Anais da Ilha Terceira/I/XXXVI

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Começou no ano de 1501 o novo governo da ilha Terceira , vindo nele provido D. António de la Puebla, homem velho e achacado, mas de grande experiência de negócios administrativos e manejo das armas, tendo a patente de mestre de campo, e sendo juntamente encarregado da gente de guerra e das justiças.

Havia-se procedido à arrematação do rendimento das alfândegas e mais direitos reais desta e das outros ilhas dos Açores, segundo consta, a 22 de Novembro de 1584, nos paços de El-Rei à Ribeira, pelo negociante Pedro Borges de Sousa , por espaço de 6 anos, e por 30 contos de reis em cada um deles, para serem pagos na maneira seguinte: dois contos ao Bispo, fábricas, clerezia, seminários, &c, com abatimento da pirataria que acontecesse sobre o negócio.

Eram estes direitos reais procedidos do pastel, trigo, cevada, centeio, vinho e açúcar; rendimentos das próprias ervagens, entradas e saídas das alfândegas e chancelaria; pensões de ofícios e mercês, gados, lenhas, e tudo o mais que pertencia à fazenda. Devia também o arrematante pagar a redízima aos donatários de cada uma das ilhas. Segunda vez arrematou Pedro Borges de Sousa estes direitos no ano de 1591, por espaço de 6 anos, e por 30:333$400 réis em cada um ano, debaixo das mesmas condições.

Taxou El-Rei o trigo deste ano, apara se vender até ao dia de Nossa Senhora de Setembro, a 70 réis o alqueire.

Ao referido governador escreveu El-Rei uma carta em 10 de Janeiro de 1593, queixando-se de que, não obstante o preço porque taxara o trigo neste ano, se vendia mais caro aos povos por causa dos soldados e doutras pessoas interessadas, pelo que ordenava se tomasse somente a quantia necessária para se evitar a venda e o monopólio. Que também lhe constava a necessidade de se repararem algumas casas onde estava feito alojamento, e que os soldados não queriam sair delas; que a Câmara as não deixasse deteriorar, e não desse por negociações algumas dos soldados, antes fizesse imediatamente cumprir o que se lhe ordenava. Que outrossim lhe constava residirem na cidade Tomás Tupe e Guilherme Dart e outros de nação, em cujas casas se reuniam flamengos e franceses, que por eles se podia avisar o inimigo do que se passava na ilha; pelo que os intimasse, que sem demora e sem excepção de pessoa subissem para fora dela .

Um dos actos governativos de António de Ia Puebla foi a fundação do castelo de S. Filipe, que já em tempo do Cardeal Rei D. Henrique se inventou edificar no Monte Brasil, o que se não verificou por divergência de pareceres entre os da governança da cidade; mas apenas El-Rei de Castela entrou no governo de Portugal e desta ilha, tratou logo de o fundar, não só para que a defendesse, mas ainda para que auxiliasse as demais ilhas, se por inimigos fossem entradas. Desta forma, achando-se presentes o governador dito António de la Puebla e o Bispo D. Manuel de Gouveia, por ambos foi lançada com grande festa e concurso de povo a primeira pedra daquela fortaleza , que El-Rei mandou se chamasse de S. Filipe em honra do santo do seu nome: “e é muito de notar — diz o padre António Cordeiro — que houve logo ali quem exclamou e disse que nela fundavam um grilhão para toda a ilha, &c., &c.”; e o tempo depois mostrou quanto este dito parece ter sido uma profecia.

Tão grande era a falta de meios para o pagamento dos soldados, que o governador, o corregedor e o contador do presídio, no dia 23 de Janeiro, foram à casa da Câmara da Praia requerer aos vereadores, que, para se evitarem desordens e avexações que podiam acontecer, fizessem uma derrama pelas pessoas mais abastadas do concelho, a fim de lhes emprestarem dez mil cruzados precisos para o sustento das quatro companhias destacadas naquela vila nos meses de Fevereiro e Março. A este requerimento deferiu a Câmara, e depois de nomear as pessoa que haviam contribuir com o empréstimo dos dez mil cruzados, elegeu para tesoureiro o rico mercador Bartolomeu Gonçalves Moreira.

Pouco tempo depois falecia o mestre de campo António de la Puebla com geral sentimento dos habitantes destas ilhas, pelas boas maneiras com que ele se houvera no seu importante cargo. Sucedeu-lhe D. António Sentono, cavaleiro da Ordem de S. João, de cujo governo vamos tratar.

Foi este ano de 1593 chamado, naquele século, o da fome, porque nele experimentou a ilha Terceira gravíssima falta de pão; e tal foi a penúria dos frutos da terra, que nos primeiros meses se vendeu o alqueire de trigo a 320 réis, e por fim chegou a 400 réis, morrendo à fome muitas pessoas. Contou-se este pelo segundo castigo que experimentou a ilha Terceira depois de tão cruenta guerra. A esta grande falta sucedeu uma copiosa abundância de frutos nos três anos imediatos, quando em Portugal, pelo contrário, houve grande esterilidade.

Escreveu El-Rei ao corregedor Diogo Monteiro de Carvalho , em 19 de Junho de 1595, determinando-lhe fizesse embarcar todo o trigo que houvesse nas ilhas, excepto o dos exames, pois que havia muita necessidade dele; acrescentando que neste sentido escrevera também para S. Miguel ao juiz de fora de Ponta Delgada, Pedro Afonso do Figueiredo. E ajuntando-se as Câmaras de Angra e a da Praia na vila de S. Sebastião, a 25 de Agosto, com o governador, com o corregedor, e com contador do presídio Hernando Ortiz de el Rio , assentaram que o preço do trigo se regulasse a 120 réis o alqueire. Mas não esteve por isso o governador, antes mandou afilar os pesos do pão e da carne à sua vontade, para com isto favorecer o provimento dos soldados do presídio, impedindo a execução da taxa e posturas dos concelhos, do que se queixaram amargamente a El-Rei as Câmaras todas, e principalmente a de Angra pelo seu procurador Custódio Vieira Bocarro , o qual também levou outros apontamentos tendentes às necessidades de toda a ilha, e cartas para o donatário D. Cristóvão de Moura.

O que sobre estes objectos se providenciou consta dos documentos (— Documento U** — e — Documento V** —) e foi o governador asperamente repreendido em carta régia de 7 de Junho de 1597, para que se não intrometesse de ali por diante nas coisas do regimento da terra, que lhe não pertenciam, mas sim ao corregedor e às Câmaras; que não tratasse mal de palavras os naturais da ilha; que procedesse com brandura e suavidade em tudo o que se oferecesse, como fizeram os seus antecessores Juan de Horbina e António de la Puebla, de cujo governo se louvavam sempre muito os naturais das ilhas, porque deixavam fazer seus ofícios ao corregedor e às Câmaras livremente.

Também nestes calamitosos tempos não deixou de acender o fogo da discórdia entre os habitantes da ilha Terceira, e das mais ilhas dos Açores, a classe dos nobres que andava, na pauta do governo municipal da cidade e vilas; pelo que, informado El-Rei da desordem que nisto havia em tempos tão arriscados à segurança e paz das famílias, enviou ao corregedor o capítulo da carta régia (— Documento W** —) para que ele devassasse de todos os subornos das eleições, na forma da provisão que já a este respeito dera relativamente à eleição da cidade de Angra, e que quando fosse às ilhas devassasse a este respeito dando os necessários recursos.

Parecia que o céu com todos os flagelos se havia armado contra a ilha Terceira, pois que não só a falta de pão e a desinteligência das autoridades perseguiam as deferentes classes da sociedade e suscitavam as maiores desavenças, também os inimigos externos porfiavam em destruir o comércio desta ilha, e roubar os poucos bens que lhe ficaram depois da entrada do exército castelhano. Não se esquecia Isabel, Rainha de Inglaterra, de perseguir o comércio e as possessões de El-Rei Católico, e no ano de 1597 pôs entre os mares dos Açores uma grande armada, composta de 140 velas , a cargo do conde de Essex, o qual, destacando uma parte dela para o canal entre a ilha Terceira e a de S. Jorge, a barlavento do porto de Angra, com a outra parte de armada se foi pôr entre a ilha do Faial e a do Corvo, cruzando, em uma e outra volta, aqueles mares; e não querendo o comandante estar ocioso, tentou um desembarque na dita ilha do Faial, com mil soldados, e a entrou sem resistência que lhe fizesse maior dano.

Quando porém se achava entretido no saque da vila da Horta, em que até lhe não escapou o mais sagrado, chegou a frota das Índias, comandada pelo capitão Juan Gutierrez Gamboa, ou Guarivai, como outros dizem, com tal fortuna sua que passou com vento favorável, sem ao menos ser visto dos moradores da mesma ilha; e desta forma veio amanhecer entre S. Jorge e a Terceira, quase a sotavento da primeira esquadra inimiga, que os pudera tomar em poucas horas. Julgando o conde que esta frota era a sua segunda esquadra, não fez movimento algum: e então conhecendo o espanhol o enleio do inimigo, ordenou que todos os navios lançassem bandeiras inglesas por quadra, e nesta forma vieram aproximando-se da terra quanto lhes foi possível.

Apenas o conde percebeu que esta era a frota esperada, lançou-se a todo o pano sobre ela, porém já foi tarde; porquanto apenas pôde alcançar uma fragata que tomou, contentando-se com atirar muitas bombardadas contra as mais embarcações que se haviam recolhido ao porto de Angra, e nele se achavam a salvo.

Não duvidou o general Guarivai que o conde atacaria o porto no dia seguinte com todo o seu poder, e por isso, à maior pressa, desembarcou em terra todas as drogas de maior preço, e com a maior brevidade.

No entretanto procediam os ingleses no saque da ilha do Faial tão impiamente que, depois de roubarem as casas com a maior crueldade, entraram nas igrejas, profanando-as e levando consigo as vestiduras sacerdotais, os vasos sagrados e até os sinos; e não contentes com todos estes desacatos, finalmente largaram fogo às igrejas, as quais El-Rei depois mandou restituir à antiga forma .

Já neste tempo se havia dado princípio ao castelo de S. Filipe, e por isso mandou o governador António Sentono recolher nele a riqueza imensa desta frota , guarnecendo aquele porto com toda a gente de guerra e assestando sobre ele muita artilharia com que pretendia repelir o inimigo se ele voltasse. Tudo isto foi escusado; porque vendo ele aqueles preparativos, e a vigorosa resistência que se lhe havia feito no porto, em que se achavam recolhidos os navios da frota, desistiu do intento e retirou-se.

Não cessavam os vexames dos povos, mui principalmente nas vilas e na cidade, por causa do provimento e alojamento dos soldados. A 19 de A gosto de 1597 ajuntaram-se as Câmaras na vila de S. Sebastião, com o governador, corregedor, contador e tenedor dos bastimentos, e assentaram enviar à corte de Madrid um deputado a requerer à custa das Câmaras sobre este objecto. A 25 de Agosto tornaram a ajuntar-se, e taxaram trigo a 120 réis o alqueire.

Pouco tempo depois chegou o alvará de 22 de Fevereiro do mesmo ano, que, revogando aquele de 1592 pelo qual se mandou fintar a fazenda dos presentes e ausentes, novamente determinou imposição nos vinhos, carnes e azeites, isto somente durante o tempo que existisse a dívida dos alugueres das casas onde se alojara o presídio desde 1583; declarando-se na apostilha de 24 de Julho, que esta disposição fosse extensiva às vilas de S. Sebastião e da Praia ; e que os escrivães da Câmara servissem de escrever nos livros da receita e despesa que para esse fim se mandavam fazer.

Por constar a El-Rei o excessivo preço da carne de vaca, determinou, por alvará de 17 de Agosto, se vendesse o arrátel a 10 réis, e a de porco a 14 réis, e que nas devassas gerais se perguntasse pela execução deste alvará, que mandava cumprir em todas as ilhas dos Açores, não obstante quaisquer usos, costumes, acórdãos e posturas em contrário.

Já estas providências vinham tarde, e o negócio pedia tanta prontidão em se despachar, como cuidado tinha sempre havido em se requerer, ao mesmo tempo que os soldados se achavam aquartelados pelas casas, uma grande parte casados , e senhores de tudo quanto nelas havia, sem que os donos tivessem acção activa nem passiva, antes lhes davam tudo quanto eles queriam, ou lho tiravam à força.

Nestas circunstâncias não era possível quererem sujeitar-se aos seus chefes, que de perto os vigiariam nos quartéis e chamariam à necessária disciplina, inteiramente relaxada com a devassidão e com os maus costumes que a insolência e o roubo lhes haviam ensinado. Por outro lado, a falta dos meios necessários, pela esterilidade dos campos há tantos anos, e a falta de pronto pagamento dos soldos pareciam justificar qualquer movimente contra os seus chefes e pessoas opostas. Por tudo isto, e por outras indisposições que o tempo veio arrastando, o certo é que os soldados dos presídios de Angra, da vila da Praia e de S. Sebastião formaram o plano de se livrar do domínio de seus chefes .

Neste péssimo intento, os que se achavam destacados em diversos postos da cidade e nos dois castelos, correram às armas, cercando os quartéis do governador e oficiais; porém, como deste motim houveram algumas suspeitas anteriormente, e os soldados do presídio não eram todos do mesmo partido, já eles se tinham posto em segurança, e reunindo-se com as companhias portuguesas que de noite rondavam a cidade, opuseram-se aos amotinados, os quais depois de grande resistência, e com muito trabalho, mortos e feridos de parte a parte alguns soldados, foram vencidos, mui principalmente pelo valor e respeito devido a Filipe Espínola e Queiroz, 1.º tenente do presídio.

Na vila da Praia era cabo das companhias o capitão Francisco de la Rua, e subalternos eram o capitão Herrera, D. Pedro e outros mais. Incorporando-se então parte das companhias com as duas da vila de S. Sebastião, das quais era capitão Diogo de Obregón, que já levavam preso, com grande alvoroço armados em campo cercaram o corpo da guarda, porém com tal fortuna do capitão-mor Francisco de la Rua, que ele se pôde escapar às mãos dos sediciosos, e fazendo corpo com a companhia do capitão Francisco da Câmara Paim , em pouco tempo, depois de alguma resistência, começaram a sossegar os amotinados, com morte e ferimento de alguns .

Houveram bem fundadas suspeitas de que este motim fora animado pelo sargento-mor daquela vila, António Cardoso Machado, e por isso El-Rei o mandou prender e enviar à corte de Madrid com toda a segurança, incumbindo esta diligência ao dito Francisco da Câmara Paim; mas não sabemos o resultado da sua prisão, somente consta que os soldados cabeças do motim foram garroteados na forca do castelo.

No ano de 1599, existindo ainda as mesmas causas, apareceram iguais efeitos. Amotinaram-se outra vez os soldados do presídio; e as companhias da Praia puseram-se em campo armado contra os capitães estando por seu cabo D. Gaspar de Castil Blanco. A esta revolta acudiu prontamente o dito capitão Francisco da Câmara Paim, e unindo-se com a oficialidade espanhola, desarmaram os soldados, mas não sabemos que castigo tiveram por esta segunda rebelião .

Alguns motivos houveram, que perfeitamente ignoramos, pelos quais no ano de 1597 mandou El-Rei acabar nestas ilhas os bodos do Espírito Santo . E se nos é permitido fazer sobre isto algum juízo, não duvidamos acreditar que El-Rei D. Filipe, o Prudente, teria uma grande causa para assim o determinar, já pelo abuso dos festejos profanos dentro nas casas dos imperadores, nos adros das igrejas e dentro delas, já pelas desordens que nestes dias se promoviam, originadas dos excessos da mesa, de que não faltavam exemplos. Qualquer que fosse o motivo, o certo é que se expediu uma provisão a este fim, e se lhe deu a execução nesta ilha , ainda que depois foi derrogada, porquanto achámos que já no ano de 1600 continuava a mesma devoção das festas e bodos do Espírito Santo.

No fim deste ano de 1597 faleceu o Bispo D. Manuel de Gouveia, por excelência chamado o Casto, geralmente chorado de todos os seus súbditos, aos quais ele muito favoreceu solicitando-lhes muitas honras e fazendas. Foi o 8.º Bispo da Sé de Angra, e o 4.º que nela jaz.

Erigiu a paroquial de Santa Luzia, nomeando-lhe seu primeiro vigário Pantaleão Estaço de Távora, que não chegou a confirmar-se nesta igreja, sucedendo-lhe o padre Manuel de Araújo de Ávila, que foi confirmado a 8 de Fevereiro de 1585 com ordenado de 35$000 réis.

Cumpre-nos agora o relatar as mercês que El-Rei Filipe, com mão verdadeiramente liberal, fez às igrejas e a todo o estado eclesiástico secular e regular desta ilha desde que tomou passe dela, e muito mais depois de nomear Bispo da diocese aquele tão virtuoso varão .

No ano de 1584 foi acrescentado o sochantre da Sé com mais 2$000 réis, além de 18$000 réis que já tinha, e assim o organista com 2$000 réis, e ficou com 12$000 réis, a exemplo do que servia na ilha da Madeira. Por alvará de 5 de Março foram criadas na Sé mais quatro capelanias, além das quatro que já havia, e com ordenado de 10$000 réis cada uma, a requerimento do dito Bispo que já estava nomeado. O mesmo acrescentamento se fez ao mestrado da capela, que tinha 20$000 réis, por alvará de 8 de Agosto.

Foi acrescentado o ordenado de porteiro da massa com 4$000 réis e um moio de trigo, e veio ater 8$000 réis; e assim também foram acrescentados outros a empregados da Sé. Por alvará de 13 de Outubro de 1597 obtiveram os padres da Companhia, por conta dos 600$000 réis com que foram dotados, 30 moios de trigo, a 3$300 o moio, na forma das ordenações eclesiásticas. A 14 de Fevereiro de 1590 assinou-se o ordenado ao ouvidor e vigário geral, duas partes a trigo e uma a dinheiro. Também foi criada uma ouvidoria na ilha de S. Miguel.

No mesmo ano de 1590 mandou El-Rei que as obras da Sé, paradas há muito pelo desassossego dos tempos, continuassem, e assentou o governo interino de Juan de Horbina, corregedor e provedor Cristóvão Soares e Bispo D. Manuel de Gouveia, que o tesoureiro dos 3 mil cruzados consignados para estas obra desse contas ao provedor da fazenda .

Atendendo El-Rei às súplicas do dito Bispo, acrescentou as côngruas dos párocos desta ilha, elevando-as do estado era que estavam desde o ano de 1586. Também havia El-Rei nomeado, por alvará de 18 e Março de 1588, deão da Sé António Pires do Canto, clérigo in minoribus, o qual depois casou primeira e segunda vez , e então foi provido no mesmo cargo Lopo Gil Fagundes, que o exercia já em 1602, continuou a exercer até à sua morte em 1630.

A 17 de Setembro do ano de 1598 faleceu El-Rei Filipe I de Portugal e II de Castela, em idade de 71 anos. Achou-se em pessoa na batalha contra os franceses e os venceu; em memória desta acção fundou o palácio do Escurial, prodigioso edifício que o mundo admira, e no qual se fez a enorme despesa de 12 milhões. Seu filho Filipe II de Portugal foi aclamado nesta ilha em 31 de Janeiro de 1599, com as solenidades do costume ; e quando na vila de Praia se aclamou, havendo dúvida a respeito da pessoa que elegeriam mais digna para fazer a aclamação, foi por voto de todos nomeado o capitão Francisco da Câmara Paim.

Em princípio do ano de 1599 faleceu o corregedor Diogo Monteiro de Carvalho, e em seu lugar foi provido o bacharel Leonardo da Cunho, a 25 de Fevereiro. Teve o mesmo poder e alçada que lhe foi dada para servir na comarca de Leiria, de onde veio; e tomou posse do cargo em Ponta Delgada da ilha de S. Miguel, a 22 de Março de 1600 .

Concluiu o século XVI com o terrível contágio que padeceu a ilha Terceira neste ano de 1599, chamado do mal. Começou a laborar na cidade de Angra no dia 15 de Abril . Não procedeu da corrupção dos ares, porque alguns lugares houve onde ele não tocou, nem ainda mais levemente, como foi no lugar que por esta causa se chamou depois o Posto Santo, nem dentro na Agualva, talvez pela frescura das águas e sombrio dos arvoredos. Começou com ardentíssimos sintomas, de que procediam em poucas horas umas mostras de antrazes ou carbúnculos, a que por último se lhes aplicou o remédio de serem sarjados, porque, a ter-se dado por este pronto remédio, não haveria o estrago que se experimentou: desta forma, ainda que tarde, escaparam muitas pessoas, que foram as últimas em que deu o mal. Nos meses de Julho e Agosto progrediu com tal excesso, que foi necessário estabelecer casa de saúde ao saínte do portão de S. Bento, na herdade do sargento-mor Gaspar de Freitas da Costa, loco-tenente do marquês de Castelo Rodrigo, em cujo lugar se fundou depois a ermida de S. Roque, e mais tarde o convento dos frades capuchos. Ofereceram-se para enfermeiros naquela casa dois religiosos franciscanos, um dos quais se chamava frei Pedro dos Santos, estudante de artes, que depois foi comissário e custódio dos conventos destas ilhas, e frei Jorge de Sáfara, também estudante, os quais com a maior paciência e caridade verdadeiramente cristã, permaneceram naquele sítio, amezinhando e curando os enfermos enquanto durou o contágio .

Conta-se que mandando-lhe à força o governador António Sentono outro religioso para os ajudar, tão infelizmente se houve nos seus curativos que os dois religiosos escreverem ao governador, dizendo que não careciam quem os ajudasse naquele trabalho, e mandaram sair o tal padre para o seu convento.

Mui grande foi esta calamidade, e maior se tornou, porque os moradores da cidade estavam privados do comércio com as ilhas de baixo, e com as freguesias dos montes, donde lhes vinham as coisas necessárias para o sustento. Tomou a cidade por padroeiro o mártir S. Sebastião, com promessa de lhe fazer o Senado todos os anos a sua festa, e assistir a ela na ermida que lhe mandou fazer, a qual depois serviu ao convento das religiosas capuchas.

A 6 de Junho daquele ano ajuntou-se na igreja da Misericórdia da Praia (por se achar interdita a igreja matriz) a câmara, com a nobreza, clero e povo, para escolherem um Santo que fosse advogado da vila, e metendo os nomes de 13 Santos em uma urna; dela, um menino vestido de frade, extraiu um bilhete que continha o nome do mártir S. Sebastião, a cuja ermida foram logo era procissão jurar o aniversário daquele dia, que era o da Santíssima Trindade; voto aquele que até aos nossos dias e extinção da igreja foi cumprido .

Em 21 de Maio fez-se casa de saúde, no sítio em que hoje se acha a canada deste nome, e o capitão Francisco da Câmara Paim foi nomeado guarda-mor. Acha-se no livro dos óbitos da igreja matriz um termo feito pelo vigário Bartolomeu Cardoso, do qual se podem colher algumas outras particularidades interessantes sobre este objecto (— Documento X** —). Dele consta falecerem nesta paróquia 700 pessoas.

A 17 de Maio do mesmo ano de 1599 compareceram na casa da Câmara de S. Sebastião, o vigário Tomás de Porras Pereira e os 4 beneficiados da igreja matriz requerendo providências para se evitar o contágio que tinha começado no dia 5 de Abril; e porque de Angra procedera, determinaram pôr guardas nos caminhos, para que ninguém entrasse na vila vindo daquela parte. Também a Câmara tomou por advogado da vila o mártir S. Sebastião, orago da igreja; e porque os rendimentos da Misericórdia eram mui diminutos, lançou a Câmara finta sobre os moradores mais abastados, para socorrer os pobres, e nomeou cobradores dela ao dito vigário, e ao capitão-mor Aleixo Pacheco de Lima, os quais exerceram este cargo enquanto durou o mal.

Faleceram finalmente em toda a ilha acima de 7 mil pessoas de um e outro sexo, maiores e menores , cujos cadáveres foram sepultados nas igrejas, adros e cemitérios, e até em alguns cerrados, que nem por isso ficaram privilegiados nem devolutos aos concelhos, antes se ficaram lavrando e cultivando como de antes .

Durou o contágio até 20 de Janeiro de 1 600, em que se levantou bandeira de saúde. Desta forma experimentou a miserável ilha Terceira, no decurso de menos de 20 anos, os três flagelos com que o Céu a açoitou, a saber, peste, fome e guerra, sem excepção de sexo, idade ou pessoa.

Notas[editar]