Anais da Ilha Terceira/IV/IX

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OITAVA ÉPOCA[editar]

CAPÍTULO IX[editar]

Vinda do capitão-general conde de Vila Flor, e oportunas medidas do seu governo. Preparativos para se receber a esquadra do infante D. Miguel, a qual inutilmente investe a Terceira pela baía da Vila da Praia, de onde é repelida e destroçada com grande mortandade, e número de prisioneiros, que intentando conspirarem-se contra o governo são punidos convenientemente. Actos administrativos do mesmo conde general.[editar]

Já fica dito em outro lugar como o governo inglês, por um acto verdadeiramente atroz, repelira da baía da Vila da Praia os socorros trazidos pelo general Saldanha, sem embargo de que os emigrados vinham desarmados, e disto se tinha certificado, mandando examinar não só os transportes, mas ainda os baús e malas de quantos compunham a expedição.

Escapados estes com efeito às balas britânicas, tinham sido recebidos na França e no outros países com muitas simpatias, e com os braços abertos, quando então, por este facto, começou o governo inglês a sentir os efeitos do pejo, e a mostrar um tal ou qual sentimento, mandando retirar o seu bloqueio; e não era para menos, que por este e anteriores procedimentos, havia merecido a indignação geral!

Por esta circunstância, e também por se achar a ilha tão desguarnecida, minada de partidos e dissidente o governo, ameaçando a sua própria queda, cuidou o marquês de Palmela de a reforçar, enviando-lhe uma nova expedição, escolhendo o conde de Vila Flor, António José de Sousa Manuel Severino de Noronha, o qual briosamente se tinha portado na guerra contra os inimigos da rainha, e o nomeou governador e capitão-general destas ilhas, fazendo-o embarcar com um reforço de emigrados nos Países Baixos e na França, sem que nesses dois generosos governos tivesse experimentado oposição alguma1, como achava na sua boa e antiga aliada — a Inglaterra!

Mui parecido era o estado em que se achava a Terceira naquela ocasião, ameaçada dos inimigos internos e externos, àquele nos tempos antigos, quando a ela chegou o conde regedor Manuel da Silva; e por isso bem acertada fora esta medida acabando com o governo da Junta Provisória. A este fim se passou em 5 de Abril a carta régia (Documento CC).

Navegando o conde com vento favorável, e em uma escuna, chegou no sempre memorável dia 22 de Junho de 1829, ao porto da Vila da Praia, podendo iludir o bloqueio português, que feito um inexorável carcereiro da ilha, com extrema dor viu escapar-lhe esta valiosa presa. Desembarcando no mesmo dia, passou à cidade, onde a 23 tomou posse,

Foi na verdade este o mais oportuno socorro que podia chegar à ilha, da qual imediatamente desapareceram todas as feias maquinações que nela andavam2, e acabaram de uma vez as feias ambições dos membros da Junta3, a qual sem demora nem hesitação cedeu o governo; e no mesmo dia 23, falou o conde às tropas nestes termos “que esperava do espírito da leal guarnição o ajudasse nas circunstâncias de completar o nobre fim, naquela parte confiada ao seu zelo.”

Promessa solene a que ele não faltou e que a fortuna soube recompensar pelos sucessivos actos da sua gerência; pois cuidou logo em regular um mais fácil expediente nas secretarias.

Promoveu com toda a rapidez as fortificações da costa, que no segundo dia fez reconhecer, dando execução ao plano de defesa antes preparado, empregando consequentemente os mais hábeis engenheiros4, e para isto nomeou director geral no distrito da Vila de S. Sebastião, onde existia efectivamente um grande depósito de tropas, e munições de guerra, ao tenente-coronel Eusébio Cândido Pinheiro Furtado5; e nomeou na Praia ao capitão Joaquim José de Groot da Silva Pombo. Nomeou outrossim para servir na artilharia de campanha ao tenente António Manuel dos Santos; e para a cavalaria ao alferes José de Vasconcelos Correia. E finalmente, adoptando as outras medidas militares estabelecidas pela Junta, com pequenas modificações, continuou a fortificação da costa, desde o Porto Judeu até à Vila da Praia.

Organizou os distritos militares, com declaração dos postos que a cada um serviam de limites, pela maneira seguinte: — 1.º distrito, desde o Portão de S. Pedro até à margem direita da Ribeira do Testo; comandante o coronel Domingos de Melo Breyner; — 2.º distrito, desde a esquerda da referida ribeira até à chamada Ribeira Seca; comandante o coronel de milícias de Tomar, Francisco Soares Caldeira; — 3.º distrito, desde a esquerda da Ribeira Seca até à ponta de Santa Catarina do Cabo da Praia; comandante o coronel de milícias de Braga, José Maria Barbosa de Alpoím; — 4.º distrito, do forte de Santa Catarina até à ponta da Má Merenda, comandante o major de voluntários Manuel Joaquim de Meneses; — 5.º distrito, desde a ponta da Má Merenda à margem direita da Ribeira das Pedras do lugar de Vila Nova, comandante o tenente Pedro José Frederico; — 6.º distrito, desde a Ribeira das Pedras até o Pico de Matias Simão, sobranceiro aos Altares, comandante o coronel de cavalaria José da Fonseca; — 7.º distrito, desde o dito Pico até à Ribeira do Mouro, comandante o major de infantaria Amaro dos Santos Barroso; — e 8.º distrito, desde a dita Ribeira até ao Portão de S. Pedro, comandante o tenente de infantaria Emídio José Lopes da Silva6.

Com esta divisão de poderes contentaram-se em aparência os nomeados, cujas rivalidades, pela maior parte, não pareciam ter fim, aquietando-se por ora os espíritos sediciosos que andavam entre eles e se considerou a ilha mui bem vigiada dos inimigos externos; e assim foi que a chegada do conde deu um grande alento aos negócios da rainha e desanimou inteiramente os inimigos.

Continuou também o recrutamento com a maior actividade. Ajuntou as duas companhias de sapadores ao batalhão de artilharia de linha, com outros contingentes, de que se veio a organizar o de linha que foi na expedição. Conservou na Praia o batalhão de voluntários, do qual era comandante o major Meneses, de longo tempo conhecido no exército.

Nomeou, outrossim, comandante de artilharia da costa ao capitão de infantaria Manuel José Simões; e deu o comando geral do artilharia da mesma linha ao primeiro tenente desta arma José Maria Baldi7, todos estes de uma conduta irrepreensível, e bem conhecida capacidade marcial.

Destacou também o conde no mencionado posto da Vila da Praia uma força de oficiais de Caçadores, e ordenou ao capitão Francisco de Paula Bastos se lhes reunisse, quando o demandasse a necessidade. Fez montar algumas peças de artilharia8 de diferentes calibres e pôs ali uma meia brigada de peças de campanha.

Aparelhou três barcas canhoneiras, duas das quais navegaram logo para aquela Vila. Não cessava de visitar as fortificações da ilha, principalmente as da Praia, inspeccionando as tropas que a guarneciam, e o mesmo cuidado fazia empregar pelo comandante da força armada, e por outros chefes, considerando na última importância aquele ponto. Constava então a guarnição da ilha de 2:386 homens.

Estendendo além disto o conde suas vistas pelo estado da ilha, que toda o recebera com a maior satisfação9, achou necessário aliciar os ânimos, acabando dissenções internas e fazendo esquecer de alguma maneira certos ressentimentos contra os partidistas do infante D. Miguel; e para isto amnistiou os desertores; proibiu o duro suplício das varadas, e reprimiu os excessos dos comandantes dos distritos sobre os povos e autoridades locais10.

Estas medidas, porém, nascidas de um excelente fundo de alma11 não vieram a corresponder ao conde como ele esperava e merecia. Esses incautos amnistiados entenderam que muito mais se lhes devia fazer e que esta moderação do general procedia de fraqueza; e cuidaram acintosamente de perseguir e assassinar os liberais que lhes caíam nas mãos, ou fosse dentro das povoações ou pelo interior da ilha, do que já então resultou excesso em alguns comandantes de distrito e mortes de desertores e guerrilhas encontrados em atitude hostil; o que o mesmo general sentiu muito e que todavia lhe não foi possível atalhar, por ser uma medida repressiva de tantos e tão graves escândalos, em cujo número entrou o assassínio do alferes Veríssimo José Gonçalves.

Enquanto nesta ilha se faziam todos os preparativos de guerra de que tenho falado, não cessava o governo português de activar e pôr em acção todos os meios para subjugar o partido constitucional que nela se tinha proclamado e acolhido e queria sustentar.

E para que a religião do Estado não perdesse aquele contingente com que de tempos mui antigos costumava alçar mão nos negócios políticos, assentou o bispo desta diocese D. frei Estêvão de Jesus Maria, ainda residente em Lisboa, que devia enviar ao céu, como já por várias vezes fizera, mui fervorosas preces em favor das empresas do seu rei D. Miguel I; e assim ordenou que em todas as igrejas paroquiais, mosteiros e conventos das ilhas de Santa Maria, S. Miguel, Faial, e outras se fizessem preces públicas em três dias sucessivos: — implorando a Misericórdia Divina para o feliz sucesso de uma tão importante empresa; — o que verificando-se com certeza “a tão desejada restauração da ilha Terceira” se procedesse imediatamente a um solene — Te-Deum.

Eis aqui um trecho da pastoral, datada a 7 de Março do ano em que vamos de 1829: — “D. Frei Estêvão de Jesus Maria, da Ordem dos Menores reformados... Poucos meses depois que havemos tomado posse da nossa diocese foi anunciada a fatal rebelião, que os inimigos do altar e do trono de antemão haviam tramado, e urdido, e infelizmente verificado na ilha Terceira, em o dia 22 de Junho do próximo passado ano. É inexplicável a consternação e amargura que a triste notícia de um tão horroroso atentado derramou em nossos corações, prevendo desde logo os seus funestos resultados, assim na ordem política como religiosa, e se o nosso Amabilíssimo Soberano o Senhor D. Miguel I, solícito pela paz, e sossego do seus fiéis vassalos, Nossos amados diocesanos, os leais habitantes daquela ilha, empenhou os meios mais adequados para libertá-los da ímpia escravidão em que gemiam opressos: Nós igualmente ansiosos do seu bem temporal e espiritual, com aprovação do mesmo Augusto Senhor, expedimos por vezes, em diferentes datas, e a diversas pessoas, comissões e providências que então julgamos mais oportunas, convenientes e necessárias; infelizmente porém, circunstâncias pouco favoráveis tornaram inúteis os meios que S. Majestade adoptara, e bem assim as nossas providências...”. Agora “porém que o Rei Nosso Senhor vai em breve fazer sair uma nova expedição, destinada a exterminar de uma vez a rebelião na Terceira, desejando Nós coadjuvar do modo que nos é possível a tão justas intenções de Sua Majestade, e os heróicos esforços dos fiéis e briosos militares que vão empreender uma tão gloriosa luta, cujos felizes resultados são igualmente vantajosos à religião e ao Estado: Mandamos, e ordenamos que em todas as igrejas paroquiais, mosteiros e conventos....”.

Porém, saindo a expedição até o dia 12 de Julho, nesse mesmo dia passou o bispo outra pastoral para o mesmo fim, e nestes termos “Não tendo sido possível até ao presente a saída total da expedição destinada por Sua Majestade El-Rei Nosso Senhor D. Miguel I, para ir libertar a ilha Terceira da bárbara opressão com que os revolucionários tem amargurado e reduzido ao mais lastimoso estado aquela infeliz porção do rebanho que a Divina Providência se Dignou confiar a Nosso pastoral cuidado e vigilância; e verificando-se na data desta a saída daquela, ordenamos que novamente se proceda a preces públicas da mesma forma...”.

Conforme os ditames do seu prelado assim era o espírito dominante na maior parte dos diocesanos destas ilhas; e o mesmo sentimento dominava por toda a parte o clero secular e regular, como é óbvio, nos termos de semelhantes pastorais, que tanto mais demonstram o estado das coisas nessa época. Parece que as circunstâncias obrigaram este virtuoso prelado a falar desta maneira, se este mesmo é quem assinou a outra pastoral em 19 de Outubro de 1839! Pelo contrário seria inconsequência de caracter, e inconsiderada facilidade praticando uma doutrina tão contraditória, e subversiva.

Em quanto pois na ilha Terceira se faziam todos os preparativos de guerra, em Lisboa não cessava o governo de trabalhar e os que ali se haviam pronunciado a favor do rei anticonstitucional. Em toda a parte da Europa corria a fama desta árdua empresa, e se faziam, como é costume, diferentes juízos sobre o seu resultado.

Mui diversas eram certamente as opiniões; porque, uns entendiam que a ilha se defenderia facilmente, em razão do inacessível de suas costas e do presídio que nela havia, composto de pessoas inteiramente comprometidas e capitaneadas por um feliz e valente guerreiro, a quem não faltavam recursos, ainda que por meio das dificuldades e oposições dos gabinetes estrangeiros. Outros, e a maior parte, decidiam já a favor do infante D. Miguel, tendo o vencimento por mais fácil, alegando para isto os muitos recursos de que ele poderia lançar mão em todo o reino contra uma pequena ilha, aberta, cercada de mar e falta de guarnição. — E com efeito era certo que tanto contava o governo do Portugal com o triunfo, que até preparava uma alçada para sentenciar os criminosos constitucionais mais notáveis, que na ilha se achavam, e dar-lhes castigo em afrontoso patíbulo.

Preparou-se finalmente uma bem guarnecida esquadra e a melhor que muitos anos havia pudera fazer o governo português. Partiu do Tejo no dia 12 de Julho de 1829 a maior porte de dela, para se reunir à nau D. João VI, e a outros mais navios que andavam nas águas da ilha de S. Miguel, ponto da reunião, para onde haviam saído no mês de Maio os navios que bloqueavam a Terceira.

Reunida todavia a esquadra no porto daquela ilha, partiu para esta com vento favorável, vindo composta da nau D. João VI, três fragatas, duas corvetas, cinco charruas, quatro brigues, e outros vasos de transporte, alguns dos quais eram armados em guerra, e preenchiam todos o número de 22 navios. Traziam a bordo 3.424 homens de desembarque e 2.224 da brigada e tripulação de todos os navios.

Era general desta expedição José Joaquim da Rosa Coelho, comandante José António de Azevedo Lemos; acompanhava-o o tenente-coronel Luiz de Azeredo Pinto; D. Gil Eanes da Costa e Sousa de Macedo; e o vice-almirante, general destas ilhas por parte de Portugal, Henrique da Fonseca Sousa Prego, com voto de qualidade em todas as operações da esquadra.

Todos eles militares de grande experiência, e talvez os melhores cabos de guerra que nesse tempo havia no reino; acrescendo o trazerem mui bem guarnecida e disciplinada tropa, escolhida nos diferentes corpos do exército. Vinha também, como já disse, uma alçada presidida pelo bem conhecido magistrado — Monteiro Torres — com outros muitos funcionários e famílias que regressavam à ilha. Tanto se contava já com esta vitória!

Aparecendo aquela famosa expedição nos mares da Terceira em a tarde de 29 de Julho, imediatamente se pôs toda a força militar em atitude bélica, com a maior pressa que se podia desejar; e como o general Conde de Vila Flor dera para a defesa as mais acertadas providências, também é certo que estas se executavam com admirável energia. Em todos os pontos da ilha eram vistos ele e o chefe e mais empregados do estado maior, ou alguém de sua ordem; em tudo, e por tudo se respirava um verdadeiro espírito de vida militar.

Por isso mesmo parecia que ninguém dormia sossegado ou sonhava senão a braços com esta gloriosa empresa; pelo que bem nos parece comemorar, para descargo da história, os nomes e feitas dos mais distintos militares desta época, cuja solicitude e integridade assaz mereceram esta dívida que sem usura lhe queremos pagar. Com imparcialidade, diremos só a verdade do que soubemos, o que presenciamos e o quanto chegou ao nosso conhecimento pelos diferentes escritos que pudemos alcançar12.

Foram estes dignos militares os seguintes: o chefe do estado maior, tenente-coronel J. B. da Silva Lopes, depois barão do Monte Pedral; o capitão de artilharia, depois coronel, António da Silva Leão, director do trem e do laboratório estabelecido no Castelo; os oficiais de engenheiros que faziam caminhar as obras da fortificação da costa, cuja direcção geral se achava confiada a Eusébio Cândido Pinheiro Furtado. Não esquecendo também o incansável zelo do comandante da força armada, coronel Brito, nem o ajudante general Manuel José Mendes; o quartel-mestre Baltazar de Almeida Pimentel, e assim também todos os mais oficiais do estado maior, que mui bem entendiam e faziam cumprir à risca todas as ordens que lhes eram transmitidas, rivalizando qual deles melhor desempenharia sua comissão, e certamente que estes dignos militares, e outros mais, cujos nomes me não é possível manifestar aqui, concorreram por estes e iguais meios para que a Terceira, antes do dia 11 de Agosto quase sem ponto algum fortificado, preparasse uma vigorosa defesa nos parapeitos e obras encarregadas ao infatigável capitão engenheiro Pombo, que foi um companheiro inseparável dos voluntários nos trabalhos e vigílias experimentados na baía da Vila da Praia.

Construíram-se com efeito ali diferentes parapeitos de 30 a 40 palmos e diversos fortins em toda aquela extensa baía; e no grande areal, duas trincheiras ou travessões, já para o lado do Cabo da Praia; e assim mais no Porto Martins, Porto Novo, baía das Mós, Salga, Porto Judeu, à Silveira, em S. Mateus, Santa Bárbara e nos Biscoitos; obras estas que se achavam muito adiantadas, havendo além disto conseguido o general, ainda que com muita dificuldade, montar um troço de cavalaria.

Mas, se alguém, sem embargo de tudo o que fica relatado, e do que ainda mostrarei se fez por sua ordem, se atrevesse a escurecer-lhe a glória que mereceu o mesmo general, conde de Vila Flor, só porque não se achou no princípio desta acção, nós lhe chamaríamos de má fé, injusto e roubador do crédito alheio, apontando-lhe como único argumento as providências aqui relatadas até receber o inimigo não só ali, mas ainda em qualquer ponto da ilha, onde tentasse fazer desembarque13.

Volvamos agora ao que mais se achava determinado pelo general sobre este assunto. Mandou formar uma coluna volante composta de 150 praças a cargo do major Romão José Soares, a fim de seguir os movimentos da esquadra, prestes a socorrer o ponto que primeiro fosse atacado, e para conter os habitantes da ilha, no caso de quererem revoltar-se. O mesmo general, no dia 30 de Julho, proclamou aos povos recomendando-lhes a obediência às autoridades constituídas — e que cerrassem os ouvidos a toda a voz sediciosa14 (Documento DD).

Andando a esquadra em volta da ilha fazendo preparativos e reconhecimentos até ao dia 10 de Agosto, em que, pelas diversas disposições e movimentos, e principalmente por ter recebido das ilhas de baixo (de oeste) mais de 20 barcos de diferentes lotes que a cercaram, se entendeu preparava um imediato desembarque; por isso o general destacou uma coluna de 200 soldados com duas peças de campanha, e um obus a cargo do major António da Costa e Silva, que veio postar-se na Vila de S. Sebastião, ponto central15, onde chegou pelas duas horas da noite, para observar os mais pontos adjacentes e acudir onde a necessidade o chamasse.

No mesmo dia de tarde enviou para a Vila da Praia o quartel mestre general, capitão Pimentel, munido com algumas instruções para com o major Meneses, comandante do distrito, e o do Batalhão de Voluntários cuidarem mui seriamente da defesa daquele ponto. Fez também sair da cidade o seu ajudante de campo, alferes D. Carlos Mascarenhas, que de noite foi seguindo ao longo da costa todos os movimentos da esquadra, avisando o general de tudo o que se passava, e alcançou.

Empregou igualmente em comissões importantes ao alferes conde de Ficalho, seu ajudante de campo; ao capitão Bastos de Caçadores, e ao major Passos, que era dos voluntários da rainha. Determinou outrossim, que a guarnição do 3.º distrito, Porto Martins, se reunisse à coluna volante do major Costa, e reforçassem o 4.º distrito, que era a Vila da Praia; e que a força do 5.º distrito, Vila Nova e Lajes, comandada pelo tenente-coronel Pedro José Frederico, se reunisse a esta; e assim aconteceu que fosse a primeira tropa a apresentar-se nas linhas.

No dia 9 de Agosto reuniu o general Prego um conselho de guerra a bordo da nau D. João VI, composto dele, na qualidade de presidente, do secretário Manuel Joaquim da Silva, do chefe da esquadra Rosa Coelho, do coronel José António de Azevedo e Lemos, do tenente-coronel Luiz de Azeredo Pinto e do major D. Gil Eanes: e chamando o capitão João Moniz Corte Real, de quem temos falado, como chefe dos revoltosos nesta ilha16, lhe propôs os seguintes quesitos: — se a ilha devia ser atacada em um ou mais pontos?; quais esses pontos?; e se deviam fazer algum ataque falso? —.

Exigiu então ele a assistência de certo prático das costas da ilha, que andava a bordo da mesma nau, o qual sendo da freguesia do Cabo da Praia, em um ponto que na carta geográfica mostrou, por ser lugar em que a esquadra poderia fundear em distância conveniente17; mas afirmou que o fundo era de pedra e corria o risco de se perderem algumas amarras, ainda que se davam ali outras qualidades indispensáveis ao bom sucesso da empresa.

O que ouvido pelo comandante da esquadra, não obstante os votos contrários, por modo algum quis anuir; com bastante sentimento do general Prego, pelas vantagens que antevia a respeito do terreno e das estradas e por se ver que estava aquele ponto mui pouco fortificado; vindo finalmente a assentar-se que o ataque se fizesse contra a Vila da Praia, por se poder ali verificar em forma o desembarque.

Amanheceu o dia 11 de Agosto tão carregado de nuvens e de espessa neblina que inteiramente impedia o trabalho dos telégrafos, ignorando-se, por essa causa, qual o destino da esquadra. Apareceu contudo esta mui próxima à baía de S. Mateus, que fica na parte de oeste, já com as lanchas fora, mostrando por alguns sinais aos navios o querer ali fazer alguma coisa, pois tinha chamado a bordo os comandantes para com eles novamente consultar definitivamente sobre os meios do ataque.

Sobreveio-lhe contudo um aguaceiro, que por algum tempo a encobriu, não podendo então conhecer-se qual o rumo que tomava. Pouco depois começou a soprar um vento demasiado, com o qual rapidamente veio ganhar a costa de leste e formar-se em linha à frente da cidade, onde pôs uma corveta de bloqueio: e demorando-se ali algum tempo, foi logo depois velejando para leste, levando a nau adiante.

Quando já dentro da baía das Mós, junto do ilhéu da Mina, arriou, esperando se lhe aproximasse e desse fala um brigue escuna, ao qual passou ordens, e nisto levou pouco mais de meia hora.

Eram dez horas e meia da manhã, forrou-se repentinamente o ar de uma sobremodo espessa neblina; e logo cresceu o vento com grossa chuva, de maneira que a esquadra se perdeu da vista de terra, sendo notável que nenhum dos telégrafos do centro, em todo aquele arriscado período fizesse qualquer sinal: porquanto, sendo entregues à direcção de pessoas de pequena consideração18, estas, com este ou aquele pretexto, que ainda hoje é desconhecido, os tinham desamparado.

Toda a costa do sul se achava então guarnecida com trincheiras e os pontos susceptíveis de desembarque, assim nesta como em toda a ilha, estavam vigiados por alguns soldados de tropa de linha, ordenanças e artilheiros da costa, conforme o plano de defesa atrás mencionado.

Vejamos agora o estado marcial em que se achava a baía da Vila da Praia, para onde o inimigo se dirigiu.

Ao Batalhão de Voluntários da rainha, comandado pelo major Meneses, e a outras mais forças estava confiada a defesa desta baía; e por isso se conservavam em descoberta sobre as armas, desde a véspera até às 9 horas do dito dia, em companhia do quartel mestre general, o capitão Pimentel; sendo que antes somente o faziam até às 8 horas; mas porque não havia notícia da esquadra, e a tropa devia ir a quartéis para descansar da muita fadiga em que andava, recomendou-se-lhes que, ao toque de assembleia, corressem aos pontos assinados pelo comandante do batalhão. E neste sentido se retiraram, ao mesmo tempo que o quartel mestre general, pouco antes das 11 horas, tendo passado a noite no campo do areal, marchou para o lado do Cabo da Praia a ver se colhia algumas informações da esquadra, que no dia antecedente lhe ficara na parte de oeste.

Achando-se porém o major Passos, os dois Moura Coutinho, capitão e alferes, o capitão Pombo, e alguém mais, observaram que o oficial do telégrafo da Má Merenda corria pelo areal, dando vozes que mal se entendiam, e gritando apontava para o lado oposto como quem mostrava alguma coisa importante. Era a ponta dos mastros das embarcações inimigas que já se descobriam por cima do cabo, que chamam — Santa Catarina — com o que se conheceu perfeitamente chegada a hora do combate.

Correu logo o alferes Coutinho à guarda principal, onde fez tocar a assembleia. Ao mesmo tempo o quartel mestre general retrocedeu à Vila, e cada um dos seus defensores surgiu de improviso em seu posto.

Fundeava ao mesmo tempo a esquadra inimiga, levando em frente a nau D. João VI, que foi postar-se defronte da fortaleza do porto, ficando-lhe à esquerda as fragatas Diana, Amazona e Pérola; e à direita os brigues Providência e Infante D. Sebastião; colocando-se as outras embarcações em uma segunda linha, excepto a escuna Triunfo da Inveja (designada com o nome de Mexeriqueira), a qual, andando por todas as embarcações, foi depois perturbar os trabalhos do telégrafo e veio a proteger o desembarque.

Achavam-se nesta baía colocadas as forças pela maneira seguinte.

Comandava o forte do Espírito Santo, na extrema esquerda, o alferes de Caçadores Manuel Franco, com duas peças de calibre 18 e 24, servirias por 8 artilheiros da costa; e guardavam o forte 3 soldados e um cabo de voluntários.

Era comandante do forte do Porto o valente alferes de infantaria Simão António de Albuquerque e Castro, que depois foi capitão de Caçadores 5.º, com uma peça, um artilheiro de linha, 6 marinheiros e a guarda composta de 4 soldados e um cabo. Parece que havia neste forte mais uma peça, cujos reparos duraram mui pouco, e 8 artilheiros que não entraram na acção.

Achava-se desartilhado o forte da Luz, no flanco esquerdo da baía, donde principiava a linha do Batalhão de Voluntários, estendida com 5 companhias até ao forte das Chagas, o qual também se achava desartilhado, ficando-lhe no centro, além das barreiras e já no fim da Rua do Rego, um fortim com duas peças de campanha.

O forte do S. João estava comandado pelo soldado de artilharia José Paulo Machado, natural da mesma Vila, e ali havia uma peça, quatro artilheiros da costa, um de linha e três soldados de caçadores do 5.º e 6.º de Infantaria.

O soldado de Voluntários, bacharel José Peixoto da Silva, comandava o forte de S. Caetano, que tinha 2 peças, 2 artilheiros de linha, 8 de costa, 3 soldados do 5.º de Caçadores e 6 de infantaria do mesmo destacamento.

No forte de S. José, comandado pelo soldado António da Costa Rippar, haviam 2 peças servidas por uma igual força.

Na extrema direita estava o forte de Santa Catarina, do qual era comandante o alferes de infantaria Nuno Brandão de Castro, e tinha 3 peças com 3 artilheiros de linha, 12 da costa, e o resto do destacamento que eram 3 soldados do 5.º de Caçadores e do 10.º de Infantaria.

As duas barcas canhoneiras que para ali foram de nada serviram neste dia; porquanto, apenas avistaram a armada logo vieram refugiar-se no porto, tendo somente uma de delas lugar para descarregar uma peça. Asseverou-se contudo que os seus marinheiros se portaram valorosamente na defesa do ataque.

Colocou-se na praça da Vila a guarda principal, a qual sendo comandada pelo alferes Peixoto foi logo reforçada pelo major António de Passos Almeida Pimentel, com o fim de conservar o ponto e conter em respeito os habitantes, se houvesse, o que se não presumia, algum movimento interior, que, todavia se afirmou depois, estava premeditado; para o que se conservou em frente da freguesia dos Biscoitos um brigue com armamento para se repartir com os revoltosos, mas certamente que lhe falhou o plano.

Era capitão da 6.ª companhia Manuel Pinto Queiroz Sarmento e alferes Bento José de Almeida Coutinho, que formavam a reserva colocada acima da alfândega. A força de cavalaria, composta de 23 oficiais montados, comandados pelo capitão José de Pina Freire, achava-se nestas imediações. Não esqueceremos falar aqui da 1.ª companhia de Voluntários, composta dos académicos de Coimbra, que pouco tempo antes havia marchado para o dito lugar dos Biscoitos, onde formava corpo separado; não se tendo ainda organizado a que a devia substituir, que tinha de ser comandada pelo capitão, que daquela outra fora, José Joaquim de Almeida Moura Coutinho, agora adido à 2.ª companhia. Contudo alguns indivíduos deste corpo tinham preferido ficar no batalhão19, e acharam-se neste dia ao combate, portando-se com muito valor.

Eram estas as forças estacionadas na Vila da Praia, quando a esquadra inimiga fundeou na sua baía, tomando as posições referidas.

No enquanto, havia o conde general da ilha, no mesmo dia 11 de Agosto, inutilmente proclamado às tropas invasoras, para que voltassem as armas contra o usurpador (Documento EE). Como porém ele devia ignorar o destino da esquadra, visto o silêncio dos telégrafos, logo o quartel mestre general, com o major Meneses, ordenaram ao dito capitão Coutinho, que a toda a pressa fosse informá-lo do estado das coisas, já sem receio de ser atacado outro qualquer ponto da ilha; e também para chamar ao Cabo da Praia a coluna volante do major Costa.

Preferida com dificuldade esta comissão, partira o emissário, atravessando impávido além da estrada que conduz à Vila de S. Sebastião e que em grande parte era descoberta e batida pelo aturado fogo das embarcações.

Porém essa coluna volante, que na véspera do dia ficara na praça da Vila de S. Sebastião enquanto a esquadra se conservara defronte da cidade, vendo o rumo que ela seguia, na manhã daquele dia 11 de Agosto marchara para a beira-mar, tendo descido ao lugar do Porto Judeu, com destino de socorrer o ponto que fosse atacado. Nem mesmo o emissário a encontrou no campo da Salga, onde deixou o aviso que trazia para o major Costa, o qual já então estava certo do que se passava pelo estrondo da artilharia e partiu a toda a brida a encontrar-se com o conde, que encontrou em marcha a um quarto de légua fora da cidade, com o seu estado maior, seguido das tropas que ali tinha à sua disposição.

No entretanto foi a coluna volante por dificultosa marcha20 incorporar-se às ordens do comandante do 3.º distrito, o coronel José Maria Barbosa de Alpoím.

Ao mesmo tempo entrava pela Vila da Praia, seguindo a estrada interior que vem dos lugares de Vila Nova e Lajes, o destacamento do 5.º distrito de que era comandante o tenente-coronel Pedro José Frederico, em força de 21 homens, às ordens do tenente José Caldas Osório, que por mandado do quartel mestre foi colocar-se entre o forte do Espírito Santo e o do Porto, ponto este que o major Meneses não queria reconhecer na probabilidade, nem mesmo na possibilidade do um desembarque; obstinação que levando-o a desprezar a esquerda e a olhar somente para o centro da baía, produziria um funesto resultado.

Outras providências deu o mesmo quartel mestre general, com toda a influência da sua posição e de seus conselhos, para socorrer este ponto, em que ele muito receava. Não pôde contudo o dito comandante Pedro José Frederico escapar à justa censura que se lhe fez, por ter deixado de observar o movimento ordenado, que consistindo em socorrer o ponto atacado, é verdade ele o conseguiu; mas, dirigida a sua marcha por maneira tal, que perdeu de vista a esquadra, deixando de se pôr ao alcance de retroceder ao lugar de onde saíra, conforme o exigissem as circunstâncias, o que facilmente conciliaria se avançasse pela estrada da serra de S. Tiago, que em toda a sua extensão, de mais de uma légua, domina os mares e vem acabar ao Facho ou Ponta da Má Merenda; tendo por isso cometido um erro de mui possível fatalidade, muito mais que ainda por aquela estrada pouparia alguns passos; mas nem por isso a fortuna o desamparou: é sua própria essa glória.

Ainda antes que a nau fundeasse, descarregou o forte do Porto o primeiro tiro de bala contra ela, do que resultou matar-lhe um homem, ferir outro e causar grandes avarias a bordo. Ao alferes Simão António, comandante deste forte se deveu o feito memorável; e a nau que recebera aquele cumprimento, correspondeu-lhe com a maior prontidão, enviando-lhe uma banda inteira.

Travou-se de parte a parte um vivíssimo fogo: porque, enquanto as embarcações de guerra, com espantosa porfia, enviavam contra a terra chuveiros de balas, procurando soterrar e destruir os fortes, nem por isso estes lhes eram escassos pagadores, retribuindo-lhes como era possível, às vezes com as próprias balas que ainda fumegavam.

Parecia, com efeito, em breve tempo arrasarem-se as trincheiras e a mesma Vila, cujos defensores vieram saindo das casas onde se achavam e dos quartéis sem esperar o toque das cornetas nem a voz do comandante.

O susto dos moradores da mesma Vila foi extremo21, pensando cada qual seriam em breve tempo desmoronadas suas habitações e eles perseguidos e saqueados, invadida a ilha, na qual, pela maior parte, se ouviu o confuso estrondo da artilharia, com espantoso arruído, bem semelhante ao eco dos trovões em uma tempestade a mais desfeita, ameaçando os vales e abalando os montes sem intervalo algum. Porém, em razão de ter a esquadra fundeado mui perto da areia, perdeu a maior parte das balas, que ou se salvavam por cima das trincheiras, indo cair a grande distância da povoação, ou se enterravam na areia sem prejuízo considerável dos defensores que, com a maior intrepidez, descarregavam a mosquetaria contra as embarcações, a coberto das mesmas trincheiras, cuidando unicamente de sustentar a causa principal e de salvar as próprias vidas. E para dizermos tudo de uma vez: cada soldado voluntário parecia um gigante, era um Sansão, valente, firme e inabalável.

Em execução das ordens do conde nenhum paisano se foi reunir às tropas defensoras22, e somente se conservaram em seus postos os artilheiros da costa nos fortes da baía que se puderam municiar, e que mesmo não foram todos.

A falta de energia e coragem do comandante do forte do Espírito Santo fez que os artilheiros da costa o abandonassem logo depois dos primeiros tiros, e além disto ainda se cometeu o crasso erro de encravar as duas únicas peças de grosso calibre que nele estavam, sem antever que isto servia a prejudicar os nossos, como veio a suceder, por não puderem usar de ditas quando retomaram o mesmo forte ao inimigo.

Este abandono, que alguém defendeu como nascido da má posição daquele forte23, foi mui prejudicial e sentido por todos, tanto assim que logo ficou preso o comandante e cedo entraria em processo, a não serem os faustos sucessos do dia. Instou muito o quartel mestre general para que o major Meneses enviasse alguma força a ocupar aquele ponto; mas como ele estava persuadido da impossibilidade de um ataque por ali, antes o esperava no centro da direita, para o lado onde está o forte das Chagas, nunca foi possível atender ao que se lhe propunha; antes pelo contrário, queria dispor de todas as forças para defender estoutro ponto, o que certamente efectuaria a não lhe ser contestado.

No entretanto achavam-se dispostas em ordem de defesa nas trincheiras da extrema direita a coluna volante do major Costa, que já dissemos marchara por dificultosas estrada a incorporar-se com a força do 3.º distrito. A companhia de reserva, tendo largado a primeira posição, havia ocupado o barracão do peixe junto da alfândega, ao mesmo tempo que a força de cavalaria se colocou por detrás do canavial que lhe fica defronte, ambas em alcance de socorrer a esquerda, que era o intento do quartel mestre general.

Desenvolvia-se nos mais fortes a maior coragem e valentia, estando comandados pelos voluntários José Paulo Machado — (ainda recordarei por gratidão os nomes destes valentes militares) —: José Pereira da Silva e António da Costa Rippar.

Não tardou o capitão Moura Coutinho com a notícia de que o general conde de Vila Flor se não demorava com as forças à sua disposição: e os voluntários, em presença de inimigo tão soberbo e poderoso, animados de um verdadeiro entusiasmo e presença de espírito, patenteavam a maior satisfação que se pode imaginar, desejando que se antecipasse o momento do ataque, para que a eles, e não a outrem, pertencesse a glória desta acção. O que lhes correspondeu completamente a seus desejos, na forma que passo a relatar.

Seriam três horas e meia da tarde, vendo o chefe da esquadra que com o repetido canhonamento contra as fortalezas e trincheiras havia conseguido alguma vantagem, pelo abandono e silêncio do forte do Espírito Santo e ruína dos outros; e persuadido ao mesmo tempo de que o fogo (de propósito) menos activo dos fortes era sinal de escassez de munições, fez embarcar nas lanchas a sua primeira brigada, composta de 1:114 granadeiros e caçadores destemidos, fardados com o maior asseio, munidos cada um de 90 cartuchos e pederneiras, trazendo também os cantis cheios de vinho.

Precedia às lanchas e canhoneiras a escuna Triunfo da Inveja; e comandavam esta força os dois valentes cabos de guerra D. Gil Eanes e Azeredo, os quais com a maior coragem e intrepidez, entre dilúvios de balas, despedidas indistintamente pelos seus, que mais que nunca varriam com porfioso fogo de metralha e fuzilaria todo o areal da esquerda, procuravam, em aparência, o centro da linha; e de repente aproaram ao intervalo dos fortes do Porto e do Espírito Santo.

Mas nem por isso o major Meneses se capacitava do ataque por este lado, sem embargo de lhe gritar o quartel mestre general — “O desembarque é à esquerda!” — dizendo-lhe que o inimigo para lá se encaminhava, que lhe mandasse mais forças para “suportar a infantaria”. Muito pelo contrário persuadido Meneses, só lhe mandara a 2.ª divisão da 3.ª companhia de voluntários, comandada pelo alferes Coutinho, afirmando em voz alta: — “É ilusão! É ataque falso!”.

Rompeu então sobre as lanchas o fogo de mosquetaria do destacamento, comandado pelo tenente Caldas; mas o certo é, como bem se viu e notou, que não querendo este destacamento suportar a força da metralha e o aturado fogo inimigo, ainda mesmo sem ter um só homem ferido, foi retirando até esconder-se ao lado do forte do Porto, onde havia uma pequena amurada de calhaus do mar. Nesse momento chegava ali o valente alferes Coutinho que, com bem poucos voluntários, atravessava o areal descoberto e dominado pelo fogo da esquadra, correndo a defender a beira-mar das lanchas que se acercavam, fazendo-lhes um fogo vivíssimo e mortífero, em retorno das bandas e descargas que toda a esquadra lhes enviava de suas baterias e de cima das gáveas, entre espessas nuvens de fumo, que pareciam escurecer o dia e tornavam a baía da Praia um segundo Etna, medonho e terrível.

Aqui, envergonhado o tenente Caldas pelas vivas repreensões que lhe dava aquele bravo militar24, teve de retractar-se e, quando já voltava, uma invejosa bala de fuzil, que ainda hoje se ignora de onde partiu, o atravessou mortalmente, sendo infrutíferos os remédios que no hospital dali a pouco se lhe subministraram; e caiu ao pronunciar estas palavras: — “Eu lhe mostro se tenho medo!”.

Em seguida avançou o restante da divisão da 3.ª companhia, comandada pelo capitão Manuel Pinto de Queiroz Sarmento, e rapidamente foi unir-se à 2.ª divisão, formando então os voluntários à beira-mar uma trincheira valorosa, quase a peito descoberto, com que fizeram declinar as lanchas inimigas para a estrema esquerda onde estava o forte do Espírito Santo. Mas este capitão, recebendo uma pancada de um torrão de areia, foi posto fora do combate e por muito tempo ficou impossibilitado para o serviço.

Empenhada ia grandemente a defesa naquele ponto, sem que aparecesse uma só baioneta de linha porque o “destacamento de infantaria julgou-se mais seguro nas pedras a que se acoutara; e, ou não houveram forças capazes de o levar adiante”, ou os voluntários não confiaram mais dele coisa alguma, como contaminado pelo temor e incapaz de provar as balas e reveses de semelhante conflito.

Vendo o quartel-mestre general que o major Meneses persistia em acreditar na impossibilidade do desembarque neste ponto, mandou avançar a 2.ª companhia, e enquanto ela corria a marche-marche ao lugar mais arriscado, levando à frente o capitão Coutinho, tendo o tenente João Eduardo de Abreu Tavares, por haver recebido uma ferida na perna direita, ficado logo fora do combate; foi ele conduzir a cavalaria que se achava detrás do canavial para outra posição mais conveniente, na direcção do centro do areal, não sem muito perigo reconhecido por todos em razão do fogo da esquadra.

E pareceu coisa prodigiosa que por este lugar atravessasse a cavalaria sem ficar estendida no campo a maior parte; mas de facto ela passou sã e salva, conservando-se ali na melhor disposição, dirigida pelo capitão José de Pina Freire, a quem se foi unir o tenente António César de Vasconcelos, chegado à Praia, na qualidade de empregado na repartição do quartel mestre general, pouco tempo depois de romper o fogo.

Obrigada a coluna a retroceder com as lanchas e decair para o lado do Espírito Santo, em pouco tempo começou o desembarque pela direita, ao mesmo tempo que o valor e entusiasmo dos voluntários os levou por cima do volúvel e imenso areal com a maior velocidade, ainda a tempo de impedir que o resto da força verificasse o desembarque defronte do mencionado forte.

Já nesse tempo os primeiros soldados se tinham apossado dele, pelo acharem abandonado, e punham o maior esforço em proteger o desembarque do resto da coluna; mas a coragem da 2.ª companhia de voluntários era tão decidida e animada pelo próprio valor e presença do quartel mestre, que os inimigos não puderam estender-se, ficando amontoados detrás do forte em um limitado espaço entre o mar.

Desenganado o major Meneses da ilusão em que se achava, mandou tocar a unir à esquerda e correu a incorporar-se às forças defensoras que ali sustentavam o peso do combate. Todavia achavam-se postadas muito longe deste lugar as companhias do que ele quisera dispor. Haviam-se postado na trincheira até ao forte das Chagas, tendo agora de avançar um grande e extenso areal, e algumas ruas da Vila: enquanto o inimigo senhor do forte, em uma posição, ainda que pequena, mas vantajosa e cavaleira, fazia uma frente respeitável.

Estavam ali empenhados na defesa os dois irmãos Coutinho, e o alferes Manuel Pereira Barbosa, assim como o bravo capitão Pimentel, os quais todos, com a coragem a mais decidida dos voluntários, rebatiam a fúria e denodo espantoso dos expedicionários, que da sua parte não defendiam tanto a comissão confiada, como trabalhavam por guardar as próprias vidas. Isto mesmo observaram o major Meneses e o conde de Ficalho, que no entretanto chegaram a partilhar os perigos, e eles sós oficiais de linha.

No em quanto, ainda que os soldados expedicionários caíam no chão uns atrás dos outros, sucediam-lhe com a maior destreza, saindo do seu grande número dentro e fora do forte; com o que não faltava nem o valor, nem a disciplina: o fogo era em fim como à queima roupa.

Neste conflito admirou-se a espantosa ligeireza com que um gigantesco granadeiro e um valente caçador se houveram. Também se notou a coragem de um rapaz, que era em idade de 12 anos, o qual vendo morrer o voluntário José Custódio Álvares, companheiro de seu pai, o chorava amargamente, fazendo fogo com tamanha actividade, que o não excederia o soldado mais destro.

Mui porfioso e arriscado se achava o combate, quando se observou que os soldados expedicionários subiam a rocha e montavam por detrás do forte, lutando com a dificuldade da subida e com o risco de ficarem vítimas dos próprios seus, que não cessavam de atirar contra os defensores; porém, logo que isto se conheceu, o capitão Coutinho e o alferes seu irmão, com alguns voluntários, avançaram pela serra junto do mesmo forte, não obstante o muito fogo de metralha que sobre ela chovia.

Não poucos desfaleciam cansados pelo inacessível da rocha e violência da subida, porém, lá foram dar ao Facho, onde encontraram mais do 30 soldados, que defendendo-se e ajudando a subir os seus, andavam em lida de se formar: e todavia, ainda que o número era desigual, nem por isso os voluntários desanimavam à vista dele, excitados pelos oficiais que, em altas vozes, os advertiam não deixassem escapar a vitória que com tanta razão lhes pertencia a eles sós; e tão denodadamente se houveram, que levando os inimigos à baioneta calada, ou os deixaram quase todos mortos ou escondidos pela rocha.

Achando-se então o inimigo flanqueado pelo alferes Coutinho, e em posição sobranceira o outro irmão, gritava o major Meneses: — “Camaradas, estes cães levam-se à baioneta: armar baioneta, armar baioneta!” — O que logo executado, acometeram o forte deixando os seus defensores ou mortos na sua frente ou dentro nele mesmo onde se haviam refugiado.

Já a esse tempo os valorosos capitães Mesquita e o tenente Lopes se tinham aproximado a reforçar os voluntários, obstando com uma densa coluna de fogo a que os inimigos entrassem o forte na retaguarda dos que o haviam retomado.

Imediatamente ressoou o grito da vitória, assim no alto da montanha do Facho como dentro do mesmo forte, grito certamente violento e mortal, que não só aterrava os invasores, como a todos os soldados da armada, a qual sem remédio algum observava a mortandade dos seus, que já cansados de lutar e defender-se em campo tão apertado, não podendo regressar aos navios, e finalmente reduzidos ao maior abatimento, largavam as armas, suplicando misericórdia e os outros privilégios que se costumam conceder aos prisioneiros do guerra.

Também se contou por certo que alguns soldados, em tanto aperto e lástima, mostravam as chapas de Infantaria n.º 15, em sinal de que ainda conservavam os antigos e nobres sentimentos daquele corpo; e que outros mostravam as patronas ainda todas cheias de cartuchos, em prova de que nenhum fogo tinham feito sobre os voluntários.

E com efeito entre portugueses não era necessária tão visível demonstração; já não haviam inimigos a combater, existiam na verdade somente uns infelizes cercados de cadáveres mortos e cobertos de sangue, e o sangue era português, derramado entre nacionais, amigos e parentes.

Suplicava-se com as mãos ao céu a conservação da vida, olhava-se com muitas lágrimas e soluços para os benfeitores, e é isto quanto bastava, excedia ainda muito; brilhou portanto o mais vivo sentimento de humanidade; era um sagrado dever a cumprir, e assim se fez — perdoou-se — deu-se a vida a quem ainda a poderia perder — e lamentou-se o sangue imprudentemente derramado e as vidas exaladas em um país que a todos pertencia, e por uma causa que a todos respeitava! — sem embargo de que, sendo este o nobre comportamento dos defensores da ilha, não era esse mesmo o ânimo dos comandantes da esquadra: o fogo não cessava, antes parecia mais violento, e ateada a raiva nos postos dos artilheiros de bordo, prejudicando com isto ainda mais os seus próprios do que os nossos; e assim mesmo através de um semelhante perigo e de um insulto de tanta gravidade, foram os prisioneiros e os feridos transportados à Vila, e tratados com humanidade e cortesia, como permitam as circunstâncias.

Exemplar generosidade, que por isso também fez envergonhar os mais assanhados e encarniçados inimigos do corpo de voluntários. — Esqueceram-se de tudo, menos do nobre sentimento da humanidade.

Tal foi o resultado da primeira expedição e do combate onde ficaram mortos os dois comandantes, D. Gil Eanes e o tenente-coronel Azeredo, depois de extremados feitos de armas; enquanto centenares de infelizes soldados flutuavam sobre as águas do mar, ou saíam a ganhar as pedras, onde somente achavam as baionetas dos voluntários que lhes davam a morte evitada no meio do naufrágio. Ficaram prisioneiros 386 homens, e o resto foi vítima do fogo e das águas.

Aqui se escondiam uns entre os rochedos, acolá rolavam outros sobre as areias, e por fim, invocando a comiseração de seus próprios inimigos, e algumas vezes amigos e parentes, ofereciam à vista um horroroso quadro assaz difícil de pintar.

Na verdade que o número de mortos causava espanto; por muitos dias foram saindo, em lugares da costa mui distantes da Praia, cadáveres arrojados pelo mar, oferecendo um triste espectáculo; que isso trazem consigo os estragos da guerra!

A perda que sofreram os defensores da ilha, por diminuta, custa a acreditar em comparação da que tiveram os inimigos que batiam os nossos a peito descoberto em campo raso dominado pela sua metralha e fuzilaria; porém é facto incontestável que só houveram os mortos adiante relatados, sendo mui difícil o atinar com a causa principal de tão admirável sucesso, porquanto, ainda que pela rapidez das manobras e natureza do terreno se devesse esperar uma perda menos considerável, nunca se presumia ser tão insignificante como foi, atentas as circunstâncias e posições que concorreram nesta campanha25.

Pouco tempo depois de fundear a esquadra soube o general pelos telégrafos qual o estado das coisas na Vila da Praia e veio a certificar-se ainda melhor pelo emissário que lhe foi.

Já nesse mesmo dia, pela segunda vez, tinha proclamado às tropas invasoras para que desistissem de atacar a ilha, persuadindo-as a que — voltassem as armas contra o usurpador e seus aderentes, confiando nas graças e mercês do imperador D. Pedro e da augusta rainha D. Maria II —, que se unissem a ele, em vez de andarem como degradados pelos mares, sofrendo violências, calamidades e misérias; — que teriam a abundância e paga pronta; o serviço regular, e, mais que tudo, trocariam o nome e a vergonha de rebeldes no título de heróicos defensores do trono e da pátria. Porém tudo isto foi inútil; pareceu uma formalidade, pois que até o próprio conde experimentou efeitos em contrário.

Achava-se ele na praça da cidade e pouco depois do meio dia se pôs em marcha para o lugar do ataque com todas as forças destinadas a combater; consistiam estas: — 1.º no Batalhão n.º 5.º de Caçadores, de que era comandante José Quintino Dias; — 2.º no Regimento Provisório de Infantaria, que fora disciplinado pelo seu comandante Salazar Moscoso; comandava esta brigada, o coronel graduado Felipe Tomás Ribeiro, e era major de brigada o tenente Joaquim Bento Pereira; — 3.º de um corpo de oficiais de todas as armas, comandado pelo coronel de cavalaria Bernardo Baptista da Fonseca; — 4.º de 23 oficiais de cavalaria26, comandados pelo capitão do regimento José de Pina Freire da Fonseca; — 5.º em fim, de um parque de campanha composto de duas peças de 6 e dois obuses, comandante o capitão José Luiz Vilarinho.

Além destes, marcharam também com o general, excepto os oficiais do estado maior: o tenente de engenheiros Luiz da Silva Mouzinho de Albuquerque; o general Sebastião Draga de Brito Cabreira, comandante geral de artilharia; o coronel António Pedro de Brito, comandante da força armada; o tenente-coronel de engenheiros Eusébio Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, director geral das fortificações e telégrafos. Seguiam ainda vários oficiais às ordens destes três chefes: o coronel de milícias de Beja, Domingos de Melo Breyner; o coronel comandante do 1.º batalhão de milícias da ilha, Teotónio de Ornelas; e o tenente-coronel do mesmo batalhão, Manuel Homem da Costa Noronha27. Todos estes animados de um espírito patriótico e do mais vivo entusiasmo.

Chegou com efeito esta força à Vila da Praia, comandada pelo general conde de Vila Flor, parece que antes das 5 horas da tarde, já quando a batalha se achava concluída, e não como diz o autor da Memória Histórica, quando a acção se achava no maior empenho; porém o fogo da nau e das fragatas era às bandas; e tinham estas embarcações fundeado tão próximas à terra, que não havia semelhante exemplo, ainda de embarcações mercantes; no entretanto os navios mais ligeiros sobre a vela batiam de frente, de flanco e de revés as trincheiras, os forte e as estradas imediatos à Vila, com a maior actividade.

Cheio então de um perfeito júbilo e cercado das mais vivas aclamações, o conde abraçava o capitão Pimentel, que possuído de um grande entusiasmo lhe dizia: — “A vitória, general, está ganha, é de V. Ex.a, ninguém lha pode roubar; os prisioneiros são imensos!” —.

E o general não se aterrava com aquele medonho ressentimento da esquadra nem descansava sobre o triunfo alcançado pelos voluntários da rainha; triunfo que ele mesmo tinha observado ao longe28. Bem entendia que apesar do comandante da expedição ter perdido a sua mais forte coluna, nem por isso lhe escasseavam os meios de se vingar; ainda lhe restavam outras recursos para tentar o segundo desembarque; e assim persuadido o mesmo general, rompendo no meio de fogo tão contrário, foi dispondo o seu campo e preparando-se para o que pudesse acontecer; o que fez da maneira seguinte:

Reforçou a direita da linha colocando nela as novas forças e fez postar a cavalaria detrás da trincheira ou paredão ao poço das Chagas; ao mesmo tempo que destacou para a esquerda duas companhias do 5.º de Caçadores, a cargo do capitão Taborda, uma das quais se estendeu além do Facho, onde estava o telégrafo, e a outra na encosta da Serra e nas imediações do forte do Espírito Santo, com o pensamento de reforçar os voluntários, que se achavam fatigados e sem comer até àquele tempo, e também para vigiarem aqueles prisioneiros, que, em grande número, se achavam no pequeno recinto, onde haviam largado as armas e que, por mui poucos voluntários, não puderam ser conduzidos à Vila: e foi este o único motivo porque o general assim dispôs estas forças, e não para ajudarem os voluntários no combate da primeira coluna porque ele já estava acabado29. Nenhuma precisão havia de mais armas senão para guardar os pontos que podiam ainda ser atacados, como foram, pela esquadra.

Diz o autor do folheto — O Ataque da Vila da Praia na Ilha Terceira em 11 de Agosto de 1829 — a página 46: “E nós podemos afirmar sem medo de sermos desmentidos, que, se os soldados de Caçadores n.º 5 fizeram ainda algum tiro, não houve para isso a menor necessidade, que só fora neles divertimento bem pouco louvável, o fazê-lo; enquanto nós, tendo sido os atacados e visto correr o sangue de nossos companheiros, compassivos na presença de quadro tão lastimoso, já não víamos inimigos, mas desgraçados e miseráveis, a quem generosos concedêramos e defendíamos as vidas de que éramos senhores”.

Dispostas assim as forças da tropa de linha, e afoito debaixo do mais vivo fogo da armada, esperava o general conde de Vila Flor, colher pessoalmente os louros de uma vitória, que em prémio de seus acertados planos lhe pertencia, quando o comandante da esquadra fez embarcar em 18 lanchas a 2.ª coluna de suas tropas, cujo número, ainda que se ignorou verdadeiramente30, não parecia inferior ao da primeira.

Remava esta flotilha de barcos, precedidos de uma escuna e 6 barcas canhoneiras, com notável frouxidão, falta de ânimo e de vontade, procurando o centro da baía, conquanto o fogo da esquadra continuava com a maior actividade, animando-a e protegendo-a na sua dificultosa e arriscada marcha; e quando já a tiro, naquele ponto dominado e varrido por toda a artilharia de campanha, defendido então pela infantaria a coberto de dois valentes parapeitos, mandou o tenente Salazar Moscoso dar fogo a uma peça de 6, e com tal acerto fez a pontaria o capitão José Luiz Vilarinho, que afundou a 1.ª lancha da frente com 120 granadeiros, dos quais bem poucos se salvaram a nado.

A 2.ª lancha teve Igual sorte, e a 3.ª virou-se por si mesma em razão da desordem em que se pôs toda a linha. Depois de tamanho desastre, recuaram todas as mais lanchas apressadamente, abrigando-se com a nau e fragatas, que com o maior empenho as haviam protegido com toda a sua artilharia disparada às bandas e com um dilúvio de metralha e mosquetaria. Tal foi o medo e terror dos remeiros e soldados expedicionários, que de nada serviram a contê-los os sinais e vozes da nau, que os mandavam avançar, porque eles somente lhes importavam os tiros que de terra se lhes faziam, sem atender nem respeitar as ordens, e mesmo as ameaças dos seus, que por fim os recolheram a bordo, donde haviam saído, já bem a seu pesar.

Perdido desta maneira este segundo ataque, nem por isso de todo cessou o fogo da esquadra, mas antes sempre foi descarregando alguns tiros, ainda que com frouxidão e de espaço em espaço; conservando-se todavia, assim como os defensores da ilha, nas mesmas posições, de observação até quase às 9 horas da noite, em que o tenente Manoel Tomás dos Santos, lançou duas granadas sucessivamente; e porque a 2.ª rastejou perto da popa da nau, conheceu o comandante ser chegada a artilharia grossa e receando outros piores resultados, fez com lanternas sinal a toda a esquadra; e a nau como exasperada, despedindo-se dos inimigos com uma banda inteira, largou com as mais embarcações, vendo-se obrigada a picar a amarra e a deixar por mão as correntes, e com toda a precipitação se fez ao largo.

Por esta forma acabou um dia tão memorável, cheio das mais lisonjeiras consequências para a causa da rainha e da pátria, dia na verdade glorioso, em que tantos defensores, destes sagrados objectos, houveram oportuna ocasião de se imortalizar.

Perderam os invasores nestes dois ataques acima de mil soldados, que pela maior parte ficaram afogados nas águas do mar, donde muitos, alguns dias depois, saíram (como já disse) arrojados em diferentes lugares da costa. Ficaram prisioneiros 386, mortos: do estado maior, o tenente-coronel Luiz de Azeredo Pinto31 e o major D. Gil Eanes da Costa; de Infantaria n.º 7, o alferes José António Ferreira Leão; gravemente ferido o brigadeiro Joaquim Alvares da Costa.

Os soldados que se acharam mortos no areal, no calhau, pelas rochas e noutras partes foram no dia 12 de Agosto levados sem formalidade religiosa32 ao convento de S. Francisco, onde foram sepultados convenientemente.

Em o número dos prisioneiros do estado maior foram: de Caçadores n.º 1, o tenente-coronel António Simplício de Morais Fontoura, o capitão António Vitorino da Costa, José Bernardino de Carvalho, o tenente Francisco Alberto da Costa Rubim, os alferes António Joaquim Duarte, e Joaquim José Freire; de Caçadores n.º 11, os tenentes José Manuel de Paiva Carvalho Silveira, Atanásio Ramay, o alferes António Hermogénio da Cunha e o tenente António José Soares; de Caçadores n.º 16, o alferes Augusto Pais de Vasconcelos; de Infantaria n.º 20, o major graduado Júlio César Augusto e o capitão Francisco Borges Delicado.

Dos defensores da ilha ficaram mortos o capitão de Infantaria n.º 10, Manuel Joaquim Simões; o tenente de Infantaria n.º 21, José Caldas Osório; e o tenente José Narciso do Carvalho, que morreu de uma canseira habitual, sem ferimento algum33. Ficou gravemente ferido o tenente João Eduardo de Abreu Tavares. Morreram também nesta acção dois sargentos e 81 soldados voluntários, um soldado de Caçadores n.º 5 e um artilheiro da costa.

Assim foi que a muitos oficiais e soldados invasores e defensores da ilha coube a glória de atacar e defender com espírito e coragem própria de verdadeiros portugueses. E, com quanto eu, somente por falta de informação, deixasse talvez de especializar os nomes de muitos outros militares, que mui valorosamente se houveram nas duas acções daquele dia sempre memorável, por não parecer mesquinho, ainda aqui lembrarei, em obséquio da verdade, que deve ser o norte do historiador, o denodo, a coragem e inteligência dos dois cabos de guerra comandantes da 1.ª coluna, o tenente-coronel Azeredo e D. Gil Eanes da Costa.

Já deixo notado o valor de mais algum soldado pertencente à expedição, e acrescentarei que se contou por valor e extremada pertinácia o procedimento de um outro granadeiro, que nunca se quis render aos nossos, nem com promessas, nem com ameaças, até levar sete tiros de bala, que todos o feriram gravemente, e resistindo sempre foi morto à baioneta.

Ainda agora também da parte dos defensores da ilha consagrarei algumas letras em louvor do capitão Pimentel, quartel mestre general, que tão proveitosamente obstou à errada persuasão do major Meneses, dirigindo com reconhecida inteligência a defesa no primeiro ataque, sendo por isso mais deste do que daquele a glória do resultado. Tornarei a lembrar o alferes Simão António de Albuquerque e Nuno Brandão de Castro, o alferes Manuel Pereira Barbosa, e os já memorados soldados34e voluntários comandantes dos fortes, que com tanto desprezo da morte os sustentaram, apesar das ruínas que recebiam do repetido canhonamento.

Tornarei a lembrar o capitão Mesquita e o tenente Lopes e não esquecerei o alferes conde de Ficalho, que unindo-se aos voluntários na arriscada subida do Facho, se expôs ao maior perigo, arrojando grossos penedos sobre a cabeça dos invasores; e o alferes Moura Coutinho, sempre corajoso e destemido, que na primeira acção fez prodígios de valor. E como avaliaremos os serviços e o valor do outro Coutinho, seu irmão, quando investiu a porta do forte do Espírito Santo, fazendo saltar pelas canhoneiras precipitadamente os seus defensores?

Ainda agora, finalmente, para honra dos terceirenses e exemplo dos pais de família, lembrarei aquele generoso e constante procedimento do setuagenário Manuel Caetano, natural do Cabo da Praia35, que alegre se foi oferecer nos perigos, para ensinar, como ele dizia, os dois artilheiros da costa, seus filhos, recomendando-se nestas palavras — “Senhor governador (era o soldado António da Costa Rippar) feche a porta e guarde a chave porque estes mancebos são muito bisonhos, e ainda não ouviram zunir pelouros!” — E caindo morto um destes filhos, disse então o bom velho para o outro: “Desvia teu irmão que já pagou com a sua vida à pátria, agora tratemos de o vingar!”.

Mais porfioso e arriscado o combate no 1.º do que no 2.º ponto, em ambos eles achou defensores corajosos. Aí ficam estampados seus nomes; nem foi mister que ao corpo da oficialidade fosse incumbido o comando, cada um soldado ou artilheiro se determinava a si, mandava imperiosamente e obedecia com prontidão. Tal se viu no forte em que comandava o voluntário José Peixoto da Silva, onde — “pela falta de balas, muitas dos próprios inimigos lhes tornaram a ser enviadas”, no que muito se distinguiu o soldado artilheiro Manuel de Melo, um dos que o general condecorou36.

Eis aqui os resultados deste famoso combate, que manifestou a esperança dos constitucionais e demonstrou a impotência dos realistas para os subjugar; e deve notar-se, que a fortuna desde esse tempo desamparou estes e lhes voltou as custas, ou maquinando-lhes a coragem ou negando-lhe os meios de preparar segunda expedição com que voltassem a vingar tamanhos prejuízos da fazenda e do crédito nacional.

Cumpre igualmente mencionar aqui as forças que de diversas partes concorreram ao combate. Constaram todas elas de 1.269 baionetas, excepto a cavalaria e artilharia de campanha. Ficaram defendendo a cidade e os castelos os convalescentes e veteranos; a companhia dos voluntários paisanos; os funcionários eclesiásticos e civis, que com grande entusiasmo pediram armas. Toda esta força e o governo da cidade ficaram entregues ao coronel Pedro de Sousa Canavarro. O governo do castelo principal e o de S. Sebastião ficou a cargo do coronel José António da Silva Torres; e o comando geral dos oficiais ao coronel Bernardo Baptista da Fonseca, os quais todos prestaram importantíssimos serviços à causa da liberdade.

No dia 12 de Agosto, sepultados os mortos, como fica dito, e recolhidos nos hospitais os feridos, marchou o conde para a cidade de Angra com os prisioneiros, e foi acampar-se na Vila de S. Sebastião, no intento de vigiar os movimentos da esquadra, pois ainda velejava nestes mares; porém tão destroçada que não fazia caso senão de se pôr em estado de seguir viagem para Lisboa.

Ainda mesmo à sua vista entraram dois navios com socorros de tropa e dinheiro, e o fizeram sem nenhum obstáculo. Poucos dias depois desapareceram as duas únicas embarcações deixadas aqui no bloqueio.

No mesmo dia 12 de Agosto proclamou o conde aos habitantes da ilha, fazendo-lhes saber o resultado da acção na Praia, e agradecendo-lhes o sossego e confiança que nele depositaram; recomendando-lhes enfim continuassem a viver em completa tranquilidade e cooperassem com os valorosos defensores para acabar de pôr estas praias ao abrigo de todo o esforço de seus adversários (Documento FF).

Saindo da Vila de S. Sebastião a 13 de Agosto, entrou em Angra, onde foi recebido com grande satisfação, a repiques de sinos e salvas de artilharia e com outras demonstrações do costume por tais sucessos. Houveram três dias de luminárias e no último deles celebrou-se na sé catedral um Te-Deum em acção de graças. O cabido, tomando sério acordo sobre todo o acontecido37, determinou que se fizesse na matriz da Vila da Praia outro Te-Deum no dia 8 de Setembro pela mesma causa, precedendo luminárias e todas as demonstrações de alegria; e com efeito assim se efectuou, assistindo àquele acto religioso todas as autoridades e pessoas mais distintas do concelho e o conde com o seu estado maior38. Houve parada e as competentes salvas de artilharia e mosquetaria com que se concluiu o acto.

Ainda aparecia sobre as águas deste arquipélago a esquadra inimiga, quando desta ilha Terceira saiu uma escuna inglesa (a mesma que no dia 12 havia entrado com socorros) levando a seu bordo o tenente de cavalaria D. António de Melo, ajudante de campo do general, com ofícios ao marquês de Palmela (Documento GG), a respeito daquela famosa vitória30. E à rainha dirigiu uma pequena relação deste acontecimento, cuja notícia recebeu ela com muita satisfação, agradecendo ao conde e à guarnição os feitos de tão glorioso dia.

Achava-se a rainha em Falmouth, porto de Inglaterra, de onde partiu no dia 30 de Agosto para o Rio de Janeiro, sem poder conseguir do ministério inglês a necessária interferência nos seus negócios por não querer o plenipotenciário, visconde de Itabayana, em nome do imperador D. Pedro, convir se verificasse o casamento da mesma rainha com seu tio, o infante D. Miguel, conservando este o nome de rei da Portugal; e partiu a rainha em companhia da princesa de Leuchtenberg, D. Amélie de Beauharnais, que se achava tratada a casar com o imperador, levando ela mesmo a nova da brilhante acção do dia 11 de Agosto, como presságio de uma melhor ventura40.

Mas o certo é que a corte do Brasil em nada favorecia a sua causa, antes se tinha declararia neutral em todos estes negócios; e o mesmo visconde de Itabayana, por ter favorecido a emigração, achava-se em desagrado. De forma que suposto se conservasse a ilha Terceira no serviço da rainha, segura de qualquer agressão hostil, a falta de meios para sustentar a gente de guerra que a presidiava crescia de dia para dia, sem embargo das repetidas reduções nos vencimentos. E ainda que o conde achou em princípio quem lhe aceitasse algumas letras, este limitado recurso em breve se extinguiu, logo que as deixou de pagar.

Teve portanto este novo D. João de Castro, à vista da falta que experimentavam as tropas, de empenhar, não as próprias barbas, como fez aquele na Índia, mas as jóias da condessa sua mulher, e debaixo de inviolável segredo para não desmerecer com sua palavra e não comprometer o director da pagadoria, que tinha prometido aos soldados e oficiais41 um pronto pagamento; e por esta forma se verificou, sem que fossem aceites os penhores oferecidos, por generosidade dos prestadores.

Achou o conde muitas dificuldades a vencer na sua penosa administração; e entendeu de absoluta necessidade incorporar os prisioneiros de guerra ao batalhão que denominou do n.º 2; mas porque muitos destes soldados chamaram sobre si grandes desconfianças, os passou ao corpo de sapadores, que ocupou na fortificação da costa. Essa desconfiança não provinha somente dos soldados; procedia também dos seus oficiais, que foram prisioneiros no dia do ataque, pois que pagando muito mal os conhecidos rasgos de humanidade e bom tratamento que receberam dos defensores da ilha, e gozando da liberdade, que talvez não mereciam, tinham seduzido vários inferiores e soldados, prometendo-lhes recompensas com o fim de, a certos sinais, principiarem a revolta premeditada.

Tudo isto foi denunciado ao coronel Torres, que servia de governador do castelo, em consequência do que foram presos os culpadas; apreendidas as armas e munições de guerra de antemão preparadas; e a final, justamente castigados, pagaram sua ingratidão com exemplo de outros42.

Não davam menos cuidado no ânimo do conde as mais coisas da milícia do que os negócios civis e eclesiásticos.

Em todos os mosteiros de freiras se tinha desenvolvido o ardente desejo da liberdade do século, não se contentando muitas delas com a sua profissão, ainda que viviam em uma certa dependência, sustentadas decentemente à custa dos avultados fundos e rendimentos que liberal e francamente lhes haviam doado seus maiores.

As do convento de Jesus foram com efeito as que primeiro tiveram a lembrança, e o denodo, de manifestar a sua inutilidade, e reprovação ao estado que abraçaram na profissão, anatematizando a clausura e a própria Vila; e não sei se requerendo ao conde (como se afirmou naquele tempo) as deixasse sair para a cidade, a viver em casas suas ou em certos mosteiros; oferecendo-lhe o seu convento para quartel de tropa. O deferimento que tiveram não soubemos nós: o certo é que, ou fosse com este ou aquele especioso pretexto, mais ou menos justo, achamos se passou a portaria seguinte dirigida ao presidente do cabido: “Il° e Ex.mo Sr.: Sua Excelência o general me ordena comunique a V. Ex.a que acaba de mandar expedir todas as providências que julgou acertadas para se efectuar a remoção do Menino Jesus da real protecção da Vila da Praia para esta cidade; bem como todas as alfaias ao mesmo pertencentes, estando igualmente providenciada por ordem a decente escolta que deve acompanhar a referida da imagem. Igualmente ordena o mesmo Ex.mo Sr. que V Ex.a se entenda com o dr. corregedor da comarca relativamente à efectiva mudança das religiosas do convento de Jesus, para o de Nossa Senhora da Luz, o qual se acha autorizado para o coadjuvar nessa comissão com todo e qualquer auxílio do braço secular, que para isso for necessário; e sendo também preciso recorrer de força armada, se esta for absolutamente indispensável ao inteiro desempenho desta diligência. Deus guarde a V. Ex.a, secretaria militar em Angra, 4 de Janeiro de 1830, Il. E Ex.mo Sr. dr. João José da Cunha Ferraz. — Luiz da Silva Mouzinho de Albuquerque”.

Indo o ouvidor do eclesiástico Manuel Paim da Câmara com o seu escrivão executar esta ordem, saíram todas as religiosas, acompanhando-o sem hesitação alguma para o mosteiro da Luz; porém, chegando defronte das casas do padre António Coelho Souto-Maior, que ficavam diante do convento de onde saíam, recolheram-se a elas furtivamente Joaquina Isabel, abadessa; Rosa Jacinta, vigária; e Mariana Josefa, escrivã; assim como as madres Maria José, Maria Violante, Ana Margarida, e Águeda Adriana; e nestas casas que estavam de portas abertas e mobiladas, foram acolhidas e protegidas, não obstante o ouvidor as instar e compelir com argumentos e palavras para que desistissem do seu temerário intento e o seguissem; o que de nenhuma forma pôde conseguir, defendendo-se elas em dizer que nem quebravam a clausura, nem desobedeciam ao seu prelado.

Parecia este o mesmo jogo que houve no ano de 1614 com as religiosa deste mesmo convento quando, encantadas das delícias da cidade e protegidas pelo bispo, se subtraíram por muito tempo a ir habitar na Praia onde tinham o seu convento novamente reedificado.

E só porque tinham requerido a sua transferência para outro Convento, que não era o da Luz, é que então se retiravam de ir para este, enquanto se lhes não diferisse como parecia de justiça: e muito menos existia nelas o menor pensamento de viver licenciosamente, antes protestavam viver na piedade religiosa que professaram.

Com estas e outras bem estudadas desculpas as deixou o ouvidor entregues a si próprias, lavrando de tudo auto que imediatamente enviou ao cabido, o qual, sobressaltado com tão inesperado e insólito acontecimento, logo ordenou pelo seu provisor ao referido ouvidor, em ofício de 7 de Janeiro do mesmo ano de 1830, que — “achando-se aquelas religiosas confirmando a sua formal desobediência com infracção dos votos sagrados” e incursas em excomunhão maior — latae sententia, ipso facto, — na forma da bula de Pio V, que principia — Decori — de 1700, além das determinações do sagrado concílio de Trento — de Regularibus —, bem como todos seus receptadores, e estes nas penas da ordenação LV, se procedesse e fizesse todas as diligências para o recolhimento das mesmas religiosas no convento destinado; devendo o ouvidor munir-se do auxílio do braço secular e militar, e fizesse auto de corpo de delito presuntivo; de forma que procedendo imediatamente à prisão das 7 religiosas, as fizesse conduzir com toda a decência para o convento da Luz, onde ficariam incomunicáveis, como vitandas, não podendo falar com pessoa alguma, até que humildemente pedissem sua absolvição; e que não se querendo dar à prisão, requeresse ao juiz de fora auxílio; e não podendo ainda mesmo assim ter execução a ordem do conde, pedisse ao comandante militar a necessária força armada, para serem conduzidas conforme o seu comportamento o permitisse.

Recebido este ofício logo foi o ouvidor dar-lhe execução e não faltando quem lhe aconselhasse toda a prudência e circunspecção, muito no conhecimento de que, segundo as respostas das referidas sete religiosas, não lhes faltavam defensores e poderosas protecções em que se confiavam; e que assim o braço secular como a força militar se invalidavam no seguro exercício de suas funções.

No entretanto, quase pro forma, procedeu ao sumário que se lhe determinara para cuja a inquirição se não tinham preparado menores artifícios e subornos, com que de uma vez se pôs termo aos autos julgando-se improcedente a matéria. Desta forma iludida a justiça, se ensaiaram outros delitos de primeira classe que o tempo foi descobrindo; e as religiosas de Jesus ali viveram até se dispersarem quando já ao suposto abrigo da lei que as pôs em plena liberdade.

Olhando o conde pela criação dos expostos a cargo das câmaras, achava um número extraordinário daqueles infelizes sem meio de serem socorridos; e querendo-lhes melhorar a sorte com aumento de algumas rendas e ao mesmo tempo proporcionado-lhes mais adequado tratamento; mostrou a este respeito o maior empenho, reunindo alguns fundos para isso, como foram os rendimentos das Casas da Misericórdia do lugar da Vila Nova, Vila de S. Sebastião e Lázaros da Praia: alegando na portaria que fez passar em 16 de Outubro que estes rendimentos andavam mal administrados, e se achavam ilegalmente possuídos, por não terem seus administradores a sustentar hospitais nem se regerem por estatutos próprios43.

Doou estes rendimentos à Câmara da cidade somente, a qual deles houve posse, não sem bastante murmuração, por se ter posto mão nestes estabelecimentos, que se achavam ao abrigo da lei e de vários privilégios.

Querendo tombem o mesmo conde favorecer a classe industriosa dos pescadores (enquanto, dizia ele, não era possível espalhar outros benefícios sobre a universalidade dos povos) deu uma portaria em 22 de Setembro isentando-os de todo e qualquer imposto de suas pescarias até nova ordem: benefício este que muito cabia à desgraçada classe dos marítimos, sujeitos até ali a mil arbítrios dos juízes territoriais, que os obrigavam e taxavam à sua vontade, como por vezes se tem mostrado nesta obra.

Contudo não alterou coisa alguma na administração da justiça suposto disso houvesse então grande necessidade. Continuaram portanto as funções da Junta e do Desembargo do Paço; a provedoria dos resíduos e outros tribunais estabelecidos na forma das ordenações do reino.

Todavia no meio de tão insuperáveis dificuldades, carente dos meios pecuniários, angustiado pelos dissabores e partidos sempre em acção entre os militares, tudo soube conciliar o conde, por sua natural docilidade, merecendo por isto os maiores elogios, e até as simpatias de uma grande parte dos seus inimigos (se tal nome se pode dar a certos desafeiçoados que apareceram) razão porque concluiu um governo de feliz recordação, no meio da paz, que tão foragida andava nesta ilha, antes que ele tomasse o governo-geral.

Notas[editar]

1. Vide citados Anais, tomo 2.º, página 36.

2. Em uma excelente epístola, valiosa produção das Musas, que tanto favoreciam o ilustre académico e na qual, debaixo da epígrafe de B. – Só aos dignos do canto, o canto envio – Á lisonja servil não queimo incenso – manifestava os seus padecimentos e dos colegas exigindo remoção para fora da inóspita e árida freguesia dos Biscoitos; acham-se a propósito semeados de elogios ao conde e bem fundada no seu governo a esperança da salvação pública:

................................
Pela força imutável dos destinos
Marchamos para os áridos Biscoitos
Cumprindo em tudo fielmente as ordens
Da mui sábia, mas extinta Junta.
................................
Graças, egrégio conde, à vinda tua!..
Mil graças de louvor ao céu mandamos,
Que às rédeas do governo as mãos lançaste!
................................
Agora, ilustre conde, por piedade,
Pela causa sagrada que defendes,
Sê o nosso protector, sê nosso amparo,
Oh! lembra-te, senhor, oh! não te esqueças
Desta porção de míseros mancebos,
Que depois de deixar a cara Pátria,
Fugindo à raiva do leão sanhudo,
Foi sempre em toda a parte maltratada
Coberta de baldões, cheia de opróbrios!
Amparar proteger o desvalido,
Foi sempre o proceder, foi sempre o Norte
Dos nobres corações das almas grandes,
Um só aceno teu prodígios brota,
Um só aceno teu salvar-nos pode
Da triste situação em que vivemos.
Tu nos podes chamar junto ao teu lado,
Tu nos podes mudar destes rochedos
Para sítios mais brandos, mais risonhos;
Atende-nos, senhor, oh sê propício;
Favorável despacha os nossos rogos;
Atende-nos, senhor, terás em prémio
Da nossa gratidão provas imensas;
E se à Pátria voltarmos, se algum dia
Nela tiverem meus rasteiros versos
Alguma aceitação, alguma glória,
Tuas façanhas, ínclitas virtudes,
Cantando espalharei por toda a parte,
Se tanto me ajudar o engenho e arte.

3. Desembarcaram com o conde 20 oficiais ao serviço da rainha.

4. Era nesse tempo mui lamentada a falta de um hábil engenheiro, porque, suposto de muitos anos àquela parte existia o coronel daquela arma José Rodrigues de Almeida, já por sua avançada idade, de mais de 70 anos, e por falta de forças físicas, não podia satisfazer ao muito que então exigiam as circunstâncias.

5. Achava-se com dois filhos ao serviço, e tinha sido nomeado pela Junta em portaria de 10 de Abril director das fortificações e telégrafos da ilha, melhoramentos de estradas e outras incumbências, no que muito se aproveitou, pois que era este hábil oficial inteiramente dedicado ao seu ofício e nele mui científico. Fez no castelo construir oficinas em que se preparavam toda a qualidade de petrechos de guerra.

6. Prescindo o falar aqui de muitos abusos de autoridade de que usaram para com os povos de seus distritos alguns destes militares, ou para ganhar partido ou para satisfazer a suas paixões desordenadas e afectos amorosos em que decerto ofereceram exemplos indignos do imitação.

7. Este distinto militar era filho do insigne compositor de música João José Baldi.

8. As peças de Artilharia montadas não excederam as 11.

9. Não esqueça dizer que ele fora visitado logo que chegou pelas pessoas mais distintas, corporações e magistrados da cidade, fazendo-se luminárias e todas as mais demonstrações de alegria usadas na ocasião de chegarem os capitães generais a esta ilha; o que ele muito agradeceu.

10. A força das exigências dos comandantes de distrito, e os seus procedimentos (falo com excepção) em relação à moral pública fazia nascer queixas ao governo, que por isto mesmo teve de obrigar várias juízes territoriais a conservarem-se nos cargos que recusavam servir. Também alguns destes comandantes se faziam árbitros entre os povos, e quiseram militarmente acabar suas questões até se manifestarem em oposição aos oficiais de justiça, como foi o do 2.º distrito, residente no Porto Judeu, Francisco Soares Caldeira. O qual, por certa prisão que iam fazer o escrivão do judicial, o octogenário José Bernardo Coelho de Sousa, e o alcaide da Vila de S. Sebastião, António José Teixeira, por mandado do juiz Francisco Machado Faleiro, consentiu, por lhe não pedirem licença para entrar na freguesia, que o seu destacamento os maltratasse de palavras e espancasse, e ainda teve o despejo de oferecer a sua casa ao delinquente que era homem do povo, para nela se acoitar procedimento escandaloso de que o nobre juiz se queixou, e que o conde repreendeu com muita modéstia, passando ordem aos comandantes em geral a fim de se portarem dentro dos limites de suas a atribuições.

11. Entre as medidas que adoptou não deve esquecer a execução da portaria da Junta Provisória datada em 24 de Abril de 1829 pela qual se determinou o modo e o tempo porque se deviam regular os aboletamentos da oficialidade e dos soldados. E dando cumprimento à outra portaria da mesma Junta, datada de 23 de Março, pela qual se estabeleceu um presídio militar onde se reuniram os criminosos condenados a trabalhos públicos, suavizou a sorte desses infelizes.

12. Por me não achar perto do combate recolhi informações de várias pessoas que nele estiveram; li diferentes obras onde se tratou desta acção: e tendo-me principalmente dirigido pela Memória Histórica que escreveu o coronel Eusébio Cândido Pinheiro Furtado, oficial comandante de engenharia, tive de emendar muitas coisas, suprindo o silêncio por ele guardado algumas vezes, e fui um tanto minucioso, por não cair na censura que lhe fez o anónimo [publicado em 1840 como obra de anónimo, mas da autoria de José Joaquim de Almeida de Moura Coutinho] que o refutou no seu folheto intitulado — “O Ataque da Vila da Praia na Ilha Terceira em 11 de Agosto de 1829” — do qual me servi neste lugar como de um fiel guia por ser o que mais exacto me pareceu.

13. Eis aqui como se explica o citado autor do folheto — “O Ataque da Vila da Praia na Ilha Terceira em 11 de Agosto de 1829” — a página 16: “Querem por tanto negar, ou mesmo ainda esclarecer a glória que, pelo sucesso deste famoso dia coube ao general Duque da Terceira, então Conde de Vila Flor, só por que não pôde nem deveu estar debaixo do fogo aos primeiros tiros, e procedeu ou com reconhecida má fé, ou com ignorância crassa dos deveres de um general, e do que a ciência da guerra exigia dele. Ao general não cumpre estar debaixo do fogo inimigo; se o fizer, imprudência loucura será conquanto, como todas, esta regra tenha excepção, e muitas vezes uma exposição desesperada e a tempo tenha decidido a sorte de acções ou duvidosas ou já quase perdidas, para que a glória e os louvores da vitória lhe pertençam convém que as suas disposições e providências tenham sido ordenadas e dirigidas com o acerto próprio a consegui-Ias. Nem é de pretender porque nem é materialmente possível, que o general esteja ao mesmo tempo em todos, sendo mais de um, os pontos onde pode efectuar-se o ataque, como acontece na ilha Terceira que numa circunferência de dezoito léguas tantos apresenta de fácil ou possível acesso em lugares opostos.”

14. Foi plenamente satisfeita esta recomendação; nenhuma pessoa se moveu e tive ocasião de observar em algumas partes que os desafectos ao sistema constitucional se desviavam naqueles dias do aparecer em público; e que o povo andava tão abatido, que parecia sentir muito os resultados da acção, quaisquer que fossem.

15. É ponto elevado entre a estrada que vai da Praia à Cidade distante do mar uma milha. Descobre de cima do Pico das Cruzes, onde se achava um telégrafo, toda a costa de leste, e do Pico das Contendas, em que se achava outro, avista os mares até dobrar a ilha para o norte. Era nestes dois pontos que deviam achar-se vigias de confiança. Mas não foi assim!

16. Quanto mudam os tempos e as coisas! Foi do próprio João Moniz Corte Real que eu, colhi a informação do que levo dito. Algumas outras informações me deu com igual vontade Eustáquio Francisco, um dos chefes amnistiados.

17. O lugar apontado pelo prático conservava um pequeno forte desprezado ao qual chamavam — dos Trinta Reis. A costa era brava, porém a baía funda, tendo comodidade para se aproximarem as lanchas à praia.

18. Presenciei todos estes movimentos de cima do Pico das Contendas da Vila de S. Sebastião, onde às 9 horas da manhã do dito dia fui procurar o oficial do telégrafo, que era um padre Pedro, e Francisco de Paula, irmão do outro oficial que servia no 3.º telégrafo que estava no Pico das Cruzes; mas ambos estes os haviam desamparado, segundo se disse naquele tempo a fim de se unirem à força que se achava nos fortes onde foram nomeados muito antes oficiais. Duvido de tanta generosidade e valor! O certo é que tanto o primeiro como o segundo não existiam no posto, nem pessoa alguma que fizesse os devidos sinais, e por isso os recebeu o Facho da cidade nem o da Praia, que também se achava entregue a um sapateiro de nome Jacinto de Lemos.

19. Faz deles honrosa menção o autor do citado folheto; e por isso não querendo omitir seus nomes, que são: os cabos Joaquim António Teixeira; Nicolau Anastácio de Bettencourt, que foi governador civil deste distrito; Joaquim Aleixo Soares; Albino Garcia de Mascarenhas; e os soldados Diogo José de Oliveira Silva Carneiro, Joaquim Rodrigues Campos, D. João Correia da Silveira Portugal, José Maria de Araújo, Lúcio Albino Garcia e seu irmão, Jaime Garcia de Mascarenhas.

20. Observei que as vedetas desta força entravam na Baía das Mós quando a esquadra fundeava na Praia; que ela seria o mais eficaz e bem calculado socorro se o desembarque se tivesse feito em alguma das duas baías onde antigamente saltaram os castelhanos. Todavia a estrada que vai desde a Salga ao Porto Novo é certamente a mais incómoda da ilha; atravessando boa meia légua por vales e montanhas de mui difícil acesso, sendo nesse dia necessário fazer caminho por cerrados tapados e cultivados, com suma dificuldade no transporte da artilharia, o que certamente deixaria a tropa e os condutores em extrema canseira, chegando mui tarde ao seu destino.

21. Poucas eram as famílias principais que naquela ocasião se não achavam em suas quintas e pomares ou vinhas, tendo levado consigo tudo o melhor que possuíam, receando há muito os sucessos desta famosa empresa.

22. O cura de Vila Nova, Agostinho de Lemos; Simplício Eusébio Nogueira, professor de latinidade; e Joaquim Coelho dos Santos, procurador do auditório na mesma Vila da Praia, pediram armas e foram postar-se na trincheira junto ao forte da Luz, onde permaneceram fazendo fogo enquanto durou a acção, e os único que ali permaneceram voluntariamente. Já que nenhum deles hoje vive, sirva à historia esta declaração, por insuspeita.

23. Esta é a desculpa que lhe dá o coronel Eusébio Cândido Furtado Pinheiro na supracitada Memória Histórica. Os navios rebeldes bateram mui vigorosamente este forte construído na base de uma alta serra. Todas as balas se impregnavam nela e produziam estilhaços que feriam de revés a guarnição (este inconveniente foi previsto, mas era irremediável) e por esta razão se tornou insustentável a defesa dele. Foi neste ponto que os rebeldes lançaram em terra alguns granadeiros e caçadores que por momentos ocuparam o forte, que já estava abandonado. Caro lhe custou este arrojo!

24. Escrevo neste lugar o diálogo que entre os dois oficiais houve, extraído da citada obra — O Ataque da Vila da Praia na Ilha Terceira em 11 de Agosto de 1829 [da autoria de José Joaquim de Almeida de Moura Coutinho, publicada em 1840]: — “Senhor oficial Vossa Senhoria assim foge? — E que hei de eu fazer com estas gatas que me desamparam? — Se os seus o desamparam, aqui vimos nós para os socorrer, que não fugimos ao fogo!”

25. Sobre este objecto, veja-se o folheto citado, a página 41.

26. Já se disse que a cavalaria chegara à Praia pouco depois de romper o fogo.

27. Este elegante mancebo era filho do capitão mor de Angra, também chamado Manuel Homem; veio a ser cruelmente assassinado na ilha de S. Miguel pelos inimigos do sistema constitucional e, segundo se disse, por alguns excessos praticados contra eles: assim acontece com os faltos de experiência!

28. A divisão marchou pela estrada de baixo e avistou o lugar do conflito do alto da Fonte do Bastardo, conhecendo já então o general qual o estado das coisas.

29. O autor da supracitada Memória Histórica, Eusébio Cândido Cordeiro Pinheiro Furtado, parece, talvez por menos bem informado, haver escrito esse folheto para deturpar a glória dos voluntários, que somente deles era.

30. Na referida Memória Histórica faz-se menção de 2.070 homens, como se colheu dos mapas dados pelo comandante da expedição; mas considerando-se excessivo este número em respeito ao tamanho das lanchas, porque nenhuma delas podia trazer mais de 50 a 60 homens de desembarque, o que dá pela força de que se compunha a 2.ª das três brigadas, conforme os mapas que se acharam ao tenente-coronel Azeredo.

31. Houve grande compaixão deste militar sendo visto estendido no areal mortalmente ferido, e pedindo aos próprios inimigos o acabassem de matar. Dali a pouco ele e D. Gil foram encontrados no maior desprezo, nus e despojados dos ricos fardamentos que traziam. Tal é a sorte dos vencidos!

32. Parece que nesta parte houve bastante falta no chefe eclesiástico da matriz da Praia. Nenhum cuidado teve ao menos em mencionar este fatal sucesso nos livros mortuários, em que devera lançar o rol ou termo dos que se sepultaram ou na sua igreja ou nas outras da Vila. Alguém me informou que muitos cadáveres foram levados fora das pontas e lançados ao mar com balas amarradas nos pés, e que outros ficaram enterrados no areal; porém valha a verdade. Servia de ouvidor eclesiástico António Coelho Souto-Maior e de vigário na igreja matriz Manuel Paim da Câmara.

33. Ao toque de unir a esquerda avançou com a sua companhia a marche-marche, do forte das Chagas para o lugar do ataque, e indo nesta corrida caiu morto, logo abaixo da praça da Vila.

34. Em seu lugar fica dito quais os comandantes dos fortes, e como de três eram soldados voluntários, e não oficiais, o que muito aproveitou ao bom êxito da causa.

35. Era viúvo e habitava em uma pequena casinha perto do forte. Findo o combate foi levado ao conde general, que lhe assegurou uma pensão em nome da rainha, fazendo-o vestir de novo, ao filho e a uma filha.

36. Aí anda pobre e miserável na sua Vila de S. Sebastião, assim como noutras partes andam os voluntários; cumprindo-nos agora a perguntar com o A. da folheto referido: “Que é feito desses bravos, lembrados sempre, sempre chamados nos momentos de perigo, mas também logo esquecidos, logo desprezados...”

37. Presidente o dr. Ferraz que no cabido representava diferentes dignidades, e todo fazia naquele tempo. A Câmara da Praia faz menção desta ordem do cabido em seu acórdão de 2 de Setembro.

38. Ao lado do general conde assistiu, em um jantar que ele deu à oficialidade, o celebrado velho Manuel Caetano, de quem atrás se falou, e a quem o conde convidou para o honrar.

39. Eram datados em 15 de Agosto contendo circunstanciada relação do combate. Leia-se a página 58 da citada Memória Histórica. Também lhe participou em 16 do dito mês quais os movimentos da esquadra.

40. Diz o citado autor dos Anais: “Era com efeito a estada da rainha em Inglaterra, um poderoso instrumento para todas as intrigas que se estavam constantemente tramando para sustentar D. Miguel em Portugal. Todo o caso estava em ganhar tempo e em prolongar a usurpação; e por isso na mesma ocasião em que por uma parte se insultavam ou se assassinavam os seus súbditos, por outra se urdiam negociações tenebrosas para sustentar o usurpador do seu trono; era ela tratada em Londres com algumas fingidas aparências de benevolência e urbanidade. O imperador do Brasil, porém, que teve pleno conhecimento de todos estes factos, deu então ordens positivas para que sua filha partisse imediatamente para o Rio de Janeiro; e foi este talvez o único passo acertado ou de resolução e carácter que deu D. Pedro em toda esta tão complicada questão.”

41. Parece que a junta da fazenda recebera o dinheiro com que contava para este pagamento, que importava em 2.000$000 reis. Vide citada Memória Histórica, a página 40.

42. Tendo-se feito muitas execuções em soldados por crimes de deserção e rebeldia antes de chegar o conde, e tendo ele suspendido rigorosos e cruéis castigos que se davam, logo depois de tomar posse, foi sentenciado João Marreiros, pelo conselho de guerra, e confirmada a sentença pelo conselho de justiça, em 4 de Agosto de 1829, mas sendo ao conde remetidos os autos, e ao juiz relator Luiz Ribeiro de Sousa Saraiva, por algum tempo suspenderam a execução, que mais tarde se fez, e só quando foi de absoluta necessidade punir estes outros rebeldes; mas não me acho habilitado a dizer qual o número, nem sei que género de suplício tiveram, porque não achei documentos, nem pessoa que me informasse. Entre os que nesse tempo foram executados contou-se a coragem e intrepidez do valente mancebo por alcunha — Boi Negro — natural da Terra Chã, que achando-se na cadeia sentenciado a pena última, por muitos crimes que tinha cometido, na hora da execução fugiu da cadeia a arrancando a baioneta à sentinela, que da ferida recebida nessa ocasião foi morrer ao hospital; e correndo pela Ladeira de S. Francisco resistiu às escoltas, sendo preso depois do grande conflito e de muitas feridas que lhe fizeram, e seguindo atrás dele a tumba e muita gente em lágrimas e compaixão daquele miserável, o levaram à forca do castelo de S, Sebastião, onde padeceu, assistindo-lhe e o capelão da Misericórdia com a bandeira, ceroferários e mais aparato fúnebre do costume.

43. Bem podia o conde nesta ocasião procurar um meio mais decente de se valer de tais fundos. Porém não foi bem aconselhado e até o seduziu um interessado na aniquilação das referidas Casa de Misericórdia, para à sua vontade lograr certo prazo de terras que eram delas e trazia de arrendamento. No ano de 1838, mandou o governo, em portaria de 17 de Maio, entregar aqueles rendimentos aos respectivos administradores, excepto os da Misericórdia da Vila Nova que estavam jacentes e que hoje se acham aplicados ao pagamento de uma escola de ensino primário no dito lugar.