a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdêra honra, rehabilitação, patria, liberdade, irmãs, mãe, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de innocentes desejos?!

Chorava, chorava! Assim eu lhe soubesse dizer o doloroso sobresalto que me causaram aquellas linhas, de proposito procuradas, e lidas com amargura e respeito e, ao mesmo tempo, odio. Odio, sim... A tempo verão se é perdoavel o odio, ou se antes me não fora melhor abrir mão desde já de uma historia que me pode acarear enojos dos frios julgadores do coração, e das sentenças que eu aqui lavrar contra a falsa virtude de homens, feitos barbaros, em nome de sua honra.