Anais da Ilha Terceira/IV/IV

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Capítulo IV[editar]

Goza a ilha Terceira por algum tempo de certa tranquilidade, com a vinda do novo general Touvar. Reconhece el-rei D. João VI a independência do Brasil e a seu filho, D. Pedro de Alcântara, como sucessor da Coroa de Portugal; nomeia a regência e morre. Outorga D. Pedro a Carta Constitucional, abdicando a coroa em sua filha D. Maria da Glória, elegendo lugar-tenente a seu irmão, o infante D. Miguel, que apenas chega a Lisboa, dissolve as Cortes. Modo com que é festejada a notícia na Terceira, a qual enfim o aclama rei absoluto de Portugal e seus domínios.

Chegou o ano de 1825, que a par do governo do capitão-general Manuel Vieira Touvar de Albuquerque, trouxe a tranquilidade, e o desejado sossego público. Logo a Câmara da cidade que então se achava composta de cidadãos beneméritos, levou à presença d’el-rei uma sincera confissão, do quanto se achavam penhorados os povos do seu concelho, com a outorga do decreto de 17 de Setembro do ano findo, pelo qual Sua Majestade era servido desaprovar os factos praticados nos primeiros dias de Agosto do ano de 1824; factos de que largamente se falou no Capítulo III destes Anais.

Então, em agradecimento de tão sabia providência, solenizou-se na mesma cidade o aniversário do nascimento d’el-rei com a possível grandeza, assistindo a todos os actos, o bispo e o general, que no seu palácio deu um esplêndido jantar às pessoas de maior representação na ilha.

No dia 5 de Junho houveram as mesmas salvas, Te-Deum na Sé catedral e baile no palácio do governador, reservando-se os festejos da praça, que no tempo não cabiam, para o dia 24 do mês, em que tiveram lugar por intervenção dos mancebos e cavalheiros Teotónio d’Ornelas, e seus primos Pedro Homem, e Manuel Homem.

Preparou-se a praça com entusiasmo nunca visto; houveram cavalhadas1, contradanças e grandes touradas; notando-se que neste círculo, onde concorreram mais de cinco mil pessoas, durando quatro dias, não aparecesse o mais leve descontentamento.

Sem embargo deste agradável exterior, a ilha achava-se dividida em dois partidos, que aparentemente se mostravam indiferentes a quaisquer mudanças; e assim não durou por muito tempo a neutralidade.

De mais longe vinham os pretextos gravíssimos para se dar pasto a novas discussões. Vieram os direitos da sucessão da coroa; vieram, digo, esses aparentes fundamentos pelos quais os realistas consideravam o infante D. Miguel seu único e legítimo soberano, depois da morte d’el-rei D. João VI; e os constitucionais a D. Pedro seu irmão, pelos incontestáveis direitos do nascimento, evocação das leis do reino, desde o princípio da monarquia e ainda mais pelo direito público respeitado na Europa2.

Pôs-se o negócio em conflito jurídico, à disposição de quem queria opinar, conforme o seu humor; e acrescendo a independência do Brasil, não faltou quem, reputando D. Pedro como estrangeiro, ainda mesmo por seus próprios actos, pelas recentes leis do império, pelos actos formais de sua emancipação e, ultimamente, pelas hostilidades executadas contra a sua pátria, o julgasse incapaz de reinar sobre os portugueses.

A todas estas dúvidas quis acorrer el-rei D. João VI com a sua Carta Patente de 3 de Maio, reconhecendo a independência do Brasil, e entregando a sua administração a seu filho D. Pedro, a quem considerava como sucessor de ambas as coroas.

Foi então que o partido da rainha D. Carlota se exaltou sobremaneira, com aquela tão estrondosa declaração, espalhando boatos, proclamações e papéis incendiários em toda a parte do reino, e seus domínios, com que veio animar os realistas da Terceira, dando por excluído D. Pedro da sucessão da coroa portuguesa, com os referidos fundamentos, especialmente por se ter armado contra a pátria.

Baseada nestes princípios, e usando todos os atractivos próprios a iludir os povos, foi a rainha insistindo no meditado projecto, valendo-se de outras proclamações cheias de fel e de amargura, contra os denominados “pedreiros livres”, aos quais se assacavam diversos aleives, e terríveis sacrilégios, com manifesta injustiça, e em que só o seu próprio partido tinha entrado3.

Em 29 de Agosto assinou D. Pedro o tratado para Portugal, levado ao Brasil por sir Charles Stuart, o qual também el-rei D. João VI ratificou em Lisboa no fim do mesmo ano.

Apesar de por este tratado se assinarem direitos e grandes vantagens para ambos os reinos, nem os portugueses nem os brasileiros se deram por satisfeitos com ele, concluindo estes por mostrar que não queriam que D. Pedro viesse a reinar ao mesmo tempo entre eles e os portugueses: o que passou el-rei D. João VI a resolver pelo édito perpétuo de 15 de Novembro do mesmo ano de 1825, reconhecendo seu filho D. Pedro como imperador do Brasil, consignando-lhe também a sucessão de Portugal, como primogénito da casa de Bragança; e tratou de lhe alcançar do gabinete de St. James as necessárias garantias, que assim mesmo não pôde conseguir, ficando tudo na mesma dúvida.

Este e outros desgostos de toda a espécie foram arruinando a saúde d’el-rei, que adoeceu gravemente a 4 de Março do ano de 1826, e largando o governo a sua filha mais velha D. Isabel Maria, com 4 conselheiros de Estado, constituiu-se uma regência, por decreto de 10 de Março, até que o sucessor da coroa desse as providências, no caso de se verificar a morte d’el-rei, que teve lugar no mesmo dia 10 de Março.

Passaram-se alguns dias de hesitação até que foi proclamado e reconhecido rei de Portugal D. Pedro, com o título de IV, e sob este nome se começou a governar a nação e a passar os títulos de fazenda e justiça, com obediência de todas as classes do estado, sem haver oposição alguma. Então enviou a regência ao novo rei uma deputação de 3 membros que o foi cumprimentar à Corte do Brasil, e receber suas ordens; e devemos advertir que todos estes actos foram reconhecidos e aprovados por toda a família real, e pelas nações estrangeiras.

Apenas D. Pedro soube da morte de seu pai, antes que a deputação chegasse, assumindo os poderes majestáticos, exerceu o primeiro acto de seu governo, confirmando a regência nomeada pelo defunto seu pai. Decretou também uma amnistia geral aos perseguidores e proscritos por opiniões políticas, e querendo erigir pendão para um formidável partido, de que tanto carecia, decretou a Carta Constitucional, aprovando a reunião das Cortes, e a nomeação dos Pares. E julgando de absoluta necessidade a abdicação da coroa de Portugal, assim o verificou em sua filha D. Maria da Glória, que nesse tempo contava 7 anos de idade, à condição de casar com seu tio, o infante D. Miguel, que imediatamente ia ser chamado de Viena de Áustria, para jurar em Lisboa a mesma Carta Constitucional, que para ali trazia o referido sir Charles Stuart.

Não tiveram escrúpulos as nações estrangeiras em reconhecer e assistir à elevação de D. Pedro, sem embargo de entenderem muito bem a incompatibilidade de poder ele governar de tão longe o reino; convindo também, lá para si, não prescreverem os direitos de seus filhos, segundo as leis regulamentares em semelhantes sucessões.

Achando-se então o infante D. Miguel em Viena de Áustria, foi esse mesmo gabinete o primeiro que, por ligações de parentesco, e por respeito à legitimidade de D. Pedro, reconheceu a regência à morte de D. João VI, e ao mesmo D. Pedro como seu sucessor.

Política foi esta que seguiram todos os gabinetes, excepto o de Espanha, que intentou passar a regência à rainha D. Carlota Joaquina, e por sua falta ao infante D. Miguel, a quem somente reputava com direito à coroa. Esta inclinação, além de outras causas, vinha-lhe das suas ideais contra as instituições liberais, e por esta causa é que recusou o reconhecimento de D. Pedro, como rei de Portugal.

Assim marchavam a passos largos as pretensões do Infante D. Miguel na sucessão da coroa: e a guarda da polícia que desde o ano de 1823 se acreditara tão afeiçoada ao sistema absoluto, preparava-se para elevar essa mesma bandeira, e aclamar no próprio sentido; mas o projecto abortou, e a 21 de Agosto foram deportados para estas ilhas os soldados amotinadores.

Desenvolveram-se progressivamente outras revoltas; acendeu-se a guerra civil, ferindo-se muitos combates. Todavia continuava a impunidade para com os inimigos da Carta, sem que um só deles experimentasse a acção da lei; e a suspensão do Habeas corpus, foi um sonho.

Durou a revolta 8 meses, conservando os revoltosos seus títulos e mercês! Estranho proceder!

No enquanto a infanta D. Isabel Maria, pelos seus actos governativos, manifestava auxiliar e concorrer para a destronização de D. Pedro, que a honrara com os seus poderes. De nada servia a oposição que lhe fizeram as Cortes na legislatura de 1827, porque, como o exército andava desmoralizado, chegaram-se a dar em Elvas vivas a “D. Miguei I, rei absoluto”, e que “morresse a Carta Constitucional”. Nem se dava execução aos decretos de D. Pedro IV, vindos do Rio de Janeiro, fundando-se a regente para este procedimento, em que tendo seu irmão abdicado a coroa de Portugal, lhe esperava o direito de decretar sobre ele.

Neste estado de coisas fácil é conjecturar o que iria nas diferentes repartições por onde passavam tais decretos. Todavia não eram estes argumentos e sua doutrina somente obra dos portugueses amigos do infante D. Miguel e de sua mãe; eram também efeitos de notas particulares de alguns gabinetes estrangeiros.

Sabendo el-rei D. Pedro o que se passava em Lisboa, onde o infante de acordo com o marquês de Chaves queria introduzir-se em Portugal, deliberou-se a chamá-lo ao Rio de Janeiro, a que ele formalmente se recusou, sabendo-se que era apoiado pelos gabinetes da Europa, que já tinham mudado de política4. E avisado também D. Pedro pelo general Saldanha para que de nenhum modo o nomeasse regente do reino, pois que a influência do gabinete de Madrid, e o domínio de sua mãe o levariam ao extremo de atraiçoar a Constituição, nada foi capaz de o fazer mudar daquele projecto, antes, por uma coisa incompreensível, se houve que D. Pedro, por decreto de 3 de Julho de 1827, o nomeasse regente do reino.

Deste procedimento inferiram uns que el-rei julgara mui precária a vida da infanta, outros supuseram que ele, observando o desprezo de suas ordens, a privara do cargo, como castigo de sua infidelidade.

Esta escolha fatal, a não aparecer justificada pelos posteriores actos de D. Pedro, ainda hoje daria que pensar aos do seu partido, que foram vítimas dos erros e desarranjo governativos da infanta, a respeito dos quais se explica nos seguintes termos um ilustre escritor: “A regência da infanta D. Isabel Maria é um dos períodos dos mais infaustos da história portuguesa: divide-se em duas épocas distintas, a saber: a primeira, a contar da morte de seu augusto pai até à outorga da Carta Constitucional; a segunda, desde o juramento da Carta (em 30 de Julho de 1827) ao desembarque em Lisboa de D. Miguel em 22 de Fevereiro do 1828. A primeira época foi a sucessão contínua da tarde amena e saudosa dos derradeiros dias d’el-rei D. João VI, desse monarca de comum tão injustamente avaliado por nacionais e estrangeiros” (Apontamentos de História, de A. da E. C.).

Não foi possível demorar mais o infante em Viena de Áustria; os próprios gabinetes de Inglaterra e de Viena não consentiram que ele estivesse ausente um só dia, declarando que tendo o infante completado 25 anos o não podiam reter. Infelizmente o mencionado decreto não continha cláusula nem restrição alguma, e por isso se não pôde concluir um tratado entre Portugal e o Brasil, para remediar os males que poderia trazer a vinda do infante regente; e garantir as promessas feitas por ele quanto a guardar a constituição da monarquia.

É bem sabido que se assinaram três protocolos nas três nações coligadas para destruir a Carta e que o infante insistiu em sair de Paris para Londres, preferindo vir por Madrid, para melhor concertar planos com seu tio Fernando VII, e com seus agentes e amigos ali emigrados.

Sendo ele mui distintamente recebido em Inglaterra, deste reino saíra com tudo tão industriado nas manobras da dissimulação, que chegando ao Tejo, debaixo de uma furiosa tempestade, como terrível presságio de seu governo, em 22 de Fevereiro de 1827, prestara juramento de fidelidade e de manter as instituições decretadas por seu irmão, como seu lugar-tenente. Não só isto fez o regente: decretou com efeito nessa qualidade. E ao mesmo tempo começaram as cenas de espanto e de terror, espalhadas pelos assalariados do seu ministro5, estendendo-se por todo o reino no meio de vivas aclamações ao rei absoluto.

A morte d’el-rei D. João VI foi ouvida na ilha Terceira com geral sentimento de todos os homens sisudos, amantes do sossego e tranquilidade da sua pátria, no dia 15 de Abril de 1826.

Logo nas fortalezas da cidade começou o funeral militar e em todas as igrejas paroquiais e mosteiros se manifestaram sinais da mais viva saudade por um rei que tanto soubera conciliar os interesses do reino, e socorrer as necessidades públicas numa nação decadente e minada de partidos violentos. No fim de três dias houve a cerimónia do luto e pranto pelos que andavam na governança da cidade, que eram António da Fonseca Carvão, Mateus Borges do Canto, e José Maria de Carvalhal; procurador Luiz António da Silva6. Na Sé Catedral cantou-se um ofício de música, no fim do qual houveram as descargas de artilharia e fuzilaria costumadas.

Publicou-se em Angra o luto a anual e o mesmo se fez nas vilas da Praia e de S Sebastião, em execução das ordens da regência; mas em nenhuma destas vilas se fez a cerimónia dos escudos, nem houve outra alguma demonstração que não fossem os sinais de sinos nas igrejas principais, notando-se esta falta procedente das autoridades locais, por se evitarem incómodos e despesas dos concelhos.

Cumpre notar que se a morte d’el-rei trouxe ao partido constitucional um grave sentimento, também trouxe ao realista um novo objecto de lisonjeiras esperanças, sabendo que o infante D. Miguel, que contra toda a expectação fora nomeado regente do reino, contando como uma necessária consequência que apenas ele pusesse pé em Portugal, não só recusaria subscrever o quanto decretara seu irmão, senão ainda poria em acção o seu reconhecido direito à coroa. Assim era pelas bem notórias razões expressas nas leis pátrias contra os que, como D. Pedro fizera, se tinham por si mesmo inabilitado para tais sucessões. Por sua vez, a falta de título do pai inabilitava a filha D. Maria da Glória, que nada tinha com o reino, ainda que seu pai tivesse nela abdicado uma coroa que já não era sua por várias razões.

Tais eram os discursos que faziam os realistas, espalhando esta doutrina entre o povo, que mui cordialmente os acreditava, conservando-se no entretanto disfarçada a maldade das suas intenções no muito que confiavam nas virtudes do infante, a quem invocavam em suas tribulações sociais como um Deus, única tábua de salvação, crendo que ele com a sua vinda acabaria todos os males, decidindo terminantemente quantas dúvidas sobre este objecto andavam; e tanto assim que por ocasião destas notícias se prepararam em Angra vários festejos e luminárias do melhor gosto e exibição, saindo pela cidade diferentes bandas de música com marchas e hinos realistas. Entre estes foi mui distinto e notável, executado com extremo entusiasmo e alegria, aquele que fez o chantre da Sé, Manuel Joaquim da Silva, debaixo da quadra — Vem oh infante — 7. Iguais festejos se repetiam todas as vezes que lhes constava o bom e próspero andamento dos negócios ante a regência de Portugal e gabinetes estrangeiros.

Prestou-se por consequência nas Câmaras da Terceira mui friamente o juramento à Carta Constitucional em 21 de Agosto de 1826, com assistência das três classes e de alguns cidadãos para isto oficialmente convidados. Houve Te-Deum e no fim os competentes vivas à Carta, ao Dador e à Regente, assim como à Santa Religião Católica Romana, e à jovem rainha; mas os realistas não cessaram, murmurando desta oferta muito às claras com o pretexto de ser obra dos ingleses, e tanto assim que fora trazida à ilha por mão de sir Charles Stuart8.

Sem embargo de que os constitucionais mui gostosamente concorrerem à primeira eleição de deputados às Cortes, em execução da mesma Carta, do que mofavam os realistas, esperando a sua queda logo que o infante chegasse a Lisboa, e cada vez mais se animaram, chegando ao arrojo de dizer que os dois irmãos andavam neste negócio de perfeita combinação.

Achando-se na ilha deportados alguns oficiais de Portugal, por opiniões políticas, com muitos soldados de artilharia, que fizeram os tumultos no ano de 1823 nesta ilha, não se podia conciliar inteiramente o sossega a respeito dos liberais, e espalhando-se também a notícia de que o Batalhão 5.º de Caçadores, que tinha vindo com o general Stockler, era removido para Lisboa, houve bastante receio de perigar logo em princípio a causa d’el-rei D. Pedro IV.

Publicaram-se também outros rumores pouco favoráveis ao andamento dos negócios constitucionais, motivo porque o vereador José Maria de Carvalhal, vendo a indiferença com os seus colegas ouviam todas estas novidades, tomou a palavra em uma das vereações ordinárias da Câmara da cidade, e disse (tendo já dito outras mais coisas): “Eia pois colegas, abandonemos de uma vez a repreensível apatia a que nos termos amoldado; ponhamos de parte considerações particulares, opostas a nossos sagrados deveres. Por desgraça não temos coragem para desempenharmos dignamente nossos importantes cargos! Então confessemos a nossa vergonhosa covardia, e apressemo-nos a pedir a nossa substituição por quem melhor cumpra os seus deveres. Não iludamos o soberano que nos confiou o bem destes povos; não enganemos a nossa pátria, que em nós confia, sejamos enfim sinceros e verdadeiros portugueses.” (Livro dos Acórdãos, página 165).

Deste pequeno artigo do acórdão9 colherão os nossos leitores qual era a vacilação e incerteza no bom êxito da causa de D. Pedro, em uma ilha, em que a Câmara principal carecia de tão severa correcção. Honra a este nobre vereador, que entre outros serviços à pátria nestes mesmos tempos, naquele dia assim manteve o seu lugar, envergonhando a quantos dormiam no descuido e deixando pouco a pouco ir minando a ilha até à necessária explosão política.

A 29 de Novembro tomou posse do cargo de corregedor Francisco José Pacheco: e tão estrondosamente começou nas audiências, e particularmente, a desenvolver-se contra os oficiais de justiça, publicando-se perseguidor de delinquentes, que não houve algum que na verdade deixasse de recear-se de vara tão poderosa. Naturalmente ríspido, e desagradável para as partes, não se demorou em mostrar o que era, excedendo se nas coisas de seu ofício, e regimento da alçada; intrometendo-se, na qualidade de provedor dos resíduos, a tomar as contas da receita e despesa dos bens dos concelhos; procedimento a que as câmaras se opuseram fundadas no alvará de 12 de Maio de 1545, e provisões de 12 de Setembro de 1550 e de 9 de Novembro de 1734, que expressamente o proibiam, concedendo-o somente quando os corregedores estivessem de correição.

Deste abuso deu conta a Câmara de Angra à infanta regente em 14 de Fevereiro de 1827, queixando-se também (igual vexame ia nas outras câmaras da ilha) do mesmo corregedor porque mandara buscar os livros do registo e os das vereações para em sua casa os examinar e lhes pôr o visto.

Pelo que o mandou a Regência observar religiosamente o seu regimento, não se intrometendo na jurisdição alheia, e pelos meios defesos em direito. Apesar de tudo isto, os realistas respeitaram-no e temeram-no sempre muito enquanto os negócios do infante não tomaram aquele carácter e firmeza que há muito se meditava; e, experimentando alguma falta na ausência do bispo D. frei Manuel Nicolau de Almeida, que em Lisboa fora preso em razão de seus escritos pouco cautelosos10, e de algumas parcialidades, requereram, por mediação do procurador do concelho da cidade, ao infante regente, supondo-o já em Lisboa, lhes enviasse um bispo para esta diocese, por ser coisa de absoluta e reconhecida necessidade. Já nesse tempo era falecido o dito D. frei Manuel Nicolau de Almeida.

A notícia oficial de ter o infante D. Miguel chegado a Lisboa, e tomado conta da regência, na qualidade de lugar-tenente de seu irmão D. Pedro, chegou à Terceira no dia 21 de Março de 1828. Romperam logo as salvas de artilharia em todas as fortalezas da cidade, com repiques de sinos em todas as igrejas, e tudo com a maior alegria difícil de explicar.

O general Touvar imediatamente passou ordens para a iluminação da cidade e das vilas, na forma do costume. À noite apresentou-se defronte do seu palácio uma vistosa e rica iluminação, com os retratos do infante e das mais pessoas reais. Não duvidaram concorrer a ela muitos constitucionais e pessoas comprometidas nos diferentes acontecimentos dos anos anteriores, julgando ainda o infante e seus aderentes em sinceridade, firme nos juramentos que prestara.

E nesta mesma ocasião vieram diferentes bandas de música, tocando e cantando os hinos constitucionais, que nesse tempo não eram proibidos. Em uma destas veio o cavalheiro Teotónio de Ornelas, que seria em idade de 20 anos, e que até então estivera sujeito à tutela de sua mãe, a ilustre matrona D. Rita Pulquéria de Montojos; com ele vieram também seus primos Pedro Homem, e Manuel Homem da Costa Noronha, acompanhados de outros mancebos distintos por suas pessoas, qualidades e prendas; e em melodiosos sons de instrumentos e vozes entoavam o hino de D. Pedro; chegando finalmente defronte do palácio onde estava a iluminação, depois de darem algumas voltas no pátio, soltaram os vivas a el-rei, à Carta Constitucional e ao regente.

Porém notou-se que o general ouviu com indiferença este concerto, os vivas dados a D. Pedro e à Carta; e que não praticou a mesma acção com a segunda banda de música, dirigida pelos cadetes Luiz, e Estevam Pacheco, filhos do fidalgo Luiz Pacheco de Lima, que pouco depois chegaram acompanhados de várias pessoas de distinção e do povo, dando vivas ao infante D. Miguel, e tocando o hino realista; mas antes o general os recebeu com muita satisfação e aplauso, manifestando por este modo que semelhante distinção procedia de não ter esta associação dado vivas à Carta Constitucional, nem a el-rei D. Pedro.

Vinha também a segunda marcha acompanhada por alguns oficiais deportados de Portugal e de muitos soldados dos batalhões da ilha que serviram no ano de 1823 e os mesmos indivíduos continuaram no tríduo em que duraram as luminárias, fazendo parte daquela marcha, com muitos vivas ao infante, à rainha-mãe e ao general, o qual tanto os distinguiu, que os mandou entrar para a sala do dossel, recebendo-os ali com a maior satisfação e afabilidade.

Nem porque a esta segunda marcha se deu tão manifestos sinais de estima, deixaram os da primeira de voltar durante os três dias, ainda que bem entendiam o ânimo com que eram tratados; mas em todos os dias repetiram os mesmos vivas, sem alteração alguma; e é de advertir que o seu uniforme era: calça branca e casaca preta11, uniforme que os realistas olharam pela primeira vez, como demonstrativo de homens liberais, a que os outros pelo contrario chamavam — jacobinos, e pedreiros livres —, inimigos do trono e do altar.

Daqui procedeu em toda a parte da ilha o dizer-se, que existia um partido liberal em que se incorporava como chefe o dito Teotónio de Ornelas, cujo partido carecia ser circunspectamente vigiado, pois que ia contra a espontânea vontade nacional, que, bem entendido, somente levava suas vistas em aclamar o infante D. Miguel “rei absoluto de Portugal”. E como este era o sentimento que geralmente vogava no reino, não parecia difícil estabelecê-lo em uma pequena ilha, como a Terceira.

Em 29 de Março chegou notícia ao general que se ia promovendo em todo o reino a aclamação do infante: por quanto ele no dia 2 de Março dissolvera a Câmara dos Deputados, omitindo a formalidade de nova convocação; que tinha proibido nos editais da polícia e ordens do exército o cantar se o hino de D. Pedro, chamando-lhe estrangeiro: e que também proibira os vivas a este, e à Carta Constitucional; que por toda a parte do reino andavam emissários promovendo as aclamações tumultuárias a favor do novo rei absoluto; e que ele mesmo recebera, com especial agrado, felicitações de muitas corporações do estado; que na cadeira do Evangelho se explicavam e ensinavam os seus direitos aos povos, sem maior escrúpulo dos eclesiásticos, que tinham convertido a sua verdadeira missão em controvérsias de partidos, declamando com espírito furioso contra o sistema liberal.

Ouviu então o general Touvar estas e outras muitas coisas do estado político de Portugal com verdadeiro prazer, e delas deu logo parte à Câmara da cidade, onde foram recebidas, e bem entendidas por todos os vereadores e oficiais de que se compunha, a termos de quererem repetir e fazer outras iluminações semelhantes às do dia 21 de Março e seguintes.

A isto se opôs o juiz de fora José Jacinto Valente Farinho12 com o fundamento de se haver já solenizado esta notícia, o que desde logo deu ocasião a ser este magistrado tido e havido por inimigo do infante, e também o corregedor Francisco José Pacheco, o qual achando-se de correição na Vila da Praia, castigara alguns rapazes, que por influência e mandado de certos homens, andavam dentro na Vila apupando e tratando mal de palavras alguns liberais13, procedimento que muito ofendeu os realistas que de antemão queriam ir perseguindo e exterminando aqueles de quem se temiam.

Com tão estrondosos movimentos ninguém duvidava que a aclamação do infante se deixaria de verificar em Portugal quanto antes, e que pelos mesmos fundamentos não tardaria, e da mesma forma, a fazer-se nesta ilha; sem embargo do que trabalhavam incessantemente em Angra o juiz de fora, e na Praia, o corregedor, castigando e perseguindo os desorganizadores da ordem pública, prevenindo o acontecimento de tumultos e sublevações iguais às que tiveram lugar nos anos passados; ainda que estes magistrados não deixavam de lembrar-se quais as perseguições contra o corregedor Cordeiro e o juiz Grade, que no final foram depostos dos cargos.

No dia 17 de Maio recebeu ultimamente o general correspondências de vários amigos, e de seu irmão, o visconde de Molelos, com instruções particulares do governo de Portugal, certificando-o de que o infante D. Miguel no dia 25 de Abril promovera a sua completa aclamação, aceitando as representações da Câmara de Lisboa, além de receber a coroa com o título de “rei absoluto”; e que não cessando as perseguições contra os liberais, já muitos deles haviam assinado nos livros das Câmaras, em abono do meditado projecto; que enfim se ia pôr o remate em todo este negócio pela convocação dos Três Estados do Reino, para legalmente ser aclamado.

Nestas circunstâncias, bem viu o general ser indispensável, e até perigoso o deixar de promover a aclamação do novo rei, e por isso escreveu à Câmara da cidade, que em acabando a sessão daquele dia fosse a sua casa para conferenciar com ele em negócio do serviço de Sua Majestade.

Este ofício recebeu a Câmara, e o mandou cumprir. Disposta assim a obedecer ao chamamento do general, quando já dava a sessão por acabada, tomou a palavra o vereador mais moço, António Fournier Borges Cabral, e disse14: «que em Lisboa se tinha aclamado o Sereníssimo Sr. Infante D. Miguel Rei Absoluto, como constava do cartas particulares por ele mesmo vistas; e porque que lhe constava que naquele mesmo dia se haviam de fazer vários requerimentos à Câmara sobre este objecto, lhe parecia que ela devia tomar prévia deliberação, para se resolverem tais requerimentos antes deles entrarem”.

A isto responderam os mais vereadores que esta deliberação pertencia ao capitão-general. Mas o proponente replicou que se devia deliberar em razão de se achar o povo em desassossego e comoção. Imediatamente se levantou Joaquim Homem, serralheiro e um da casa dos 24 misteres, que tomando a voz do povo e da mesma casa dos 24 para a levar à Câmara representando que “o Sr. infante D. Miguel tinha sido aclamado rei absoluto em algumas províncias de Portugal, e talvez naquele tempo em todo o reino; e por essa razão o devia a Câmara aclamar naquele mesmo dia — Rei Absoluto!”

A tudo isto se opôs o juiz de fora José Jacinto Valente Farinho, dizendo: que a Câmara nada tinha a deliberar por dois fundamentos: primeiro porque não estava plena, pois lhe faltava o vereador mais velho João Sieuve; e o segundo porque, conforme o decreto de 25 de Abril, que estava presente, nada havia a resolver, vista a sua positiva proibição sobre esta matéria. Apesar disto, instou o dito procurador dos misteres que “se mandasse chamar João Sieuve, que a não obstante estar anojado havia de vir por estar muito ao facto de tudo”. E com efeito assim se executou; e vindo prontamente o dito vereador, primeiro que tudo se assentou: que a Câmara fosse ao capitão-general, como ele ordenava em seu ofício.

Saiu então ela, e primeiro que tudo lhe propôs o general, que o deão Frutuoso José Ribeiro, por uma carta naquela mesma data, e por outra do vereador João Sieuve lhe certificavam estar o povo da cidade em comoção, e que pretendia no dia seguinte aclamar Rei Absoluto o sereníssimo Sr. Infante D. Miguel, sendo tão positivos os termos daquelas cartas que na sua dizia o vereador: que se ele general não tomasse as necessárias medidas para se fazer a aclamação, que devia sem demora ter efeito, que ele então a faria com o povo. E por esta forma concluiu o general, dizendo que em vista daqueles representações tinha mandado chamar ao seu quartel os comandantes e oficialidade dos corpos militares, e que estes lhe afiançavam de se não intrometerem em comoção alguma popular, esperando as suas ordens positivas. E que acabando-se este negócio, assim esperava ele, que a Câmara tomaria a necessária resolução, deliberando em termos que se não alterasses o sossego público; e que o seu voto dele mesmo general era que “a Câmara, depois de ouvidas as três classe: do Clero, Nobreza, e Povo, representasse ao Trono a vontade e sentimentos que animavam o povo, imitando desta sorte a Câmara de Lisboa”.

Neste mesmo acto entrou o deão, governador do bispado, Frutuoso José Ribeiro, dizendo que o povo estava em muita efervescência, como já ele fizera ver a sua excelência, e que por isso não havia tempo a perder para se darem aquelas providências que fossem necessárias, a fim de se fazer a aclamação. Retirou-se consequentemente a Câmara à sala das suas sessões, e ali se resolveu a convocação do clero, nobreza e povo para o dia imediato, 18 de Junho, pela manhã, com o fim de consultar a opinião e voto geral dos habitantes da ilha.

Às 8 horas da manhã do dia 18 já havia na praça da cidade grande concurso de povo das vizinhanças da cidade, principalmente da Ribeirinha, e várias pessoas na sala da Câmara. Às 10 horas, antes de principiar a sessão, ouviu-se um grande sussurro na praça: era Luiz Meireles, Manuel de Lima da Câmara, João Pedro Machado, Manuel Tomás de Bettencourt, Mateus Pamplona Machado Corte-Real, e Mateus Moniz Pacheco de Lima, os quais, tirando os chapéus no meio da praça, e entre o povo, com os lenços nas mãos aclamaram em altas vozes ao “Senhor Muito Alto e Poderoso D. Miguel Primeiro, Rei Absoluto de Portugal, Algarves e seus Domínios”: — o que foi acompanhado pelo povo, e subiram logo depois à sala da Câmara, onde já estava o presidente. Foram estes vivas na praça acompanhados pelo coronel Caetano Paulo Xavier e Bento de Bettencourt Vasconcelos e no pelourinho repetidos por Manuel José de Castro, o Cerieiro, e Manuel Joaquim da Silva, o Madeira.

Começou então a sessão da Câmara pela leitura do decreto de 25 de Abril, oficio do general, e autos de vereação do dia antecedente, sendo o decreto lido em alta e inteligível voz, para que à vista dos acontecimentos que já tiveram lugar naquele dia, as pessoas que estavam presentes deliberassem as medidas que convinha adoptar. Então levantando-se os sobreditos Luiz Meireles do Canto, Manuel de Lima da Câmara, João Pedro Machado, Manuel Tomás de Bettencourt, Mateus Moniz Pacheco Mateus Pamplona Machado, Bento de Bettencourt de Vasconcelos15, Afonso José Maria, o capelão do colégio Manuel Joaquim Fernandes e o dr. Roberto Luiz de Mesquita disseram que “não havia que deliberar pois que o Sr. D. Miguel já eslava aclamado, e que eles mesmos o ratificavam”, dizendo em altos vivas dentro na mesma sala da sessão, que “ele era o nosso único e legítimo Rei, depois da morte do Sr. D. João VI”.

Em vista disto o juiz de fora, na qualidade de presidente, mandou se escrevesse o auto; e ele começou a ditá-lo pelos primeiros passos que tinha dado, mandando ler o referido decreto de 25 de Abril, e os mais ofícios e o modo com que tinha feito a proposta sobre o que convinha adoptar-se nas actuais circunstâncias. Ao que logo todos os sobreditos se levantaram ao mesmo tempo, dizendo: que o auto não ia conforme tinham deliberado, e que por isso se devia fazer outro de novo, concebido em diversos termos declarando-se nele a aclamação efectiva, que se havia já por eles praticado.

Não houve por consequência demora alguma: imediatamente se passou a lavrar o auto de aclamação, que foi ditado pelo dr. Roberto Luiz, de combinação com Jerónimo Martins Pamplona e o sobredito Luiz Meireles do Canto, sem que a Câmara tivesse ingerência alguma nele (Documento O). E fazendo-se algumas reflexões sobre o dito auto e palavras concluindo — que “o Senhor D. Miguel é o único Rei natural depois do falecimento d’el-rei o Sr. D. João V” —, o sobredito Roberto Luiz disse que nenhuma dúvida podia haver; e que ele tomava sobre si toda a responsabilidade.

Concluído o auto disseram os sobreditos agentes da aclamação que a Câmara chegasse às janelas para dar os vivas: o que assim se praticou, dizendo o presidente — “Viva El-Rei Absoluto de Portugal o Sr. D. Miguel I” — e o povo respondeu — “Viva, Viva, Viva”. — Ninguém, de tantos circunstantes que se acharam ao auto, o duvidou assinar, excepto o capitão Agapito Pamplona Rodovalho, que por isso mesmo foi logo preso à ordem do general.

Instaram os agentes: que o ministro juiz de fora, e os mais oficiais do senado deviam ir em corpo de Câmara, juntamente com o povo que estava presente, dar parte ao general do que se resolvera; e assim se efectuou debaixo de muitas vivas e aclamações, sendo a Câmara acompanhada de muitas pessoas até ao Largo do Palácio. Chegou então o general à janela principal, entoando os vivas — ao Senhor D. Miguel I, Rei de Portugal e Algarves.

Passou a Câmara logo depois com a sua bandeira a correr as ruas da cidade, levando adiante quatro foliões tocando nos seus instrumentos e dançando com extrema alegria; e atrás dela ia o Cerieiro com um grande tronco de oliveira, cujos ramos repartia com as pessoas do acompanhamento. Não se pode suficientemente explicar o entusiasmo e alegria a que chegaram os chefes desta aclamação, nem o que pelas ruas da cidade se praticou.

No Alto das Covas, onde estava o pelourinho da cidade, cometeram-se feitos notáveis e mesmo escandalosos; apareceu uma bandeira em ar de triunfo16: e das janelas do convento de S. Francisco saía tanto fogo para o ar, de bacamartes, espingardas e pistolas, que este mais se assemelhava à bateria de um castelo do que a uma habitação de religiosos, e casa de oração. Nem se pode a sangue frio descrever o quase furor com que alguns destes religiosos, como foi público, se apresentaram naquele dia sempre memorável, e os excessos que mui espontaneamente desenvolveram17 contra as instituições liberais.

Imediatamente se passou ao Te-Deum, havendo salvas e grande cortejo, mostrando-se sempre o Batalhão 5.º de Caçadores imóvel, no meio de todos aqueles entusiasmos: e assim ouviu a sangue frio os vivas que se deram, subtraindo-se a dá-los o comandante José Quintino Dias, visto que, pedindo-os por escrito, o general os não dera. Falou-se depois muito pela cidade contra ele, mostrando-se grande desejo de o desarmar, por se desconfiar que o seu silêncio denotava intenções sinistras; mas nada se executou por então, reservando-se de parte a parte certas indisposições, que bem cedo tiveram seu desenvolvimento.

Logo que os párocos, por ordem do deão governador do bispado, souberam o que se passava na cidade, e os das mais alongadas freguesia, assim como os juízes dos limites de Santa Bárbara, Biscoitos, Altares e outros, fizeram avisar todo o povo, homens e mulheres, que durante os dias da iluminação vieram à cidade em grande multidão, com bandeiras, arcos triunfais, louros e faias e em extremo alarido, com estrépito importuno de vozes e canções rústicas, procuravam o palácio, defronte do qual davam seus vivas; faziam descantes, aplaudindo a aclamação do novo rei. E passando à casa do deão e depois ao convento de S. Francisco18, nesta violenta e forçada marcha, sempre debaixo de aclamações e vivas, levavam a maior parte da noite, inquietando os habitantes que não dormiam.

Neste género de festejo muito excedeu a todos o povo da Ribeirinha, comandado pelo seu vigário Manuel Correia de Melo.

No mesmo dia, 18 de Maio, oficiou o general ao juiz de fora da Vila da Praia, Pedro Jácome de Calheiros e Meneses, dando-lhe parte do acontecido na cidade e persuadindo-o a que tomasse verdadeiro acordo sobre este objecto. O que assim fez o juiz, notificando pelo escrivão das armas e chaveiro da Câmara, André Luiz Borges, e por outros oficiais, as pessoas mais distintas da Vila e termo, que assim mesmo de ambos os partidos compareceram no dia 19 de Maio, pelas 10 horas da manhã, na sala das sessões da Câmara; e também os eclesiásticos seculares e regulares.

O receio e o medo de insultos populares fez ali exarar um auto de aclamação do novo rei absoluto D. Miguel I sem que pessoa alguma se atrevesse a sustentar que se esperassem as ulteriores determinações, como se declarava no decreto de 25 de Abril, que ali foi lido. Mas apenas os beneficiados António José da Rocha e João António da Ave-Maria despontaram a sua opinião, conforme com a letra do decreto, logo entre a assembleia se ouviram risos e sarcasmos, que os fizeram mudar de rumo, e saiu uma voz que disse: “Havemos de fazer como na cidade se fez; isso mesmo é o que quer o senhor infante!”.

À vista do que não parecia restar outro caminho senão fazer-se o desejado auto de aclamação; e acabado ele deram-se os vivas “ao novo rei D. Miguel I”, retirando-se os convidados em boa paz a suas casas, sem que pelas ruas da Vila aparecesse outra alguma personagem a dar vivas, senão e alfaiate Cláudio Joaquim, de quem já tenho feito menção, acompanhado por 7 soldados do destacamento das milícias.

Ainda pude a muito custo encontrar a cópia da participação, que ao novo rei, pela Secretaria respectiva, foi enviada nos termos seguintes: «Senhor. Sendo presente em vereação de 19 de Maio passado, pelo ministro dr. juiz de fora, presidente desta Câmara, hoje ausente na cidade de Angra, chamado o vogal da real junta de justiça Pedro Jácome Calheiros e Meneses, o ofício do governador e capitão-general desta e mais ilhas dos Açores, Manuel Vieira de Albuquerque e Touvar, dirigido ao mesmo ministro em que participava que o senado da Câmara da cidade de Angra, capital destas ilhas, com o clero, nobreza e povo, tinha aclamado a Vossa Majestade Rei destes reinos; tomando esta Câmara em contemplação esta participação oficial, feita pela primeira autoridade da província, e desejando de mostrar o seu jubilo, e prazer de Vossa Majestade subir ao real trono da Sereníssima Casa de Bragança, e de seus Augustos predecessores, e seguir o exemplo da Câmara da capital, praticado na presença daquele capitão-general. Chamado o clero, nobreza e povo desta Vila foi Vossa Majestade aclamado Rei destes reinos, esperando de Vossa Majestade as suas Reais Determinações para as executar com a subordinação do seu dever. O que participamos a Vossa Majestade.»

Igual cerimónia se praticou na Vila de S. Sebastião, com assistência das três classes20, mas o certo é que em toda a parte se duvidou de semelhantes aclamações, não obstante serem os autos neste e nos dias subsequentes assinados por todas as pessoas que sabiam escrever o seu nome, o que muitas fizeram somente por não desagradar aqueles que os convidavam.

Procedia também o receio de não se achar do mesmo acordo o referido Batalhão 5.º de Caçadores; e por se dizer que haviam alguns fidalgos em Angra pouco satisfeitos desta grande mudança política.

Fez o deão Frutuoso José Ribeiro, governador do bispado, dar na colecta da missa — Regem nostrum MichaeIem.

Nos três dias que duraram as iluminações, e mesmo nos subsequentes, entraram na cidade os povos de diferentes freguesias do seu termo, e alguns da parte da Praia, como atrás se disse, ao som de instrumentos campestres, com hinos, alvoradas e chacotas apropriadas ao assunto, dando vivas ao novo rei. Eram estas marchas populares capitaneadas pelos respectivos párocos das freguesias, com assistência dos juízes eleitos, e de alguns capitães da ordenança e mais indivíduos de maior representação nas mesmas freguesias. É impossível descrever dignamente o entusiasmo e alegria de tanta gente, de um e outro sexo, que nestas alvoradas concorreram com tanta devoção como se fosse para um objecto sagrado: e tal foi o excesso, motim e desassossego da cidade, que o general se deu por enfadado, mandando proibir a entrada nela.

À Vila de S. Sebastião veio o povo do Porto Judeu, com muita festa, trazendo em frente o alferes da ordenança José Machado Fialho, e outros que naquele tempo influíam; e da mesma Vila saíram-lhe ao encontro, no meio de grandes aplausos, com violas, pandeiros, adufes e outros semelhantes instrumentos, o capitão António Ferreira Fagundes e o vice-vigário Manuel Martins Baião21, seguidos de inumerável povo, que debaixo de muitos vivas não faltaram nos três dias da iluminação a patentear a sua sincera dedicação pelo novo rei absoluto.

Outro tanto se promovia na jurisdição da Praia, e já se preparavam os povos de várias freguesias a isso, quando souberam que o juiz de fora, de mãos dadas com o comandante do destacamento, queriam prender os que encontrassem na Vila de noite, com semelhantes alvoradas e descantes, amotinando-a; por esta razão não apareceu pessoa alguma com tais aplausos tão celebrados entre o povo rude, que andava arrastado pelos chefes dos partidos, e directores espirituais, a ponto de abandonarem suas ocupações e interesses pessoais, contanto que satisfizessem ao gosto e fins dos que arteiramente os dirigiam.

Começou desde então nos púlpitos, e nos confessionários o aplauso à causa do novo rei, distinguindo-se nesta honrosa missão o vigário da Ribeirinha; o padre Baião; o vigário das Lajes, José de Meneses; o das Quatro Ribeiras, José Narciso; o dos Altares, António Pedro; o das Doze Ribeiras, José Luiz; e o do Cabo da Praia, Silvestre dos Santos; assim como alguns religiosos, ainda que mais a coberto. Os nomes de todos eles e dos mais influentes nestas aclamações e alvoradas foram extraídos da devassa a que se procedeu, e de que ficaram livres por sentença em 26 de Abril de 1830 (Vide Documento P).

Notas:[editar]

1. Há pouco tempo que o Sr. João Pereira de Lacerda me apresentou uma justificação, datada do ano de 1614, da qual constava terem os fidalgos de Angra, havia mais de 80 anos, fundado um compromisso pelo qual se obrigaram, e tinham privilégio exclusivo, a solenizar o aniversário de S. João Baptista com festejos públicos, danças, máscaras e cavalhadas, e para isto foi elevada uma ermida ao Santo no princípio da rua que ainda conserva o seu nome; porém não trata da corrida de touros, que este uso, querem alguns, nos viesse dos espanhóis quando aqui dominaram.

2. Vide Sítio do Porto, por Simão José da Luz Soriano, a página 181.

3. Vide a citada obra Sítio do Porto, por Simão José da Luz Soriano.

4. Inglaterra, Áustria e França solicitaram de D. Pedro a definitiva abdicação e a nomeação de D. Miguel regente do reino.

5. Idem, Sítio do Porto, por Simão José da Luz Soriano, a página 229.

6. Servia de tesoureiro Francisco de Azevedo Cabral. A cerimónia fúnebre constou do quebramento dos escudos, na forma que de tempos mui antigos se costuma fazer, e que já por semelhantes ocasiões tenho mostrado se fez em Angra.

7. Conservo a música e letra deste mui decantada hino: Vem ó infante, Infante adorado, O povo faz Afortunado. A segunda parte começava em dueto, assim: A paz, a glória dos céus nascida A gente faz enobrecida (estribilho) Surjam os vates Hinos cantando, As liras toquem De quando em quando. (seguia o estribilho: – A paz, a glória, dos céus...).

8. Veio trazê-la a esta ilha, por ordem da regente, com ofícios. Visitou a Praia, onde o vi no parlatório das religiosas da Luz. Voltando ao Rio de Janeiro, D. Pedro IV o condecorou com o título de marquês de Angra, mas nunca mais veio ou dela quis saber; e para quê?

9. Escapou-me a data.

10. O Tratado das Indulgências, de D. Frei Manuel Nicolau de Almeida, obra muito livre que ele compôs e fez imprimir no ano de 1823, o comprometeu tanto, que dizem fora esta a causa de sua prisão em Lisboa a maior parte do tempo. E lá morreu sem poder justificar-se. Este escrito, e o folheto do abade de Medrões, foram os que naquele tempo mais adiantavam a respeito de futuras reformas civis e eclesiásticas. Foram lidos com muita avidez pelo público, mas incomodaram os seus autores porque a liberdade de imprensa foi logo cassada e sobreveio a perseguição.

11. Os homens maus em todos os tempos sempre usaram de especiosos pretextos para conseguir seus fins, assim queriam agora os realistas que o branco fosse sinal de liberalismo, assim como já o fora no ano de 1823 a cor de pinhão e o azul. E que queria dizer o vermelho e escarlate? Eles realistas o sabiam muito bem!

12. Também não estou certo do dia em que houve posses, mas julgo que ele veio para a ilha com o corregedor Pacheco e devia tomar posse nos mesmas dias.

13. Condenou 5 rapazes a levarem uma novena de bolos, e para isto eram de manhã tirados da cadeia pelo meirinho José Maria, e levados à sua presença, onde os fazia castigar Também presenciei este facto, como um dos que foi agredido por aqueles rapazes em certo dia.

14. Extraído do depoimento do escrivão da Câmara dado na devassa e que se procedeu, e que se achou nos manuscritos do dr. Ferraz.

15. Todos os sujeitos eram cavalheiros dos principais da cidade de Angra.

16. Parece que esta bandeira estava despregada sobre uma bandeira inglesa, como demonstrando insultá-la.

17. O tempo e as circunstâncias ensinaram muitos e diversos modos de festejar esta aclamação como se lê na devassa. Um vereador, por exemplo, contou-se por verdade, que disputara com o sineiro, qual deles teria a primazia de repicar no sino da Câmara. Os foliões saíram diante dela dançando e tocando tambores e pandeiros. Também pela cidade saíram homens mui sérios, e até liberais, aplaudido muito deveras, com os chapéus nas mãos, esta nova ordem de coisas; e o celebrado frei José do Livramento, um dos que mais cedo apareceu na praça, achando-se no portão de uma casa junto dela, pegou em um exemplar da Carta Constitucional, e com grande algazarra depois de muitos insultos e dictérios lhe fez a oração fúnebre, com aquela eloquência e ornato próprio de um simples frade do coro, e tão inerte como ele era! Utu latus pugnae auditur in castris (Êxodo).

18. Os padres de S. Francisco tinham o seu castelo no frontispício da igreja; e foi este o maior escândalo que deram à cidade.

19. Parece-me que o leitor fará algum reparo em que na ilha Terceira, quase sempre nas suas crises políticas, aparecesse um mecânico da classe dos alfaiates a dar o tom ao povo chamando-lhe a atenção para árduas empresas. Em tempo do Prior do Crato apareceram os desta classe disputando primazia com os nobres, em tempo do rei D. Afonso ressurgiu o impostor Caranguejeiro; pela constituição de 1821, o alfaiate António Vieira, e nesta aclamação admirou-se por vezes a ousadia deste alfaiate Cláudio. Escusado é dizer que o mui decantado Francisco de Sousa Soares, como poeta do tempo, teve boa entrada no palácio do general Diniz de Melo. E porque triunfou o sapateiro em Atenas? Ex stupore ulgi. — Ou o povo terceirense era muito rude ou a lei que admitia estes homens com tanto ascendente na casa dos 24 era tumultuária porque parecia na verdade que o seu denodo lhe vinha de lugar que ocupavam no senado.

20. Ainda existe num livro da Câmara o auto, contendo muitas assinaturas, e que por erro não foi mutilado.

21. Coadjutor do vigário Manuel Pacheco Martins.