Anexo:Imprimir/Os Maias

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EÇA DE QUEIROZ




OS MAIAS



EPISODIOS DA VIDA ROMANTICA





VOLUME I


 


PORTO
Livraria Internacional de Ernesto Chardron
CASA EDITORA
LUGAN & GENELIOUX, Sucessores
1888

Livro Primeiro

A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no outono de 1875, era conhecida na visinhança da rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janellas Verdes, pela casa do Ramalhete ou simplesmente o Ramalhete. Apesar d’este fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma timida fila de janellinhas abrigadas á beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de Residencia Ecclesiastica que competia a uma edificação do reinado da sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assimilhar-se-hia a um Collegio de Jesuitas. O nome de Ramalhete provinha de certo d’um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no logar heraldico do Escudo d’Armas, que nunca chegara a ser collocado, e representando um grande ramo de girasoes atado por uma fita onde se distinguiam letras e numeros d’uma data.

Longos annos o Ramalhete permanecera deshabitado, com teias d’aranha pelas grades dos postigos terreos, e cobrindo-se de tons de ruina. Em 1858 Monsenhor Buccarini, Nuncio de S. Santidade, visitara-o com idéa d’installar lá a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edificio e pela paz dormente do bairro: e o interior do casarão agradara-lhe tambem, com a sua disposição apalaçada, os tectos apainelados, as paredes cobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos Cupidinhos. Mas Monsenhor, com os seus habitos de rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os arvoredos e as agoas d’um jardim de luxo: e o Ramalhete possuia apenas, ao fundo d’um terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado ás hervas bravas, com um cypreste, um cedro, uma cascatasinha secca, um tanque entulhado, e uma estatua de marmore (onde Monsenhor reconheceu logo Venus Citherêa) ennegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres. Além d’isso, a renda que pedio o velho Villaça, procurador dos Maias, pareceu tão exagerada a Monsenhor, que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Egreja nos tempos de Leão X. Villaça respondeu — ­que tambem a nobreza não estava nos tempos do sr. D. João V. E o Ramalhete continuou deshabitado.

Este inutil pardieiro (como lhe chamava Villaça Junior, agora por morte de seu pae administrador dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870, para lá se arrecadaram as mobilias e as louças provenientes do palacete de familia em Bemfica, morada quasi historica, que, depois de andar annos em praça, fôra então comprada por um commendador brazileiro. N’essa occasião vendera-se outra propriedade dos Maias, a Tojeira; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e sabiam que desde a Regeneração elles viviam retirados na sua quinta de Santa Olavia, nas margens do Douro, tinham perguntado a Villaça se essa gente estava atrapalhada.

— ­Ainda teem um pedaço de pão, disse Villaça sorrindo, e a manteiga para lhe barrar por cima.

Os Maias eram uma antiga familia da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas collateraes, sem parentellas — ­e agora reduzida a dois varões, o senhor da casa, Affonso da Maia, um velho já, quasi um antepassado, mais edoso que o seculo, e seu neto Carlos que estudava medicina em Coimbra. Quando Affonso se retirara definitivamente para Santa Olavia, o rendimento da casa excedia já cincoenta mil cruzados: mas desde então tinham-se accumulado as economias de vinte annos de aldêa; viera tambem a herança d’um ultimo parente, Sebastião da Maia, que desde 1830 vivia em Napoles, só, occupando-se de numismatica; — ­e o procurador podia certamente sorrir com segurança quando fallava dos Maias e da sua fatia de pão.

A venda da Tojeira fôra realmente aconselhada por Villaça: mas nunca elle approvara que Affonso se desfizesse de Bemfica — ­só pela rasão d’aquelles muros terem visto tantos desgostos domesticos. Isso, como dizia Villaça, acontecia a todos os muros. O resultado era que os Maias, com o Ramalhete inhabitavel, não possuiam agora uma casa em Lisboa; e se Affonso n’aquella edade amava o socego de Santa Olavia, seu neto, rapaz de gosto e de luxo que passava as ferias em Paris e Londres, não quereria, depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do Douro. E com effeito, mezes antes de elle deixar Coimbra, Affonso assombrou Villaça annunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete! O procurador compoz logo um relatorio a enumerar os inconvenientes do casarão: o maior era necessitar tantas obras e tantas despezas; depois, a falta d’um jardim devia ser muito sensivel a quem sahia dos arvoredos de Santa Olavia; e por fim alludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fataes aos Maias as paredes do Ramalhete, «ainda que (acrescentava elle n’uma phrase meditada) até me envergonho de mencionar taes frioleiras n’este seculo de Voltaire, Guisot e outros philosophos liberaes...»

Affonso riu muito da phrase, e respondeu que aquellas razões eram excellentes — ­mas elle desejava habitar sob tectos tradiccionalmente seus; se eram necessarias obras, que se fizessem e largamente; e emquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par em par as janellas e deixar entrar o sol.

S. ex.ª mandava: — ­e, como esse inverno ia secco, as obras começaram logo, sob a direcção d’um Esteves, architecto, politico, e compadre de Villaça. Este artista enthusiasmára o procurador com um projecto de escada apparatosa, flanqueada por duas figuras symbolisando as conquistas da Guiné e da India. E estava ideando tambem uma cascata de louça na sala de jantar — ­quando, inesperadamente, Carlos appareceu em Lisboa com um architecto-decorador de Londres, e, depois de estudar com elle á pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para elle ali crear, exercendo o seu gosto, um interior confortavel, de luxo intelligente e sobrio.

Villaça resentiu amargamente esta desconsideração pelo artista nacional; Esteves foi berrar ao seu Centro politico que isto era um paiz perdido. E Affonso lamentou tambem que se tivesse despedido o Esteves, exigiu mesmo que o encarregassem da construcção das cocheiras. O artista ia acceitar — ­quando foi nomeado governador civil.

Ao fim d’um anno, durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa collaborar nos trabalhos, «dar os seus retoques estheticos» — ­do antigo Ramalhete só restava a fachada tristonha, que Affonso não quizera alterada por constituir a phisionomia da casa. E Villaça não duvidou declarar que Jones Bule (como elle chamava ao inglez) sem despender despropositadamente, aproveitando até as antigualhas de Bemfica, fizera do Ramalhete «um museu.»

O que surprehendia logo era o pateo, outr’ora tão lobrego, nú, lageado de pedregulho — ­agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de marmores brancos e vermelhos, plantas decorativas, vazos de Quimper, e dois longos bancos feudaes que Carlos trouxera de Hespanha, trabalhados em talha, solemnes como córos de cathedral. Em cima, na antecamara, revestida como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-n’a divans cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscos com reflexos metalicos de cobre, uma harmonia de tons severos, onde destacava, na brancura immaculada do marmore, uma figura de rapariga friorenta, arripiando-se, rindo, ao metter o pésinho n’agoa. D’ahi partia um amplo corredor, ornado com as peças ricas de Bemfica, arcas gothicas, jarrões da India, e antigos quadros devotos. As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No salão nobre, raramente usado, todo em brocados de velludo côr de musgo d’outono, havia uma bella téla de Constable, o retrato da sogra de Affonso, a condessa de Runa, de tricorne de plumas e vestido escarlate de caçadora ingleza, sobre um fundo de paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia musica, tinha um ar de seculo XVIII com seus moveis enramelhetados d’ouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas tapeçarias de Gobelins, desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as paredes de pastores e d’arvoredos.

Defronte era o bilhar, forrado d’um couro moderno trazido por Jones Bule, onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, esvoaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais commoda do Ramalhete: as ottomanas tinham a fôfa vastidão de leitos; e o conchego quente, e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes de velhas faienças hollandezas.

Ao fundo do corredor ficava o escriptorio de Affonso, revestido de damascos vermelhos como uma velha camara de prelado. A macissa meza de pau preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o solemne luxo das encadernações, tudo tinha ali uma feição austera de paz estudiosa — ­realçada ainda por um quadro attribuido a Rubens, antiga reliquia da casa, um Christo na Cruz, destacando a sua nudez de athleta sobre um ceu de poente revolto e rubro. Ao lado do fogão Carlos arranjara um canto para o avô com um biombo japonez bordado a ouro, uma pelle d’urso branco, e uma veneravel cadeira de braços, cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de sêda.

No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de familia, estavam os quartos de Affonso. Carlos despozera os seus, n’um angulo da casa, com uma entrada particular, e janellas sobre o jardim: eram tres gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e, os recostos acolchoados, a sêda que forrava as paredes, faziam dizer ao Villaça que aquillo não eram aposentos de medico — ­mas de dançarina!

A casa, depois de arranjada, ficou vazia emquanto Carlos, já formado, fazia uma longa viagem pela Europa; — ­e foi só nas vesperas da sua chegada, n’esse lindo outono de 1875, que Affonso se resolveu emfim a deixar Santa Olavia e vir installar-se no Ramalhete. Havia vinte e cinco annos que elle não via Lisboa; e, ao fim de alguns curtos dias, confessou ao Villaça que estava suspirando outra vez pelas suas sombras de Santa Olavia. Mas, que remedio! Não queria viver muito separado do neto; e Carlos agora, com idéas sérias de carreira activa, devia necessariamente habitar Lisboa... De resto, não desgostava do Ramalhete, apezar de Carlos, com o seu fervor pelo luxo dos climas frios, ter prodigalisado de mais as tapeçarias, os pesados reposteiros, e os velludos. Agradava-lhe tambem muito a visinhança, aquella dôce quietação de suburbio adormecido ao sol. E gostava até do seu quintalejo. Não era de certo o jardim de Santa Olavia: mas tinha o ar sympathico, com os seus girasoes perfilados ao pé dos degraus do terraço, o cypreste e o cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes, e a Venus Cytherêa parecendo agora, no seu tom claro de estatua de parque, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande seculo... E desde que a agoa abundava, a cascatasinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus tres pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucolico, melancolisando aquelle fundo de quintal soalheiro com um pranto de nayade domestica, esfiado gota a gota na bacia de marmore.

O que desconsolara Affonso, ao principio, fôra a vista do terraço — ­d’onde outr’ora, de certo, se abrangia até ao mar. Mas as casas edificadas em redor, nos ultimos annos, tinham tapado esse horizonte explendido. Agora, uma estreita tira de agoa e monte que se avistava entre dois predios de cinco andares, separados por um córte de rua, formava toda a paizagem defronte do Ramalhete. E, todavia, Affonso terminou por lhe descobrir um encanto intimo. Era como uma téla marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de côr e luz, os episodios fugitivos d’uma pacata vida de rio: ás vezes uma véla de barco da Trafaria fugindo airosamente á bolina; outras vezes uma galera toda em panno, entrando n’um favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancolia d’um grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desapparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó d’ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglez... E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e duas casas brancas ao rez d’agoa, cheias de expressão — ­ora faiscantes e despedindo raios das vidraças accezas em braza; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de poente, quasi similhantes a um rubor humano; e d’uma tristeza arripiada nos dias de chuva, tão sós, tão brancas, como nuas, sob o tempo agreste.

O terraço communicava por tres portas envidraçadas com o escriptorio — e foi n’essa bella camara de prelado que Affonso se acostumou logo a passar os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe preparara ternamente, ao lado do fogão. A sua longa residencia em Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume. Em Santa Olavia as chaminés ficavam accezas até Abril; depois ornavam-se de braçadas de flôres, como um altar domestico; e era ainda ahi, n’esse aroma e n’essa frescura, que elle gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tacito, ou o seu querido Rabelais.

Todavia, Affonso ainda ia longe, como elle dizia, de ser um velho borralheiro. N’aquella edade, de verão ou de inverno, ao romper do sol, estava a pé, sahindo logo para a quinta, depois da sua boa oração da manhã que era um grande mergulho na agoa fria. Sempre tivera o amor supersticioso da agoa; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem — que sabor d’agoa, som d’agoa, e vista d’agoa. O que o prendera mais a Santa Olavia fôra a sua grande riqueza d’agoas vivas, nascentes, repuxos, tranquillo espelhar d’agoas paradas, fresco murmurio de agoas regantes... E a esta viva tonificação da agoa attribuia elle o ter vindo assim, desde o começo do seculo, sem uma dôr e sem uma doença, mantendo a rica tradição de saude da sua familia, duro, resistente aos desgostos e annos — que passavam por elle, tão em vão, como passavam em vão, pelos seus robles de Santa Olavia, annos e vendavaes.

Affonso era um pouco baixo, macisso, de hombros quadrados e fortes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pelle córada, quasi vermelha, o cabello branco todo cortado á escovinha, e a barba de neve aguda e longa — ­lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das edades heroicas, um D. Duarte de Menezes ou um Affonso d’Albuquerque. E isto fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando, quanto as apparencias illudem!

Não, não era Menezes, nem Albuquerque; apenas um antepassado bonacheirão que amava os seus livros, o conchego da sua poltrona, o seu whist ao canto do fogão. Elle mesmo costumava dizer, que era simplesmente um egoista: — ­mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu coração tinham sido tão profundas e largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, n’uma caridade enternecida. Cada vez amava mais o que é pobre e o que é fraco. Em Santa Olavia, as creanças corriam para elle, dos portaes, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor: — ­e era dos que não pisam um formigueiro, e se compadece da sêde d’uma planta.

Villaça costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos patriarchas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminé, na sua coçada quinzena de velludilho, sereno, risonho, com um livro na mão, o seu velho gato aos pés. Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era agora (desde a morte de Tobias, o soberbo cão de S. Bernardo) o fiel companheiro de Affonso. Tinha nascido em Santa Olavia, e recebera então o nome de Bonifacio: depois, ao chegar á edade do amor e da caça, fora-lhe dado o appellido mais cavalheiresco de D. Bonifacio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades ecclesiasticas, e era o Reverendo Bonifacio...


Esta existencia nem sempre assim correra com a tranquillidade larga e clara d’um bello rio de verão. O antepassado, cujos olhos se enchiam agora d’uma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume relia com gosto o seu Guisot, fôra, na opinião de seu pae, algum tempo, o mais feroz Jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionario do pobre moço consistira em lêr Rousseau, Volney, Helvetius, e a Encyclopedia; em atirar foguetes de lagrimas á Constituição; e ir, de chapeu á liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maçonicas Odes abominaveis ao Supremo Architecto do Universo. Isto, porém, bastára para indignar o pae. Caetano da Maia era um portuguez antigo e fiel que se benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apathia de fidalgo beato e doente, tinha só um sentimento vivo — ­o horror, o odio ao Jacobino, aquem attribuia todos os males, os da patria e os seus, desde a perda das colonias até ás crises da sua gota. Para extirpar da nação o Jacobino, déra elle o seu amor ao sr. infante D. Miguel, Messias forte e Restaurador providencial... E ter justamente por filho um Jacobino, parecia-lhe uma provação comparavel só ás de Job!

Ao principio, na esperança que o menino se emendasse, contentou-se em lhe mostrar um carão severo e chamar-lhe com sarcasmo — ­cidadão! Mas quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara á turba que, n’uma noite de festa civica e de luminarias, tinha apedrejado as vidraças apagadas do sr. Legado d’Áustria, enviado da Santa Alliança — ­considerou o rapaz um Marat e toda a sua colera rompeu. A gota cruel, cravando-o na poltrona, não lhe deixou espancar o mação, com a sua bengala da India, á lei de bom pae portuguez: mas decidiu expulsal-o de sua casa, sem mezada e sem benção, renegado como um bastardo! Que aquelle pedreiro livre não podia ser do seu sangue!

As lagrimas da mamã amolleceram-n’o; sobretudo as razões d’uma cunhada de sua mulher, que vivia com elles em Bemfica, senhora irlandeza de alta instrucção, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara inglez ao menino e o adorava como um bébé. Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho para a quinta de Santa Olavia; mas não cessou de chorar no seio dos padres, que vinham a Bemfica, a desgraça da sua casa. E esses santos lá o consolavam, affirmando-lhe que Deus, o velho Deus d’Ourique, não permittiria jámais que um Maia pactuasse com Belzebut e com a Revolução! E, á falta de Deus Padre, lá estava Nossa Senhora da Soledade, padroeira da casa e madrinha do menino, para fazer o bom milagre.

E o milagre fez-se. Mezes depois, o Jacobino, o Marat, voltava de Santa Olavia um pouco contricto, enfastiado sobretudo d’aquella solidão, onde os chás do brigadeiro Senna eram ainda mais tristes que o terço das primas Cunhas. Vinha pedir ao pae a benção, e alguns mil cruzados, para ir a Inglaterra, esse paiz de vivos prados e de cabellos d’ouro de que lhe fallara tanto a tia Fanny. O pae beijou-o, todo em lagrimas, accedeu a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da Soledade! E o mesmo Frei Jeronymo da Conceição seu confessor, declarou este milagre — ­não inferior ao de Carnaxide.

Affonso partiu. Era na primavera — ­e a Inglaterra toda verde, os seus parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia penetrante dos seus nobres costumes, aquella raça tão séria e tão forte — ­encantaram-n’o. Bem depressa esqueceu o seu odio aos sorumbaticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau, e a Republica que quizera fundar, classica e voltarianna, com um triumvirato de Scipiões e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da Abrilada estava elle nas corridas d’Epsom, no alto d’uma sege de posta, com um grande nariz postiço, dando hurrahs medonhos — ­bem indifferente aos seus irmãos de Maçonaria, que a essas horas o sr. infante espicaçava a chuço, pelas viellas do Bairro Alto, no seu rijo cavallo d’Alter.

Seu pae morreu de subito, elle teve de regressar a Lisboa. Foi então que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa, uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ella. Teve um filho, desejou outros; e começou logo, com bellas idéas de patriarcha moço, a fazer obras no palacete de Bemfica, a plantar em redor arvoredos, preparando tectos e sombras á descendencia amada que lhe encantaria a velhice.

Mas não esquecia a Inglaterra: — ­e tornava-lh’a mais appetecida essa Lisboa miguelista que elle via, desordenada como uma Tunis barbaresca; essa rude conjuração apostolica de frades e bolieiros, atroando tavernas e capellas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do lausperenne para o curro, e anciando tumultuosamente pelo principe que lhe encarnava tão bem os vicios e as paixões...

Este espectaculo indignava Affonso da Maia; e muitas vezes, na paz do serão, entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu a indignação da sua alma honesta. Já não exigia de certo, como em rapaz, uma Lisboa de Catões e de Mucios-Scevolas. Já admittia mesmo o esforço d’uma nobreza para manter o seu privilegio historico; mas então queria uma nobreza intelligente e digna, como a Aristocracia tory (que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealisar), dando em tudo a direcção moral, formando os costumes e inspirando a litteratura, vivendo com fausto e fallando com gosto, exemplo de idéas altas e espelho de maneiras patricias... O que não tolerava era o mundo de Queluz, bestial e sordido.

Taes palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as côrtes geraes, a policia invadiu Bemfica, «a procurar papeis e armas escondidas.»

Affonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao lado — ­viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas, as mãos sujas do malsim rebuscando os colxões do seu leito. O sr. juiz de fóra não descobriu nada: acceitou mesmo na copa um calice de vinho, e confessou ao mordomo «que os tempos iam bem duros...» Desde essa manhã as janellas do palacete conservaram-se cerradas; não se abriu mais o portão nobre para sahir o coche da senhora; e d’ahi a semanas, com a mulher e com o filho, Affonso da Maia partia para Inglaterra e para o exilio.

Ahi installou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres, junto a Richmond, ao fundo d’um parque, entre as suaves e calmas paisagens de Surrey.

Os seus bens, graças ao credito do conde de Runa, antigo mimoso de D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro rispido do sr. D. Miguel, não tinham sido confiscados; e Affonso da Maia podia viver largamente.

Ao principio os emigrados liberaes, Palmella e a gente do Belfast, ainda o vieram desassocegar e consumir. A sua alma recta não tardou a protestar vendo a separação de castas, de gerarchias, mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma idéa — ­os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres á forra, e a plebe, o exercito, depois dos padecimentos da Galliza, succumbindo agora á fome, á vermina, á febre nos barracões de Plymouth. Teve logo conflictos com os chefes liberaes; foi accusado de vintista e demagogo; descreu por fim do liberalismo. Isolou-se então — ­sem fechar todavia a sua bolsa, d’onde sahiam ás cincoenta, ás cem moedas... Mas quando a primeira expedição partiu, e pouco a pouco se foram vasando os depositos de emigrados, respirou emfim — ­e, como elle disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar d’Inglaterra!

Mezes depois sua mãe, que ficara em Bemfica, morria d’uma apoplexia: e a tia Fanny veiu para Richmond completar a felicidade d’Affonso, com o seu claro juizo, os seus caracóes brancos, os seus modos de discreta Minerva. Alli estava elle pois no seu sonho, n’uma digna residencia ingleza, entre arvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo em torno de si tudo são, forte, livre e solido, — ­como o amava o seu coração.

Teve relações; estudou a nobre e rica litteratura ingleza; interessou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavallos, pela pratica da caridade; — ­e pensava com prazer em ficar ali para sempre n’aquella paz e n’aquella ordem.

Sómente Affonso sentia que sua mulher não era feliz. Pensativa e triste, tossia sempre pelas salas. Á noite sentava-se ao fogão, suspirava e ficava calada...

Pobre senhora! a nostalgia do paiz, da parentella, das egrejas, ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo pallidamente, tinha vivido desde que chegara n’um odio surdo áquella terra d’herejes e ao seu idioma barbaro: sempre arripiada, abafada em pelles, olhando com pavor os ceus fuscos ou a neve nas arvores, o seu coração não estivera nunca alli, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoção (a devoção dos Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se áquella hostilidade ambiente que ella sentia em redor contra os «papistas». E só se satisfazia á noite, indo refugiar-se no sotão com as creadas portuguezas, para resar o terço agachada n’uma esteira — ­gosando ali, n’esse murmurio d’ave-marias em paiz protestante, o encanto de uma conjuração catholica!

Odiando tudo o que era inglez, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao collegio de Richmond. Debalde Affonso lhe provou que era um collegio catholico. Não queria: aquelle catholicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas — ­não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ella á heresia; — ­e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capellão do Conde de Runa.

O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha: e a face d’Affonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar d’alguma caçada ou das ruas de Londres, d’entre o forte rumor da vida livre — ­ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo d’uma treva:

— ­Quantos são os inimigos da alma?

E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:

— ­Tres. Mundo, Diabo e Carne...

Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia alli o reverendo Vasques, obeso e sordido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho...

Ás vezes Affonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho — ­para o levar, correr com elle sob as arvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã accudia de dentro, em terror, a abafal-o n’uma grande manta: depois lá fóra o menino, acostumado ao collo das creadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das arvores: e pouco a pouco, n’um passo desconsolado, os dois iam pisando em silencio as folhas seccas — ­o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pae vergando os hombros pensativo, triste d’aquella fraqueza do filho...

Mas o menor esforço d’elle para arrancar o rapaz áquelles braços de mãe que o amolleciam, áquella cartilha mortal do padre Vasques — ­trazia logo á delicada senhora accessos de febre. E Affonso não se atrevia já a contrariar a pobre doente, tão virtuosa, e que o amava tanto! Ia então lamentar-se para o pé da tia Fanny: a sabia irlandeza mettia os oculos entre as folhas do seu livro, tratado d’Addisson ou poema de Pope, e encolhia melancolicamente os hombros. Que podia ella fazer!...

Por fim a tosse de Maria Eduarda foi augmentando — ­como a tristeza das suas palavras. Já fallava da «sua ambição derradeira», que era ver o sol uma vez mais! Por que não voltariam a Bemfica, ao seu lar, agora que o sr. Infante estava tambem desterrado e que havia uma grande paz? Mas a isso Affonso não cedeu: não queria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas — ­e os soldados do sr. D. Pedro não lhe davam mais garantias que os malsins do sr. D. Miguel.

Por esse tempo veio um grave desgosto á casa: a tia Fanny morreu, d’uma pneumonia, nos frios de março; e isto ennegreceu mais a melancolia de Maria Eduarda, que a amava muito tambem — ­por ser irlandeza e catholica.

Para a distrahir, Affonso levou-a para a Italia, para uma deliciosa villa ao pé de Roma. Ahi não lhe faltava o sol: tinha-o ponctual e generoso todas as manhãs, banhando largamente os terraços, dourando loureiraes e myrtos. E depois, lá em baixo, entre marmores, estava a coisa preciosa e santa, o Papa!

Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente appetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando n’um rumor de pachorrenta penitencia por tardes de sol e de poeira...

Foi necessario calmal-a, voltar a Bemfica.

Ahi começou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente, todos os dias mais pallida, levando semanas immovel sobre um canapé, com as mãos transparentes cruzadas sobre as suas grossas pelles d’Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-se d’aquella alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornára-se o grande homem da casa. De resto Affonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras canonicas, de capote e solideo, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio de sachristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha.

Todos aquelles santos varões comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador appareciam sobrecarregadas com as mesadas piedosas que dava a senhora: um Frei Patricio surripiára-lhe duzentas missas de cruzado por alma do Sr. D. José I...

Esta carolice que o cercava ia lançando Affonso n’um atheismo rancoroso: quereria as egrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado, uma matança de reverendos... Quando sentia na casa a voz de resas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel Sequeira, que vivia n’uma quinta a Queluz.

O Pedrinho no entanto estava quasi um homem. Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da raça, da força dos Maias; a sua linda face oval d’um trigueiro calido, dois olhos maravilhosos e irresistiveis; promptos sempre a humedecer-se, faziam-n’o assemelhar a um bello arabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indifferente a brinquedos, a animaes, a flores, a livros. Nenhum desejo forte parecera jámais vibrar n’aquella alma meia adormecida e passiva: só ás vezes dizia que gostaria muito de voltar para a Italia. Tomára birra ao Padre Vasques, mas não ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse abatimento continuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarello, com as olheiras fundas e já velho. O seu unico sentimento vivo, intenso, até ahi, fôra a paixão pela mãe.

Affonso quizera-o mandar para Coimbra. Mas, á idéa de se separar do seu Pedro, a pobre senhora cahira de joelhos deante d’Affonso, balbuciando e tremendo: e elle, naturalmente, lá cedeu perante essas mãos supplicantes, essas lagrimas que cahiam quatro a quatro pela pobre face de cera. O menino continuou em Bemfica dando os seus lentos passeios a cavallo, de creado de farda atraz, começando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa... Depois foi despontando n’aquella organisação uma grande tendencia amorosa: aos dezenove annos teve o seu bastardosinho.

Affonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de tão desgraçados mimos, não faltavam ao rapaz qualidades: era muito esperto, são, e, como todos os Maias, valente: não havia muito que elle só, com um chicote, dispersara na estrada tres saloios de varapau que lhe tinham chamado palmito.

Quando a mãe morreu, n’uma agonia terrivel de devota, debatendo-se dias nos pavores do inferno, Pedro teve na sua dôr os arrebatamentos d’uma loucura. Fizera a promessa hysterica, se ella escapasse, de dormir durante um anno sobre as lageas do pateo: e levado o caixão, sahidos os padres, cahio n’uma angustia soturna, obtusa, sem lagrimas, de que não queria emergir, estirado de bruços sobre a cama n’uma obstinação de penitente. Muitos mezes ainda não o deixou uma tristeza vaga: e Affonso da Maia já se desesperava de ver aquelle rapaz, seu filho e seu herdeiro, sahir todos os dias a passos de monge, lugubre no seu luto pesado, para ir visitar a sepultura da mamã...

Esta dôr exagerada e morbida cessou por fim; e succedeu-lhe, quasi sem transição, um periodo de vida dissipada e turbulenta, estroinice banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava affogar em lupanares e botequins as saudades da mamã. Mas essa exhuberancia anciosa que se desencadeara tão subitamente, tão tumultuosamente, na sua natureza desequilibrada, gastou-se depressa tambem.

Ao fim d’um anno de disturbios no Marrare, de façanhas nas esperas de toiros, de cavallos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, começaram a reapparecer as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam esses dias taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas salas, ou sob alguma arvore da quinta todo estirado de bruços, como despenhado n’um fundo de amargura. N’esses periodos tornava-se tambem devoto: lia Vidas de Santos, visitava o Lausperenne: eram d’esses bruscos abatimentos d’alma que outr’ora levavam os fracos aos mosteiros.

Isto penalisava Affonso da Maia: preferia saber que elle recolhera de Lisboa, de madrugada, exhausto e bebedo, — ­do que vel-o, de ripanço debaixo do braço, com um ar velho, marchando para a Egreja de Bemfica.

E havia agora uma idéa que, a seu pesar, às vezes o torturava: descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Bemfica: este homem extraordinario, com que na casa se mettia medo ás creanças, enlouquecera — ­e julgando-se Judas enforcara-se n’uma figueira...

Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor á Romeu, vindo de repente n’uma troca de olhares fatal e deslumbradora, uma d’essas paixões que assaltam uma existencia, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a rasão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abysmos.

N’uma tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, á porta de M.me Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéo branco, e uma senhora loira, embrulhada n’um chale de Cashmira.

O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo, uma face tisnada d’antigo embarcadiço e o ar gôche, desceu todo encostado ao trintanario como se um rheumatismo o tolhesse, entrou arrastando a perna o portal da modista; e ella voltando de vagar a cabeça olhou um momento o Marrare.

Sob as rosinhas que ornavam o seu chapeu preto os cabellos loiros, d’um oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e classica: os olhos maravilhosos illuminavam-n’a toda; a friagem fazia-lhe mais pallida a carnação de marmore: e com o seu perfil grave de estatua, o modelado nobre dos hombros e dos braços que o chale cingia — ­pareceu a Pedro n’esse instante alguma cousa d’immortal e superior á terra.

Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado á outra hombreira, n’uma pose de tedio — ­vendo o violento interesse de Pedro, o olhar acceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veiu tomar-lhe o braço, murmurou-lhe junto á face na sua voz grossa e lenta:

— ­Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os feitos principaes? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de Champagne?

Veiu o Champagne. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anneis da cabelleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando um puchão aos punhos:

— ­Por uma dourada tarde d’outomno...

— ­André, gritou Pedro ao creado, martellando o marmore da mesa, retira o Champagne!

O Alencar bradou, imitando o actor Epiphanio:

— ­O quê! Sem saciar a avidez de meu labio?...

Pois bem, o Champagne ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta das Vozes d’Aurora, explicaria aquella gente da caleche azul n’uma linguagem christã e pratica!...

— ­Ahi vae, meu Pedro, ahi vae!

Havia dois annos, justamente quando Pedro perdera a mamã, aquelle velho, o papá Monforte, uma manhã rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa n’aquella mesma caleche com essa bella filha ao seu lado. Ninguem os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a apparecer em S. Carlos, fazendo uma impressão — ­uma impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ella atravessava o salão os hombros vergavam-se no deslumbramento de auréola que vinha d’aquella magnifica creatura, arrastando com um passo de Deusa a sua cauda de côrte, sempre decotada como em noites de gala, e apesar de solteira resplandecente de joias. O papá nunca lhe dava o braço: seguia atraz, entalado n’uma grande gravata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiço na claridade loira que sahia da filha, encolhido e quasi apavorado, trazendo nas mãos o oculo, o libretto, um saco de bonbons, o leque e o seu proprio guardachuva. Mas era no camarote, quando a luz cahia sobre o seu collo eburneo e as suas tranças de oiro, que ella offerecia verdadeiramente a encarnação d’um ideal da Renascença, um modelo de Ticiano... Elle, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ella e ás outras, ás trigueirotas da assignatura:

— ­Rapazes! é como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI!

O Magalhães, esse torpe pirata, pozera o dito n’um folhetim do Portuguez. Mas o dito era d’elle, Alencar!

Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca n’aquella casa se abria uma janella. Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manoel. Emfim uma creada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno, tremia deante da filha, e dormia n’uma rêde; a senhora, essa, vivia n’um ninho de sedas todo azul-ferrête, e passava o seu dia a ler novellas. Isto não podia satisfazer a sofreguidão de Lisboa. Fez-se uma devassa methodica, habil, paciente... Elle, Alencar, pertencera á devassa.

E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Açores; muito moço, uma facada n’uma rixa, um cadaver a uma esquina tinham-n’o forçado a fugir a bordo d’um brigue americano. Tempos depois um certo Silva, procurador da casa de Taveira, que o conhecera nos Açores, estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrára lá o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo caes, de chinellas de esparto, á procura de embarque para a Nova-Orleans. Aqui havia uma treva na historia do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor n’uma plantação da Virginia... Emfim, quando reappareceu á face dos céos commandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brazil, para a Havana e para a Nova Orleans.

Escapara aos cruzeiros inglezes, arrancára uma fortuna da pelle do africano, e agora rico, homem de bem, proprietario, ia ouvir a Corelli a S. Carlos. Todavia esta terrivel chronica, como dizia o Alencar, obscura e mal provada, claudicava aqui e além...

— ­E a filha? perguntou Pedro, que o escutara, serio e pallido.

Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim tão loira e bella? Quem fôra a mamã? Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com aquelle gesto real no seu chale de Cashmira?...

— ­Isso, meu Pedro, são

mysterios que jámais poude Lisboa
astuta devassar e só Deus sabe!

Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquella legenda de sangue e negros, o enthusiasmo pela Monforte calmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino, a beltà do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se em villipendiar uma mulher tão loira, tão linda e com tantas joias, chamaram-lhe logo a negreira! Quando ella apparecia agora no theatro, D. Maria da Gama affectava esconder a face detraz do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ella usava os seus bellos rubis) o sangue das facadas que dera o papázinho! E tinham-n’a calumniado abominavelmente. Assim, depois de passarem em Lisboa o primeiro inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-se logo, com furor, que estavam arruinados, que a policia perseguia o velho, mil perversidades... O excellente Monforte, que soffre de rheumatismos articulares, achava-se tranquillamente, ricamente, tomando as aguas dos Piryneus... Fora lá que o Mello os conhecera...

— ­Ah! o Mello conhece-os? exclamou Pedro.

— ­Sim, meu Pedro, o Mello os conhece.

Pedro d’ahi a um momento deixou o Marrare; e n’essa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria e miuda, andou rondando uma hora, com a imaginação toda accesa, o palacete dos Vargas apagado e mudo. Depois, d’ahi a duas semanas o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro acto do Barbeiro, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia installado na frisa da Monforte, á frente, ao lado de Maria, com uma camelia escarlate na casaca — ­egual ás d’um ramo pousado no rebordo de velludo.

Nunca Maria Monforte apparecera mais bella: tinha uma d’essas toilettes excessivas e theatraes que offendiam Lisboa, e faziam dizer ás senhoras que ella se vestia «como uma comica». Estava de seda côr de trigo, com duas rosas amarellas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o collo e nos braços; e estes tons de ceara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabellos, illuminando-lhe a carnação eburnea, banhando as suas fórmas de estatua, davam-lhe o esplendor d’uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello, que conversava de pé com o papá Monforte — ­escondido como sempre no canto negro da frisa.

O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedro voltára á sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Ella conservou algum tempo a sua attitude de Deusa insensivel; mas, depois, no duetto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azues e profundos se fixaram n’elle, gravemente e muito tempo. O Alencar, correu ao Marrare, de braços ao ar, a berrar a novidade.

Não tardou de resto a fallar-se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Elle tambem namorou-a publicamente, á antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janella d’ella, immovel e pallido d’extasi.

Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel — ­poemas desordenados que ia compôr para o Marrare: e ninguem lá ignorava o destino d’aquellas paginas de linhas encruzadas que se accumulavam deante d’elle sobre o taboleiro da genebra. Se algum amigo vinha á porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:

— ­O sr. D. Pedro? Está a escrever á menina.

E elle mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, exclamava radiante, com o seu bello e franco sorriso:

— ­Espera ahi um bocado, rapaz, estou a escrever á Maria!

Os velhos amigos de Affonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Bemfica, sobretudo o Villaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer a nova d’aquelles amores do Pedrinho. Affonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camelias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume d’um enveloppe com sinete de lacre dourado; — ­e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho á estroinice bulhenta, ao jogo, ás melancolias sem rasão em que reapparecia o negro ripanço...

Mas ignorava o nome, a existencia sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos lhe revelaram, aquella facada nos Açores, o chicote de feitor na Virginia, o brigue Nova Linda, toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Affonso da Maia.

Uma noite que o coronel Sequeira, á mesa do whist, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavallo, «ambos muito bem e muito distingués», Affonso, depois d’um silencio, disse com um ar enfastiado:

— ­Emfim, todos os rapazes teem as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir taes cousas. Mas essa mulher, com um pae d’esses, mesmo para amante acho má.

O Villaça suspendeu o baralhar das cartas, e ageitando os oculos d’ouro exclamou com espanto:

— ­Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!...

Affonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, n’uma voz que tremia um pouco tambem:

— ­O Villaça de certo não suppõe que meu filho queira casar com essa creatura...

O outro emmudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:

— ­Isso não, está claro que não...

E o jogo continuou algum tempo em silencio.

Mas Affonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas que Pedro não jantava em Bemfica. De manhã, se o via, era um momento, quando elle descia ao almoço, já com uma luva calçada, apressado e radiante, gritando para dentro se estava sellado o cavallo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de chá, perguntava a correr «se o papá queria alguma cousa», dava um geito ao bigode deante do grande espelho de Veneza sobre o fogão, e lá partia, enlevado. Outras vezes todo o dia não sahia do quarto: a tarde descia, accendiam-se as luzes; até que o pae, inquieto, subia, ia encontral-o estirado sobre o leito, com a cabeça enterrada nos braços.

— ­Que tens tu? — ­perguntava-lhe.

— ­Enchaqueca, — ­respondia n’um tom surdo e rouco.

E Affonso descia indignado, vendo em toda aquella angustia covarde alguma carta que não viera, ou talvez uma rosa offerecida que não fôra posta nos cabellos...

Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em volta da bandeja do chá, os seus amigos tinham observações que o inquietavam, partindo d’aquelles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os rumores — ­emquanto elle passava alli, inverno e verão, entre os seus livros e as suas rosas. Era o excellente Sequeira que perguntava porque não faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, á Allemanha, ao Oriente? Ou o velho Luiz Runa, o primo d’Affonso, que, a proposito de cousas indifferentes, rompia lamentando os tempos em que o Intendente da policia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente alludiam á Monforte, evidentemente julgavam-n’a perigosa.

No verão, Pedro partiu para Cintra; Affonso soube que os Monfortes tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Villaça appareceu em Bemfica, muito preoccupado: na vespera Pedro visitara-o no cartorio, pedira-lhe informações sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar dinheiro. Elle lá lhe dissera que em setembro, chegando á sua maioridade, tinha a legitima da mamã...

— ­Mas não gostei d’isto, meu senhor, não gostei d’isto...

— ­E porque, Villaça? O rapaz quererá dinheiro, quererá dar presentes á creatura... O amor é um luxo caro, Villaça.

— ­Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouça!

E aquella confiança tão nobre de Affonso da Maia no orgulho patricio, nos brios de raça de seu filho, chegava a tranquillisar Villaça.

D’ahi a dias, Affonso da Maia viu emfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam ambos o seu café no mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavallos cobertos de redes. Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido côr de rosa cuja roda, toda em folhos, quasi cobria os joelhos de Pedro sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéo, apertadas n’um grande laço que lhe enchia o peito, eram tambem côr de rosa: e a sua face, grave e pura como um marmore grego, apparecia realmente adoravel, illuminada pelos olhos d’um azul sombrio, entre aquelles tons rosados. No assento defronte, quasi todo tomado por cartões de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapéo panamá, calça de ganga, o mantelete da filha no braço, o guarda sol entre os joelhos. Iam callados, não viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou com balanços lentos, sob os ramos que roçavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chavena de café junto aos labios, de olho esgazeado, murmurando:

— ­Caramba! É bonita!

Affonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquella sombrinha escarlate, que agora se inclinava sobre Pedro, quasi o escondia, parecia envolvel-o todo — ­como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste das ramas.

O outono passou, chegou o inverno, frigidissimo. Uma manhã, Pedro entrou na livraria onde o pae estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a benção, passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se bruscamente para elle:

— ­Meu pae, — ­disse, esforçando-se por ser claro e decidido — ­venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.

Affonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e n’uma voz grave e lenta:

— ­Não me tinhas fallado d’isso... Creio que é a filha d’um assassino, d’um negreiro, a quem chamam tambem a negreira...

— ­Meu pae!...

Affonso ergueu-se diante d’elle, rigido e inexoravel como a encarnação mesma da honra domestica.

— ­Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.

Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão, exclamou todo a tremer, quasi em soluços:

— ­Pois póde estar certo, meu pae, que hei de casar!

Sahiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o pae ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao hotel da Europa.

Dois dias depois Villaça entrou em Bemfica, com as lagrimas nos olhos, contando que o menino casára n’essa madrugada — ­e segundo lhe dissera o Sergio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Italia.

Affonso da Maia sentára-se n’esse instante á mesa do almoço, posta ao pé do fogão: ao centro, um ramo esfolhava-se n’um vaso do Japão, á chamma forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o numero da Grinalda, jornal de versos que elle costumava receber... Affonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo.

— ­Já almoçou, Villaça?

O procurador, assombrado d’aquella serenidade, balbuciou:

— ­Já almocei, meu senhor...

Então Affonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:

— ­Póde tirar d’alli esse talher, Teixeira. D’aqui por diante ha só um talher á mesa... Sente-se, Villaça, sente-se.

O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indifferença o talher do menino. Villaça sentára-se. Tudo em redor era correto e calmo como nas outras manhãs em que almoçara em Bemfica. Os passos do escudeiro não faziam ruido no tapete fofo; o lume estalava alegremente, pondo retoques d’ouro nas pratas polidas; o sol discreto que brilhava fóra no azul d’inverno fazia scintillar crystaes de geada nas ramas seccas; e á janella o papagaio, muito patulêa e educado por Pedro, rosnava injurias aos Cabraes.

Por fim Affonso ergueu-se; esteve olhando abstrahidamente a quinta, os pavões no terrasso; depois ao sahir da sala tomou o braço de Villaça, apoiou-se n’elle com força, como se lhe tivesse chegado a primeira tremura da velhice, e no seu abandono sentisse alli uma amizade segura. Seguiram o corredor, callados. Na livraria Affonso foi occupar a sua poltrona ao pé da janella, começou a encher de vagar o seu cachimbo. Villaça, de cabeça baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas pontas dos pés, como no quarto d’um doente. Um bando de pardaes veiu gralhar um momento nos ramos d’uma alta arvore que roçava a varanda. Depois houve um silencio, e Affonso da Maia disse:

— ­Então, Villaça, o Saldanha lá foi demittido do Paço?...

O outro respondeu, vaga e machinalmente:

— ­É verdade, meu senhor, é verdade...

E não se fallou mais de Pedro da Maia.

Pedro e Maria, no entanto, n’uma felicidade de novella, iam descendo a Italia, a pequenas jornadas, de cidade em cidade, n’essa via sagrada que vae desde as flores e das messes da planicie lombarda até ao molle paiz de romanza, Napoles, branca sob o azul. Era lá que tencionavam passar o inverno, n’esse ar sempre tepido junto a um mar sempre manso, onde as preguiças de noivado teem uma suavidade mais longa... Mas um dia, em Roma, Maria sentiu o appetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar assim, aos balouços das caleças, só para ir ver lazzaroni engolir fios de macarrão. Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elyseos, e gozarem alli um lindo inverno de amor! Paris estava seguro, agora, com o principe Luiz Napoleão... Além d’isso, aquella velha Italia classica enfastiava-a já: tantos marmores eternos, tantas madonas começavam (como ella dizia pendurada languidamente do pescoço de Pedro) a dar tonturas á sua pobre cabeça! Suspirava por uma boa loja de modas, sob as chammas do gaz, ao rumor do boulevard... Depois tinha medo da Italia onde todo mundo conspirava.

Foram para França.

Mas por fim aquelle Paris ainda agitado, onde parecia restar um vago cheiro de polvora pelas ruas, onde cada face conservava um calor de batalha, desagradou a Maria. De noite accordava com a Marselheza; achava um ar feroz á policia; tudo permanecia triste; e as duquezas, pobres anjos, ainda não ousavam vir ao Bois, com medo dos operarios, corja insaciavel! Emfim demoraram-se lá até a primavera, no ninho que ella sonhára, todo de velludo azul, abrindo sobre os Campos Elyseos.

Depois principiou a fallar-se de novo em revolução, em golpe d’estado. A admiração absurda de Maria pelos novos uniformes da garde-mobile fazia Pedro nervoso. E quando ella appareceu gravida, anciou por a tirar d’aquelle Paris batalhador e fascinante, vir abrigal-a na pacata Lisboa adormecida ao sol.

Antes de partir porém escreveu ao pae.

Fôra um conselho, quasi uma exigencia de Maria. A recusa de Affonso da Maia ao principio desesperara-a. Não a affligia a desunião domestica: mas aquelle não affrontoso de fidalgo puritano marcara muito publicamente, muito brutalmente, a sua origem suspeita! Odiou o velho: e tinha apressado o casamento, aquella partida triumphante para Italia, para lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avós godos, brios de familia — ­deante dos seus braços nus... Agora porém que ia voltar a Lisboa, dar soirées, crear côrte, a reconciliação tornava-se indispensavel; aquelle pae retirado em Bemfica, com o rigido orgulho de outras edades, faria lembrar constantemente, mesmo entre os seus espelhos e os seus estofos, o brigue Nova Linda carregado de negros... E queria mostrar-se a Lisboa pelo braço d’esse sogro tão nobre e tão ornamental, com as suas barbas de Viso-rei.

— ­Dize-lhe que já o adoro, murmurava ella curvada sobre a escrivaninha acariciando os cabellos de Pedro. Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei de pôr o nome d’elle... Escreve-lhe uma carta bonita, hein!

E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá. O pobre rapaz amava-o. Fallou-lhe commovido da esperança de ter um filho varão; as desintelligencias deviam findar em torno do berço d’aquelle pequeno Maia que alli vinha, morgado e herdeiro do nome... Contava-lhe a sua felicidade, com uma effusão de namorado indiscreto: a historia da bondade de Maria, das suas graças, da sua instrucção, enchia duas paginas: e jurava-lhe que apenas chegasse não tardaria uma hora em ir atirar-se aos seus pés...

Com effeito, apenas desembarcou, correu n’um trem a Bemfica. Dois dias antes o pae partira para S.ta Olavia: isto pareceu-lhe uma desfeita — ­e feriu-o acerbamente.

Fez-se então entre o pae e o filho uma grande separação. Quando lhe nasceu uma filha Pedro não lh’o participou — ­dizendo dramaticamente ao Villaça «que já não tinha pae!» Era uma linda bébé, muito gorda, loira e côr de rosa, com os bellos olhos negros dos Maias. Apesar do desejo de Pedro, Maria não a quiz crear; mas adorava-a com phrenesi; passava dias de joelhos ao pé do berço, em extasi, correndo as suas mãos cheias de pedrarias pelas carninhas tenras; pondo-lhe beijos de devota nos pésinhos, na rosquinha das côxas, balbuciando-lhe n’um enlevo nomes de grande amor, e perfumando-a já, enchendo-a já de laçarotes.

E n’estes delirios pela filha, brotava, mais amarga, a sua colera contra Affonso da Maia. Considerava-se então insultada em si mesma e n’aquelle cherubim que lhe nascera. Injuriava o velho grosseiramente, chamava-lhe o D. Fuas, o Barbatanas...

Pedro um dia ouviu isto, e escandalisou-se: ella replicou desabridamente: e deante d’aquella face abrazada, onde entre lagrimas os olhos azues pareciam negros de colera, elle só poude balbuciar timidamente:

— ­É meu pae, Maria...

Seu pae! E á face de toda a Lisboa tratava-a então como uma concubina! Podia ser um fidalgo, as maneiras eram de villão. Um D. Fuas, um Barbatanas, nada mais!...

Arrebatou a filha, e abraçada n’ella, romperam as queixas por entre os prantos:

— ­Ninguem nos ama, meu anjo! Ninguem te quer! Tens só a tua mãe! Tratam-te como se fosses bastarda!

A bebé, sacudida nos braços da mãe, desatou a gritar. Pedro correu, envolveu-as ambas no mesmo abraço, já enternecido, já humilde; e tudo terminou n’um longo beijo.

E elle, por fim, no seu coração, justificava aquella colera de mãe que vê desprezado o seu anjo. De resto, mesmo alguns amigos de Pedro, o Alencar, o D. João da Cunha, que começavam agora a frequentar Arroios, riam d’aquella obstinação de pae gothico, amuado na provincia, porque sua nora não tivera avós mortos em Aljubarrota! E onde havia outra em Lisboa, com aquellas toilettes, aquella graça, recebendo tão bem? Que diabo, o mundo marchara, sahira-se já das attitudes empertigadas do seculo XVI!

E o proprio Villaça, um dia que Pedro lhe fôra mostrar a pequerruchinha adormecida entre as rendas do seu berço, sensibilisou-se, veio-lhe uma das suas faceis lagrimas, declarou, com a mão no coração, que aquillo era uma caturrice do sr. Affonso da Maia!

— ­Pois peior para elle! não querer ver um anjo d’estes! disse Maria, dando deante do espelho um lindo geito ás flores do cabello. Tambem não faz cá falta...

E não fazia falta. N’esse outubro, quando a pequena completou o seu primeiro anno, houve um grande baile na casa de Arroios, que elles agora occupavam toda, e que fôra ricamente remobilada. E as senhoras que outr’ora tinham horror á negreira, a D. Maria da Gama que escondia a face por traz do leque, lá vieram todas, amaveis e decotadas, com o beijinho prompto, chamando-lhe «querida», admirando as grinaldas de camelias que emmolduravam os espelhos de quatrocentos mil réis, e gozando muito os gelados.

Começara então uma existencia festiva e luxuosa, que, segundo dizia o Alencar, o intimo da casa, o cortesão de Madame, «tinham um saborsinho d’orgia distinguée como os poemas de Byron.» Eram realmente as soirées mais alegres de Lisboa: ceiava-se á uma hora com Champagne; talhava-se até tarde um monte forte; inventavam-se quadros vivos, em que Maria se mostrara soberanamente bella sob as roupagens classicas de Helena ou no luxo sombrio do luto oriental de Judith. Nas noites mais intimas, ella costumava vir fumar com os homens uma cigarrilha perfumada. Muitas vezes, na sala de bilhar, as palmas estalaram, vendo-a bater á carambola franceza D. João da Cunha, o grande taco da epoca.

E no meio d’esta festança, atravessada pelo sopro romantico da Regeneração, lá se via sempre, taciturno e encolhido, o papá Monforte, d’alta gravata branca, com as mãos atraz das costas, rondando pelos cantos, refugiado pelos vãos das janellas, mostrando-se só para salvar alguma bobèche que ía estalar — ­e não desprendendo nunca da filha o olho embevecido e senil.

Nunca Maria fôra tão formosa. A maternidade dera-lhe um esplendor mais copioso; e enchia verdadeiramente, dava luz áquellas altas salas de Arroios, com a sua radiante figura de Juno loira, os diamantes das tranças, o eburneo e o lacteo do collo nu, e o rumor das grandes sedas. Com rasão, querendo ter, á maneira das damas da Renascença, uma flôr que a symbolisasse, escolhera a tulipa real opulenta e ardente.

Citavam-se os requintes do seu luxo, roupas brancas, rendas do valor de propriedades!... Podia fazel-o! o marido era rico, e ella sem escrupulo arruinal-o-hia, a elle e ao papá Monforte...

Todos os amigos de Pedro, naturalmente, a amavam. O Alencar esse proclamava-se com alarido seu «cavalleiro e seu poeta». Estava sempre em Arroios, tinha lá o seu talher: por aquellas salas soltava as suas phrases ressoantes, por esses sophás arrastava as suas poses de melancolia. Ia dedicar a Maria (e nada havia mais extraordinario que o tom langoroso e plangente, o olho turvo, fatal, com que elle pronunciava este nome — ­Maria!) ia dedicar-lhe o seu poema, tão annunciado, tão esperado — ­Flor de Martyrio! E citavam-se as estrophes que lhe fizera ao gosto cantante do tempo:

Vi-te essa noite no explendor das sallas
Com as loiras tranças volteando louca...

A paixão do Alencar era innocente: mas, dos outros intimos da casa, mais d’um de certo balbuciara já a sua declaração no boudoir azul em que ella recebia ás tres horas, entre os seus vasos de tulipas; as suas amigas porém, mesmo as peiores, affirmavam que os seus favores nunca teriam passado de alguma rosa dada n’um vão de janella, ou de algum longo e suave olhar por traz do leque. Pedro todavia começava a ter horas sombrias. Sem sentir ciumes, vinha-lhe ás vezes, de repente, um tedio d’aquella existencia de luxo e de festa, um desejo violento de sacudir da sala esses homens, os seus intimos, que se atropellavam assim tão ardentemente em volta dos hombros decotados de Maria.

Refugiava-se então n’algum canto, trincando com furor o charuto: e ahi, era em toda a sua alma um tropel de cousas dolorosas e sem nome...

Maria sabia perceber bem na face do marido «estas nuvens», como ella dizia. Corria para elle, tomava-lhe ambas as mãos, com força, com dominio:

— ­Que tens tu, amor? Estás amuado!

— ­Não, não estou amuado...

— ­Olha então para mim!...

Collava o seu bello seio contra o peito d’elle; as suas mãos corriam-lhe os braços n’uma caricia lenta e quente, dos pulsos aos hombros; depois, com um lindo olhar, estendia-lhe os labios. Pedro colhia n’elles um longo beijo, e ficava consolado de tudo.

Durante esse tempo Affonso da Maia não sahia das sombras de St.ª Olavia, tão esquecido para lá como se estivesse no seu jazigo. Já se não fallava d’élle em Arroios, D. Fuas estava roendo a teima. Só Pedro ás vezes perguntava a Villaça «como ia o papá.» E as noticias do administrador enfureciam sempre Maria: o papá estava optimo; tinha agora um cosinheiro francez explendido; St.ª Olavia enchera-se de hospedes, o Sequeira, André da Ega, D. Diogo Coutinho...

— ­O Barbatanas trata-se! ia ella dizer ao pae com rancor.

E o velho negreiro esfregava as mãos, satisfeito de o saber assim feliz em St.ª Olavia; porque nunca cessara de tremer á idéa de ver em Arroios, deante de si, aquelle fidalgo tão severo e de vida tão pura.

Quando porém Maria teve outro filho, um pequeno, o socego que então se fez em Arroios trouxe de novo muito vivamente ao coração de Pedro a imagem do pae abandonado n’aquella tristeza do Douro. Fallou a Maria de reconciliação, a medo, aproveitando a fraqueza da convalescença. E a sua alegria foi grande, quando Maria, depois de ficar um momento pensativa, respondeu:

— ­Creio que me havia de fazer feliz tel-o aqui...

Pedro, enthusiasmado com um assentimento tão inesperado, pensou em abalar para St.ª Olavia. Mas ella tinha um plano melhor: Affonso, segundo dizia o Villaça, devia recolher em breve a Bemfica; pois bem, ella iria lá com o pequeno, toda vestida de preto, e de repente, atirando-se-lhe aos pés, pedir-lhe-hia a benção para seu neto! Não podia falhar! Não podia, realmente; e Pedro viu alli uma alta inspiração de maternidade...

Para abrandar desde jà o papá, Pedro quiz dar ao pequeno o nome de Affonso. Mas n’isso Maria não consentiu. Andava lendo uma novella de que era heroe o ultimo Stuart, o romanesco principe Carlos Eduardo; e, namorada d’elle, das suas aventuras e desgraças, queria dar esse nome a seu filho... Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia-lhe conter todo um destino de amores e façanhas.

O baptisado teve de ser retardado; Maria adoecera com uma angina. Foi muito benigna porém; e d’ahi a duas semanas Pedro podia já sahir para uma caçada na sua quinta da Tojeira, adiante d’Almada. Devia demorar-se dois dias. A partida arranjara-se unicamente para obsequiar um italiano, chegado por então a Lisboa, distincto rapaz que lhe fôra apresentado pelo secretario da Legação Ingleza, e com quem Pedro sympathisara vivamente; dizia-se sobrinho dos Principes de Soria; e vinha fugido de Napoles, onde conspirára contra os Bourbons e fôra condemnado á morte. O Alencar e D. João Coutinho iam tambem á caçada — ­e a partida foi de madrugada.

N’essa tarde, Maria jantava só no seu quarto, quando sentiu carruagens parando á porta, um grande rumor encher a escada; quasi immediatamente Pedro apparecia-lhe tremulo e enfiado:

— ­Uma grande desgraça, Maria!

— ­Jesus!

— ­Feri o rapaz, feri o napolitano!...

— ­Como?

Um desastre estupido!... Ao saltar um barranco, a espingarda dispara-se-lhe, e a carga, zás, vae cravar-se no napolitano! Não era possivel fazer curativos na Tojeira, e voltaram logo a Lisboa. Elle naturalmènte não consentira que o homem que tinha ferido recolhesse ao hotel: trouxera-o para Arroios, para o quarto verde por cima, mandara chamar o medico, duas enfermeiras para o velar, e elle mesmo lá ia passar a noite...

— ­E elle?

— ­Um heroe!... Sorri, diz que não é nada, mas eu vejo-o pallido como um morto. Um rapaz adoravel! Isto só a mim, Senhor! E então o Alencar que ia mesmo ao pé d’elle... Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz intimo, de confiança! até a gente se ria. Mas não, zás, logo o outro, o de cerimonia...

Uma sege, n’esse instante, entrava o pateo.

— ­É o medico!

E Pedro abalou.

Voltou d’ahi a pouco mais tranquillo. O Dr. Guedes quasi rira d’aquella bagatella, uma chumbada no braço, e alguns grãos perdidos nas costas. Promettera-lhe que d’ahi a duas semanas podia caçar outra vez na Tojeira; e o principe estava já fumando o seu charuto. Bello rapaz! Parecia sympathisar com o papá Monforte...

Toda essa noite Maria dormiu mal, na excitação vaga que lhe dava aquella idéa d’um principe enthusiasta, conspirador, condemnado á morte, ferido agora por cima do seu quarto.

Logo de manhã cedo — ­apenas Pedro sahira a fazer transportar, elle mesmo, do hotel, as bagagens do napolitano — ­Maria mandou a sua criada franceza de quarto, uma bella moça d’Arles, acima, saber da parte d’ella como S. Alteza passara, e «ver que figura tinha». A arlesiana appareceu, com os olhos brilhantes, a dizer á senhora, nos seus grandes gestos de Provençal, que nunca vira um homem tão formoso! Era uma pintura de Nosso Senhor Jesus Christo! Que pescoço, que brancura de marmore! Estava muito pallido ainda; agradecia enternecido os cuidados de Madame Maia; e ficara a ler o jornal encostado aos travesseiros...

Maria, desde então, não pareceu interessar-se mais pelo ferido. Era Pedro que vinha, a cada instante, fallar-lhe d’elle, enthusiasmado por aquella existencia pathetica de principe conspirador, partilhando já o seu odio aos Bourbons, encantado com a similitude de gostos que encontrava n’elle, o mesmo amor da caça, dos cavallos, das armas. Agora logo de manhã, subia para o quarto do Principe, de robe-de-chambre, e cachimbo na boca, e passava lá horas n’uma camaradagem, fazendo grogs quentes — ­permittidos pelo Dr. Guedes. Levava mesmo para lá os seus amigos, o Alencar, o D. João da Cunha. Maria sentia-lhes por cima as risadas. Ás vezes tocava-se viola. E o velho Monforte, pasmado para o heroe, não cessava de lhe rondar o leito.

A Arlesiana, essa, tambem a cada momento apparecia lá a levar toalhas de rendas, um assucareiro que ninguem reclamara, ou algum vaso com flores para alegrar a alcova... Maria, por fim, perguntou a Pedro, muito seria, se além de todos os amigos da casa, duas enfermeiras, dois escudeiros, o papá e elle Pedro — ­era necessaria tambem constantemente a sua propria criada no quarto de Sua Alteza!

Não era. Mas Pedro riu muito á idea de que a Arlesiana se tivesse namorado do principe. N’esse caso Venus era-lhe propicia! O napolitano tambem a achava picante: un très joli brin de femme, tinha elle dito.

A bella face de Maria impallideceu de colera. Julgava tudo isso de mau gosto, grosseiro, impudente! Pedro fôra realmente um doido em trazer assim para a intimidade de Arroios um estrangeiro, um fugido, um aventureiro! Demais, aquella troça em cima, entre grogs quentes, com guitarra, sem respeito por ella ainda toda nervosa, toda fraca da convalescença, indignava-a! Apenas Sua Alteza podesse accommodar-se com almofadas n’uma sege, queria-o fóra, na estalagem...

— ­O que ahi vae! Jesus! o que ahi vae!... disse Pedro.

— ­É assim.

E de certo foi muito severa tambem com a Arlesianna, por que n’essa tarde Pedro encontrou a moça aos ais no corredor, limpando ao avental os olhos affogueados.

D’ahi a dias, porém, o napolitano, já convalescente, quiz recolher ao seu hotel. Não vira Maria: mas em agradecimento da sua hospitalidade mandou-lhe um admiravel ramo, e, com uma galanteria de principe artista da Renascença, um soneto em italiano enrolado entre as flores e tão perfumado como ellas: comparava-a a uma nobre dama da Syria dando a gota de agua da sua bilha ao cavalleiro arabe, ferido na estrada ardente; comparava-a á Beatriz do Dante.

Isto affigurou-se a todos de uma rara distincção, e, como disse o Alencar, um rasgo á Byron.

Depois, na soirée do baptisado de Carlos Eduardo, dada d’ahi a uma semana, o napolitano mostrou-se, e impressionou tudo. Era um homem esplendido, feito como um Apollo, de uma pallidez de marmore rico: a sua barba curta e frisada, os seus longos cabellos castanhos, cabellos de mulher, ondeados e com reflexos de ouro, apartados á nazarena — ­davam-lhe realmente, como dizia a Arlesianna, uma physionomia de bello Christo.

Dançou apenas uma contradança com Maria, e pareceu, na verdade, um pouco taciturno e orgulhoso: mas tudo n’elle fascinava, a sua figura, o seu mysterio, até o seu nome de Tancredo. Muitos corações de mulher palpitavam quando elle, encostado a uma hombreira, de claque na mão, uma melancolia na face, exhalando o encanto pathetico de um condemnado á morte, derramava lentamente pela sala o langor sombrio do seu olhar de velludo. A marqueza d’Alvenga, para o examinar de perto, pediu o braço a Pedro, e foi applicar-lhe, como a um marmore de museo, a sua luneta de ouro.

— ­É de appetite! exclamou ella. É uma imagem!... E são amigos, são amigos, Pedro?

— ­Somos como dois irmãos d’armas, minha senhora.

N’essa mesma soirée, o Villaça informára Pedro que o pae era esperado no dia seguinte em Bemfica. E Pedro, logo que se recolheram, fallou a Maria em «irem fazer a grande scena ao papá.» Ella, porém, recusou, e com as razões mais imprevistas, as mais sensatas. Tinha cogitado muito! Reconhecia agora que um dos motivos d’aquella teima do papá — ­ultimamente chamava-lhe sempre o papá — ­era essa extraordinaria existencia de Arroios...

— ­Mas filha, disse Pedro, escuta, nós não vivemos tambem em plena orgia... Alguns amigos que veem...

Pois sim, pois sim... Mas, realmente, estava decidida a ter um interior mais calmo e mais domestico. Era mesmo melhor p’ra os bébés. Pois bem, queria que o papá estivesse convencido d’essa transformação, para que as pazes fossem mais faceis e eternas.

— ­Deixa passar dois ou tres mezes... Quando elle souber como nós vivemos quietinhos, eu o trarei, socega... É bom tambem que seja quando meu pae partir para as aguas, para os Pyrineos. Que o pobre papá, coitado, tem medo do teu... Filho, não achas assim melhor?

— ­És um anjo, foi a resposta de Pedro, beijando-lhe ambas as mãos.

Toda a antiga maneira de Maria pareceu com effeito ir mudando. Suspendera as soirées. Começou a passar as noites muito recolhidas, com alguns intimos, no seu boudoir azul. Já não fumava; abandonara o bilhar; e vestida de preto, com uma flôr nos cabellos, fazia crochet ao pé do candieiro. Estudava-se musica classica quando vinha o velho Cazoti. O Alencar, que, imitando a sua dama, entrara tambem na gravidade, recitava traducções de Klopstock. Fallava-se com sisudez de politica; Maria era muito regeneradora.

E todas essas noites, Tancredo lá estava, indolente e bello, desenhando alguma flôr para ella bordar, ou tangendo à guitarra canções populares de Napoles. Todos alli o adoravam; mas ninguem mais que o velho Monforte, que passava horas, enterrado na sua alta gravata, contemplando o Principe com enternecimento. Depois, de repente, erguia-se, atravessava a sala, ia-se debruçar sobre elle, palpal-o, sentil-o, respiral-o, murmurando no seu francez de embarcadiço:

— ­Ça aller bien... Hein? Beaucoup bien... Ora estimo...

E estas correntes bruscas de affecto communicavam-se decerto, porque n’esse momento Maria tinha sempre um dos seus lindos sorrisos para o papá ou vinha beijal-o na testa.

De dia occupava-se de cousas serias. Organisara uma util associação de caridade, a Obra pia dos cobertores, com o fim de fazer no inverno ás familias necessitadas distribuições de agasalhos; e presidia no salão de Arroios, com uma campainha, as reuniões em que se elaboravam os estatutos. Visitava os pobres. Ia tambem amiudadas vezes a uma devoção ás Egrejas, toda vestida de preto, a pé, com um véo muito espesso no rosto.

O esplendor da sua belleza apparecia agora velado por uma sombra tocante de ternura grave: a Deusa idealisava-se em Madona; e não era raro ouvil-a de repente suspirar sem razão.

Ao mesmo tempo a sua paixão pela filha crescia. Tinha então dois annos e estava realmente adoravel; vinha todas as noites um momento á sala, vestida com um luxo de princeza; e as exclamações, os extasis de Tancredo não findavam! Fizera-lhe o retrato a carvão, a esfuminho, a aguarella; ajoelhava-se para lhe beijar a mãosinha côr de rosa, como ao bambino sagrado. E Maria, agora, apesar dos protestos de Pedro, dormia sempre com ella entre os braços.

Ao começo d’esse setembro o velho Monforte partiu para os Pyrineos. Maria chorou, dependurada do pescoço do velho, como se elle largasse de novo para as travessias de Africa.

Ao jantar, porém, chegou já consolada e radiante; e Pedro voltou a fallar da reconciliação, parecendo-lhe bom o momento de ir a Bemfica recuperar para sempre aquelle papá tão teimoso...

— ­Ainda não, disse ella reflectindo, olhando o seu calice de Bordeus. Teu pae é uma especie de santo, ainda o não merecemos... Mais para o inverno.


Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Affonso da Maia estava no seu escriptorio lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro deante de si. Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face livida, sob os cabellos revoltos, luzia um olhar de loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pae, rompeu a chorar perdidamente.

— ­Pedro! que succedeu, filho?

Maria morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, á idéa do filho livre para sempre dos Monfortes, voltando-lhe, trazendo á sua solidão os dois netos, toda uma descendencia para amar! E repetia, tremulo tambem, desprendendo-o de si com grande amor:

— ­Socega, filho, que foi?

Pedro então cahiu para o canapé, como cae um corpo morto; e levantando para o pae um rosto devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, n’uma voz surda:

— ­Estive fóra de Lisboa dois dias... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!

Affonso da Maia ficou deante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bella face, onde todo o sangue subira enchia-se pouco a pouco, de uma grande colera. Viu, n’um relance, o escandalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E era aquelle filho que, despresando a sua auctoridade, ligando-se a essa creatura, estragara o sangue da raça, cobria agora a sua casa de vexame. E alli estava! alli jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de homem trahido! Vinha atirar-se para um sophá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a passeiar pela sala, rigido e aspero, cerrando os labios para que não lhe escapassem as palavras de ira e de injuria que lhe enchiam o peito em tumulto... — ­Mas era pae: ouvia, alli ao seu lado, aquelle soluçar de funda dôr; via tremer aquelle pobre corpo desgraçado que elle outr’ora emballara nos braços; — ­parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o na testa, uma vez, outra vez, como se elle fosse ainda creança, restituindo-lhe alli e para sempre a sua ternura inteira.

— ­Tinha razão, meu pae, tinha razão, murmurava Pedro entre lagrimas.

Depois ficaram callados. Fóra, as pancadas successivas da chuva batiam a casa, a quinta, n’um clamor prolongado; e as arvores, sob as janellas, ramalhavam n’um vasto vento de inverno.

Foi Affonso que quebrou o silencio:

— ­Mas para onde fugiram, Pedro? Que sabes tu, filho? Não é só chorar...

— ­Não sei nada, respondeu Pedro n’um longo esforço. Sei que fugiu. Eu sahi de Lisboa na segunda feira. N’essa mesma noite, ella partiu de casa n’uma carruagem, com uma maleta, o cofre de joias, uma creada italiana que tinha agora, e a pequena. Disse á governante e á ama do pequeno que ia ter comigo. Ellas estranharam, mas que haviam de dizer?... Quando voltei, achei esta carta.

Era um papel já sujo, e desde essa manhã de certo muitas vezes relido, amarrotado com furia. Continha estas palavras:

«É uma fatalidade, parto para sempre com Tancredo, esquece-me que não sou digna de ti, e levo a Maria que me não posso separar d’ella.»

— ­E o pequeno, onde está o pequeno? exclamou Affonso.

Pedro pareceu recordar-se:

— ­Está lá dentro com a ama, trouxe-o na sege.

O velho correu, logo; e d’ahi a pouco apparecia, erguendo nos braços o pequeno, na sua longa capa branca de franjas e a sua touca de rendas. Era gordo, de olhos muito negros, com uma adoravel bochecha fresca e côr de rosa. Todo elle ria, grulhando, agitando o seu guiso de prata. A ama não passou da porta, tristonha, com os olhos no tapete e uma trouxasinha na mão.

Affonso sentou-se lentamente na sua poltrona, e accommodou o neto no collo. Os olhos enchiam-se-lhe de uma bella luz de ternura; parecia esquecer a agonia do filho, a vergonha domestica; agora só havia ali aquella facesinha tenra, que se lhe babava nos braços...

— ­Como se chama elle?

— ­Carlos Eduardo, murmurou a ama.

— ­Carlos Eduardo, hein?

Ficou a olhal-o muito tempo, como procurando n’elle os signaes da sua raça: depois tomou-lhe na sua as duas mãosinhas vermelhas que não largavam o guiso, e muito grave, como se a creança o percebesse, disse-lhe:

— ­Olha bem para mim. Eu sou o avô. É necessario amar o avô!

E áquella forte voz, o pequeno, com effeito, abriu os seus lindos olhos para elle, serios de repente, muito fixos, sem medo das barbas grisalhas: depois rompeu a pular-lhe nos braços, desprendeu a mãosinha, e martellou-lhe furiosamente a cabeça com o guiso.

Toda a face do velho sorria áquella viçosa alegria; apertou-o ao seu largo peito muito tempo, poz-lhe na face um beijo longo, consolado, enternecido, o seu primeiro beijo d’avô; depois, com todo o cuidado, foi collocal-o nos braços da ama.

— ­Vá, ama, vá... A Gertrudes já lá anda a arranjar-lhe o quarto, vá vêr o que é necessario.

Fechou a porta, e veiu sentar-se junto do filho que se não movera do canto do sophá, nem despregára os olhos do chão.

— ­Agora desabafa, Pedro, conta-me tudo... Olha que nos não vemos ha tres annos, filho...

— ­Ha mais de tres annos, murmurou Pedro.

Ergueu-se, allongou a vista á quinta, tão triste sob a chuva; depois, derramando-a morosamente pela livraria, considerou um momento o seu proprio retrato, feito em Roma aos doze annos, todo de velludo azul, com uma rosa na mão. E repetia ainda amargamente:

— ­Tinha razão, meu pae, tinha razão...

E pouco a pouco, passeiando e suspirando, começou a fallar d’aquelles ultimos annos, o inverno passado em Paris, a vida em Arroios, a intimidade do italiano na casa, os planos de reconciliação, por fim aquella carta infame, sem pudor, invocando a fatalidade, arremessando-lhe o nome do outro!... No primeiro momento tivera só idéas de sangue e quizera perseguil-os. Mas conservava um clarão de razão. Seria ridiculo, não é verdade? De certo a fuga fora d’antemão preparada, e não havia de ir correndo as estalagens da Europa á busca de sua mulher... Ir lamentar-se á policia, fazel-os prender? Uma imbecillidade; nem impedia que ella fosse já por esses caminhos fóra dormindo com outro... Restava-lhe sómente o desprezo. Era uma bonita amante que tivera alguns annos, e fugira com um homem. Adeus! Ficava-lhe um filho, sem mãe, com um mau nome. Paciencia! Necessitava esquecer, partir para uma longa viagem, para a America talvez; e o pae veria, havia de voltar consolado e forte.

Dizia estas cousas sensatas, passeiando devagar, com o charuto apagado nos dedos, n’uma voz que se calmava. Mas de repente parou deante do pae, com um riso secco, um brilho feroz nos olhos.

— ­Sempre desejei ver a America, e é boa occasião agora... É uma occasião famosa, hein? Posso até naturalisar-me, chegar a presidente, ou rebentar... Ah! Ah!

— ­Sim, mais tarde, depois pensarás n’isso, filho, accudiu o velho assustado.

N’esse momento a sineta do jantar começou a tocar lentamente, ao fundo do corredor.

— ­Ainda janta cedo, hein? disse Pedro.

Teve um suspiro cançado e lento, murmurou:

— ­Nós jantavamos ás sete...

Quiz então que o pae fosse para a mesa. Não havia motivo para que se não jantasse. Elle ia um bocado acima, ao seu antigo quarto de solteiro... Ainda lá tinha a cama, não é verdade? Não, não queria tomar nada...

— ­O Teixeira que me leve um calice de genebra... Ainda cá está oTeixeira, coitado!

E vendo Affonso sentado, repetiu, já impaciente:

— ­Vá jantar meu pae, vá jantar, pelo amor de Deus...

Saiu. O pae ouviu-lhe os passos por cima, e o ruido de janellas desabridamente abertas. Foi então andando para a sala de jantar, onde os criados que pela ama sabiam de certo o desgosto se moviam em pontas de pés, com a lentidão contristada d’uma casa onde ha morte. Affonso sentou-se á mesa só; mas já lá estava outra vez o talher de Pedro; rosas de inverno esfolhavam-se n’um vaso do Japão; e o velho papagaio agitado com a chuva mexia-se furiosamente no poleiro. ’

Affonso tomou uma colher de sopa, depois rolou a sua poltrona para junto do fogão; e ali ficou envolvido pouco a pouco n’aquelle melancolico crepusculo de dezembro, com os olhos no lume, escutando o sudoeste contra as vidraças, pensando em todas as cousas terriveis que assim invadiam n’um tropel pathetico á sua paz de velho. Mas no meio da sua dôr, funda como era, elle percebia um ponto, um recanto do seu coração onde alguma cousa de muito doce, de muito novo, palpitava com uma frescura de renascimento, como se algures, no seu ser, estivesse rompendo, burbulhando uma nascente rica de alegrias futuras; e toda a sua face sorria á chama alegre, revendo a bochechinha rosada, sob as rendas brancas da touca...

Pela casa no entanto tinham-se accendido as luzes. Já inquieto subiu ao quarto do filho; estava tudo escuro, tão humido e frio, como se a chuva caisse dentro. Um arrepio confrangeu o velho, e quando chamou, a voz de Pedro veiu do negro da janella; estava lá, com a vidraça aberta, sentado fóra na varanda, voltado para a noite brava, para o sombrio rumor das ramagens, recebendo na face o vento, a agua, toda a invernia agreste.

— ­Pois estás aqui filho! exclamou Affonso. Os criados hão de querer arranjar o quarto, desce um momento... Estás todo molhado, Pedro!

Apalpava-lhe os joelhos, as mãos regeladas. Pedro ergueu-se com um estremeção, desprendeu-se, impaciente d’aquella ternura do velho.

— ­Querem arranjar o quarto, hein? Faz-me bem o ar, faz-me tão bem!

O Teixeira trouxe luzes, e atraz d’elle appareceu o criado de Pedro, que chegára n’esse momento de Arroios, com um largo estojo de viagem recoberto de oleado. As malas tinha-as deixado em baixo; e o cocheiro viera tambem, como nenhum dos senhores estava em casa...

— ­Bem, bem, interrompeu Affonso. O sr. Villaça lá irá amanhã, e elle dará as ordens.

O criado então, em bicos de pés, foi depôr o estojo sobre o marmore da commoda: ainda lá restavam antigos frascos de toilette de Pedro: e os castiçaes sobre a meza allumiavam o grande leito triste de solteiro com os colxões dobrados ao meio.

A Gertrudes toda atarefada entrara com os braços carregados de roupa de cama; o Teixeira bateu vivamente os travesseiros; o criado d’Arroios pousando o chapéo a um canto, e sempre em ponta de pés, veiu ajudal-os tambem. Pedro no entanto, como somnambulo, voltara para a varanda, com a cabeça á chuva, attraido por aquella treva da quinta que se cavava em baixo com um rumor de mar bravo.

Affonso, então, puxou-lhe o braço quasi com aspereza.

— ­Pedro! Deixa arranjar o quarto! Desce um momento.

Elle seguiu maquinalmente o pae á livraria, mordendo o charuto apagado que desde tarde conservava na mão. Sentou-se longe da luz, ao canto do sophá, ali ficou mudo e entorpecido. Muito tempo só os passos lentos do velho, ao comprido das altas estantes, quebraram o silencio em que toda a sala ia adormecendo. Uma braza morria no fogão. A noite parecia mais aspera. Eram de repente vergastadas d’agua contra as vidraças, trazidas n’uma rajada, que longamente, n’um clamor teimoso, faziam escoar um diluvio dos telhados; depois havia uma calma tenebroza, com uma susurração distante de vento fugindo entre ramagens; n’esse silencio as goteiras punham um pranto lento; e logo uma corda de vendaval corria mais furioso, envolvia a casa n’um bater de janellas, redomoinhava, partia com silvos desolados.

— ­Está uma noite de Inglaterra, disse Affonso, debruçando-se a espertar o lume.

Mas a esta palavra Pedro erguera-se, impetuosamente. De certo o ferira a idéa de Maria, longe, n’um quarto alheio, agazalhando-se-lhe no leito do adulterio entre os braços do outro. Apertou um instante a cabeça nas mãos, depois veiu junto do pae, com o passo mal firme, mas a voz muito calma.

— ­Estou realmente cançado, meu pae, vou-me deitar. Boa noite... Amanhã conversaremos mais.

Beijou-lhe a mão e saiu de vagar.

Affonso demorou-se ainda ali, com um livro na mão, sem ler, attento só a algum rumor que viesse de cima; mas tudo jazia em silencio.

Deram dez horas. Antes de se recolher foi ao quarto onde se fizera a cama da ama. A Gertrudes, o criado de Arroios, o Teixeira, estavam lá cochichando ao pé da commoda, na penumbra que dava um folio posto deante do candieiro; todos se esquivaram em pontas de pés quando lhe sentiram os passos, e a ama continuou a arrumar em silencio os gavetões. No vasto leito, o pequeno dormia como um Menino Jesus cançado, com o seu guiso apertado na mão. Affonso não ousou beijal-o, para o não acordar com as barbas asperas; mas tocou-lhe na rendinha da camisa, entalou a roupa contra a parede, deu um geito ao cortinado, enternecido, sentindo toda a sua dôr calmar-se n’aquella sombra de alcova onde o seu neto dormia.

— ­É necessario alguma cousa, ama? perguntou, abafando a voz.

— ­Não, meu senhor...

Então, sem ruido, subiu ao quarto de Pedro. Havia uma fenda clara, entreabriu a porta. O filho escrevia, á luz de duas vellas, com o estojo aberto ao lado. Pareceu espantado de ver o pae: e na face que ergueu, envelhecida e livida, dois sulcos negros faziam-lhe os olhos mais refulgentes e duros.

— ­Estou a escrever, disse elle.

Esfregou as mãos, como arripiado da friagem do quarto, e accrescentou:

— ­Amanhã cedo é necessario que o Villaça vá a Arroios... Estão lá os criados, tenho lá dois cavalos meus, emfim uma porção de arranjos. Eu estou-lhe a escrever. É numero 32 a casa d’elle, não é? O Teixeira ha de saber... Boas noites, papá, boas noites.

No seu quarto, ao lado da livraria, Affonso não poude socegar, n’uma oppressão, uma inquietação que a cada momento o faziam erguer sobre o travesseiro, escutar: agora, no silencio da casa e do vento que calmara, ressoavam por cima lentos e continuos os passos de Pedro.

A madrugada clareava, Affonso ia adormecendo — ­quando de repente um tiro atroou a casa. Precipitou-se do leito, despido e gritando: um creado acudia tambem com uma lanterna. Do quarto de Pedro ainda entreaberto vinha um cheiro de polvora; e aos pés da cama, caido de bruços, n’uma poça de sangue que se ensopava no tapete, Affonso encontrou seu filho morto, apertando uma pistola na mão.

Entre as duas vélas que se extinguiam, com fogachos lividos, deixára-lhe uma carta lacrada com estas palavras sobre o enveloppe, n’uma letra firme: Para o papá.

D’ahi a dias fechou-se a casa de Bemfica. Affonso da Maia partia com o neto e com todos os criados para a quinta de S.ta Olavia.

Quando Villaça, em fevereiro, foi lá acompanhar o corpo de Pedro, que ia ser depositado no jazigo de familia, não pôde conter as lagrimas ao avistar aquella vivenda onde passára tão alegres nataes. Um baetão preto recobria o brazão d’armas, e esse panno de esquife parecia ter distingido todo o seu negrume sobre a fachada muda, sobre os castanheiros que ornavam o pateo; dentro os criados abafavam a voz, carregados de luto; não havia uma flor nas jarras; o proprio encanto de S.ta Olavia, o fresco cantar das aguas vivas por tanques e repuchos, vinha agora com a cadencia saudosa de um choro. E Villaça foi encontrar Affonso na livraria, com as janellas cerradas ao lindo sol de inverno, caido para uma poltrona, a face cavada sob os cabellos crescidos e brancos, as mãos magras e ociosas sobre os joelhos.

O procurador veiu dizer para Lisboa que o velho não durava um anno.

Mas esse anno passou, outros annos passaram.

Por uma manhã de abril, nas vesperas de Paschoa, Villaça chegava de novo a S.ta Olavia.

Não o esperavam tão cedo; e como era o primeiro dia bonito d’essa primavera chuvosa os senhores andavam para a quinta. O mordomo, o Teixeira, que ia já embranquecendo, mostrou-se todo satisfeito de ver o sr. administrador com quem ás vezes se correspondia, e conduziu-o á sala de jantar onde a velha governante, a Gertrudes, tomada de surpreza, deixou cair uma pilha de guardanapos e para lhe saltar ao pescoço.

As tres portas envidraçadas estavam abertas para o terraço, que se estendia ao sol, com a sua balustrada de marmore coberta de trepadeiras: e Villaça, adiantando-se para os degraus que desciam ao jardim, mal poude reconhecer Affonso da Maia n’aquelle velho de barba de neve, mas tão robusto e corado, que vinha subindo a rua de romanzeiras com o seu neto pela mão.

Carlos, ao avistar no terraço um desconhecido, de chapéo alto, abafado n’um cache-nez de pelucia, correu a miral-o, curioso — ­e achou-se arrebatado nos braços do bom Villaça, que largara o guarda sol, o beijava pelo cabello, pela face, balbuciando:

— ­Oh meu menino, meu querido menino! Que lindo que está! que crescido que está...

— ­Então, sem avisar, Villaça? exclamava Affonso da Maia, chegando de braços abertos. Nós só o esperavamos para a semana, creatura!

Os dois velhos abraçaram-se; depois um momento os seus olhos encontraram-se, vivos e humidos, e tornaram a apertar-se commovidos.

Carlos ao lado, muito serio, todo esbelto, com as mãos enterradas nos bolsos das suas largas bragas de flanella branca, o casquete da mesma flanella posta de lado sobre os bellos anneis do cabello negro — ­continuava a mirar o Villaça, que com o beiço tremulo, tendo tirado a luva, limpava os olhos por baixo dos oculos.

— ­E ninguem a esperal-o, nem um criado lá em baixo no rio! dizia Affonso. Emfim, cá o temos, é o essencial... E como você está rijo, Villaça!

— ­E v. ex.ª meu senhor! balbuciou o administrador, engulindo um soluço. Nem uma ruga! Branco sim, mas uma cara de moço... Eu nem o conhecia!... Quando me lembro, a ultima vez que o vi... E cá isto! cá esta linda flor!...

Ia abraçar Carlos outra vez enthusiasmado, mas o rapaz fugiu-lhe com uma bella risada, saltou do terraço, foi pendurar-se d’um trapesio armado entre as arvores, e ficou lá, balançando-se em cadencia, forte e airoso, gritando: «tu és o Villaça!»

O Villaça, de guarda sol debaixo do braço, contemplava-o embevecido.

— ­Está uma linda creança! Faz gosto! E parece-se com o pae. Os mesmos olhos, olhos dos Maias, o cabello encaracolado... Mas ha de ser muito mais homem!

— ­É são, é rijo, dizia o velho risonho, anediando as barbas. E como ficou o seu rapaz, o Manuel? Quando é esse casamento? Venha você cá para dentro, Villaça, que ha muito que conversar...

Tinham entrado na sala de jantar, onde um lume de lenha na chaminé de azulejo esmorecia na fina e larga luz de abril; porcelanas e pratas resplandeciam nos aparadores de pau santo; os canarios pareciam doudos de alegria.

A Gertrudes, que ficára a observar, acercou-se, com as mãos cruzadas sob o avental branco, familiar, terna.

— ­Então, meu senhor, aqui está um regalo, vêr outra vez este ingrato em S.ta Olavia!

E, com um clarão de sympathia na face, alva e redonda como uma velha lua, ornada já de um buço branco:

— ­Ah! sr. Villaça, isto agora é outra cousa! Até os canarios cantam! E tambem eu cantava, se ainda podesse...

E foi saindo, subitamente commovida, já com vontade de chorar.

O Teixeira esperava, com um riso superior e mudo que lhe ia d’uma á outra ponta dos seus altos collarinhos de mordomo.

— ­Eu creio que prepararam o quarto azul ao sr. Villaça, hein? disse Affonso. No quarto em que você costumava ficar dorme agora a viscondessa...

Então o Villaça apressou-se a perguntar pela sr.ª viscondessa. Era uma Runa, uma prima da mulher de Affonso, que, no tempo em que os poetas de Caminha a cantavam, casára com um fidalgote gallego, o sr. visconde de Urigo-de-la-Sierra, um borracho, um brutal que lhe batia: depois, viuva e pobre, Affonso recolhera-a por dever de parentella, e para haver uma senhora em S.ta Olavia.

Ultimamente passara mal... Mas, olhando o relogio, Affonso interrompeu a relação d’esses achaques.

— ­Villaça, vá-se arranjar, depressa, que d’aqui a pouco é o jantar.

O administrador surprehendido olhou tambem o relogio, depois a mesa já posta, os seis talheres, o cesto de flores, as garrafas de Porto.

— ­Então v. ex.ª agora janta de manhã? Eu pensei que era o almoço...

— ­Eu lhe digo, o Carlos necessita ter um regimen. De madrugada está já na quinta; almoça ás sete; e janta á uma hora. E eu, emfim, para vigiar as maneiras do rapaz...

— ­E o sr. Affonso da Maia, exclamou Villaça, a mudar de habitos, n’essa edade! O que é ser avô, meu senhor!

— ­Tolice! não é isso... É que me faz bem. Olhe que me faz bem!... Mas avie-se Villaça, avie-se que Carlos não gosta de esperar... Talvez tenhamos o abbade.

— ­O Custodio? Rica cousa! Então, se v. ex.ª me dá licença...

Apenas no corredor, o mordomo, ancioso por conversar com o sr. administrador, perguntou-lhe, desembaraçando-o do guarda sol e do chale-manta:

— ­Com franqueza, como nos acha por cá, pela quinta sr. Villaça?

— ­Estou contente, Teixeira, estou contente. Pode-se vir por gosto a S.ta Olavia.

E, pousando familiarmente a mão no hombro do escudeiro, piscando o olho ainda humido:

— ­Tudo isto é o menino. Fez reviver o patrão!

O Teixeira riu respeitosamente. O menino realmente era a alegria da casa...

— ­Olá! Quem toca por cá? exclamou Villaça, parando nos degraus da escada, ao ouvir em cima um afinar gemente de rebeca.

— ­É o sr. Brown, o inglez, o preceptor do menino... Muito habilidoso, é um regalo ouvil-o; toca ás vezes á noite na sala, o sr. juiz de direito acompanha-o na concertina... Aqui, sr. Villaça, o quarto de v. s.ª...

— ­Muito bonito, sim senhor!

O verniz dos moveis novos brilhava na luz das duas janellas, sobre o tapete alvadio semeado de florsinhas azues: e as bambinellas, os reposteiros de cretóne, repetiam as mesmas folhagens azuladas sobre fundo claro. Este conforto fresco e campestre deleitou o bom Villaça.

Foi logo apalpar os cretónes, esfregou o marmore da commoda, provou a solidez das cadeiras. Eram as mobilias compradas no Porto, hein? Pois, elegantes. E, realmente, não tinham sido caras. Nem elle fazia idéa! Ficou ainda em bicos de pés a examinar duas aguarellas inglezas representando vaccas de luxo, deitadas na relva, á sombra de ruinas romanticas. O Teixeira, observou-lhe, com o relogio na mão:

— ­Olhe que v. s.ª tem só dez minutos... O menino não gosta de esperar.

Então o Villaça decidiu-se a desenrolar o cache-nez; depois tirou o seu pesado collete de malha de lã; e pela camisa entreaberta via-se ainda uma flanella escarlate por causa dos rheumatismos, e os bentinhos de seda bordada. O Teixeira desapertava as correias da maleta; ao fundo do corredor, a rebeca atacara o Carnaval de Veneza; e atravez das janellas fechadas sentia-se o grande ar, a frescura, a paz dos campos, todo o verde d’abril.

Villaça, sem oculos, um pouco arripiado, passava a ponta da toalha molhada pelo pescoço, por traz da orelha, e ia dizendo:

— ­Então, o nosso Carlinhos não gosta de esperar, hein? Já se sabe, é elle quem governa... Mimos e mais mimos, naturalmente...

Mas o Teixeira muito grave, muito serio, desilludiu o sr. administrador. Mimos e mais mimos, dizia s. s.ª? Coitadinho d’elle, que tinha sido educado com uma vara de ferro! Se elle fosse a contar ao sr. Villaça! Não tinha a creança cinco annos já dormia n’um quarto só, sem lamparina; e todas as manhãs, zás, para dentro d’uma tina d’agua fria, ás vezes a gear lá fóra... E outras barbaridades. Se não se soubesse a grande paixão do avô pela creança, havia de se dizer que a queria morta. Deus lhe perdoe, elle, Teixeira, chegara a pensal-o... Mas não, parece que era systema inglez! Deixava-o correr, cair, trepar ás arvores, molhar-se, apanhar soalheiras, como um filho de caseiro. E depois o rigor com as comidas! Só a certas horas e de certas cousas... E ás vezes a creancinha, com os olhos abertos, a aguar! Muita, muita dureza.

E o Teixeira accrescentou:

— ­Emfim era a vontade de Deus, saiu forte. Mas que nós approvassemos a educação que tem levado, isso nunca approvámos, nem eu, nem a Gertrudes.

Olhou outra vez o relogio, preso por uma fita negra sobre o collete branco, deu alguns passos lentos pelo quarto: depois, tomando de sobre a cama a sobrecasaca do procurador, foi-lhe passando a escova pela gola, de leve e por amabilidade, em quanto dizia, junto ao toucador onde o Villaça acamava as duas longas repas sobre a calva:

— ­Sabe v. s.ª, apenas veiu o mestre inglez, o que lhe ensinou? A remar! A remar, sr. Villaça, como um barqueiro! Sem contar o trapesio, e as habilidades de palhaço; eu n’isso nem gosto de fallar... Que eu sou o primeiro a dizel-o: o Brown é boa pessoa, calado, asseado, excellente musico. Mas é o que eu tenho repetido á Gertrudes: póde ser muito bom para inglez, não é para ensinar um fidalgo portuguez... Não é. Vá v. s.ª fallar a esse respeito com a sr.ª D. Anna Silveira...

Bateram de manso á porta, o Teixeira emmudeceu. Um escudeiro entrou, fez um signal ao mordomo, tirou-lhe do braço respeitosamente a sobrecasaca, e ficou com ella junto do toucador, onde o Villaça, vermelho e apressado, luctava ainda com as repas rebeldes.

O Teixeira, da porta, disse com o relogio na mão:

— ­É o jantar. Tem v. s.ª dois minutos, sr. Villaça.

E o administrador d’ahi a um momento abalava tambem, abotoando ainda o casaco pelas escadas.

Os senhores já estavam todos na sala. Junto do fogão, onde as achas consumidas morriam na cinza branca, o Brown percorria o Times. Carlos, a cavallo nos joelhos do avô, contava-lhe uma grande historia de rapazes e de bulhas; e ao pé o bom abbade Custodio, com o lenço de rapé esquecido nas mãos, escutava, de bocca aberta, n’um riso paternal e terno.

— ­Olhe quem alli vem, abbade, disse-lhe Affonso.

O abbade voltou-se, e deu uma grande palmada na côxa:

— ­Esta é nova! Então é o nosso Villaça? E não me tinham dito nada! Venham de lá esses ossos, homem!...

Carlos pulava nos joelhos do avô, muito divertido com aquelles longos abraços que juntavam as duas cabeças dos velhos — ­uma com as repas achatadas sobre a calva, outra com uma grande corôa aberta n’uma matta de cabello branco. E como elles, de mãos dadas, continuavam a admirar-se, a estudarem um no outro as rugas dos annos, Affonso disse:

— ­Villaça! a sr.ª viscondessa...

O administrador porém procurou-a debalde, com os olhos abertos pela sala. Carlos ria, batendo as mãos: — ­e Villaça descobriu-a emfim a um canto, entre o aparador e a janella, sentada n’uma cadeirinha baixa, vestida de preto, timida e queda, com os braços rechonchudos pousados sobre a obesidade da cinta. O rosto anafado e molle, branco como papel, as roscas do pescoço, cobriram-se-lhe subitamente de rubor; não achou uma palavra para dizer ao Villaça, e estendeu-lhe a mão papuda e pallida, com um dedo embrulhado n’um pedaço de seda negra. Depois ficou a abanar-se com um grande leque de lentejoulas, o seio a arfar, os olhos no regaço, como exhausta d’aquelle esforço.

Dois escudeiros tinham começado a servir a sopa, o Teixeira esperava, perfilado por traz do alto espaldar da cadeira de Affonso.

Mas Carlos cavalgava ainda o avô, querendo acabar outra historia. Era o Manuel, trazia uma pedra na mão... Elle primeiro pensára ir ás boas; mas os dois rapazes começaram a rir... De maneira que os correu a todos...

— ­E maiores que tu?

— ­Tres rapagões, vôvô, póde perguntar á tia Pedra... Ella viu, que estava na eira. Um d’elles trazia uma foice...

— ­Está bom, senhor, está bom, ficamos inteirados... Vá, desmonte, que está a sopa a esfriar. Upa! upa!

E o velho, com o seu aspecto resplandecente de patriarcha feliz, veiu sentar-se ao alto da meza, sorrindo e dizendo:

— ­Já se vae fazendo pesado, já não está para collo...

Mas reparou então no Brown, e tornando a erguer-se fez a apresentação do procurador.

— ­O sr. Brown, o amigo Villaça... Peço perdão, descuidei-me, foi culpa d’aquelle cavalheiro lá ao fundo da meza, o sr. D. Carlos de mata-sete!

O perceptor, solidamente abotoado na sua longa sobrecasaca militar, deu toda a volta á meza, rigido e teso, para vir sacudir o Villaça n’um tremendo shake-hands; depois, sem uma palavra, reoccupou o seu logar, desdobrou o guardanapo, cofiou os formidaveis bigodes, e foi então que disse ao Villaça, com o seu forte accento inglez:

— ­Muito bello dia... glorioso!

— ­Tempo de rosas, respondeu o Villaça, comprimentando, intimidado diante d’aquelle athleta.

Naturalmente, n’esse dia, fallou-se da jornada de Lisboa, do bom serviço da malla-posta, do caminho de ferro que se ia abrir... O Villaça já viera no comboyo até ao Carregado.

— ­De causar horror, hein? perguntou o abbade, suspendendo a colher que ia levar á bocca.

O excellente homem nunca saira de Resende; e todo o largo mundo, que ficava para além da penumbra da sua sachristia e das arvores do seu passal, lhe dava o terror d’uma Babel. Sobre tudo essa estrada de ferro, de que tanto se fallava...

— ­Faz arripiar um bocado, affirmou com experiencia Villaça. Digam o que disserem, faz arripiar!

Mas o abbade assustava-se sobre tudo com as inevitaveis desgraças d’essas machinas!

O Villaça então lembrou os desastres da mala-posta. No de Alcobaça, quando tudo se virou, ficaram esmagadas duas irmãs de caridade! Emfim de todos os modos havia perigos. Podia-se quebrar uma perna a passear no quarto...

O abbade gostava do progresso... Achava até necessario o progresso. Mas parecia-lhe que se queria fazer tudo á lufa-lufa... O paiz não estava para essas invenções; o que precisava eram boas estradinhas...

— ­E economia! disse o Villaça, puxando para si os pimentões.

— ­Bucellas? murmurou-lhe sobre o hombro o escudeiro.

O administrador ergueu o copo, depois de cheio, admiroulhe á luz a côr rica, provou-o com a ponta do labio, e piscando o olho para Affonso:

— ­É do nosso!

— ­Do velho, disse Affonso. Pergunte ao Brown... Hein, Brown, um bom nectar?

— ­Magnificente! exclamou o perceptor com uma energia fogosa.

Então Carlos, estendendo o braço por cima da meza, reclamou tambem Bucellas. E a sua razão era haver festa por ter chegado o Villaça. O avô não consentiu; o menino teria o seu calice de Collares, como de costume, e um só. Carlos crusou os braços sobre o guardanapo que lhe pendia do pescoço, espantado de tanta injustiça! Então nem para festejar o Villaça poderia apanhar uma gotinha de Bucellas? Ahi estava uma linda maneira de receber os hospedes na quinta... A Gertrudes dissera-lhe que como viera o sr. administrador, havia de pôr á noite para o chá o fato novo de velludo. Agora observavam-lhe que não era festa, nem caso para Bucellas... Então não entendia.

O avô, que lhe bebia as palavras, enlevado, fez subitamente um carão severo.

— ­Parece-me que o senhor está palrando de mais. As pessoas grandes é que palram à meza.

Carlos recolheu-se logo ao seu prato, murmurando muito mansamente:

— ­Está bom, vovô, não te zangues. Esperarei para quando for grande...

Houve um sorriso em volta da meza. A propria viscondessa, deleitada, agitou preguiçosamente o leque: o abbade, com a sua boa face banhada em extasi para o menino, apertava as mãos cabelludas contra o peito, tanto aquillo lhe parecia engraçado: e Affonso tossia por traz do guardanapo, como limpando as barbas — ­a esconder o riso, a admiração que lhe brilhava nos olhos.

Tanta vivacidade surprehendeu tambem Villaça. Quiz ouvir mais o menino, e pousando o seu talher:

— ­E diga-me, Carlinhos, já vae adiantado nos seus estudos?

O rapaz, sem o olhar, repoltreou-se, mergulhou as mãos pelo cós das flanellas, e respondeu com um tom superior:

— ­Já faço ladear a Brigida.

Então o avô, sem se conter, largou a rir, cahido para o espaldar da cadeira:

— ­Essa é boa! Eh! Eh! Já faz ladear a Brigida! E é verdade, Villaça, já a faz ladear... Pergunte ao Brown; não é verdade, Brown? E a eguasita é uma piorrita, mas fina...

— ­Oh vovô, gritou Carlos já excitado, dize ao Villaça, anda. Não é verdade que eu era capaz de governar o dog-cart?

Affonso reassumio um ar severo.

— ­Não o nego... Talvez o governasse, se lh’o consentissem. Mas faça-me favor de se não gabar das suas façanhas, porque um bom cavalleiro deve ser modesto... E sobre tudo não enterrar assim as mãos pela barriga abaixo...

O bom Villaça, no entanto, dando estalinhos aos dedos, preparava uma observação. Não se podia de certo ter melhor prenda que montar a cavallo com as regras... Mas elle queria dizer se o Carlinhos já entrava com o seu Phedro, o seu Tito Liviosinho...

— ­Villaça, Villaça, advertiu o abbade, de garfo no ar e um sorriso de santa malicia, não se deve fallar em latim aqui ao nosso nobre amigo... Não admitte, acha que é antigo... Elle, antigo é...

— ­Ora sirva-se d’esse fricassé, ande abbade, disse Affonso, que eu sei que é o seu fraco, e deixe lá o latim...

O abbade obedeceu com deleite; e escolhendo no molho rico os bons pedaços de ave, ia murmurando:

— ­Deve-se começar pelo latimsinho, deve-se começar por lá... É a base; é a basesinha!

— ­Não! latim mais tarde! exclamou o Brown, com um gesto possante. Prrimeiro forrça! Forrça! Musculo...

E repetio, duas vezes, agitando os formidaveis punhos:

— ­Prrimeiro musculo, musculo!...

Affonso appoiava-o, gravemente. O Brown estava na verdade. O latim era um luxo d’erudito... Nada mais absurdo que começar a ensinar a uma creança n’uma lingua morta quem foi Fabio, rei dos Sabinos, o caso dos Grachos, e outros negocios d’uma nação extincta, deixando-o ao mesmo tempo sem saber o que é a chuva que o molha, como se faz o pão que come, e todas as outras cousas do Universo em que vive...

— ­Mas emfim os classicos, arriscou timidamente o abbade.

— ­Qual classicos! O primeiro dever do homem é viver. E para isso é necessario ser são, e ser forte. Toda a educação sensata consiste n’isto: crear a saude, a força e os seus habitos, desenvolver exclusivamente o animal, armal-o d’uma grande superioridade physica. Tal qual como se não tivesse alma. A alma vem depois... A alma é outro luxo. É um luxo de gente grande...

O abbade coçava a cabeça, com o ar arripiado.

— ­A instrucçãosinha é necessaria, disse elle. Você não acha, Villaça? Que v. exª, sr. Affonso da Maia, tem visto mais mundo do que eu... Mas emfim a instrucçãosinha...

— ­A instrucção para uma creança não é recitar Tityre, tu patulae recubans... É saber factos, noções, cousas uteis, cousas praticas...

Mas suspendeu-se: e, com o olho brilhante, n’um signal ao Villaça, mostrou-lhe o neto que palrava inglez com o Brown. Eram de certo feitos de força, uma historia de briga com rapazes que elle lhe estava a contar, animado e jogando com os punhos. O perceptor approvava, retorcendo os bigodes. E á mesa os senhores com os garfos suspensos, por traz os escudeiros de pé e guardanapo no braço, todos, n’um silencio reverente, admiravam o menino a fallar inglez.

— ­Grande prenda, grande prenda, murmurou Villaça, inclinando-se para a Viscondessa.

A excellente senhora córou, atravez d’um sorriso. Parecia assim mais gorda, toda acaçapada na cadeira, silenciosa, comendo sempre; e, a cada gole de Bucellas, refrescava-se languidamente com o seu grande leque negro e lentejoulado.

Quando o Teixeira serviu o vinho do Porto, Affonso fez uma saude ao Villaça. Todos os copos se ergueram n’um rumor de amizade. Carlos quiz gritar Hurrah! O avô, com um gesto reprehensivo, immobilisou-o; e na pausa satisfeita que se fez, o pequeno disse com uma grande convicção:

— ­Oh avô, eu gosto do Villaça. O Villaça é nosso amigo.

— ­Muito, e ha muitos annos, meu senhor! exclamou o velho procurador, tão commovido que mal podia erguer o calice na mão.

O jantar findava. Fóra, o sol deixára o terrasso e a quinta verdejava na grande doçura do ar tranquillo, sob o azul ferrete. Na chaminé só restava uma cinza branca: os lilazes das jarras exhalavam um aroma vivo, a que se misturava o do creme queimado, tocado de um fio de limão: os creados, de colletes brancos, moviam o serviço d’onde se escapava algum som argentino: e toda a alva toalha adamascada desapparecia sob a confusão da sobremesa onde os tons dourados do vinho do Porto brilhavam entre as compoteiras de crystal. A Viscondessa affogueada abanava-se. Padre Custodio enrolava devagar o guardanapo, a sua batina coçada luzia nas pregas das mangas.

Então Affonso, sorrindo ternamente, fez a ultima saude.

— ­Viva v. s.ª, snr. Carlos de Matta-sete!

— ­Sr. Vôvô! dizia o pequeno escorropichando o copo.

A cabeçinha de cabellos negros, a velha face de barbas de neve, saudavam-se das extremidades da mesa — ­em quanto todos sorriam, no enternecimento d’aquella cerimonia. Depois o abbade, de palito na bocca, murmurou as graças. A Viscondessa, cerrando os olhos, juntou tambem as mãos. E Villaça que tinha crenças religiosas não gostou de vêr Carlos, sem se importar com as graças, saltar da cadeira, vir atirar-se ao pescoço do avô, fallar-lhe ao ouvido.

— ­Não senhor! não senhor! dizia o velho.

Mas o rapaz, abraçando-o mais forte, dava-lhe grandes razões, n’um murmurio de mimo dôce como um beijo, que ia pondo na face do velho uma fraqueza indulgente.

— ­É por ser festa, disse elle emfim vencido. Mas veja lá, veja lá...

O rapaz pulou, bateu as palmas, agarrou Villaça pelos braços, fêl-o redemoinhar, e foi cantando n’um rythmo seu:

— ­Fizeste bem em vir, bem, bem, bem!... Vou buscar a Therezinha, inha, inha, inha!

— ­É a noiva, disse o avô, erguendo-se da mesa. Já tem amores, é a pequena das Silveiras... O café para o terraço, Teixeira.

O dia fóra convidava, adoravel, d’um azul suave, muito puro e muito alto, sem uma nuvem. Defronte do terraço os geranios vermelhos estavam já abertos; as verduras dos arbustos, muito tenras ainda, d’uma delicadeza de renda, pareciam tremer ao menor sopro; vinha por vezes um vago cheiro de violetas, misturado ao perfume adocicado das flôres do campo; o alto repuxo cantava; e nas ruas do jardim, bordadas de buxos baixos, a areia fina faiscava de leve áquelle sol timido de primavera tardia, que ao longe envolvia os verdes da quinta, adormecida a essa hora de sesta n’uma luz fresca e loura.

Os tres homens sentaram-se á mesa do café. Defronte do terraço, o Brown, de bonet escossez posto ao lado e grande cachimbo na bocca, puchava ao alto a barra do trapezio para Carlos se balouçar. Então o bom Villaça pedio para voltar as costas. Não gostava de vêr gymnasticas; bem sabia que não havia perigo; mas mesmo nos cavallinhos, as cabriolas, os arcos, atordoavam-n’o; sahia sempre com o estomago embrulhado...

— ­E parece-me imprudente, sobre o jantar...

— ­Qual! é só balouçar-se... Olhe para aquillo!

Mas Villaça não se moveu, com a face sobre a chavena.

O abbade, esse, admirava, de labios entreabertos, e o pires cheio de café esquecido na mão.

— ­Olhe para aquillo Villaça, repetio Affonso. Não lhe faz mal, homem!

O bom Villaça voltou-se, com esforço. O pequeno muito alto no ar, com as pernas retesadas contra a barra do trapezio, as mãos ás cordas, descia sobre o terraço, cavando o espaço largamente, com os cabellos ao vento; depois elevava-se, serenamente, crescendo em pleno sol; todo elle sorria; a sua blusa, os calções enfunavam-se á aragem; e via-se passar, fugir, o brilho dos seus olhos muito negros e muito abertos.

— ­Não está mais na minha mão, não gosto, disse o Villaça. Acho imprudente!

Então Affonso bateu as palmas, o abbade gritou bravo, bravo. Villaça voltou-se para applaudir, mas Carlos tinha já desapparecido; o trapezio parava, em oscillações lentas; e o Brown, retomando o Times que pozera ao lado sobre o pedestal d’um busto, foi descendo para a quinta envolvido n’uma nuvem de fumo do cachimbo.

— ­Bella cousa, a gymnastica! exclamou Affonso da Maia, accendendo com satisfação outro charuto.

Villaça já ouvira que enfraquecia muito o peito. E o abbade, depois de dar um sorvo ao café, de lamber os beiços, soltou a sua bella phrase, arranjada em maxima:

— ­Esta educação faz athletas mas não faz christãos. Já o tenho dito...

— ­Já o tem dito abbade, já! exclamou Affonso alegremente. Diz-m’o todas as semanas... Quer você saber, Villaça? O nosso Custodio matta-me o bicho do ouvido para que eu ensine a cartilha ao rapaz. A cartilha!...

Custodio ficou um momento a olhar Affonso, com uma face desconsolada e a caixa de rapé aberta na mão; a irreligião d’aquelle velho fidalgo, senhor de quasi toda a freguezia, era uma das suas dôres:

— ­A cartilha, sim meu senhor, ainda que v. ex.ª o diga assim com esse modo escarnica... A cartilha. Mas já não quero fallar na cartilha... Ha outras cousas. E se o digo tantas vezes, sr. Affonso da Maia, é pelo amor que tenho ao menino.

E recomeçou a discussão, que voltava sempre ao café, quando Custodio jantava na quinta.

O bom homem achava horroroso que n’aquella edade um tão lindo moço, herdeiro d’uma casa tão grande, com futuras responsabilidades na sociedade, não soubesse a sua doutrina. E narrou logo ao Villaça a historia da D. Cecilia Macedo: esta virtuosa senhora, mulher do escrivão, tendo passado deante do portão da quinta, avistara o Carlinhos, chamara-o, carinhosa e amiga de creanças como era, e pedira-lhe que lhe dissesse o acto de contricção. E que respondeu o menino? Que nunca em tal ouvira fallar! Estas cousas entristeciam. E o sr. Affonso da Maia achava-lhe graça, ria-se! Ora alli estava o amigo Villaça que podia dizer se era caso para jubilar. Não, o sr. Affonso da Maia tinha muito saber, e correra muito mundo; mas d’uma cousa não o podia convencer, a elle pobre padre que nem mesmo o Porto vira ainda, é que houvesse felicidade e bom comportamento na vida sem a moral do cathecismo.

E Affonso da Maia respondia com bom humor:

— ­Então que lhe ensinava você, abbade, se eu lhe entregasse o rapaz? Que se não deve roubar o dinheiro das algibeiras, nem mentir, nem maltratar os inferiores, por que isso é contra os mandamentos da lei de Deus, e leva ao inferno, hein? É isso?...

— ­Ha mais alguma cousa...

— ­Bem sei. Mas tudo isso que você lhe ensinaria que se não deve fazer, por ser um peccado que offende a Deus, já elle sabe que se não deve praticar, por que é indigno d’um cavalheiro e d’um homem de bem...

— ­Mas, meu senhor...

— ­Ouça abbade. Toda a differença é essa. Eu quero que o rapaz seja virtuoso por amor da virtude e honrado por amor da honra; mas não por medo ás caldeiras de Pero Botelho, nem com o engodo de ir para o reino do céu...

E accrescentou, erguendo-se e sorrindo:

— ­Mas o verdadeiro dever de homens de bem, abbade, é quando vem, depois de semanas de chuva, um dia d’estes, ir respirar pelos campos e não estar aqui a discutir moral. Portanto arriba! e se o Villaça não está muito cançado, vamos dar ahi um giro pelas fazendas...

O abbade suspirou como um santo que vê a negra impiedade dos tempos e Belzebut arrebatando as melhores rezes do rebanho; depois olhou a chavena e sorveu com delicias o resto do seu café.

Quando Affonso da Maia, Villaça e o abbade recolheram do seu passeio pela freguezia, escurecera, havia luzes pelas salas, e tinham chegado já as Silveiras, senhoras ricas da quinta da Lagoaça.

D. Anna Silveira, a solteira e mais velha, passava pela talentosa da familia, e era em pontos de doutrina e de etiqueta uma grande auctoridade em Resende. A viuva, D. Eugenia, limitava-se a ser uma excellente e pachorrenta senhora, de agradavel nutrição, trigueirota e pestanuda; tinha dois filhos, a Theresinha, a noiva de Carlos, uma rapariguinha magra e viva com cabellos negros como tinta, e o morgadinho, o Eusebiosinho, uma maravilha muito fallada n’aquelles sitios.

Quasi desde o berço este notavel menino revelara um edificante amor por alfarrabios e por todas as coisas do saber. Ainda gatinhava e já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma esteira, embrulhado n’um cobertor, folheando in-folios, com o craneosinho calvo de sabio curvado sobre as lettras garrafaes de boa doutrina: depois de crescidinho tinha tal proposito que permanecia horas immovel n’uma cadeira, de perninhas bambas, esfuracando o nariz: nunca appetecera um tambor ou uma arma: mas cosiam-lhe cadernos de papel, onde o precoce letrado, entre o pasmo da mamã e da titi, passava dias a traçar algarismos, com a lingoasinha de fora.

Assim na familia tinha a sua carreira destinada: era rico, havia de ser primeiro bacharel, e depois desembargador. Quando vinha a Santa Olavia, a tia Annica installava-o logo á mesa, ao pé do candieiro, a admirar as pinturas d’um enorme e rico volume, os Costumes de todos os Povos do Universo. Já lá estava essa noite, vestido como sempre de escossez, com o plaid de flamejante xadrez vermelho e negro posto a tiracollo e preso ao hombro por uma dragona; para que conservasse o ar nobre d’um Stuart, d’um valoroso cavalleiro de Walter Scott, nunca lhe tiravam o bonet onde se arqueava com heroismo uma rutilante penna de gallo; e nada havia mais melancolico que a sua facesinha trombuda, a que o excesso de lombrigas dava uma molleza e uma amarellidão de manteiga, os seus olhinhos vagos e azulados, sem pestanas como se a sciencia lh’as tivesse já consummido, pasmando com sisudez para as camponesas da Sicilia, e para os guerreiros ferozes do Montenegro appoiados a escupetas, em pincaros de serranias.

Deante do canapé das senhoras lá se achava tambem o fiel amigo, o dr. delegado, grave e digno homem, que havia cinco annos andava ponderando e meditando o casamento com a Silveira viuva, sem se decidir — ­contentando-se em comprar todos os annos mais meia duzia de lençoes, ou uma peça mais de bretanha, para arredondar o bragal. Estas compras eram discutidas em casa das Silveiras, á brazeira: e as allusões recatadas, mas inevitaveis, ás duas fronhasinhas, ao tamanho dos lençoes, aos cobertores de papa para os conchegos de janeiro — ­em logar de inflammar o magistrado, inquietavam-n’o. Nos dias seguintes apparecia preoccupado — ­como se a perspectiva da santa consummação do matrimonio lhe désse o arrepio de uma façanha a emprehender, o ter de agarrar um toiro, ou nadar nos cachões do Douro. Então, por qualquer rasão especiosa, adiava-se o casamento até ao S. Miguel seguinte. E alliviado, tranquillo, o respeitavel Dr. continuava a acompanhar as Silveiras a chás, festas de egreja ou pezames, vestido de preto, affavel, serviçal, sorrindo a D. Eugenia, não desejando mais prazeres que os d’essa convivencia paternal.

Apenas Affonso entrou na sala deram-lhe logo noticia do contratempo: o dr. juiz de direito e a senhora não podiam vir, por que o magistrado tivera a dôr; e as Brancos tinham mandado recado a desculpar-se, coitadas, que era dia de tristeza em casa, por fazer desesete annos que morrera o mano Manuel...

— ­Bem, disse Affonso, bem. A dôr, a tristeza, o mano Manuel... Fazemos nós um voltaretesinho de quatro. Que diz o nosso dr. delegado?

O excellente homem dobrou a sua fronte calva, murmurando que «estava ás ordens.»

— ­Então ao dever, ao dever! exclamou logo o abbade, esfregando as mãos, no ardor já da partida.

Os parceiros dirigiram-se á saleta do jogo — ­que um reposteiro de damasco separava da sala, franzido agora, deixando ver a mesa verde, e nos circulos de luz que cahiam dos abat-jour os baralhos abertos em leque. D’ahi a um momento o dr. delegado voltou, risonho, dizendo que «os deixara para um roquesinho de tres»; e retomou o seu logar ao lado de D. Eugenia, cruzando os pés debaixo da cadeira e as mãos em cima do ventre. As senhoras estavam fallando da dôr do dr. juiz de direito. Costumava dar-lhe todos os tres mezes: e era condemnavel a sua teima em não querer consultar medicos. Quanto mais que elle andava acabado, ressequindo, amarellando — ­e a D. Augusta, a mulher, a nutrir á larga, a ganhar côres!... A Viscondessa, enterrada em toda a sua gordura ao canto do canapé, com o leque aberto sobre o peito, contou que em Hespanha vira um caso egual: o homem chegara a parecer um esqueleto, e a mulher uma pipa; e ao principio fôra o contrario; até sobre isso se tinham feito uns versos...

— ­Humores, disse com melancolia o dr. delegado.

Depois fallou-se nas Brancos; recordou-se a morte de Manuel Branco, coitadinho, na flor de idade! E que perfeição de rapaz! E que rapaz de juizo! D. Anna Silveira não se esquecera, como todos os annos, de lhe accender uma lamparina por alma, e de lhe resar tres padre-nossos. A viscondessa pareceu toda afflicta por se não ter lembrado... E ella que tinha o proposito feito!

— ­Pois estive para t’o mandar dizer! exclamou D. Anna. E as Brancos que tanto o agradecem, filha!

— ­Ainda está a tempo, observou o magistrado.

D. Eugenia deu uma malha indolente no crochet de que nunca se separava, e murmurou com um suspiro:

— ­Cada um tem os seus mortos.

E no silencio que se fez, saiu do canto do canapé outro suspiro, o da viscondessa, que de certo se recordára do fidalgo d’Urigo de la Sierra, e murmurava:

— ­Cada um tem os seus mortos...

E o digno dr. delegado terminou por dizer egualmente, depois de passar reflectidamente a mão pela calva:

— ­Cada um tem os seus mortos!

Uma somnolencia ia pesando. Nas serpentinas douradas, sobre as consoles, as chammas das velas erguiam-se altas e tristes. Eusebiosinho voltava com cautella e arte as estampas dos Costumes de todos os Povos. E na saleta de jogo, atravez do reposteiro aberto, sentia-se a voz já arrenegada do abbade, rosnando com um rancor tranquillo, «passo, que é o que tenho feito toda a santa noite!»

N’esse momento Carlos arremettia pela sala dentro arrastando a sua noiva, a Theresinha, toda no ar e vermelha de brincar; e logo a grulhada das suas vozes reanimou o canapé dormente.

Os noivos tinham chegado d’uma pittoresca e perigosa viagem, e Carlos parecia descontente de sua mulher; comportara-se d’uma maneira atroz; quando elle ia governando a mala-posta, ella quizera empoleirar-se ao pé d’elle na almofada... Ora senhoras não viajam na almofada.

— ­E elle atirou-me ao chão, titi!

— ­Não é verdade! De mais a mais é mentirosa! Foi como quando chegámos á estalagem... Ella quiz-se deitar, e eu não quiz... A gente, quando se apeia de viagem, a primeira cousa que faz é tratar do gado... E os cavallos vinham a escorrer...

A voz de D. Anna interrompeu, muito severa:

— ­Está bom, está bom, basta de tolices! Já cavallaram bastante. Senta-te ahi ao pé da sr.ª Viscondessa, Thereza... Olhe essa travessa do cabello... Que desproposito!

Sempre detestára ver a sobrinha, uma menina delicada de dez annos, brincar assim com o Carlinhos. Aquelle bello e impetuoso rapaz, sem doutrina e sem proposito, aterrava-a; e pela sua imaginação de solteirona passavam sem cessar idéas, suspeitas de ultrages que elle poderia fazer á menina. Em casa, ao agasalhal-a antes de vir para S.ta Olavia, recommendava-lhe com força que não fosse com o Carlos para os recantos escuros! que o não deixasse mecher-lhe nos vestidos!... A menina, que tinha os olhos muito langorosos, dizia: «Sim, titi.» Mas, apenas na quinta, gostava de abraçar o seu maridinho. Se eram casados, por que não haviam de fazer néné, ou ter uma loja e ganharem a sua vida aos beijinhos? Mas o violento rapaz só queria guerras, quatro cadeiras lançadas a galope, viagens a terras de nomes barbaros que o Brown lhe ensinava. Ella, despeitada, vendo o seu coração mal comprehendido, chamava-lhe arrieiro; elle ameaçava boxal-a, á ingleza; — ­e separavam-se sempre arrenegados.

Mas quando ella se accomodou ao lado da Viscondessa, gravesinha e com as mãos no regaço — ­Carlos veiu logo estirar-se ao pé d’ella, meio deitado para as costas do canapé, bamboleando as pernas.

— ­Vamos, filho, tem maneiras, rosnou-lhe muito secca D. Anna.

— ­Estou cançado, governei quatro cavallos, replicou elle, insolente e sem a olhar.

De repente porém, d’um salto, precipitou-se sobre o Eusebiosinho. Queria-o levar á Africa, a combatter os selvagens: e puchava-o já pelo seu bello plaid de cavalleiro d’Escossia, quando a mamã accudiu atterrada.

— ­Não, com o Eusebiosinho não, filho! Não tem saude para essas cavalladas... Carlinhos, olhe que eu chamo o avô!

Mas o Eusebiosinho, a um repellão mais forte, rolara no chão, soltando gritos medonhos. Foi um alvoroço, um levantamento. A mãe, tremula, agachada junto d’elle, punha-o de pé sobre as perninhas molles, limpando-lhe as grossas lagrimas, já com o lenço, já com beijos, quasi a chorar tambem. O delegado, consternado, apanhara o bonet escossez, e cofiava melancolicamente a bella pena de gallo. E a Viscondessa apertava ás mãos ambas o enorme seio, como se as palpitações a suffocassem.

O Eusebiosinho foi então preciosamente collocado ao lado da titi; e a severa senhora, com um fulgôr de colera na face magra, apertando o leque fechado como uma arma, preparava-se a repellir o Carlinhos que, de mãos atraz das costas e aos pulos em roda do canapé, ria, arreganhando para o Eusebiosinho um labio feroz. Mas n’esse momento davam nove horas, e a desempenada figura do Brown appareceu á porta.

Apenas o avistou, Carlos correu a refugiar-se por detraz da Viscondessa, gritando:

— ­Ainda é muito cedo, Brown, hoje é festa, não me vou deitar!

Então Affonso da Maia, que se não movera aos uivos lacinantes do Silveirinha, disse de dentro, da mesa do voltarete, com severidade:

— ­Carlos, tenha a bondade de marchar já para a cama.

— ­Oh vôvô, é festa, que está cá o Villaça!

Affonso da Maia pousou as cartas, atravessou a sala sem uma palavra, agarrou o rapaz pelo braço, e arrastou-o pelo corredor — ­em quanto elle, de calcanhares fincados no soalho, resistia, protestando com desespero:

— ­É festa, vôvô... É uma maldade!... O Villaça póde-se escandalisar... Oh vôvô, eu não tenho somno!

Uma porta fechando-se abafou-lhe o clamor. As senhoras censuraram logo aquella rigidez: ahi estava uma cousa incomprehensivel; o avô deixava-lhe fazer todos os horrores, e recusava-lhe então o bocadinho da soirée...

— ­Oh sr. Affonso da Maia, por que não deixou estar a creança?

— ­É necessario methodo, é necessario methodo, balbuciou elle, entrando, todo pallido do seu rigor.

E á mesa do voltarete, apanhando as cartas com as mãos tremulas, repetia ainda:

— ­É necessario methodo. Creanças á noite dormem.

D. Anna Silveira voltando-se para o Villaça — ­que cedera o seu lugar ao dr. delegado e vinha palestrar com as senhoras — ­teve aquelle sorriso mudo que lhe franzia os labios, sempre que Affonso da Maia fallava em «methodos.»

Depois, reclinando-se para as costas da cadeira e abrindo o leque, declarou, a transbordar d’ironia, que, talvez por ter a intelligencia curta, nunca comprehendera a vantagem dos «methodos»... Era á ingleza, segundo diziam: talvez provassem bem em Inglaterra; mas ou ella estava enganada, ou S.ta Olavia era no reino de Portugal...

E como Villaça inclinava timidamente a cabeça, com a sua pitada nos dedos, a esperta senhora, baixo para que Affonso dentro não ouvisse, desabafou. O sr. Villaça naturalmente não sabia, mas aquella educação do Carlinhos nunca fôra approvada pelos amigos da casa. Já a presença do Brown, um heretico, um protestante, como perceptor na familia dos Maias, causara desgosto em Resende. Sobretudo quando o sr. Affonso tinha aquelle santo do abbade Custodio, tão estimado, homem de tanto saber... Não ensinaria á creança habilidades de acrobata; mas havia de lhe dar uma educação de fidalgo, preparal-o para fazer boa figura em Coimbra.

N’esse momento, o abbade, suspeitando uma corrente d’ar, erguera-se da mesa de jogo a fechar o reposteiro: então, como Affonso já não podia ouvir, D. Anna ergueu a voz:

— ­E olhe que o Custodio teve desgosto, sr. Villaça. Que o Carlinhos, coitadinho, nem uma palavra sabe de doutrina... Sempre lhe quero contar o que succedeu com a Macedo.

Villaça já sabia.

— ­Ah já sabe? Lembras-te viscondessa? Com a Macedo, do acto de contricção...

A viscondessa suspirou, erguendo um olhar mudo ao ceu atravez do tecto.

— ­Horroroso! continuou D. Anna. A pobre mulher chegou lá a nossa casa embuchada... E eu fez-me impressão. Até sonhei com aquillo tres noites a fio...

Calou-se um momento. Villaça, embaraçado, acanhado, fazia girar a caixa de rapé nos dedos, com os olhos postos no tapete. Outro langor de somnolencia passou na sala; D. Eugenia, com as palpebras pesadas, fazia de vez em quando uma malha molle no crochet; e a noiva de Carlos, estirada para o canto do sophá, já dormia, com a boquinha aberta, os seus lindos cabellos negros caindo-lhe pelo pescoço.

D. Anna, depois de bocejar de leve, retomou a sua idéa:

— ­Sem contar que o pequeno está muito atrazado. A não ser um bocado de inglez, não sabe nada... Nem tem prenda nenhuma!

— ­Mas é muito esperto, minha rica senhora! accudiu Villaça.

— ­É possivel, respondeu seccamente a intelligente Silveira.

E, voltando-se para Euzebiosinho, que se conservava ao lado d’ella, quieto como se fosse de gesso:

— ­Oh filho, dize tu aqui ao sr. Villaça aquelles lindos versos que sabes... Não sejas atado, anda!... Vá, Euzebio, filho, sê bonito...

Mas o menino, mollengão e tristonho, não se descollava das saias da titi: teve ella de o pôr de pé, amparal-o, para que o tenro prodigio não alluisse sobre as perninhas flacidas; e a mamã prometteu-lhe que, se dissesse os versinhos, dormia essa noite com ella...

Isto decidio-o: abrio a bocca, e como d’uma torneira lassa veio de lá escorrendo, n’um fio de voz, um recitativo lento e babujado:

É noite, o astro saudoso
Rompe a custo um plumbeo céu,
Tolda-lhe o rosto formoso
Alvacento, humido véo...

Disse-a toda — ­sem se mexer, com as mãosinhas pendentes, os olhos mortiços pregados na titi. A mamã fazia o compasso com a agulha do crochet; e a viscondessa, pouco a pouco, com um sorriso de quebranto, banhada no langor da melopea, ia cerrando as palpebras.

— ­Muito bem, muito bem! exclamou o Villaça, impressionado, quando o Euzebiosinho findou coberto de suor. Que memoria! Que memoria! É um prodigio!...

Os creados entravam com o chá. Os parceiros tinham findado a partida; e o bom Custodio, de pé, com a sua chavena na mão, queixava-se amargamente da maneira porque aquelles senhores o tinham esfollado.

Como ao outro dia era domingo, e havia missa cedo, as senhoras retiraram-se ás nove e meia. O serviçal dr. delegado dava o braço a D. Eugenia; um creado da quinta allumiava adiante com o lampeão; e o moço das Silveiras levava ao collo o Eusebiosinho que parecia um fardo escuro, abafado em mantas, com um chale amarrado na cabeça.


Depois da ceia Villaça acompanhou ainda um momento Affonso da Maia á livraria, onde, antes de recolher, elle tomava sempre á ingleza o seu cognac e soda.

O aposento, a que as velhas estantes de pau preto davam um ar severo, estava adormecido tepidamente, na penumbra suave, com as cortinas bem fechadas, um resto de lume na chaminé, e o globo do candieiro pondo a sua claridade serena na mesa coberta de livros. Em baixo, os repuchos cantavam alto no silencio da noite.

Emquanto o escudeiro rolava para o pé da poltrona de Affonso, n’uma mesa baixa, os crystaes e as garrafas de soda, Villaça, com as mãos nos bolsos, de pé e pensativo, olhava a braza da acha que morria na cinza branca. Depois ergueu a cabeça, para murmurar, como ao acaso:

— ­Aquelle rapazito é esperto...

— ­Quem? O Euzebiosinho? disse Affonso, que se accomodava junto ao fogão, enchendo alegremente o cachimbo. Eu tremo de o ver cá, Villaça! O Carlos não gosta d’elle, e tivemos ahi um desgosto horroroso... Foi já ha mezes. Havia uma procissão e o Eusebiosinho ia de anjo... As Silveiras, excellentes mulheres, coitadas, mandaram-n’o cá para o mostrar á viscondessa, já vestido de anjo. Pois senhores, distrahimo-nos, e o Carlos que o andava a rondar apodera-se d’elle, leva-o para o sotão, e, meu caro Villaça... Em primeiro logar ia-o matando porque embirra com anjos... Mas o peior não foi isso. Imagine você o nosso terror, quando nos apparece o Eusebiosinho aos berros pela titi, todo desfrizado, sem uma aza, com a outra a bater-lhe os calcanhares dependurada de um barbante, a corôa de rosas enterrada até ao pescoço, e os galões de ouro, os tulles, as lentejoulas, toda a vestimenta celeste em frangalhos!... Emfim, um anjo depennado e sovado... Eu ia dando cabo do Carlos.

Bebeu metade da sua soda, e passando a mão pelas barbas, accrescentou, com uma satisfação profunda:

— ­É levado do diabo, Villaça!

O administrador, sentado agora á borda de uma cadeira, esboçou uma risadinha muda; depois ficou calado, olhando Affonso, com as mãos nos joelhos, como esquecido e vago. Ia abrir os labios, hesitou ainda, tossio de leve; e continuou a seguir pensativamente as faiscas que erravam sobre as achas.

Affonso da Maia, no entanto, com as pernas estiradas para o lume, recomeçara a fallar do Silveirinha. Tinha tres ou quatro mezes mais que Carlos, mas estava enfesado, estiolado, por uma educação á portugueza: d’aquella edade ainda dormia no chôco com as criadas, nunca o lavavam para o não constiparem, andava couraçado de rolos de flanellas! Passava os dias nas saias da titi a decorar versos, paginas inteiras do Cathecismo de Perseverança. Elle por curiosidade um dia abrira este livreco e vira lá, «que o sol é que anda em volta da terra (como antes de Galileu), e que Nosso Senhor todas as manhãs dá as ordens ao sol, para onde ha d’ir e onde ha de parar, etc., etc.» E assim lhe estavam arranjando uma almasinha de bacharel...

Villaça teve outra risadinha silenciosa. Depois, como subitamente decidido, ergueu-se, fez estalar os dedos, disse estas palavras:

— ­V. Ex.ª sabe que appareceu a Monforte?

Affonso, sem mover a cabeça, reclinado para as costas da poltrona, perguntou tranquillamente, envolvido no fumo do cachimbo:

— ­Em Lisboa?

— ­Não senhor, em Paris. Viu-a lá o Alencar, esse rapaz que escreve, e que era muito de Arroios... Esteve até em casa d’ella.

E ficaram calados. Havia annos que entre elles se não pronunciara o nome de Maria Monforte. Ao principio, quando se retirara para Santa Olavia, a preoccupação ardente de Affonso da Maia fôra tirar-lhe a filha que ella levara. Mas a esse tempo ninguem sabia onde Maria se refugiara com o seu principe: nem pela influencia das legações, nem pagando regiamente a policia secreta de Paris, de Londres, de Madrid, se poude descobrir a «toca da fera» como disia então o Villaça. Ambos decerto tinham mudado de nome; e, dadas essas naturezas bohemias, quem sabe se não errariam agora pela America, pela India, em regiões mais exoticas? Depois, pouco a pouco, Affonso da Maia descorçoado com aquelles esforços vãos, todo occupado do neto que crescia bello e forte ao seu lado, no enternecimento continuo que elle lhe dava foi esquecendo a Monforte e a sua outra neta, tão distante, tão vaga, a quem ignorava as feições, de quem mal sabia o nome. E agora de repente a Monforte apparecia outra vez em Paris! e o seu pobre Pedro estava morto! e aquella creança que dormia ao fundo do corredor nunca vira sua mãe...

Erguera-se, passeiava na livraria, pesado e lento, com a cabeça baixa. Junto á mesa, ao pé do candieiro, o Villaça ia percorrendo um a um os papeis da sua carteira.

— ­E está em Paris com o italiano? perguntou Affonso do fundo sombrio do aposento.

O Villaça ergueu a cabeça de sobre a carteira, e disse:

— ­Não senhor, está com quem lhe paga.

E como Affonso se aproximava da mesa, sem uma palavra, Villaça, dando-lhe um papel dobrado, accrescentou:

— ­Todas estas cousas são muito graves, sr. Affonso da Maia, e eu não quiz fiar-me só na minha memoria. Por isso pedi ao Alencar, que é um excellente rapaz, que me escrevesse n’uma carta tudo o que me contou. Assim temos um documento. Eu não sei mais do que ahi está escripto. Póde V. Ex.ª ler...

Affonso desdobrou as duas folhas de papel. Era uma historia simples, que o Alencar, o poeta das Vozes d’Aurora, o estylista de Elvira, ornára de flores e de galões dourados como uma capella em dia de festa.

Uma noite, ao sahir da Maison d’Or, elle vira a Monforte saltar d’um coupé com dois homens de gravata branca; tinham-se logo reconhecido; e um momento ficaram hesitando, um defronte do outro, debaixo do candieiro de gaz, no trottoir. Foi ella que, muito decidida, rindo, estendeu a mão ao Alencar, pediu-lhe que a visitasse, deu-lhe a adresse, o nome por que devia perguntar: M.me de l’Estorade. E no seu boudoir, na manhã seguinte a Monforte fallou largamente de si: vivera tres annos em Vienna d’Austria com Tancredo, e com o papá que se lhes fôra reunir — ­e que lá continuava de certo, como em Arroios, refugiando-se pelos cantos das salas, pagando as toilettes da filha, e dando palmadinhas ternas no hombro do amante como outr’ora no hombro do marido. Depois tinham estado em Monaco; e ahi, dizia o Alencar, «n’um drama sombrio de paixão que ella me fez entrever» o napolitano fora morto em duello. O papá morrera tambem n’esse anno, deixando apenas da sua fortuna uns magros contos de réis, e a mobilia da casa em Vienna: o velho arruinara-se com o luxo da filha, com as viagens, com as perdas de Tancredo ao baccarat. Passára então um tempo em Londres: e d’ahi viera habitar Paris, com Mr. de l’Estorade, um jogador, um espadachim, que acabou de a arrasar, e que a abandonou legando-lhe esse nome de l’Estorade, que lhe era a elle d’ora em diante inutil porque passava a adoptar outro mais sonoro de Vicomte de Manderville. Emfim, pobre, formosa, doida, excessiva, lançara-se na existencia d’aquellas mulheres de quem, dizia o Alencar, «a pallida Margarida Gautier, a gentil Dama das Camelias é o typo sublime, o symbolo poetico, a quem muito será perdoado porque muito amaram.» E o poeta terminava: «ella está ainda no esplendor da belleza, mas as rugas virão, e então que avistará em redor de si? As rosas seccas e ensanguentadas da sua coroa de esposa. Sahi d’aquelle boudoir perfumado, com a alma dilacerada, meu Villaça! Pensava no meu pobre Pedro, que lá jaz sob o raio de luar, entre as raizes dos cyprestes. E, desilludido d’esta cruel vida, vim pedir ao absintho, no boulevard, uma hora de esquecimento.»

Affonso da Maia deu um repellão á carta, menos enojado das torpezas da historia, que d’aquelles lyrismos relambidos.

E recomeçou a passear, emquanto o Villaça recolhia religiosamente o documento que tinha relido muitas vezes, na admiração do sentimento, do estylo, do ideal d’aquella pagina.

— ­E a pequena? perguntou Affonso.

— ­Isso não sei. O Alencar não lhe fallaría na filha, nem elle mesmo sabe que ella a levou. Ninguem o sabe em Lisboa. Foi um detalhe que passou desapercebido no grande escandalo. Mas emquanto a mim, a pequena morreu. Senão, siga V. Ex.ª o meu raciocinio... Se a menina fosse viva, a mãe podia reclamar a legitima que cabe á creança... Ella sabe a casa que V. Ex.ª tem; ha de haver dias, e são frequentes na vida d’essas mulheres, em que lhe falte uma libra... Com o pretexto da educação da menina, ou de alimentos, já nos tinha importunado... Escrupulos não tem ella. Se o não faz é que a filha morreu. Não lhe parece a V. Ex.ª?

— ­Talvez, disse Affonso.

E accrescentou, parando deante de Villaça — ­que olhava outra vez a braza morta tirando estalinhos dos dedos:

— ­Talvez... Sopônhamos que morreram ambas, e não se falle mais n’isso.

Estava dando meia noite, os dois homens recolheram-se. E durante os dias que Villaça passou em S.ta Olavia não se proferiu mais o nome de Maria Monforte.

Mas, na vespera da partida do administrador para Lisboa, Affonso subio ao quarto d’elle, a entregar-lha as amendoas da Paschoa que Carlos mandava a Villaça Junior, um alfinete de peito com uma magnifica saphira — ­e disse-lhe em quanto o outro, sensibilisado, balbuciava os agradecimentos:

— ­Agora outra cousa, Villaça. Tenho estado a pensar. Vou escrever a meu primo Noronha, ao André que vive em Paris como você sabe, pedir-lhe que procure essa creatura, e que lhe offereça dez ou quinze contos de réis, se ella me quizer entregar a filha... No caso, está claro, que esteja viva... E quero que você saiba d’esse Alencar a morada da mulher em Paris.

O Villaça não respondeu, occupado a metter entre as camisas, bem no fundo da maleta, a caixinha com o alfinete. Depois, erguendo-se, ficou deante d’Affonso, a coçar reflectidamente o queixo.

— ­Então que lhe parece, Villaça?

— ­Parece-me arriscado.

E deu as suas razões. A menina devia ir nos seus treze annos. Estava uma mulher, com o seu temperamento formado, o caracter feito, talvez os seus habitos... Nem fallaria o portuguez. As saudades da mãe haviam de ser terriveis... Emfim, o sr. Affonso de Maia trazia uma extranha para casa...

— ­Você tem rasão, Villaça. Mas a mulher é uma prostituta, e a pequena é do meu sangue.

N’esse momento Carlos, cuja voz gritava no corredor pelo vovô, precipitou-se no quarto, esguedelhado, escarlate como uma romã. — ­O Brown tinha achado uma corujasinha pequena! Queria que o vovô viesse ver, andara a buscal-o por toda a casa... Era de morrer a rir... Muito pequena, muito feia, toda pellada, e com dois olhos de gente grande! E sabiam onde havia o ninho...

— ­Vem depressa, ó vovô! Depressa, que é necessario ir pol-a no ninho, por causa da coruja velha que se póde affligir... O Brown está-lhe a dar azeite. Oh Villaça vem ver! O vovô, pelo amor de Deus! Tem uma cara tão engraçada! Mas depressa, depressa, que a coruja velha póde dar pela falta!...

E impaciente com a lentidão risonha do vôvo, tanta indifferença pela inquietação da coruja velha, abalou atirando com a porta.

— ­Que bom coração! exclamou o Villaça commovido. A pensar nas saudades da coruja... A mãe d’elle é que não tem saudades! Sempre o disse, é uma fera!

Afonso encolheu tristemente os hombros. Iam já no corredor quando elle, parando um momento, baixando a voz:

— ­Tem-me esquecido de lhe contar, Villaça, o Carlos sabe que o pae que se matou...

Villaça arredondou os olhos d’espanto. Era verdade. Uma manhã entrara-lhe pela livraria, e dissera-lhe: — ­ó vovô, o papá matou-se com uma pistola! — ­Naturalmente algum creado que lh’o contara...

— ­E vossa excellencia?

— ­Eu... Que havia de fazer? Disse-lhe que sim. Em tudo tenho obedecido ao que Pedro me pediu, n’essas quatro ou cinco linhas da carta que me deixou. Quiz ser enterrado em S.ta Olavia, ahi está. Não queria que o filho jámais soubesse da fuga da mãe; e por mim, de certo, nunca o saberá. Quiz que dois retratos que havia d’ella em Arroios fossem destruidos; como você sabe, obtiveram-se e destruiram-se. Mas não me pedio que occultasse ao rapaz o seu fim. E por isso, disse ao pequeno a verdade: disse-lhe que n’um momento de loucura, o papá tinha dado um tiro em si...

— ­E elle?

— ­E elle, replicou Affonso sorrindo, perguntou-me quem lhe tinha dado a pistola, e torturou-me toda uma manhã para lhe dar tambem uma pistola... E ahi está o resultado d’essa revelação: é que tive de mandar vir do Porto uma pistóla de vento...

Mas, sentindo Carlos em baixo, aos berros ainda pelo avó, os dois apressaram-se a ir admirar a corujazinha.

Villaça ao outro dia partiu para Lisboa.

Passadas duas semanas, Affonso recebia uma carta do administrador, trasendo-lhe, com a adresse da Monforte, uma revelação imprevista. Tinha voltado a casa do Alencar; e o poeta, recordando outros incidentes da sua visita a M.me de l’Estorade, contara-lhe que no boudoir d’ella havia um adoravel retrato de creança, de olhos negros, cabello d’azeviche, e uma pallidez de nacar. Esta pintura ferira-o, não só por ser d’um grande pintor inglez, mas por ter, pendente sob o caixilho como um voto funerario, uma linda coroa de flores de cera brancas e roxas. Não havia outro quadro no boudoir: e elle perguntara á Monforte se era um retrato ou uma phantasia. Ella respondera que era o retrato da filha que lhe morrera em Londres. «Estão assim dissipadas todas as duvidas, accrescentava o Villaça. O pobre anjinho está n’uma patria melhor. E para ella, bem melhor

Affonso, todavia, escreveu a André de Noronha. A resposta tardou. Quando o primo André procurara M.me de l’Estorade, havia semanas que ella partira para Allemanha, depois de vender mobilia e cavallos. E no Club Imperial, a que elle pertencia, um amigo que conhecia bem M.me de l’Estorade e a vida galante de Paris, contara-lhe que a doida fugira com um certo Catanni, acrobata do Circo d’Inverno nos Campos Elyseos, homem de fórmas magnificas, um Appolo de feira, que todas as cocottes se disputavam e que a Monforte empolgára. Naturalmente corria agora a Allemanha com a companhia de cavallinhos.

Affonso da Maia, enojado, remetteu esta carta ao Villaça sem um commentario. E o honrado homem respondeu: «Tem V. Ex.ª rasão, é atroz: e mais vale suppor que todos morreram, e não gastar mais cera com tão ruins defuntos...» E depois n’um post-scriptum accrescentava: «Parece certo abrir-se em breve o caminho de ferro até ao Porto: em tal caso, com permissão de V. Ex.ª, ahi irei e o meu rapaz a pedirmos-lhe alguns dias d’hospitalidade.»

Esta carta foi recebida em S.ta Olavia um domingo, ao jantar. Affonso lera alto o P. S. Todos se alegraram, na esperança de ver o bom Villaça em breve na quinta; e fallou-se mesmo em arranjar um grande pic-nic, rio acima.

Mas, terça feira á noite, chegava um telegramma de Manuel Villaça annunciando que o pae morrera, n’essa manhã, d’uma apoplexia: dois dias depois vinham mais longos e tristes pormenores. Fora depois do almoço que, de repente, Villaça se sentira muito suffocado, e com tonturas: ainda tivera forças d’ir ao quarto respirar um pouco d’ether: mas ao voltar á sala cambaleava, queixava-se de vêr tudo amarello, e caiu de bruços, como um fardo, sobre o canapé. O seu pensamento, que se extinguia para sempre, ainda n’esse momento se occupou da casa que ha trinta annos administrava: balbuciou, a respeito d’uma venda de cortiça, recomendações que o filho já não poude perceber: depois deu um grande ai; e só tornou a abrir os olhos, para murmurar no derradeiro sopro estas derradeiras palavras: Saudades ao patrão!

Affonso da Maia ficou profundamente afectado, e em S.ta Olavia, mesmo entre os creados, a morte de Villaça foi como um lucto domestico. Uma d’essas tardes, o velho, muito melancolico, estava na livraria com um jornal esquecido nas mãos, os olhos cerrados — ­quando Carlos, que ao lado rabiscava carantonhas n’um papel, veio passar-lhe um braço pelo pescoço, e como comprehendendo os seus pensamentos perguntou-lhe se o Villaça não voltaria a vel-os à quinta.

— ­Não filho, nunca mais. Nunca mais o tornamos a vêr.

O pequeno, entre os joelhos e os braços do velho, olhava o tapete, e, como recordando-se, murmurou tristemente:

— ­O Villaça, coitado... Dava estalinhos com os dedos... Oh vovô, para onde o levaram?

— ­Para o cemiterio, filho, para debaixo da terra.

Então Carlos desprendeu-se devagar do abraço do avô, e muito sério, com os olhos n’elle:

— ­Ó vovô! porque não lhe mandas fazer uma capellinha bonita, toda de pedra, com uma figura, como tem o papá?

O velho achegou-o ao peito, beijou-o, commovido:

— ­Tens razão, filho. Tens mais coração que eu!

Assim o bom Villaça teve no cemiterio dos Prazeres o seu jazigo — ­que fôra a alta ambição da sua existência modesta.


Outros annos tranquillos passaram sobre Santa Olavia.

Depois uma manhã de julho, em Coimbra, Manuel Villaça (agora administrador da casa) trepava as escadas do Hotel Mondego, onde Affonso se hospedára com o neto, e entrava-lhe pela sala, vermelho, suando, berrando:

— ­Neminè! Neminè!

Fizera Carlos o seu primeiro exame! E que exame! Teixeira que tinha acompanhado os senhores de Santa Olavia correu á porta, abraçou-se quasi chorando no menino, agora mais alto que elle, e muito formoso na sua batina nova.

Em cima no quarto, Manuel Villaça, soprando ainda, limpando as bagas de suor, exclamava:

— ­Ficou tudo espantado, snr. Affonso da Maia! Os lentes até estavam commovidos. Ih Jesus! que talento! Vem a ser um grande homem, é o que todo o mundo disse... E que faculdade vai elle seguir, meu senhor?

Affonso, que passeava, todo tremulo, respondeu com um sorriso:

— ­Não sei, Villaça... Talvez nos formemos ambos em Direito.

Carlos assomou á porta, radiante, seguido do Teixeira e do outro escudeiro — ­que trazia champagne n’uma salva.

— ­Então venha cá, seu maroto, disse Affonso muito branco, com os braços abertos. Bom exame, hein?... Eu...

Mas não pôde proseguir: as lagrimas, duas a duas, corriam-lhe pela barba branca.

Carlos ia formar-se em Medicina. E como dizia o dr. Trigueiros houvera sempre n’aquelle menino realmente uma «vocação para Esculapio».

A «vocação» revelára-se bruscamente um dia que elle descobriu no sotão, entre rumas de velhos alfarrabios, um rolo manchado e antiquado de estampas anatomicas; tinha passado dias a recortal-as, pregando pelas paredes do quarto figados, liaças de intestinos, cabeças de perfil «com o recheio á mostra». Uma noite mesmo rompera pela sala em triumpho, a mostrar ás Silveiras, ao Euzebio, a pavorosa lithographia de um feto de seis mezes no utero materno. D. Anna recuou, com um grito, collando o leque á face: e o dr. delegado, escarlate tambem, arrebatou prudentemente Euzebiosinho para entre os joelhos, tapou-lhe a face com a mão. Mas o que escandalisou mais as senhoras foi a indulgencia de Affonso.

— ­Então que tem, então que tem? dizia elle sorrindo.

— ­Que tem, snr. Affonso da Maia!? exclamou D. Anna. São indecencias!

— ­Não ha nada indecente na natureza, minha rica senhora. Indecente é a ignorancia... Deixar lá o rapaz. Tem curiosidade de saber como é esta pobre machina por dentro, não ha nada mais louvavel...

D. Anna abanava-se, suffocada. Consentir taes horrores nas mãos da criança!... Carlos começou a apparecer-lhe como um libertino «que já sabia coisas»; e não consentiu mais que a Therezinha brincasse só com elle pelos corredores de Santa Olavia.

As pessoas sérias porém, o dr. juiz de direito, o proprio abbade, lamentando, sim, que não houvesse mais recato, concordavam que aquillo mostrava no pequeno uma grande queda para a medicina.

— ­Se péga, dizia então com um gesto prophetico o dr. Trigueiros, temos d’alli coisa grande!

E parecia pegar.

Em Coimbra, estudante do Lyceu, Carlos deixava os seus compendios de logica e rhetorica para se occupar de anatomia: n’umas ferias, ao abrir das malas, a Gertrudes fugiu espavorida vendo alvejar entre as dobras d’um casaco o riso d’uma caveira: e se algum criado da quinta adoecia, lá estava Carlos logo revolvendo o caso em velhos livros de medicina da livraria, sem lhe largar a beira do catre, fazendo diagnosticos que o bom dr. Trigueiros escutava respeitoso e pensativo. Diante do avô já chamava mesmo ao menino «o seu talentoso collega».

Esta inesperada carreira de Carlos (pensára-se sempre que elle tomaria capello em Direito) era pouco approvada entre os fieis amigos de Santa Olavia. As senhoras sobretudo lamentavam que um rapaz que ia crescendo tão formoso, tão bom cavalleiro, viesse a estragar a vida receitando emplastros, e sujando as mãos no jorro das sangrias. O dr. juiz de direito confessou mesmo um dia a sua descrença de que o snr. Carlos da Maia quizesse «ser medico a sério».

— ­Ora essa! exclamou Affonso. E porque não ha de ser medico a sério? Se escolhe uma profissão é para a exercer com sinceridade e com ambição, como os outros. Eu não o educo para vadio, muito menos para amador; educo-o para ser util ao seu paiz...

— ­Todavia, arriscou o dr. juiz de direito com um sorriso fino, não lhe parece a v. exc.ª que ha outras coisas, importantes tambem, e mais proprias talvez, em que seu neto se poderia tornar util?...

— ­Não vejo, replicou Affonso da Maia. N’um paiz em que a occupação geral é estar doente, o maior serviço patriotico é incontestavelmente saber curar.

— ­V. exc.ª tem resposta para tudo, murmurou respeitosamente o magistrado.

E o que justamente seduzia Carlos na medicina era essa vida «a sério», pratica e util, as escadas de doentes galgadas á pressa no fogo de uma vasta clinica, as existencias que se salvam com um golpe de bisturí, as noites veladas á beira de um leito, entre o terror de uma familia, dando grandes batalhas á morte. Como em pequeno o tinham encantado as fórmas pittorescas das vísceras — ­attrahiam-no agora estes lados militantes e heroicos da sciencia.

Matriculou-se realmente com enthusiasmo. Para esses longos annos de quieto estudo o avô preparára-lhe uma linda casa em Cellas, isolada, com graças de cottage inglez, ornada de persianas verdes, toda fresca entre as arvores. Um amigo de Carlos (um certo João da Ega) poz-lhe o nome de «Paços de Cellas», por causa de luxos então raros na Academia, um tapete na sala, poltronas de marroquim, panoplias d’armas, e um escudeiro de libré.

Ao principio este esplendor tornou Carlos venerado dos fidalgotes, mas suspeito aos democratas; quando se soube porém que o dono d’estes confortos lia Proudhon, Augusto Comte, Herbert Spencer, e considerava tambem o paiz uma choldra ignobil — ­os mais rigidos revolucionarios começaram a vir aos Paços de Cellas tão familiarmente como ao quarto do Trovão, o poeta bohemio, o duro socialista, que tinha apenas por mobilia uma enxerga e uma Biblia.

Ao fim d’alguns mezes, Carlos, sympathico a todos, conciliára Dandys e Philosophos: e trazia muitas vezes no seu break, lado a lado, o Serra Torres, um monstro que já era addido honorario em Berlim e todas as noites punha casaca, e o famoso Craveiro que meditava a Morte de Satanaz, encolhido no seu gabão d’Aveiro, com o seu grande barrete de lontra.

Os Paços de Cellas, sob a sua apparencia preguiçosa e campestre, tornaram-se uma fornalha de actividades. No quintal fazia-se uma gymnastica scientifica. Uma velha cozinha fôra convertida em sala d’armas — ­porque n’aquelle grupo a esgrima passava como uma necessidade social. Á noite, na sala de jantar, moços sérios faziam um whist sério: e no salão, sob o lustre de crystal, com o Figaro, o Times e as Revistas de Paris e de Londres espalhadas pelas mesas, o Gamacho ao piano tocando Chopin ou Mozart, os litteratos estirados pelas poltronas — ­havia ruidosos e ardentes cavacos, em que a Democracia, a Arte, o Positivismo, o Realismo, o Papado, Bismark, o Amor, Hugo e a Evolução, tudo por seu turno flammejava no fumo do tabaco, tudo tão ligeiro e vago como o fumo. E as discussões metaphysicas, as proprias certezas revolucionarias adquiriam um sabor mais requintado com a presença do criado de farda desarrolhando a cerveja, ou servindo croquettes.

Carlos, naturalmente, não tardou a deixar pelas mesas, com as folhas intactas, os seus expositores de medicina. A Litteratura e a Arte, sob todas as fórmas, absorveram-no deliciosamente. Publicou sonetos no Instituto — ­e um artigo sobre o Parthenon: tentou, n’um atelier improvisado, a pintura a oleo: e compoz contos archeologicos, sob a influencia da Salammbô. Além d’isso todas as tardes passeava os seus dois cavallos. No segundo anno levaria um R se não fosse tão conhecido e rico. Tremeu, pensando no desgosto do avô: moderou a dissipação intellectual, acantoou-se mais na sciencia que escolhera: immediatamente lhe deram um accessit. Mas tinha nas veias o veneno do dilettantismo: e estava destinado, como dizia João da Ega, a ser um d’esses medicos litterarios que inventam doenças de que a humanidade papalva se presta logo a morrer!

O avô, ás vezes, vinha passar uma, duas semanas a Cellas. Nos primeiros tempos a sua presença, agradavel aos cavalheiros da partilha de whist, desorganisou o cavaco litterario. Os rapazes mal ousavam estender o braço para o copo da cerveja; e os vossa excellencia isto, vossa excellencia aquillo, regelavam a sala. Pouco a pouco, porém, vendo-o apparecer em chinelas e de cachimbo na boca, estirar-se na poltrona com ares sympathicos de patriarcha bohemio, discutir arte e litteratura, contar anecdotas do seu tempo d’Inglaterra e d’Italia, começaram a consideral-o como um camarada de barbas brancas. Diante d’elle já se fallava de mulheres e de estroinices. Aquelle velho fidalgo, tão rico, que lêra Michelet e o admirava — ­chegou mesmo a enthusiasmar os democratas. E Affonso gozava alli tambem horas felizes, vendo o seu Carlos centro d’aquelles moços de estudo, de ideal e de veia.

Carlos passava as ferias grandes em Lisboa, ás vezes em Paris ou Londres; mas por Nataes e Pascoas vinha sempre a Santa Olavia, que o avô mais só se entretinha a embellezar com amor. As salas tinham agora soberbos pannos d’Arraz, paizagens de Rousseau e Daubigny, alguns moveis de luxo e d’arte. Das janellas a quinta offerecia aspectos nobres de parque inglez: através dos macios taboleiros de relva, davam curvas airosas as ruas areadas: havia marmores entre as verduras; e gordos carneiros de luxo dormiam sob os castanheiros. Mas a existencia n’este meio rico não era agora tão alegre: a viscondessa, cada dia mais nutrida, cahia em somnos congestivos logo depois do jantar; o Teixeira primeiro, a Gertrudes depois, tinham morrido, ambos de pleurizes, ambos no entrudo: e já se não via tambem á mesa a bondosa face do abbade, que lá jazia sob uma cruz de pedra, entre os goivos e as rosas de todo o anno. O dr. juiz de direito com a sua concertina passára para a Relação do Porto; D. Anna Silveira, muito doente, nunca sahia; a Therezinha fizera-se uma rapariguinha feia, amarella como uma cidra; o Euzebiosinho, mollengão e tristonho, já sem vestigios sequer do seu primeiro amor aos alfarrabios e ás letras, ia casar na Regoa. Só o dr. delegado, esquecido n’aquella comarca, estava o mesmo, mais calvo talvez, sempre affavel, amando sempre a pachorrenta Eugenia. E quasi todas as tardes, o velho Trigueiros se apeava da sua egoa branca ao portão para vir cavaquear com o collega.

As ferias, realmente, só eram divertidas para Carlos quando trazia para a quinta o seu intimo, o grande João da Ega, a quem Affonso da Maia se affeiçoára muito, por elle e pela sua originalidade, e por ser sobrinho d’André da Ega, velho amigo da sua mocidade e, muitas vezes outr’ora, hospede tambem em Santa Olavia.

Ega andava-se formando em Direito, mas devagar, muito pausadamente — ­ora reprovado, ora perdendo o anno. Sua mãi, rica, viuva e beata, retirada n’uma quinta ao pé de Celorico de Basto com uma filha, beata, viuva e rica tambem, tinha apenas uma noção vaga do que o Joãozinho fizera, todo esse tempo, em Coimbra. O capellão affirmava-lhe que tudo havia de acabar a contento, e que o menino seria um dia doutor como o papá e como o titi: e esta promessa bastava á boa senhora, que se occupava sobretudo da sua doença de entranhas e dos confortos d’esse padre Seraphim. Estimava mesmo que o filho estivesse em Coimbra, ou algures, longe da quinta, que elle escandalisava com a sua irreligião e as suas facecias hereticas.

João da Ega, com effeito, era considerado não só em Celorico, mas tambem na Academia que elle espantava pela audacia e pelos ditos, como o maior atheu, o maior demagogo, que jámais apparecera nas sociedades humanas. Isto lisonjeava-o: por systema exagerou o seu odio á Divindade, e a toda a Ordem social: queria o massacre das classes-médias, o amor livre das ficções do matrimonio, a repartição das terras, o culto de Satanaz. O esforço da intelligencia n’este sentido terminou por lhe influenciar as maneiras e a physionomia; e, com a sua figura esgrouviada e sêcca, os pêllos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito — ­tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satanico. Desde a sua entrada na Universidade renovára as tradições da antiga Bohemia: trazia os rasgões da batina cozidos a linha branca; embebedava-se com carrascão; á noite, na Ponte, com o braço erguido, atirava injurias a Deus. E no fundo muito sentimental, enleado sempre em amores por meninas de quinze annos, filhas de empregados, com quem ás vezes ia passar a soirée, levando-lhes cartuchinhos de dôce. A sua fama de fidalgote rico tornava-o appetecido nas familias.

Carlos escarnecia estes idyllios futricas; mas tambem elle terminou por se enredar n’um episodio romantico com a mulher d’um empregado do governo civil, uma lisboetasinha, que o seduziu pela graça d’um corpo de boneca e por uns lindos olhos verdes. A ella o que a fanatisára fôra o luxo, o groom, a egoa ingleza de Carlos. Trocaram-se cartas; e elle viveu semanas banhado na poesia aspera e tumultuosa do primeiro amor adultero. Infelizmente a rapariga tinha o nome barbaro de Hermengarda; e os amigos de Carlos, descoberto o segredo, chamavam-lhe já Eurico o presbytero, dirigiam para Cellas missivas pelo correio com este nome odioso.

Um dia Carlos, andava tomando o sol na Feira, quando o empregado do governo civil passou junto d’elle com o filhinho pela mão. Pela primeira vez via tão de perto o marido de Hermengarda. Achou-o enxovalhado e macilento. Mas o pequerrucho era adoravel, muito gordo, parecendo mais roliço por aquelle dia de janeiro sob os agasalhos de lã azul, tremelicando nas pobres perninhas rôxas de frio, e rindo na clara luz — ­rindo todo elle, pelos olhos, pelas covinhas do queixo, pelas duas rosas das faces. O pae amparava-o; e o encanto, o cuidado com que o rapaz ia assim guiando os passos do seu filho, impressionou Carlos. Era no momento em que elle lia Michelet — ­e enchia-lhe a alma a veneração litteraria da santidade domestica. Sentiu-se canalha em andar alli de cima do seu dog-cart, a preparar friamente a vergonha, e as lagrimas d’aquelle pobre pae tão inoffensivo no seu paletot coçado! Nunca mais respondeu ás cartas em que Hermengarda lhe chamava seu ideal. Decerto a rapariga se vingou, intrigando-o; porque o empregado do governo civil, d’ahi por diante, dardejava sobre elle olhares sangrentos.

Mas a grande «topada sentimental de Carlos», como disse o Ega, foi quando elle, ao fim d’umas ferias, trouxe de Lisboa uma soberba rapariga hespanhola, e a installou n’uma casa ao pé de Cellas. Chamava-se Encarnacion. Carlos alugou-lhe ao mez uma vittoria com um cavallo branco e Encarnacion fanatisou Coimbra como a apparição d’uma Dama das Camelias, uma flôr de luxo das civilisações superiores. Pela Calçada, pela estrada da Beira, os rapazes paravam, pallidos de emoção, quando ella passava, reclinada na vittoria, mostrando o sapato de setim, um pouco da meia de sêda, languida e desdenhosa, com um cãosinho branco no regaço.

Os poetas da Academia fizeram-lhe versos em que Encarnacion foi chamada Lirio d’Israel, Pomba da Arca, e Nuvem da Manhã. Um estudante de theologia, rude e sebento transmontano, quiz casar com ella. Apesar das instancias de Carlos, Encarnacion recusou; e o theologo começou a rondar Cellas, com um navalhão, para «beber o sangue» ao Maia. Carlos teve de lhe dar bengaladas.

Mas a creatura, desvanecida, tornou-se intoleravel, fallando sem cessar d’outras paixões que inspirára em Madrid e em Lisboa, do muito que lhe dera o conde de tal, o marquez sicrano, da grande posição da sua familia ainda aparentada com os Medina-Cœli: os seus sapatos de setim verde eram tão antipathicos como a sua voz estridula: e quando tentava elevar-se ás conversações que ouvia, rompia a chamar ladrões aos republicanos, a celebrar os tempos de D. Isabel, a sua gracia, o seu salero — ­sendo muito conservadora como todas as prostitutas. João da Ega odiava-a. E Craveiro declarou que não voltava aos Paços de Cellas emquanto por lá apparecesse aquelle montão de carne, pago ao arratel, como a de vacca.

Emfim, uma tarde Baptista, o famoso criado de quarto de Carlos surprehendeu-a com um Juca que fazia de dama no Theatro Academico. Ahi estava, emfim, um pretexto! E, convenientemente paga, a parenta dos Medina-Cœli, o Lirio d’Israel, a admiradora dos Bourbons, foi recambiada a Lisboa e á rua de S. Roque, seu elemento natural.

Em agosto, no acto da formatura de Carlos, houve uma alegre festa em Cellas. Affonso viera de Santa Olavia, Villaça de Lisboa; toda a tarde no quintal, d’entre as acacias e as bella-sombras, subiram ao ar mólhos de foguetes; e João da Ega, que levára o seu ultimo R no seu ultimo anno, não descansou, em mangas de camisa, pendurando lanternas venezianas pelos ramos, no trapesio e em roda do poço, para a illuminação da noite. Ao jantar, a que assistiam lentes, Villaça, enfiado e tremulo, fez um speech; ia citar o nosso immortal Castilho quando sob as janellas rompeu, a grande ruido de tambor e pratos, o Hymno Academico. Era uma serenata. — ­Ega, vermelho, de batina desabotoada, a luneta para traz das costas, correu á sacada, a perorar:

— ­Ahi temos o nosso Maia, Carolus Eduardus ab Maia, começando a sua gloriosa carreira, preparado para salvar a humanidade enferma — ­ou acabar de a matar, segundo as circumstancias! A que parte remota d’estes reinos não chegou já a fama do seu genio, do seu dog-cart, do sebaceo accessit que lhe ennodôa o passado, e d’este vinho do Porto, contemporaneo dos heroes de 20, que eu, homem de revolução e homem de carraspana, eu, João da Ega, Johanes ab Ega...

O grupo escuro em baixo desatou aos vivas. A philarmonica, outros estudantes, invadiram os Paços. Até tarde, sob as arvores do quintal, na sala atulhada de pilhas de pratos, os criados correram com salvas de dôce, não cessou d’estalar o champagne. E Villaça, limpando a testa, o pescoço, abafado de calor, ia dizendo a um, a outro, a si mesmo tambem:

— ­Grande coisa, ter um curso!

E então Carlos Eduardo partira para a sua longa viagem pela Europa. Um anno passou. Chegára esse outono de 1875: e o avô installado emfim no Ramalhete esperava por elle anciosamente. A ultima carta de Carlos viera de Inglaterra, onde andava, dizia elle, a estudar a admiravel organisação dos hospitaes de crianças. Assim era: mas passeava tambem por Brighton, apostava nas corridas de Goodwood, fazia um idyllio errante pelos lagos da Escocia, com uma senhora hollandeza, separada de seu marido, veneravel magistrado da Haya, uma M.me Rughel, soberba creatura de cabellos d’ouro fulvo, grande e branca como uma nympha de Rubens.

Depois começaram a chegar, dirigidas ao Ramalhete, caixas successivas de livros, outras de instrumentos e apparelhos, toda uma bibliotheca e todo um laboratorio — ­que trazia o Villaça, manhãs inteiras, aturdido pelos armazens da alfandega.

— ­O meu rapaz vem com grandes idéas de trabalho, dizia Affonso aos amigos.

Havia quatorze mezes que elle o não via, o «seu rapaz», a não ser n’uma photographia mandada de Milão, em que todos o acharam magro e triste. E o coração batia-lhe forte, na linda manhã de outono, quando do terraço do Ramalhete, de binoculo na mão, viu assomar vagarosamente, por traz do alto predio fronteiro, um grande paquete do Royal Mail que, lhe trazia o seu neto.

Á noite os amigos da casa, o velho Sequeira, D. Diogo Coutinho, o Villaça — ­não se fartavam d’admirar «o bem que a viagem fizera a Carlos». Que differença da photographia! Que forte, que saudavel!

Era decerto um formoso e magnifico moço, alto, bem feito, de hombros largos, com uma testa de marmore sob os anneis dos cabellos pretos, e os olhos dos Maias, aquelles irresistiveis olhos do pai, de um negro liquido, ternos como os d’elle e mais graves. Trazia a barba toda, muito fina, castanho-escura, rente na face, aguçada no queixo — ­o que lhe dava, com o bonito bigode arqueado aos cantos da boca, uma physionomia de bello cavalleiro da Renascença. E o avô, cujo olhar risonho e humido transbordava d’emoção, todo se orgulhava de o vêr, de o ouvir, n’uma larga veia, fallando da viagem, dos bellos dias de Roma, do seu mau humor na Prussia, da originalidade de Moscow, das paizagens da Hollanda...

— ­E agora? perguntou-lhe o Sequeira, depois de um momento de silencio em que Carlos estivera bebendo o seu cognac e soda. Agora que tencionas tu fazer?

— ­Agora, general? respondeu Carlos, sorrindo e pousando o copo. Descançar primeiro e depois passar a ser uma gloria nacional!

Ao outro dia, com effeito, Affonso veiu encontral-o na sala de bilhar — ­onde tinham sido collocados os caixotes — ­a despregar, a desempacotar, em mangas de camisa e assobiando com enthusiasmo. Pelo chão, pelos sophás, alastrava-se toda uma litteratura em rumas de volumes graves; e aqui e além, por entre a palha, através das lonas descozidas, a luz faiscava n’um crystal, ou reluziam os vernizes, os metaes polidos de apparelhos. Affonso pasmava em silencio para aquelle pomposo apparato do saber.

— ­E onde vaes tu accommodar este museo?

Carlos pensara em arranjar um vasto laboratorio alli perto no bairro, com fornos para trabalhos chimicos, uma sala disposta para estudos anatomicos e physiologicos, a sua bibliotheca, os seus apparelhos, uma concentração methodica de todos os instrumentos de estudo...

Os olhos do avô illuminavam-se ouvindo este plano grandioso.

— ­E que não te prendam questões de dinheiro, Carlos! Nós fizemos n’estes ultimos annos de Santa Olavia algumas economias...

— ­Boas e grandes palavras, avô! Repita-as ao Villaça.

As semanas foram passando n’estes planos de installação. Carlos trazia realmente resoluções sinceras de trabalho: a sciencia como mera ornamentação interior do espirito, mais inutil para os outros que as proprias tapessarias do seu quarto, parecia-lhe apenas um luxo de solitario: desejava ser util. Mas as suas ambições fluctuavam, intensas e vagas; ora pensava n’uma larga clinica; ora na composição macissa de um livro iniciador; algumas vezes em experiencias physiologicas, pacientes e reveladoras... Sentia em si, ou suppunha sentir, o tumulto de uma força, sem lhe discernir a linha d’applicação. «Alguma cousa de brilhante,» como elle dizia: e isto para elle, homem de luxo e homem d’estudo, significava um conjuncto de representação social e de actividade scientifica; o remecher profundo de idéas entre as influencias delicadas da riqueza; os elevados vagares da philosophia entremeados com requintes de sport e de gosto; um Claude Bernard que fosse tambem um Morny... No fundo era um dilletante.

Villaça fôra consultado sobre a localidade propria para o laboratorio; e o procurador, muito lisongeado, jurou uma diligencia incançavel. Primeira cousa a saber, o nosso doutor tencionava fazer clinica?...

Carlos não decidira fazer exclusivamente clinica: mas desejava de certo dar consultas, mesmo gratuitas, como caridade e como pratica. Então Villaça suggeriu que o consultorio estivesse separado do laboratorio.

— ­E a minha razão é esta: a vista de apparelhos, machinas, cousas, faz esmorecer os doentes...

— ­Tem você razão, Villaça! exclamou Affonso. Já meu pae dizia: poupe-se ao boi a vista do malho.

— ­Separados, separados, meu senhor, affirmou o procurador n’um tom profundo.

Carlos concordou. E Villaça bem depressa descobriu, para o laboratorio, um antigo armazem, vasto e retirado, ao fundo de um pateo, junto ao largo das Necessidades.

— ­E o consultorio, meu senhor, não é aqui, nem acolá; é no Rocio, alli em pleno Rocio!

Esta idéa do Villaça não era desinteressada. Grande enthusiasta da Fusão, membro do Centro progressista, Villaça Junior aspirava a ser vereador da camara, e mesmo em dias de satisfação superior (como quando o seu anniversario natalicio vinha annunciado no Illustrado, ou quando no Centro citava com applauso a Belgica) parecia-lhe que tantas aptidões mereciam do seu partido uma cadeira em S. Bento. Um consultorio gratuito, no Rocio, o consultorio do dr. Maia, «do seu Maia» reluziu-lhe logo vagamente como um elemento de influencia. E tanto se agitou, que d’ahi a dois dias tinha lá alugado um primeiro andar d’esquina.

Carlos mobilou-o com luxo. N’uma antecamara, guarnecida de banquetas de marroquim, devia estacionar, á franceza, um creado de libré. A sala de espera dos doentes alegrava com o seu papel verde de ramagens prateadas, as plantas em vasos de Rouen, quadros de muita côr, e ricas poltronas cercando a jardineira coberta de collecções do Charivari, de vistas estereoscopicas, d’albuns de actrizes semi-nuas; para tirar inteiramente o ar triste de consultorio até um piano mostrava o seu teclado branco.

O gabinete de Carlos ao lado era mais simples, quasi austero, todo em velludo verde-negro, com estantes de pau preto. Alguns amigos que começavam a cercar Carlos, Taveira, seu contemporaneo e agora visinho do Ramalhete, o Cruges, o marquez de Souzellas, com quem percorrera a Italia — ­vieram vêr estas maravilhas. O Cruges correu uma escala no piano e achou-o abominavel; Taveira absorveu-se nas photographias d’actrizes; e a unica approvação franca veiu do marquez, que depois de contemplar o divan do gabinete, verdadeiro movel de serralho, vasto, voluptuoso, fôfo, experimentou-lhe a doçura das molas e disse, piscando o olho a Carlos:

— ­A calhar.

Não pareciam acreditar n’estes preparativos. E todavia eram sinceros. Carlos até fizera annunciar o consultorio nos jornaes; quando viu porem o seu nome em letras grossas, entre o de uma engommadeira á Boa Hora e um reclamo de casa de hospedes, — ­encarregou Villaça de retirar o annuncio.

Occupava-se então mais do laboratorio, que decidira installar no armazem, ás Necessidades. Todas as manhãs, antes de almoço, ía visitar as obras. Entrava-se por um grande pateo, onde uma bella sombra cobria um poço, e uma trepadeira se mirrava nos ganchos de ferro que a prendiam ao muro. Carlos já decidira transformar aquelle espaço em fresco jardinete inglez; e a porta do casarão encantava-o, ogival e nobre, resto de fachada d’ermida, fazendo um accesso veneravel para o seu sanctuario de sciencia. Mas dentro os trabalhos arrastavam-se sem fim; sempre um vago martellar preguiçoso n’uma poeira alvadia; sempre as mesmas coifas de ferramentas jazendo nas mesmas camadas de aparas! Um carpinteiro esgouroviado e triste parecia estar alli, desde seculos, aplainando uma taboa eterna com uma fadiga langorosa; e no telhado os trabalhadores que andavam alargando a claraboia, não cessavam de assobiar, no sol d’inverno, alguma lamuria de fado.

Carlos queixava-se ao sr. Vicente, o mestre d’obras, que lhe asseverava invariavelmente «como d’ahi a dois dias havia de s. ex.ª vêr a differença.» Era um homem de meia edade, risonho, de fallar doce, muito barbeado, muito lavado, que morava ao pé do Ramalhete, e tinha no bairro fama de republicano. Carlos, por sympathia, como visinho, apertava-lhe sempre a mão: e o sr. Vicente, considerando-o por isso um «avançado», um democrata, confiava-lhe as suas esperanças. O que elle desejava primeiro que tudo era um 93, como em França...

— ­O que, sangue? dizia Carlos, olhando a fresca, honrada, e roliça face do demagogo.

— ­Não, senhor, um navio, um simples navio...

— ­Um navio?

— ­Sim, senhor, um navio fretado á custa da nação, em que se mandasse pela barra fóra o rei, a familia real, a cambada dos ministros, dos politicos, dos deputados, dos intrigantes, etc. e etc.

Carlos sorria, ás vezes argumentava com elle.

— ­Mas está o sr. Vicente bem certo, que apenas a cambada, como tão exactamente diz, desapparecesse pela barra fóra, ficavam resolvidas todas as cousas e tudo atolado em felicidade?

Não, o sr. Vicente não era tão «burro» que assim pensasse. Mas, supprimida a cambada, não via s. ex.ª? Ficava o paiz desatravancado; e podiam então começar a governar os homens de saber e de progresso...

— ­Sabe v. ex.ª qual é o nosso mal? Não é má vontade d’essa gente; é muita somma de ignorancia. Não sabem. Não sabem nada. Elles não são maus, mas são umas cavalgaduras!

— ­Bem, então essas obras, amigo Vicente, dizia-lhe Carlos, tirando o relogio e despedindo-se d’elle com um valente shakehands, veja se me andam. Não lh’o peço como proprietario, é como correligionario.

— ­D’aqui a dois dias ha de v. ex.ª vêr a differença, respondia o mestre d’obras, desbarretando-se.

No Ramalhete, pontualmente ao meio dia, tocava a sineta do almoço. Carlos encontrava quasi sempre o avô já na sala de jantar, acabando de percorrer algum jornal junto ao fogão, onde a tepida suavidade d’aquelle fim de outono não permittia accender lume, mas verdejando todo de plantas d’estufa.

Em redor, nos aparadores de carvalho lavrado, rebrilhavam suavemente, no seu luxo macisso e sobrio, as baixellas antigas; pelas tapeçarias ovaes dos muros apainelados corriam scenas de ballada, caçadores medivaes soltando o falcão, uma dama entre pagens alimentando os cysnes de um lago, um cavalleiro de viseira callada seguindo ao longo d’um rio; e contrastando com o tecto escuro de castanho entalhado a meza resplandecia com as flôres entre os crystaes.

O reverendo Bonifacio, que desde que se tornara dignatario da Egreja comia com os senhores, lá estava já, magestosamente sentado sobre a alvura nevada da toalha, á sombra de algum grande ramo. Era alli, no aroma das rosas, que o veneravel gato gostava de lamber, com o seu vagar estupido, as sopas de leite servidas n’um covilhete de Strasburgo, depois agachava-se, traçava por diante do peito a fofa pluma da sua cauda, e, de olhos cerrados, os bigodes tesos, todo elle uma bola entufada de pello branco malhado de ouro, gosava de leve uma sesta macia.

Affonso, — ­como confessava, sorrindo e humilhado — ­ía-se tornando com a velhice um gourmet exigente; e acolhia, com uma concentração de critico, as obras d’arte do chef francez que tinham agora, um cavalheiro de mau genio, todo bonapartista, muito parecido com o imperador, e que se chamava Mr. Theodore. Os almoços no Ramalhete eram sempre delicados e longos; depois, ao café, ficavam ainda conversando; e passava da uma hora, da hora e meia, quando Carlos, com uma exclamação, precipitando-se sobre relogio, se lembrava do seu consultorio. Bebia um calice de Chartreuse, accendia á pressa um charuto:

— ­Ao trabalho, ao trabalho! exclamava.

E o avô, enchendo de vagar o seu cachimbo, invejava-lhe aquella occupação, emquanto elle ficava alli a vadiar toda a manhã...

— ­Quando esse eterno laboratorio estiver acabado, talvez vá para lá passar um bocado, occupar-me de chimica.

— ­E ser talvez um grande chimico. O avô tem já a feitio.

O velho sorria.

— ­Esta carcassa já não dá nada, filho. Está pedindo eternidade!

— ­Quer alguma cousa da Baixa, de Babylonia? perguntava Carlos, abotoando á pressa as suas luvas de governar.

— ­Bom dia de trabalho.

— ­Pouco provavel...

E no dog-cart, com aquella linda egoa, a Tunante, ou no phaeton com que maravilhava Lisboa, Carlos lá partia em grande estylo para a Baixa, para «o trabalho.»

O seu gabinete, no consultorio, dormia n’uma paz tepida entre os espessos velludos escuros, na penumbra que faziam as stores de seda verde corridas. Na sala, porém, as tres janellas abertas bebiam á farta a luz; tudo alli parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braços, amaveis e convidativas; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as Canções de Gounod; mas não apparecia jámais um doente. E Carlos, — ­exactamente como o creado que, na ociosidade da antecamara, dormitava sobre o Diario de Noticias, acaçapado na banqueta — ­accendia um cigarro Laferme, tomava uma Revista, e estendia-se no divan. A prosa porém dos artigos estava como embebida do tedio moroso do gabinete: bem depressa bocejava, deixava caír o volume.

Do Rocio, o ruido das carroças, os gritos errantes de pregões, o rolar dos americanos, subiam, n’uma vibração mais clara, por aquelle ar fino de novembro: uma luz macia, escorregando docemente do azul ferrete, vinha doirar as fachadas enxovalhadas, as cópas mesquinhas das arvores de municipio, a gente vadiando pelos bancos: e essa sussurração lenta de cidade preguiçosa, esse ar avelludado de clima rico, pareciam ir penetrando pouco a pouco n’aquelle abafado gabinete e resvelando pelos velludos pesados, pelo verniz dos moveis, envolver Carlos n’uma indolencia e n’uma dormencia... Com a cabeça na almofada, fumando, alli ficava, n’essa quietação de sesta, n’um scismar que se ía desprendendo, vago e tenue, como o tenuo e leve fumo que se eleva d’uma brazeira meia apagada; até que com um esforço sacudia este torpor, passeiava na sala, abria aqui e além pelas estantes um livro, tocava no piano dois compassos de walsa, espriguiçava-se — ­e, com os olhos nas flores do tapete, terminava por decidir que aquellas duas horas de consultorio eram estupidas!

— ­Está ahi o carro? ía perguntar ao creado.

Accendia bem depressa outro charuto, calçava as luvas, descia, bebia um largo sorvo de luz e ar, tomava as guias e largava, murmurando comsigo:

— ­Dia perdido!

Foi uma d’essas manhãs que preguiçando assim no sophá com a Revista dos Dois Mundos na mão, elle ouviu um rumor na antecamara, e logo uma voz bem conhecida, bem querida, que dizia por trás do reposteiro:

— ­Sua Alteza Real está visivel?

— ­Oh Ega! gritou Carlos, dando um salto do sophá.

E cahiram nos braços um do outro, beijando-se na face, enternecidos.

— ­Quando chegaste tu?

— ­Esta manhã. Caramba! exclamava Ega, procurando pelo peito, pelos hombros, o seu quadrado de vidro, e entalando-o emfim no olho. Caramba! Tu vens esplendido d’esses Londres, d’essas civilisações superiores. Estás com um ar Renascença, um ar Valois... Não ha nada como a barba toda!

Carlos ria, abraçando-o outra vez.

— ­E d’onde vens tu, de Celorico?

— ­Qual Celorico! Da Foz. Mas doente, menino, doente... O figado, o baço, uma infinidade de visceras compromettidas. Emfim, doze annos de vinhos e aguas ardentes...

Depois fallaram das viagens de Carlos, do Ramalhete, da demora do Ega em Lisboa... Ega vinha para sempre. Tinha dito do alto da diligencia, ás varzeas de Celorico, o adeus de eternidade.

— ­Imagina tu, Carlos, amigo, a historia deliciosa que me succede com minha mãe... Depois de Coimbra, naturalmente, sondei-a a respeito de vir viver para Lisboa, confortavelmente, com uns dinheiros largos. Qual, não caíu! Fiquei na quinta, fazendo epigrammas ao padre Seraphim e a toda a côrte do céu. Chega julho, e apparece nos arredores uma epidemia de anginas. Um horror, creio que vocês lhe chamam diphtericas... A mamã salta immediatamente à conclusão que é a minha presença, a presença do atheo, do demagogo, sem jejuns e sem missa, que offendeu Nosso Senhor e attrahiu o flagello. Minha irmã concorda. Consultam o padre Seraphim. O homem, que não gosta de me vêr na quinta, diz que é possivel que haja indignação do Senhor — ­e minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas que não esteja alli chamando a ira divina. No dia seguinte bati para a Foz...

— ­E a epidemia...

— ­Desappareceu logo, disse o Ega, começando a puxar devagar dos dedos magros uma longa luva côr de canario.

Carlos mirava aquellas luvas do Ega; e as polainas de casemira; e o cabello que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim uma ferradura de opalas! Era outro Ega, um Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó d’arroz — ­e Carlos deixou emfim escapar a exclamação impaciente que lhe bailava nos labios:

— ­Ega, que extraordinario casaco!

Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o antigo bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliça, uma sumptuosa pelliça de principe russo, agasalho de trenò e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados á Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de thisico uma rica e fôfa espessura de pelles de marta.

— ­É uma boa pelliça, hein? disse elle logo, erguendo-se, abrindo-a, exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss... Beneficios da epidemia.

— ­Como podes tu supportar isso?

— ­É um bocado pesada, mas tenho andado constipado.

Tornou a recostar-se no sophá, adiantando o sapato de verniz muito bicudo, e, de monocolo no olho, examinou o gabinete.

— ­E tu que fazes? conta-me lá... Tens isto explendido!

Carlos fallou dos seus planos, de altas idéas de trabalho, das obras do laboratorio...

— ­Um momento, quanto te custou tudo isto? exclamou o Ega interrompendo-o, erguendo-se para ir apalpar o velludo dos reposteiros, mirar os torneados da secretária de pau preto.

— ­Não sei. O Villaça é que deve saber...

E Ega, com as mãos enterradas nos vastos bolsos da pelliça, inventariando o gabinete, fazia considerações:

— ­O velludo dá seriedade... E o verde escuro é a côr suprema, é a côr esthetica... Tem a sua expressão propria, enternece e faz pensar... Gosto d’este divan. Movel de amor...

Foi entrando para a sala dos doentes, de vagar, de luneta no olho, estudando os ornatos.

— ­Tu és o grandioso Salomão, Carlos! O papel é bonito... E o cretonesinho agrada-me.

Apalpou-o tambem. Uma begonia, manchada da sua ferrugem de prata, n’um vaso de Rouen, interessou-o. Queria saber o preço de tudo; e diante do piano, olhando o livro de musica aberto, as Canções de Gounod, teve uma surpreza enternecida:

— ­Homem, é curioso... Cá me apparece! A Barcarolla! É deliciosa, hein?...

Dites, la jeune belle,
Ou voulez-vous aller?
La voile...

Estou um bocado rouco... Era a nossa canção na Foz!

Carlos teve outra exclamação, e crusando os braços diante d’elle:

— ­Tu estás extraordinario, Ega! Tu és outro Ega!... A proposito da Foz... Quem é essa Madame Cohen, que estava tambem na Foz, de quem tu, em cartas successivas, verdadeiros poemas, que recebi em Berlin, na Haia, em Londres, me fallavas como os arrobos do Cantico dos Canticos?

Um leve rubor subiu ás faces do Ega. E limpando negligentemente o monocolo ao lenço de seda branca:

— ­Uma judia. Por isso usei o lyrismo biblico. É a mulher do Cohen, has de conhecer, um que é director do Banco Nacional... Démos-nos bastante. É sympathica... Mas o marido é uma besta... Foi uma flitartion de praia. Voila tout.

Isto era dito aos bocados, passeiando, puchando o lume ao charuto, e ainda córado.

— ­Mas conta-me tu, que diabo, que fazem vocês no Ramalhete? O avô Affonso? Quem vae por lá?...

No Ramalhete, o avô fazia o seu whist com os velhos parceiros. Ia o D. Diogo, o decrepito leão, sempre de rosa ao peito, e frisando ainda os bigodes... Ia o Sequeira, cada vez mais atarracado, a estoirar de sangue, á espera da sua apoplexia... Ia o conde de Steinbroken...

— ­Não conheço. Refugiado?... Polaco?...

— ­Não, ministro da Filandia... Queria-nos alugar umas cocheiras e complicou esta simples transacção com tantas finuras diplomaticas, tantos documentos, tantas cousas com o sello real da Filandia, que o pobre Villaça aturdido, para se desembaraçar, remetteu-o ao avô. O avô, desnorteado tambem, offereceu-lhe as cocheiras de graça. Steinbroken considera isto um serviço feito ao rei da Filandia, á Filandia, vae visitar o avô, em grande estado, com o secretario da legação, o consul, o vice-consul...

— ­Isso é sublime!

— ­O avô convida-o a jantar... E como o homem é muito fino, um gentleman, enthusiasta da Inglaterra, grande entendedor de vinhos, uma auctoridade no wisth, o avô adopta-o. Não sae do Ramalhete.

— ­E de rapazes?

De rapazes, apparecia Taveira, sempre muito correcto, empregado agora no Tribunal de Contas: um Cruges, que o Ega não conhecia, um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de genio; o marquez de Souzellas...

— ­Não ha mulheres?

— ­Não ha quem as receba. É um covil de solteirões. A viscondessa, coitada...

— ­Bem sei. Um apopleté...

— ­Sim, uma hemorragia cerebral. Ah, temos tambem o Silveirinha, chegou-nos ultimamente o Silveirinha...

— ­O de Resende, o cretino?

— ­O cretino. Enviuvou, vem da Madeira, ainda um bocado thisico, todo carregado de luto... Um funebre.

O Ega, repoltreado, com aquelle ar de tranquilla e solida felicidade que Carlos já notara, disse puchando lentamente os punhos:

— ­É necessario reorganisar essa vida. Precisamos arranjar um cenaculo, uma bohemiasinha dourada, umas soirées de inverno, com arte, com litteratura... Tu conheces o Craft?

— ­Sim, creio que tenho ouvido fallar...

Ega teve um grande gesto. Era indispensavel conhecer o Craft! O Craft era simplesmente a melhor cousa que havia em Portugal...

— ­É um inglez, uma especie de doido?...

Ega encolheu os hombros. Um doido!... Sim, era essa a opinião da rua dos Fanqueiros; o indigena, vendo uma originalidade tão forte como a de Craft, não podia explical-a senão pela doidice. O Craft era um rapaz extraordinario!... Agora tinha elle chegado da Suecia, de passar tres mezes com os estudantes de Upsala. Estava tambem na Foz... Uma individualidade de primeira ordem!

— ­É um negociante do Porto, não é?

— ­Qual negociante do Porto! exclamou o Ega erguendo-se, franzindo a face, enojado de tanta ignorancia. O Craft é filho d’um clergiman da egreja ingleza do Porto. Foi um tio, um negociante de Calcutá ou d’Australia, um Nababo, que lhe deixou a fortuna. Uma grande fortuna. Mas não negoceia, nem sabe o que isso é. Dá largas ao seu temperamento byroneano, é o que faz. Tem viajado por todo o universo, collecciona obras d’arte, bateu-se como voluntario na Abyssinia e em Marrocos, emfim vive, vive na grande, na forte, na heroica accepção da palavra. É necessario conhecer o Craft. Vaes-te babar por elle... Tens razão, caramba, está calor.

Desembaraçou-se da opulenta pelliça, e appareceu em peitilho de camisa.

— ­O que! tu não trazias nada por baixo? exclamou Carlos. Nem collete?

— ­Não; então não a podia aguentar... Isto é para o effeito moral, para impressionar o indigena... Mas, não ha negal-o, é pesada!

E immediatamente voltou á sua idéa: apenas Craft chegasse do Porto relacionavam-se, organisava-se um Cenaculo, um Decameron d’arte e dilletantismo, rapazes e mulheres — ­tres ou quatro mulheres para cortarem, com a graça dos decotes, a severidade das philosophias...

Carlos ria-se d’esta idéa do Ega. Tres mulheres de gosto e de luxo, em Lisboa, para adornar um cenaculo! Lamentavel illusão de um homem de Celorico! O marquez de Souzella tinha tentado, e para uma vez só, uma cousa bem mais simples — ­um jantar no campo com actrizes. Pois fôra o escandalo mais engraçado e mais caracteristico: uma não tinha creada e queria levar comsigo para a festa uma tia e cinco filhos; outra temia que, acceitando, o brazileiro lhe tirasse a mezada; uma consentiu, mas o amante, quando soube, deu-lhe uma cóça. Esta não tinha vestido para ir; aquella pretendia que lhe garantissem uma libra; houve uma que se escandalisou com o convite como com um insulto. Depois, os chulos, os queridos, os pôlhos, complicaram medonhamente a questão; uns exigiam ser convidados, outros tentavam desmanchar a festa; houve partidos, fizeram-se intrigas, — ­emfim esta cousa banal, um jantar com actrizes, resultou em o Tarquinio do Gymnasio levar uma facada...

— ­E aqui tens tu Lisboa.

— ­Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem mulheres, importam-se, que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, idéas, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilisação custa-nos carissima com os direitos da alfandega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas... Nós julgamo-nos civilisados como os negros de S. Thomé se suppõem cavalheiros, se suppõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha do patrão... Isto é uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?

Desembaraçado da magestade que lhe dava a pelissa o antigo Ega reapparecia, perorando com os seus gestos aduncos de Mephistopheles em verve, lançando-se pela sala como se fosse voar ao vibrar as suas grandes phrases, n’uma lucta constante com o monocolo, que lhe caía do olho, que elle procurava pelo peito, pelos hombros, pelos rins, retorcendo-se, deslocando-se, como mordido por bichos. Carlos animava-se tambem, a fria sala aquecia; discutiam o Naturalismo, Gambetta, o Nihilismo; depois, com ferocidade e á uma, malharam sobre o paiz...

Mas o relogio ao lado bateu quatro horas; immediatamente Ega saltou sobre a pelissa, sepultou-se n’ella, aguçou o bigode ao espelho, verificou a pose, e, encouraçado nos seus alamares, sahio com um arsinho de luxo e d’aventura.

— ­John, disse Carlos que o achava esplendido e o ia seguindo ao patamar, onde estás tu? — ­No Universal, esse sanctuario!

Carlos abominava o Universal, queria que elle viesse para o Ramalhete.

— ­Não me convém...

— ­Em todo o caso vaes hoje lá jantar, vêr o avô.

— ­Não posso. Estou compromettido com a besta do Cohen... Mas vou lá ámanhã almoçar.

Já nos degraus da escada, voltou-se, entalou o monocolo, gritou para cima:

— ­Tinha-me esquecido dizer-te, vou publicar o meu livro!

— ­O quê! está prompto? exclamou Carlos, espantado.

— ­Está esboçado, á brocha larga...

O Livro do Ega! Fôra em Coimbra, nos dois ultimos annos, que elle começára a fallar do seu livro, contando o plano, soltando titulos de capitulos, citando pelos cafés phrases de grande sonoridade. E entre os amigos do Ega discutia-se já o livro do Ega como devendo iniciar, pela fórma e pela idéa, uma evolução litteraria. Em Lisboa (onde elle vinha passar as ferias e dava ceias no Silva) o livro fôra annunciado como um acontecimento. Bachareis, contemporaneos ou seus condiscipulos, tinham levado de Coimbra, espalhado pelas provincias e pelas ilhas a fama do livro do Ega. Já de qualquer modo essa noticia chegára ao Brazil... E sentindo esta anciosa espectativa em torno do seu livro — ­o Ega decidira-se emfim a escrevel-o.

Devia ser uma epopêa em prosa, como elle dizia, dando, sob episodios symbolicos, a historia das grandes phases do Universo e da Humanidade. Intitulava-se Memorias d’um Atomo, e tinha a fórma d’uma autobiographia. Este atomo (o atomo do Ega, como se lhe chamava a serio em Coimbra) apparecia no primeiro capitulo, rolando ainda no vago das Nebuloses primitivas: depois vinha embrulhado, faisca candente, na massa de fogo que devia ser mais tarde a Terra: emfim, fazia parte da primeira folha de planta que surgiu da crosta ainda molle do globo. Desde então, viajando nas incessantes transformações da substancia, o atomo do Ega entrava na rude structura do Orango, pae da humanidade — ­e mais tarde vivia nos labios de Platão. Negrejava no burel dos santos, refulgia na espada dos heroes, palpitava no coração dos poetas. Gota de agua nos lagos de Galiléa, ouvira o fallar de Jesus, aos fins da tarde, quando os apostolos recolhiam as redes; nó de madeira na tribuna da Convenção, sentira o frio da mão de Robespierre. Errara nos vastos anneis de Saturno; e as madrugadas da terra tinham-n’o orvalhado, petala resplandecente de um dormente e languido lyrio. Fôra omnipresente, era omnisciente. Achando-se finalmente no bico da penna do Ega, e cançado d’esta jornada atravez do Ser, repousava — ­escrevendo as suas Memorias... Tal era este formidavel trabalho — ­de que os admiradores do Ega, em Coimbra, diziam, pensativos e como esmagados de respeito:

— ­É uma Biblia!

No escriptorio de Affonso da Maia ainda durava, apesar de ser tarde, a partida de whist. A mesa estava ao lado da chaminé, onde a chamma morria nos carvões escarlates, no seu recanto costumado, abrigada pelo biombo japonez, por causa da bronchite de D. Diogo e do seu horror ao ar.

Esse velho dandy, — ­a quem as damas de outras eras chamavam o «Lindo Diogo», gentil toureiro que dormira n’um leito real — ­acabava justamente de ter um dos seus accessos de tosse, cavernosa, aspera, dolorosa, que o sacudiam como uma ruina, que elle abafava no lenço, com as veias inchadas, rôxo até á raiz dos cabellos.

Mas passára. Com a mão ainda tremula, o decrepito leão limpou as lagrimas que lhe embaciavam os olhos avermelhados, compoz a rosa de musgo na botoeira da sobrecasaca, tomou um golo da sua agua chasada, e perguntou a Affonso, seu parceiro, n’uma voz rouca e surda:

— ­Paus, hein?

E de novo, sobre o panno verde, as cartas foram cahindo n’um d’aquelles silencios que se seguiam ás tosses de D. Diogo. Sentia-se só a respiração assobiada, quasi silvante, do general Sequeira, muito infeliz essa noite, desesperado com o Villaça seu parceiro, resingão, e com todo o sangue na face.

Um tom fino retiniu, o relogio Luiz XV foi ferindo alegremente, vivamente, a meia noite; — ­depois a toada argentina do seu minuete vibrou um momento e morreu. Houve de novo um silencio. Uma renda vermelha recobria os globos de dois grandes candieiros Carcel; e a luz assim coada, cahindo sobre os damascos vermelhos das paredes, dos assentos, fazia como uma doce refracção côr de rosa, um vaporoso de nuvem em que a sala se banhava e dormia: só, aqui e além, sobre os carvalhos sombrios das estantes, rebrilhava em silencio o ouro d’um Sèvres, uma pallidez de marfim, ou algum tom esmaltado de velha majolica.

— ­O que! ainda encarniçados! exclamou Carlos que abrira o reposteiro, entrava, e com elle o rumor distante de bolas de bilhar.

Affonso, que recolhia a sua vasa, voltou logo a cabeça, a perguntar com interesse:

— ­Como vae ella? Está socegada?

— ­Está muito melhor!

Era a primeira doente grave de Carlos, uma rapariga de origem alsacianna, casada com o Marcellino padeiro, muito conhecida no bairro pelos seus bellos cabellos, loiros, e penteados sempre em tranças soltas. Tinha estado á morte com uma pneumonia; e apesar de melhor, como a padaria ficava defronte, Carlos ainda ás vezes á noite atravessava a rua para a ir vêr, tranquillisar o Marcellino, que, defronte do leito e de gabão pelos hombros, suffocava soluços d’amante, escrevinhando no livro de contas.

Affonso interessara-se anciosamente por aquella pneumonia; e agora estava realmente agradecido á Marcellina por ter sido salva por Carlos. Fallava d’ella commovido; gabava-lhe a linda figura, o aceio alsacianno, a prosperidade que trouxera á padaria... Para a convalescença, que se approximava, já lhe mandára até seis garrafas de Chateau-Margaux.

— ­Então fóra de perigo, inteiramente fóra de perigo? — ­perguntou Villaça, com os dedos na caixa do rapé, sublinhando muito a sua sollicitude.

— ­Sim, quasi rija — ­disse Carlos, que se approximara da chaminé, esfregando as mãos, arrepiado.

É que a noite, fóra, estava regelada! Desde o anoitecer geava, d’um céu fino e duro, transbordando de estrellas que rebrilhavam como pontas afiadas d’aço; e nenhum d’aquelles cavalheiros, desde que se entendia, conhecera jámais o thermometro tão baixo. Sim, Villaça lembrava-se d’um janeiro peor no inverno de 64...

— ­É necessario carregar no punch, hein, general! — ­exclamou Carlos, batendo galhofeiramente nos hombros macissos do Sequeira.

— ­Não me opponho, rosnou o outro, que fixava com concentração e rancor um valete de copas sobre a meza.

Carlos, ainda com frio, remexeu, esfuracou os carvões: uma chuva d’oiro cahiu por baixo, uma chamma mais forte ressaltou, rugiu, alegrando tudo, avermelhando em redor as pelles de urso onde o Reverendo Bonifacio, espapado, torrava ao calor, ronronava de gôso.

— ­O Ega deve estar radiante, dizia Carlos com os pés á chamma. Tem, emfim, justificada a pellissa. A proposito, algum dos senhores tem visto o Ega estes ultimos dias?

Ninguem respondeu, no interesse subito que causava a cartada. A longa mão de D. Diogo recolhia de vagar a vasa — ­e languidamente, no mesmo silencio, soltou uma carta de paus.

— ­Ó Diogo! ó Diogo! gritou Affonso, estorcendo-se, como se o trespassasse um ferro.

Mas conteve-se. O general, cujos olhos despediam faiscas, collocou o seu valete; Affonso, profundamente infeliz, separou-se do rei de paus; Villaça bateu de estalo com o az. E immediatamente foi em redor uma discussão tremenda sobre a puchada de D. Diogo — ­em quanto Carlos, a quem as cartas sempre enfastiavam, se debruçava a coçar o ventre fofo do veneravel Reverendo.

— ­Que perguntavas tu, filho? disse emfim Affonso erguendo-se, ainda irritado, a buscar tabaco para o cachimbo, sua consolação nas derrotas. O Ega? Não, ninguem o viu, não tornou a apparecer! Está tambem um bom ingrato, esse John...

Ao nome do Ega, Villaça, parando de baralhar as cartas, erguera a face curiosa:

— ­Então sempre é certo que elle vae montar casa?

Foi Affonso que respondeu, sorrindo e accendendo o cachimbo:

— ­Montar casa, comprar coupé, deitar libré, dar soirées litterarias, publicar um poema, o diabo!

— ­Elle esteve lá no escriptorio, dizia Villaça recomeçando a baralhar. Esteve lá a indagar o que tinha custado o consultorio, a mobilia de velludo, etc. O velludo verde deu-lhe no gôto... Eu, como é um amigo da casa, lá lhe prestei informações, até lhe mostrei as contas. — ­E respondendo a uma pergunta do Sequeira: — ­Sim, a mãe tem dinheiro, e creio que lhe dá o bastante. Que em quanto a mim, elle vem-se metter na politica. Tem talento, falla bem, o pae já era muito regenerador... Alli ha ambição.

— ­Alli ha mulher, disse D. Diogo, collocando com peso esta decisão e accentuando-a com uma caricia languida á ponta frisada dos bigodes brancos. Lê-se-lhe na cara, basta vêr-lhe a cara... Alli ha mulher.

Carlos sorria, gabando a penetração de D. Diogo, o seu fino olho á Balzac; e Sequeira, logo, franco como velho soldado, quiz saber quem era a Dulcinea. Mas o velho dandy declarou, da profundidade da sua experiencia, que essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel não se saberem. Depois passando os dedos magros e lentos pela face, deixou cahir d’alto e com condescendencia este juizo:

— ­Eu gosto do Ega, tem apresentação; sobretudo tem degagè...

Tinham recebido as cartas, fez-se um silencio na meza. O general, vendo o seu jogo, soltou um grunhido surdo, arrebatou o cigarro do cinzeiro, e puxou-lhe uma fumaça furiosa.

— ­Os senhores são muito viciosos, vou vêr a gente do bilhar, disse Carlos. Deixei o Steinbroken engalfinhado com o marquez, a perder já quatro mil réis. Querem o punch aqui?

Nenhum dos parceiros respondeu.

E em torno do bilhar Carlos encontrou o mesmo silencio de solemnidade. O marquez, estirado sobre a tabella, com a perna meia no ar, o começo de calva alvejando á luz crua que cahia dos abat-jours, de porcelana, preparava a carambola decisiva. Cruges, que apostára por elle, deixára o divan, o cachimbo turco, e, coçando com um gesto nervoso a grenha crespa que lhe ondeava até á gola do jaquetão, vigiava a bola inquieto, com os olhinhos piscos, o nariz espetado. Do fundo da sala, destacando em preto, o Silveirinha, o Eusebiosinho de S.ta Olavia, estendia tambem o pescoço, affogado n’uma gravata de viuvo de merino negro e sem collarinho, sempre macambuzio, mais mollengo que outr’ora, com as mãos enterradas nos bolsos — ­tão funebre que tudo n’elle parecia complemento do luto pesado, até o preto do cabello chato, até o preto das lunetas de fumo. Junto ao bilhar, o parceiro do marquez, o conde Steinbroken, esperava: e apesar do susto, da emoção d’homem do norte aferrado ao dinheiro, conservava-se correcto, encostado ao taco, sorrindo, sem desmanchar a sua linha britanica, — ­vestido como um inglez, inglez tradicional d’estampa, com uma sobrecasaca justa de manga um pouco curta, e largas calças de xadrez sobre sapatões de tacão raso.

— ­Hurrah! gritou de repente Cruges. Os dez tostõesinhos para cá, Silveirinha!

O marquez carambolára, ganhando a partida, e triumphava tambem:

— ­Você trouxe-me a sorte, Carlos!

Steinbroken depozera logo o taco, e alinhava já sobre a tabella, lentamente, uma a uma, as quatro placas perdidas.

Mas o marquez, de giz na mão, reclamava-o para outras refregas, esfaimado d’ouro filandez.

— ­Nada mach!... Vôcê hoje ’stá têrivêl! dizia o diplomata, no seu portuguez fluente, mas de accento barbaro.

O marquez insistia, plantado diante d’elle, de taco ao hombro como uma vara de campino, dominando-o com a sua macissa, desempenada estatura. E ameaçava-o de destinos medonhos n’uma voz possante habituada a ressoar nas lezirias; queria-o arruinar ao bilhar, forçal-o a empenhar aquelles bellos anneis, leval-o elle, ministro da Filandia e representante d’uma raça de reis fortes, a vender senhas á porta da Rua dos Condes!

Todos riam; e Steinbroken tambem, mas com um riso franzido e difficil, fixando no marquez o olhar azul-claro, claro e frio, que tinha no fundo da sua myopia a dureza d’um metal. Apesar da sua sympathia pela illustre casa de Souzella, achava estas familiaridades, estas tremendas chalaças, incompativeis com a sua dignidade e com a dignidade da Filandia. O marquez, porém, coração d’ouro, abraçava-o já pela cinta, com expansão:

— ­Então se não quereis mais bilhar, um bocadinho de canto, Steinbroken amigo!

A isto o ministro accedeu, affavel, preparando-se logo, dando caricias ligeiras ás suissas, e aos anneis do cabello d’um loiro de espiga desbotada.

Todos os Steinbrokens, de paes a filhos (como elle dissera a Affonso) eram bons barytonos: e isso trouxera á familia não poucos proventos sociaes. Pela voz captivara seu pae o velho rei Rudolpho III, que o fizera chefe das caudelarias, e o tinha noites inteiras nos seus quartos, ao piano, cantando psalmos lutheranos, coraes escolares, sagas da Dallecarlia — ­em quanto o taciturno monarcha cachimbava e bebia, até que saturado de emoção religiosa, saturado de cerveja preta, tombava do sophá, soluçando e babando-se. Elle mesmo, Steinbroken, levara parte da sua carreira ao piano, já como addido, já como segundo secretario. Feito chefe de missão, absteve-se: foi só quando vio o Figaro celebrar repetidamente as walsas do principe Artoff, embaixador da Russia em Paris, e a voz de basso do conde de Baspt, embaixador d’Austria em Londres, que elle, seguindo tão altos exemplos, arriscou, aqui e alem, em soirées mais intimas, algumas melodias filandezas. Emfim cantou no Paço. E desde então exerceu com zelo, com formalidades, com praxes, o seu cargo de «barytono plenipotenciario,» como dizia o Ega. Entre homens, e com os reposteiros corridos, Steinbroken não duvidava todavia cantarolar o que elle chamava «cançonetas brejêras» — ­o Amant d’Amanda, ou uma certa ballada ingleza:

On the Serpentine,
Oh my Caroline...
Oh!

Este oh! como elle o expellia, gemido, bem puxado, n’um movimento de batuque, expressivo e todavia digno... Isto entre rapazes e com os reposteiros fechados.

N’essa noite, porém, o marquez, que o conduzia pelo braço á sala do piano, exigia uma d’aquellas canções da Filandia, de tanto sentimento e que lhe faziam tão bem á alma...

— ­Uma que tem umas palavrinhas de que eu gosto, frisk, gluzk... La ra lá, lá, lá!

— ­A Primavera, disse o diplomata sorrindo.

Mas antes de entrar na sala, o marquez soltou o braço de Steinbroken, fez um signal ao Silveirinha para o fundo do corredor — ­e ahi, sob um sombrio painel de Santa Magdalena no deserto penitenciando-se e mostrando nudezas ricas de nympha lubrica, interpellou-o quasi com aspereza:

— ­Vamos nós a saber. Então, decide-se ou não?

Era uma negociação que havia semanas se arrastava entre elles, a respeito d’uma parelha d’egoas. Silveirinha nutria o desejo de montar carruagem; e o marquez procurava vender-lhe umas egoas brancas, a que elle dizia «ter tomado enguiço, apesar de serem dois nobres animaes». Pedia por ellas um conto e quinhentos mil réis. Silveirinha fôra avisado pelo Sequeira, por Travassos, por outros entendedores, que era uma espiga: o marquez tinha a sua moral propria para negocios de gado, e exultaria em intrujar um pichote. Apesar de advertido, Eusebio cedendo á influencia da grossa voz do marquez, da robustez do seu phisico, da antiguidade do seu titulo, não ousava recusar. Mas hesitava; e n’essa noite deu a resposta usual de forreta, coçando o queixo, cosido ao muro:

— ­Eu verei, marquez... Um conto e quinhentos é dinheiro...

O marquez ergueu dois braços ameaçadores como duas trancas:

— ­Homem, sim ou não! Que diabo... Dois animaes que são duas estampas... Irra! Sim ou não!

Eusebio ageitou as lunetas, rosnou:

— ­Eu verei... Elle é dinheiro. Sempre é dinheiro...

— ­Queria você, talvez, pagal-as com feijões? Você leva-me a commetter um excesso!

O piano resoou, em dois accordes cheios, sob os dedos do Cruges; e o marquez, baboso por musica, immediatamente largou a questão das egoas, recolheu em pontas de pés. Eusebiosinho ainda ficou a remoer, a coçar o queixo; emfim, ás primeiras notas de Steinbroken, veiu pousar como uma sombra silenciosa entre a hombreira e o reposteiro.

Afastado do piano segundo o seu costume, curvado, com a cabelleira como pousada ás costas, Cruges feria o acompanhamento, d’olhos cravados no livro de Melodias Filandezas. Ao lado, empertigado, quasi official, com o lenço de seda na mão, a mão fincada contra o peito, Steinbroken soltava um canto festivo, n’um movimento de tarantella triumphante, em que passavam, como um entrechocar de seixos, esses bocados de palavras de que o marquez gostava, frisk, slécht, clikst, glukst. Era a Primavera — ­fresca e silvestre, primavera do norte em paiz de montanhas, quando toda uma aldêa dança em córos sob os fuscos abetos, a neve se derrete em cascatas, um sol pallido avelluda os musgos, e a brisa traz o aroma das resinas... Nos graves e cheios, as cantoneiras de Steinbroken ruborisavam-se, inchavam. Nos tons agudos todo elle se ía alçando sobre a ponta dos pés, como levado no compasso vivo; despegava então a mão do peito, alargava um gesto, as bellas joias dos seus anneis faiscavam.

O marquez, com as mãos esquecidas nos joelhos, parecia beber o canto. Na face de Carlos passava um sorriso enternecido pensando em Madame Rughel, que viajara na Filandia, e cantava ás vezes aquella Primavera nas suas horas de sentimentalismo flamengo...

Steinbroken soltou um stacato agudo, isolado como uma voz n’um alto, — ­e immediatamente, afastando-se do piano, passou o lenço sobre as fontes, sobre o pescoço, rectificou com um puchão a linha da sobrecasaca, e agradeceu o acompanhamento ao Cruges n’um silencioso shake-hands.

— ­Bravo! bravo! berrava o marquez, batendo as mãos como malhos.

E outros applausos resoaram á porta, dos parceiros do whist, que tinham findado a partida. Quasi immediatamente os escudeiros entravam com um serviço frio de croquettes e sandwiches, offerecendo St. Emilion ou Porto; e sobre uma meza, entre os renques de calices, a puncheira fumegou n’um aroma doce e quente de cognac e limão.

— ­Então, meu pobre Steinbroken, exclamou Affonso, vindo-lhe bater amavelmente no hombro, ainda dá d’esses bellos cantos a estes bandidos, que o maltratam assim ao bilhar?

— ­Fui essfôladito, si, essfôladito. Agradecido, nô, prefiro um copita Porto...

— ­Hoje fomos nós as victimas, disse-lhe o general respirando com delicia o seu punch.

— ­Você tãbem, meu genêral?

— ­Sim, senhor, tambem me cascaram...

E que dizia o amigo Steinbroken ás noticias da manhã? perguntava Affonso. A queda de Mac-Mahon, a eleição de Grevy... O que o alegrava n’isto, era o desapparecimento definitivo do antipathico senhor de Broglie e da sua clique. A impertinencia d’aquelle academico estreito, querendo impôr a opinião de dois ou tres salões doutrinarios á França inteira, a toda uma Democracia! Ah, o Times cantava-lh’as!

— ­E o Punch? Não viu o Punch? Oh, delicioso!...

O ministro pousara o calice, e esfregando cautelosamente as mãos disse n’uma meia voz grave a sua phrase, a phrase definitiva com que julgava todos os acontecimentos que apparecem em telegrammas:

— ­É gràve... É eqsessivemente gràve...

Depois fallou-se de Gambetta; e como Affonso lhe attribuia uma dictadura proxima, o diplomata tomou mysteriosamente o braço de Sequeira, murmurou a palavra suprema com que definia todas as personalidades superiores, homens d’estado, poetas, viajantes ou tenores.

— ­É um homẽ mûto forte. É um homẽ eqsessivemente forte!

— ­O que elle é, é um ronha! exclamou o general, escorropichando o seu calice.

E todos tres deixaram a sala, discutindo ainda a republica — ­em quanto Cruges continuava ao piano, vagueando por Mendelssohn e por Chopin, depois de ter devorado um prato de croquettes.

O marquez e D. Diogo, sentados no mesmo sophà, um com a sua chasada d’invalido, outro com um copo de S.t Emilion, a que aspirava o bouquet, fallavam tambem de Gambetta. O marquez gostava de Gambetta: fôra o unico que durante a guerra mostrara ventas de homem; lá que tivesse «comido» ou que «quizesse comer» como diziam, — ­não sabia nem lhe importava. Mas era teso! E o sr. Grevy tambem lhe parecia um cidadão serio, optimo para chefe do Estado...

— ­Homem de sala? perguntou languidamente o velho leão.

O marquez só o vira na Assembléa, presidindo e muito digno...

D. Diogo murmurou, com um melancolico desdem na voz, no gesto, no olhar:

— ­O que eu queria a toda essa canalha era a saude, marquez!

O marquez consolou-o, galhofeiro e amavel. Toda essa gente, parecendo forte por se occupar de cousas fortes, no fundo tinha asthma, tinha pedra, tinha gota... E o Dioguinho era um Hercules...

— ­Um Hercules! O que é, é que você apaparica-se muito... A doença é um mau habito em que a gente se põe. É necessario reagir... Você devia fazer gymnastica, e muita agua fria por essa espinha. Você, na realidade, é de ferro!

— ­Enferrujadote, enferrujadote... — ­replicou o outro, sorrindo e desvanecido.

— ­Qual enferrujadote! Se eu fosse cavallo ou mulher, antes o queria a você que a esses badamecos que por ahi andam meio podres... Já não ha homens da sua tempera, Dioguinho!

— ­Já não ha nada, disse o outro grave e convencido, e como o derradeiro homem nas ruinas d’um mundo.

Mas era tarde, ía-se agasalhar, recolher, depois de acabar a sua chasada. O marquez ainda se demorou, preguiçando no sophá, enchendo lentamente o cachimbo, dando um olhar áquella sala que o encantava com o seu luxo Luiz XV, os seus florídos e os seus dourados, as cerimoniosas poltronas de Beauvais feitas para a amplidão das anquinhas, as tapeçarias de Gobelins de tons desmaiados, cheias de galantes pastoras, longes de parques, laços e lãs de cordeiros, sombras d’idyllios mortos, transparecendo n’uma trama de seda... Áquella hora, no adormecimento que ía pesando, sob a luz suave e quente das velas que findavam, havia ali a harmonia e o ar de um outro seculo: e o marquez reclamou do Cruges um minuete, uma gavotta, alguma cousa que evocasse Versalhes, Maria Antonietta, o rythmo das bellas maneiras e o aroma dos empoados. Cruges deixou morrer sob os dedos a melodia vaga que estava diluindo em suspiros, preparou-se, alargou os braços — ­e atacou, com um pedal solemne, o Hymno da Carta. O marquez fugiu.

Villaça e Euzebiozinho conversavam no corredor, sentados n’uma das arcas baixas de carvalho lavrado.

— ­A fazer politica? perguntou-lhes o marquez ao passar.

Ambos sorriram; Villaça respondeu jocosamente:

— ­É necessario salvar a patria!

Eusebio pertencia tambem ao centro progressista, aspirava a influencia eleitoral no circulo de Resende, e alli ás noites no Ramalhete faziam conciliabulos. N’esse momento porém fallavam dos Maias: Villaça não duvidava confiar ao Silveirinha, homem de propriedade, visinho de S.ta Olavia, quasi creado com Carlos, certas cousas que lhe desagradavam na casa, onde a auctoridade da sua palavra parecia diminuir; assim, por exemplo, não podia approvar o ter Carlos tomado uma frisa de assignatura.

— ­Para que, exclamava o digno procurador, para que, meu caro senhor? Para lá não pôr os pés, para passar aqui as noites... Hoje diz que ha enthusiasmo, e elle ahi esteve. Tem ido lá, eu sei? duas ou três vezes... E para isto dá cá uns poucos de centos de mil réis. Podia fazer o mesmo com meia duzia de libras! Não, não é governo. No fim a frisa é para o Ega, para o Taveira, para o Cruges... Olhe, eu não me utiliso d’ella; nem o amigo. É verdade, que o amigo está de luto.

Eusebio pensou, com despeito, que se podia metter para o fundo da frisa — ­se tivesse sido convidado. E murmurou, sem conter um sorriso molle:

— ­Indo assim, até se podem encalacrar...

Uma tal palavra, tão humilhante, applicada aos Maias, á casa que elle administrava, escandalisou Villaça. Encalacrar! Ora essa!

— ­O amigo não me comprehendeu... Ha despezas inuteis, sim, mas, louvado Deus, a casa póde bem com ellas! É verdade que o rendimento gasta-se todo, até o ultimo ceitil; os cheques voam, voam, como folhas seccas; e até aqui o costume da casa foi pôr de lado, fazer bolo, fazer reserva. Agora o dinheiro derrete-se...

Eusebio rosnou algumas palavras sobre os trens de Carlos, os nove cavallos, o cocheiro inglez, os grooms... O procurador acudiu:

— ­Isso, amigo, é de razão. Uma gente d’estas deve ter a sua representação, as suas cousas bem montadas. Ha deveres na sociedade... É como o sr. Affonso... Gasta muito, sim, come dinheiro. Não é com elle, que lhe conheço aquelle casaco ha vinte annos... Mas são esmolas, são pensões, são emprestimos que nunca mais vê...

— ­Desperdicios...

— ­Não lh’o censuro... É o costume da casa; nunca da porta dos Maias, já meu pae dizia, sahiu ninguem descontente... Mas uma frisa, de que ninguem usa! só para o Cruges, só para o Taveira!...

Teve de se callar. Justamente ao fundo do corredor assomava o Taveira, abafado até aos olhos na gola d’uma ulster, d’onde sahiam as pontas d’um cachenez de seda clara. O escudeiro desembaraçou-o dos agasalhos; e elle, de casaca e collete branco, limpando o bonito bigode humido da geada, veiu apertar a mão ao caro Villaça, ao amigo Eusebio, arrepiado, mas achando o frio elegante, desejando a neve e o seu chic...

— ­Nada, nada, dizia Villaça todo amavel, cá o nosso solzinho portuguez sempre é melhor...

E foram entrando no fumoir, onde se ouviam as vozes do marquez, de Carlos, n’uma das suas sabias e prolixas cavaqueiras sobre cavallos e sport.

— ­Então? que tal? A mulher? foi a interrogação que acolheu o Taveira.

Mas antes de dar noticia da estreia da Morelli, a dama nova, Taveira reclamou alguma cousa quente. E enterrado n’uma poltrona junto do fogão, com os sapatos de verniz estendidos para as brazas, respirando o aroma do punch, saboreando uma cigarette, declarou emfim que não tinha sido um fiasco.

— ­Que ella, a meu vêr, é uma insignificancia, não tem nada, nem voz, nem escola. Mas, coitada, estava tão atrapalhada, que nos fez pena. Houve indulgencia, deram-se-lhe umas palmas... Quando fui ao palco, ella estava contente...

— ­Vamos a saber, Taveira, que tal é ella? inquiria o marquez.

— ­Cheia, dizia o Taveira collocando as palavras como pinceladas; alta; muito branca; bons olhos; bons dentes...

— ­E o pésinho? — ­E o marquez, já com os olhos accesos, passava de vagar a mão pela calva.

Taveira não reparara no pé. Não era amador de pés...

— ­Quem estava? perguntou Carlos, indolente e bocejando.

— ­A gente do costume... É verdade, sabes quem tomou a frisa ao lado da tua? Os Gouvarinhos. Lá appareceram hoje...

Carlos não conhecia os Gouvarinhos. Em redor explicaram-lhe: o conde de Gouvarinho, o par do reino, um homem alto, de lunetas, poseur... E a condessa, uma senhora inglesada, de cabello côr de cenoura, muito bem feita... Emfim, Carlos não conhecia.

Villaça encontrava o conde no centro progressista, onde elle era uma columna do partido. Rapaz de talento, segundo o Villaça. O que o espantava é que elle podesse ter assim frisa de assignatura, atrapalhado como estava: ainda não havia tres mezes lhe tinham protestado uma letra de oitocentos mil réis, no tribunal do commercio...

— ­Um asno, um caloteiro! disse o marquez com nojo.

— ­Passa-se lá bem, ás terças feiras... — ­disse Taveira, mirando a sua meia de seda.

Depois fallou-se do duello do Azevedo da Opinião com o Sá Nunes, auctor d’El-Rei Bolacha, a grande magica da Rua dos Condes, e ultimamente ministro da marinha: tinham-se tratado furiosamente nos jornaes de pulhas e de ladrões: e havia dez interminaveis dias que estavam desafiados e que Lisboa, em pasmaceira, esperava o sangue. Cruges ouvira que Sá Nunes não se queria bater, por estar de luto por uma tia; dizia-se tambem que o Azevedo partira precipitadamente para o Algarve. Mas a verdade, segundo Villaça, era que o ministro do reino, primo do Azevedo, para evitar o recontro, conservava a casa dos dois cavalheiros bloqueada pela policia...

— ­Uma canalha! exclamou o marquez com um dos seus resumos brutaes que varriam tudo.

— ­O ministro não deixa de ter razão, observou Villaça. Isto ás vezes, em duellos, póde bem succeder uma desgraça...

Houve um curto silencio. Carlos, que caía de somno, perguntou ao Taveira, atravez d’outro bocejo, se vira o Ega no theatro.

— ­Podera! La estava de serviço, no seu posto, na frisa dos Cohens, todo puxado...

— ­Então essa cousa do Ega com a mulher do Cohen, disse o marquez, parece clara...

— ­Transparente, diaphana! um crystal!...

Carlos, que se erguera a accender uma cigarette para despertar, lembrou logo a grande maxima de D. Diogo: essas cousas nunca se sabiam, e era preferivel não se saberem! Mas o marquez, a isto, lançou-se em considerações pesadas. Estimava que o Ega se atirasse; e via ahi um facto de represalia social, por o Cohen ser judeu e banqueiro. Em geral não gostava de judeus; mas nada lhe offendia tanto o gosto e a razão como a especie banqueiro. Comprehendia o salteador de clavina, n’um pinheiral; admittia o communista, arriscando a pelle sobre uma barricada. Mas os argentarios, os Fulanos e C.as faziam-n’o encavacar... E achava que destruir-lhes a paz domestica era acto meritorio!

— ­Duas horas e um quarto! exclamou Taveira, que olhara o relogio. E eu aqui, empregado publico, tendo deveres para com o Estado, logo ás dez horas da manhã.

— ­Que diabo se faz no tribunal de contas? perguntou Carlos. Joga-se? Cavaquea-se?

— ­Faz-se um bocado de tudo, para matar tempo... Até contas!

Affonso da Maia já estava recolhido. Sequeira e Steinbroken tinham partido; e D. Diogo, no fundo da sua velha traquitana, lá fôra tambem a tomar ainda gemada, a pôr ainda o emplastro, sob o olho solicito da Margarida, sua cozinheira e seu derradeiro amor. E os outros não tardaram a deixar o Ramalhete. Taveira, de novo sepultado na ulster, trotou até casa, uma vivendasinha perto com um bonito jardim. O marquez conseguiu levar Cruges no coupé, para lhe ir fazer musica a casa, no orgão, até ás tres ou quatro horas, musica religiosa e triste, que o fazia chorar, pensando nos seus amores e comendo frango frio com fatias de salame. E o viuvo, o Eusebiosinho, esse, batendo o queixo, tão morosa e soturnamente como se caminhasse para a sua propria sepultura, lá se dirigiu ao lupanar onde tinha uma paixão.

O laboratorio de Carlos estava prompto — ­e muito convidativo, com o seu soalho novo, fornos de tijolo fresco, uma vasta meza de marmore, um amplo divan de clina para o repouso depois das grandes descobertas, e em redor, por sobre peanhas e prateleiras, um rico brilho de metaes e crystaes; mas as semanas passavam, e todo esse bello material de experimentação, sob a luz branca da claraboia, jazia virgem e ocioso. Só pela manhã um servente ía ganhar o seu tostão diario, dando lá uma volta preguiçosa com um espanador na mão.

Carlos realmente não tinha tempo de se occupar do laboratorio; e deixaria a Deus mais algumas semanas o privilegio exclusivo de saber o segredo das cousas — ­como elle dizia rindo ao avô. Logo pela manhã cedo ía fazer as suas duas horas d’armas com o velho Randon; depois via alguns doentes no bairro onde se espalhara, com um brilho de legenda, a cura da Marcellina — ­e as garrafas de Bordeus que lhe mandara Affonso. Começava a ser conhecido como medico. Tinha visitas no consultorio — ­ordinariamente bachareis, seus contemporaneos, que sabendo-o rico o consideravam gratuito, e lá entravam, murchos e com má cara, a contar a velha e mal disfarçada historia de ternuras funestas. Salvara d’um garrotilho a filha d’um brazileiro, ao Aterro — ­e ganhara ahi a sua primeira libra, a primeira que pelo seu trabalho ganhava um homem da sua familia. O dr. Barbedo convidara-o a assistir a uma operação ovariotomica. E emfim (mas esta consagração não a esperava realmente Carlos tão cedo) alguns dos seus bons collegas, que até ahi, vendo-o só a governar os seus cavallos inglezes, fallavam do «talento do Maia» — ­agora percebendo-lhe estas migalhas de clientella, começavam a dizer «que o Maia era um asno.» Carlos já fallava a serio da sua carreira. Escrevera, com laboriosos requintes d’estylista, dois artigos para a Gazeta Medica; e pensava em fazer um livro d’idéas geraes, que se devia chamar Medicina Antiga e Moderna. De resto occupava-se sempre dos seus cavallos, do seu luxo, do seu bric-a-brac. E atravez de tudo isto, em virtude d’essa fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de pathologia, lhe fazia voltar a cabeça, se ouvia fallar d’uma estatua ou d’um poeta, attrahia-o singularmente a antiga idéa do Ega, a creação d’uma Revista, que dirigisse o gosto, pezasse na politica, regulasse a sociedade, fosse a força pensante de Lisboa...

Era porém inutil lembrar ao Ega este bello plano. Abria um olho vago, respondia:

— ­Ah, a Revista... Sim, está claro, pensar n’isso! Havemos de fallar, eu apparecerei...

Mas não apparecia no Ramalhete, nem no consultorio; apenas se avistavam, ás vezes, em S. Carlos, onde o Ega, todo o tempo que não passava no camarote dos Cohens, vinha invariavelmente refugiar-se no fundo da frisa de Carlos, por trás de Taveira ou do Cruges; d’onde podesse olhar de vez em quando Rachel Cohen — ­e ali ficava, silencioso, com a cabeça appoiada ao tabique, repousando e como saturado de felicidade...

O dia (dizia elle) tinha-o todo tomado: andava procurando casa, andava estudando mobilias... Mas era facil encontral-o pelo Chiado e pelo Loreto, a rondar e a farejar — ­ou então no fundo de tipoias de praça, batendo a meio galope, n’um espalhafato de aventura.

O seu dandysmo requintava; arvorara, com o desplante soberbo d’um Brummel, casaca de botões amarellos sobre collete de setim branco; e Carlos entrando uma manhã cedo no Universal, deu com elle pallido de colera, a despropositar com um creado, por causa d’uns sapatos mal envernisados. Os seus companheiros constantes, agora, eram um Damaso Salcede, amigo do Cohen, e um primo da Rachel Cohen, mocinho imberbe, d’olho esperto e duro, já com ares de emprestar a trinta por cento.

Entre os amigos, no Ramalhete, sobretudo na frisa, discutia-se ás vezes Rachel, e as opiniões discordavam. Taveira achava-a «deliciosa!» — ­e dizia-o rilhando o dente: ao marquez não deixava de parecer appetitosa, para uma vez, aquella carnezinha faisandée de mulher de trinta annos: Cruges chamava-lhe uma «lambisgoia relamboria». Nos jornaes, na secção do High-life, ella era «uma das nossas primeiras elegantes»: e toda a Lisboa a conhecia, e a sua luneta d’ouro presa por um fio d’ouro, e a sua caleche azul com cavallos pretos. Era alta, muito pallida, sobre tudo ás luzes, delicada de saude, com um quebranto nos olhos pisados, uma infinita languidez em toda a sua pessoa, um ar de romance e de lyrio meio murcho: a sua maior belleza estava nos cabellos, magnificamente negros, ondeados, muito pesados, rebeldes aos ganchos, e que ella deixava habilmente cahir n’uma massa meia solta sobre as costas, como n’um desalinho de nudez. Dizia-se que tinha litteratura, e fazia phrases. O seu sorriso lasso, pallido, constante, dava-lhe um ar de insignificancia. O pobre Ega adorava-a.

Conhecera-a na Foz, na Assembléa; n’essa noite, cervejando com os rapazes, ainda lhe chamou camelia melada; dias depois já adulava o marido; e agora esse demagogo, que queria o massacre em massa das classes medias, soluçava muita vez por causa d’ella, horas inteiras, cahido para cima da cama.

Em Lisboa, entre o Gremio e a Casa Havaneza, já se começava a fallar «do arranjinho do Ega». Elle todavia procurava pôr a sua felicidade ao abrigo de todas as suspeitas humanas. Havia nas suas complicadas precauções tanta sinceridade como prazer romantico do mysterio: e era nos sitios mais desageitados, fóra de portas, para os lados do Matadouro, que ía furtivamente encontrar a creada que lhe trazia as cartas d’ella... Mas em todos os seus modos (mesmo no disfarce affectado com que espreitava as horas) transbordava a immensa vaidade d’aquelle adulterio elegante. De resto sentia bem que os seus amigos conheciam a gloriosa aventura, o sabiam em pleno drama: era mesmo talvez por isso, que, diante de Carlos e dos outros, nunca até ahi mencionara o nome d’ella, nem deixara jámais escapar um lampejo de exaltação.

Uma noite, porém, acompanhando Carlos até ao Ramalhete, noite de lua calma e branca, em que caminhavam ambos callados, Ega, invadido decerto por uma onda interior de paixão, soltou desabafadamente um suspiro, alargou os braços, declamou com os olhos no astro, um tremor na voz:

Oh! laisse-toi donc aimer, oh! l’amour c’est la vie!

Isto fugira-lhe dos labios como um começo de confissão; Carlos ao lado não disse nada, soprou ao ar o fumo do charuto.

Mas Ega sentiu-se decerto ridiculo, porque se calmou, refugiou-se immediatamente no puro interesse litterario:

— ­No fim de contas, menino, digam lá o que disserem, não ha senão o velho Hugo...

Carlos, comsigo, lembrava furores naturalistas do Ega, rugindo contra Hugo, chamando-lhe «saco-roto de espiritualismo», «boca-aberta de sombra», «avôsinho lyrico», injurias peiores.

Mas n’essa noite o grande phraseador continuou:

— ­Ah o velho Hugo! o velho Hugo é o campeão heroico de verdades eternas... É necessario um bocado d’ideal, que diabo!... De resto o ideal póde ser real...

E foi, com esta palinodia, acordando os silencios do Aterro.

Dias depois Carlos, no consultorio, acabava de despedir um doente, um Viegas, que todas as semanas vinha alli fazer a fastidiosa chronica da sua dyspepsia — ­quando do reposteiro da sala d’espera lhe surgiu o Ega, de sobrecasaca azul, luva gris-perle e um rolo de papel na mão.

— ­Tens que fazer, doutor?

— ­Não, ía a sahir, janota!

— ­Bem. Venho-te impingir prosa... Um bocado do Atomo... Senta-te ahi. Ouve lá.

Immediatamente abancou, afastou papeis e livros, desenrolou o manuscripto, espalmou-o, deu um puxão ao collarinho — ­e Carlos, que se pousara á borda do divan, com a face espantada e as mãos nos joelhos, achou-se quasi sem transição transportado dos rugidos do ventre do Viegas para um rumor de populaça, n’um bairro de judeus, na velha cidade de Heidelberg.

— ­Mas espera lá! exclamou elle. Deixa-me respirar. Isso não é o começo do livro! Isso não é o cahos...

Ega então recostou-se, desabotoou a sobrecasaca, respirou tambem.

— ­Não, não é o primeiro episodio... Não é o cahos. É já no seculo XV... Mas n’um livro d’estes póde-se começar pelo fim... Conveiu-me fazer este episodio: chama-se a Hebrea.

A Cohen! pensou Carlos.

Ega tornou a alargar o collarinho — ­e foi lendo, animando-se, ferindo as palavras para as fazer viver, soltando grandes cheios de voz nas sonoridades finaes dos periodos. Depois da sombria pintura d’um bairro medival de Heidelberg, o famoso Atomo, o Atomo do Ega, apparecia alojado no coração do esplendido principe Franck, poeta, cavalleiro, e bastardo do imperador Maximiliano. E todo esse coração de heroe palpitava pela judia Esther, perola maravilhosa do Oriente, filha do velho rabbino Salomão, um grande doutor da Lei, perseguido pelo odio theologico do Geral dos Dominicanos.

Isto contava-o o Atomo n’um monologo, tão recamado d’imagens como um manto da Virgem está recamado d’estrellas — ­e que era uma declaração d’elle, Ega, á mulher do Cohen. Depois abria-se um intermedio pantheista: rompiam coros de flores, coros de astros, cantando na linguagem da luz, ou na eloquencia dos perfumes, a belleza, a graça, a pureza, a alma celeste de Esther — ­e de Rachel... Emfim, chegava o negro drama da perseguição: a fuga da familia hebraica, atravéz de bosques de bruxas e brutas aldêas feudaes; a apparição, n’uma encrusilhada, do principe Franck que vem proteger Esther, de lança alta, no seu grande corcel; o tropel da turba fanatica, correndo a queimar o rabbino e os seus livros herejes; a batalha, e o principe atravessado pelo chuço d’um reitre, indo morrer no peito d’Esther, que morre com elle n’um beijo. Tudo isto se precipitava como um sonoro e tumultuoso soluço; e era tratado com as maneiras modernas d’estylo, o esforço atormentado inchando a expressão, as camadas de côr atiradas á larga para fazer ressaltar o tom de vida...

Ao findar o Atomo exclamava, com a vasta solemnidade d’um cheio d’orgão: — ­«assim arrefeceu, parou, aquelle coração de heroe que eu habitava; e evaporado o principio de vida, eu, agora livre, remontei aos astros, levando comigo a essencia pura d’esse amor immortal.»

— ­Então?... — ­disse Ega, esfalfado, quasi tremulo.

Carlos só poude responder:

— ­Está ardente.

Depois elogiou a serio alguns lances, o coro das florestas, a leitura do Ecclesiastes, de noite, entre as ruinas da torre d’Othon, certas imagens d’um grande vôo lyrico.

Ega, que tinha pressa, como sempre, enrolou o manuscripto, reabotoou a sobrecasaca, e já de chapéu na mão:

— ­Então, parece-te apresentavel?...

— ­Vaes publicar?

— ­Não, mas emfim... — ­e ficou n’esta reticencia, fazendo-se corado.

Carlos comprehendeu tudo dias depois, encontrando na Gazeta do Chiado uma descripção «da leitura feita em casa do ex.mo sr. Jacob Cohen, pelo nosso amigo João da Ega, de um dos mais brilhantes episodios do seu livro — ­As memorias d’um atomo.» E o jornalista accrescentava, dando a sua impressão pessoal: «é uma pintura dos sofrimentos porque passaram, nos tempos da intolerancia religiosa, aquelles que seguem a Lei d’Israel. Que poder de imaginação! Que fluencia d’estylo! O effeito foi extraordinario, e quando o nosso amigo fechou o manuscripto ao succumbir da protagonista — ­vimos lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica!»

Oh, furor do Ega! Rompeu n’essa tarde pelo consultorio, pallido, desorientado...

— ­Estas bestas! Estas bestas d’estes jornalistas! Leste? Lagrimas em todos os olhos da numerosa e estimavel colonia hebraica! Faz cahir a cousa em ridiculo... E depois a fluencia d’estylo. Que burros! Que idiotas!

Carlos, que cortava as folhas d’um livro, consolou-o. Aquella era a maneira nacional de fallar d’obras d’arte... Não valia a pena bramar...

— ­Não, palavra, tinha vontade de quebrar a cara áquelle folliculario!

— ­E porque lh’a não quebras?

— ­É um amigo dos Cohens.

E foi grunhindo improperios contra a imprensa, a passos de tigre pelo gabinete. Por fim irritado com a indifferença de Carlos:

— ­Que diabo estás tu ahi a ler? Nature parasitaire des accidents de l’impaludisme... Que blague, a medicina! Dize-me uma cousa. Que diabo serão umas picadas que me veem aos braços, sempre que vou a adormecer?...

— ­Pulgas, bichos, vermina... — ­murmurou Carlos com os olhos no livro.

— ­Animal! rosnou Ega, arrebatando o chapéu.

— ­Vaes-te, John?

— ­Vou, tenho que fazer! — ­E junto do reposteiro, ameaçando o céu com o guarda-chuva, chorando quasi de raiva: — ­Estes burros d’estes jornalistas! São a escoria da sociedade!

D’ahi a dez minutos reappareceu, bruscamente: e já com outra voz, n’um tom de caso serio:

— ­Ouve cá. Tinha-me esquecido. Tu queres ser apresentado aos Gouvarinhos?

— ­Não tenho um interesse especíal, respondeu Carlos, erguendo os olhos do livro, depois de um silencio. Mas não tenho tambem uma repugnancia especial.

— ­Bem, disse Ega. Elles desejam conhecer-te, sobretudo a condessa faz empenho... Gente intelligente, passa-se lá bem... Então, decidido! Terça feira vou-te buscar ao Ramalhete, e vamo-nos gouvarinhar.

Carlos ficou pensando n’aquella proposta do Ega, na maneira como elle sublinhára o empenho da condessa. Lembrava-se agora que ella era muito intima da Cohen: e ultimamente, em S. Carlos, n’aquella facil visinhança de frisa, surprehendera certos olhares d’ella... Mesmo, segundo o Taveira, ella realmente fazia-lhe um olhão. E Carlos achava-a picante, com os seus cabellos crespos e ruivos, o narizinho petulante, e os olhos escuros, d’um grande brilho, dizendo mil cousas. Era deliciosamente bem feita — ­e tinha uma pelle muito clara, fina e doce á vista, a que se sentia mesmo de longe o setim.

Depois d’aquelle dia tristônho de aguaceiros, elle resolvera passar um bom serão de trabalho, ao canto do fogão, no conforto do seu robe-de-chambre. Mas ao café, os olhos da Gouvarinho começaram a faiscar-lhe por entre o fumo do charuto, a fazer-lhe um olhão, collocando-se tentadoramente entre elle e a sua noite d’estudo, pondo-lhe nas veias um vivo calor de mocidade... Tudo culpa do Ega, esse Mephistopheles de Celorico!

Vestiu-se, foi a S. Carlos. Ao sentar-se porém á boca da frisa, preparado, de collete branco e perola negra na camisa, — ­em logar dos cabellos crespos e ruivos, avistou a carapinha retinta de um preto, um preto de doze annos, trombudo e lusidio, de grande collarinho á mamã sobre uma jaqueta de botões amarellos; ao lado outro preto, mais pequeno, com o mesmo uniforme de collegio, enterrava pela venta aberta o dedo calçado de pellica branca. Ambos elles lhe relancearam os olhos bogalhudos, côr de prata embaciada. A pessoa que os acompanhava, escondida para o fundo, parecia ter um catharro ascoroso.

Dava-se a Lucia em beneficio, com a segunda dama. Os Cohens não tinham vindo — ­nem o Ega. Muitos camarotes estavam desertos, em toda a tristeza do seu velho papel vermelho. A noite chuviscosa, com um bafo de sudoeste, parecia penetrar alli, derramando o seu pesadume, a morna sensação da sua humidade. Nas cadeiras, vasias, havia uma mulher solitaria, vestida de setim claro; Edgardo e Lucia desafinavam; o gaz dormia, e os arcos das rebecas, sobre as cordas, pareciam ir adormecendo tambem.

— ­Isto está lugubre, disse Carlos ao amigo Cruges, que occupava o escuro da frisa.

Cruges, amodorroado n’um accesso de spleen, com o cotovello sobre as costas da cadeira, os dedos por entre a cabelleira, todo elle embrulhado em crepes, sobrepostos de melancolia, respondeu, como do fundo d’um sepulchro:

— ­Pesadote.

Por indolencia, Carlos ficou. E pouco a pouco, aquelle preto de que os seus olhos se não podiam despegar, alli enthronisado na poltrona de reps verde da Gouvarinho, com a manga da jaqueta plantada no rebordo onde costumava alvejar um lindo braço, — ­foi-lhe arrastando, a seu pesar, a imaginação para a pessoa d’ella; relembrou toilettes com que ella alli estivera; e nunca lhe pareceram tão picantes, como agora que os não via, os seus cabellos ruivos, côr de braza ás luzes, d’um encrespado forte, como crestados da chamma interna. A carapinha do preto, essa, em logar de risca tinha um sulco cavado á thesoura na massa de lã espessa. Quem seriam, por que estavam alli, aquelles africanos de perfil trombudo?

— ­Tu já reparaste n’esta extraordinaria carapinha, Cruges?

O outro, que se não mexera da sua attitude de estatua tumular, grunhiu da sombra um monosyllabo surdo.

Carlos respeitou-lhe os nervos.

De repente, ao desafinar mais aspero d’um coro, Cruges deu um salto.

— ­Isto só a pontapé... Que empreza esta! rugio elle, envergando furiosamente o paletot.

Carlos foi leval-o no coupé á rua das Flores, onde elle morava com a mãe e uma irmã; e até ao Ramalhete não cessou de lamentar comsigo o seu serão d’estudo perdido.

O creado de Carlos, o Baptista, (familiarmente, o Tista) esperava-o, lendo o jornal, na confortavel antecamara dos «quartos do menino», forrada de velludo côr de cereja, ornada de retratos de cavallos e panoplias de velhas armas, com divans do mesmo velludo, e muito allumiada a essa hora por dois candieiros de globo pousados sobre columnas de carvalho, onde se enrolavam lavores de ramos de vide.

Carlos tinha desde os onze annos este creado de quarto, que viera com o Brown para S.ta Olavia, depois de ter servido em Lisboa, na Legação ingleza, e ter acompanhado o ministro, sir Hercules Morrisson, varias vezes a Londres. Foi em Coimbra, nos Paços de Cellas, que Baptista começou a ser um personagem: Affonso correspondia-se com elle de S.ta Olavia. Depois viajou com Carlos; enjoaram nos mesmos paquetes, partilharam dos mesmos sandwiches no buffete das gares; Tista tornou-se um confidente. Era hoje um homem de cincoenta annos, desempenado, robusto, com um collar de barba grisalha por baixo do queixo, e o ar excessivamente gentleman. Na rua, muito direito na sua sobrecasaca, com o par de luvas amarellas espetado na mão, a sua bengala de cana da India, os sapatos bem envernisados, tinha a consideravel apparencia de um alto funccionario. Mas conservava-se tão fino e tão desembaraçado, como quando em Londres aprendera a walsar e a boxar na rude balburdia dos salões-dançantes, ou como quando mais tarde, durante as ferias de Coimbra, acompanhava Carlos a Lamego e o ajudava a saltar o muro do quintal do sr. escrivão de fazenda — ­aquelle que tinha uma mulher tão garota.

Carlos foi buscar um livro ao gabinete d’estudo, entrou no quarto, estendeu-se, cançado, n’uma poltrona. Á luz opalina dos globos, o leito entre-aberto mostrava, sob a seda dos cortinados, um luxo effeminado de bretanhas, bordados e rendas.

— ­Que ha hoje no Jornal da Noite? perguntou elle bocejando, em quanto Baptista o descalçava.

— ­Eu li-o todo, meu senhor, e não me pareceu que houvesse cousa alguma. Em França continúa socego... Mas a gente nunca póde saber, porque estes jornaes portuguezes imprimem sempre os nomes estrangeiros errados.

— ­São umas bestas. O sr. Ega hoje estava furioso com elles...

Depois, em quanto Baptista preparava com esmero um grog quente, Carlos já deitado, aconchegado, abriu preguiçosamente o livro, voltou duas folhas, fechou-o, tomou uma cigarette, e ficou fumando com as palpebras cerradas, n’uma immensa beatitude. Atravéz das cortinas pesadas sentia-se o sudoeste que batia o arvoredo, e os aguaceiros alagando os vidros.

— ­Tu conheces os srs. condes de Gouvarinho, Tista?

— ­Conheço o Pimenta, meu senhor, que é creado de quarto do sr. conde... Creado de quarto e serve a meza.

— ­E que diz então esse Tormenta? perguntou Carlos, n’uma voz indolente, depois d’um silencio.

— ­Pimenta, meu senhor! O Manuel é Pimenta. O sr. Gouvarinho chama-lhe Romão, por que estava acostumado ao outro creado que era Romão. E já isto não é bonito, porque cada um tem o seu nome. O Manuel é Pimenta. O Pimenta não está contente...

E Baptista, depois de collocar junto da cabeceira a salva com o grog, o assucareiro, as cigarettes, transmittiu as revelações do Pimenta. O conde de Gouvarinho, além de muito massador e muito pequinhento, não tinha nada de cavalheiro: dera um fato de cheviot claro ao Romão (ao Pimenta), mas tão coçado e tão cheio de riscas de tinta, de limpar a penna á perna e ao hombro, que o Pimenta deitou o presente fóra. O conde e a senhora não se davam bem: já no tempo do Pimenta, uma occasião, á mesa, tinham-se pegado de tal modo que ella agarrou do copo e do prato, e esmigalhou-os no chão. E outra qualquer teria feito o mesmo; por que o sr. conde, quando começava a repisar, a remoer, não se podia aturar. As questões eram sempre por causa de dinheiro. O Tompson velho estava farto de abrir os cordões á bolsa...

— ­Quem é esse Tompson velho, que nos apparece agora, a esta hora da noite? perguntou Carlos, a seu pesar interessado.

— ­O Tompson velho é o pae da sr.ª condessa. A sr.ª condessa era uma miss Tompson, dos Tompson do Porto. O sr. Tompson não tem querido ultimamente emprestar nem mais um real ao genro: de sorte que, uma vez, já no tempo do Pimenta tambem, o sr. conde, furioso, disse á senhora que ella e o pae se deviam lembrar que eram gente de commercio e que fora elle que fizera d’ella uma condessa; e com perdão de v. ex.ª, a senhora condessa ali mesmo á mesa mandou o condado á tabúa... Estas cousas não estão no genero do Pimenta.

Carlos bebeu um gole de grog. Bailava-lhe nos labios uma pergunta, mas hesitava. Depois reflectiu na puerilidade de tão rigidos escrupulos, a respeito d’uma gente, que ao jantar, diante do escudeiro, quebrava a porcelana, mandava á tabua o titulo dos antepassados. E perguntou:

— ­Que diz o sr. Pimenta da senhora condessa, Baptista? Ella diverte-se?

— ­Creio que não, meu senhor. Mas a creada de confiança d’ella, uma escosseza, essa é desobstinada. E não fica bem á senhora condessa ser assim tão intima com ella...

Houve um silencio no quarto, a chuva cantou mais forte nos vidros.

— ­Passando a outro assumpto, Baptista. Vamos a saber, ha quanto tempo, não escrevo eu a madame Rughel?

Baptista tirou do bolso interior da sua casaca um livro de apontamentos, aproximou-se da luz, encavalou a luneta no nariz, e verificou, com methodo, estas datas: — ­«Dia 1 de janeiro, telegramma expedido com felicitações do começo d’anno a madame Rughel, Hotel d’Albe, Champs Élyseés, Paris. Dia 3, telegramma recebido de madame Rughel, reciprocando comprimentos, exprimindo amizade, annunciando partida para Hamburgo. Dia 15, carta lançada ao correio, para madame Rughel, William-Strasse, Hamburgo, Allemagne. Depois — ­mais nada. De modo que havia já cinco semanas que o menino não escrevia a madame Rughel...

— ­É necessario escrever ámanhã, disse Carlos..

Baptista tomou uma nota.

Depois, entre uma fumaça languida, a voz de Carlos ergueu-se de novo na paz dormente do quarto:

— ­Madame Rughel era muito bonita, não é verdade, Baptista? É a mulher mais bonita que tu tens visto na tua vida!

O velho creado metteu o livro no bolso da casaca, e respondeu, sem hesitar, muito certo de si:

— ­Madame Rughel era uma senhora de muita vista. Mas a mulher mais linda em que tenho posto os olhos, se o menino dá licença, era aquella senhora do coronel de hussards que vinha ao quarto do hotel em Vienna.

Carlos atirou a cigarette para a salva — ­e escorregando pela roupa abaixo, todo invadido por uma onda de recordações alegres, exclamou da profundidade do seu conforto, no antigo tom de emphase bohemia dos Paços de Cellas.

— ­O sr. Baptista não tem gosto nenhum! Madame Rughel era uma nympha de Rubens, senhor! Madame Rughel tinha o explendor d’uma deusa da Renascença, senhor! Madame Rughel devia ter dormido no leito imperial de Carlos Quinto... — ­Retire-se, senhor!

Baptista entalou mais o couvre-pieds, relanceou pelo quarto um olhar solicito, e, contente, da ordem em que as cousas adormeciam, saíu, levando o candieiro. Carlos não dormia: e não pensava na coronela de hussards, nem em madame Rughel. A figura que no escuro dos cortinados lhe apparecia, n’um vago dourado que provinha do reflexo de seus cabellos soltos, era a Gouvarinho — ­a Gouvarinho que não tinha o explendor d’uma deusa da Renascença como madame Rughel, nem era a mulher mais linda em que Baptista pozera os seus olhos como a coronela de hussards: mas, com o seu nariz petulante e a sua boca grande, brilhava mais e melhor que todas na imaginação de Carlos — ­porque elle esperara-a essa noite e ella não tinha apparecido.

Na terça-feira promettida Ega não veiu buscar Carlos para se irem gouvarinhar. E foi Carlos que d’ahi a dias, entrando como por acaso no Universal, perguntou rindo ao Ega:

— ­Então quando nos gouvarinhamos?

N’essa noite, em S. Carlos, n’um entre-acto dos Huguenotes, Ega apresentou-o ao sr. conde de Gouvarinho, no corredor das frizas. O conde, muito amavel, lembrou logo que já tivera, mais de uma vez, o prazer de passar pela porta de S.ta Olavia, quando ia vêr os seus velhos amigos, os Tedins, a Entre-Rios — ­uma formosa vivenda tambem. Fallaram então do Douro, da Beira, compararam outras paisagens. Para o conde, nada havia, no nosso Portugal, como os campos do Mondego: mas a sua parcialidade era perdoavel, pois n’esses ferteis vales nascera e se creara: e fallou um momento de Formozelha, onde tinha casa, onde vivia edosa e doente sua mãe, a sr.ª condessa viuva...

Ega, que affectara beber as palavras do conde, começou então uma controversia, sustentando como se se tratasse dos dogmas d’uma fé, a belleza superior do Minho, «esse paraiso idillico.» O conde sorria: via ali, como elle observou a Carlos, batendo amavelmente no hombro do Ega, a rivalidade das duas provincias. Emulação fecunda, de resto, no seu pensar...

— ­Ahi está, por exemplo, dizia elle, o ciume entre Lisboa e Porto. É uma verdadeira dualidade como a que existe entre a Hungria e a Austria... Ouço por ali lamental-a. Pois bem, eu, se fosse poder, instigal-a-hia, acirral-a-hia, se v. ex.as me permittem a expressão. N’esta lucta das duas grandes cidades do reino, podem outros vêr despeitos mesquinhos, eu vejo elementos de progresso. Vejo civilisação!

Proferia estas cousas como do alto d’um pedestal, muito acima dos homens, deixando-as providamente caír dos thesouros do seu intellecto á maneira de dons inestimaveis. A voz era lenta e rotunda; os cristaes da sua luneta d’ouro faiscavam vistosamente; e no bigode encerado, na pera curta, havia ao mesmo tempo alguma cousa de doutoral e de casquilho.

Carlos dizia: «Tem v. ex.ª razão, sr. conde.» O Ega dizia: «Você vê essas cousas d’alto, Gouvarinho». Elle cruzara as mãos por baixo das abas da casaca — ­e estavam todos tres muito serios.

Depois o conde abriu a porta da friza, Ega desappareceu. E d’ahi a um momento, Carlos, apresentado como «visinho de camarote», recebia da sr.ª condessa um grande shake-hand, em que tilintaram uma infinidade d’aros de prata e de blangles indios sobre a sua luva preta de doze botões.

A sr.ª condessa, um pouco corada, ligeiramente nervosa, lembrou logo a Carlos que o vira no verão passado em Paris, no salão baixo do Café Inglez: até por signal estava n’essa noite um velho abominavel com duas garrafas vazias diante de si, e contando alto, para uma meza defronte, historias horrorosas do sr. Gambetta: um sujeito ao lado protestou; o outro não fez caso, era o velho duque de Grammont. O conde passou os dedos lentos pela testa, com um ar quasi angustioso: não se lembrava de nada d’isso! Queixou-se logo amargamente da sua falta de memoria. Uma cousa tão indispensavel em quem segue a vida publica, a memoria! e elle desgraçadamente, não possuia nem um atomo. Por exemplo, lera (como todo o homem devia lêr) os vinte volumes da Historia Universal de Cesar Cantu; lêra-os com attenção, fechado no seu gabinete, absorvendo-se na obra. Pois, senhores, escapara-lhe tudo — ­e ali estava sem saber historia!

— ­V. ex.ª tem boa memoria, sr. Maia?

— ­Tenho uma rasoavel memoria.

— ­Inapreciavel bem de que goza!

A condessa voltara-se para a platéa, coberta com o leque, com o ar constrangido, como se aquellas palavras pueris do marido a diminuissem, a desfeiassem... Carlos então fallou da opera. Que bello escudeiro huguenote fazia o Pandolli! A condessa não aturava o Corcelli, o tenor, com as suas notas asperas e aquella obesidade que o tornava buffo. Mas tambem (lembrava Carlos) onde havia hoje tenores? Passara essa grande raça dos Marios, homens de belleza, de inspiração, realisando os grandes typos lyricos. Nicolini era já uma degeneração... Isto fez lembrar a Patti. A condessa adorava-a, e a sua graça de fada, e a sua voz semelhante a uma chuva d’ouro!...

Os olhos brilhavam-lhe, diziam mil cousas; em certos movimentos, o cabello crespamente ondeado, tomava tons de oiro vermelho: e em torno d’ella errava, no calor do gaz e da enchente, um aroma exagerado de verbena. Estava de preto, com uma gargantilha, de rendas negras, á Valois, affogando-lhe o pescoço onde pousavam duas rosas escarlates. E toda a sua pessoa tinha um arsinho de provocação e de ataque. De pé, callado, grave, o conde batia a coxa com a claque fechada.

O quarto acto começara, Carlos ergueu-se; e os seus olhos encontraram defronte, na frisa do Cohen, o Ega, de binoculo, observando-o, mirando a condessa e fallando a Rachel, que sorria, movia o leque com um ar dolente e vago.

— ­Nós recebemos ás terças feiras, disse a condessa a Carlos — ­e o resto da phrase perdeu-se n’um murmurio e n’um sorriso.

O conde acompanhou-o fóra, ao corredor.

— ­É sempre uma honra para mim, dizia elle caminhando ao lado de Carlos, fazer o conhecimento das pessoas que valem alguma cousa n’este paiz ... V. ex.ª é d’esse numero, bem raro infelizmente.

Carlos protestou, risonho. E o outro, na sua voz lenta e rotunda:

— ­Não o lisongeio. Eu nunca lisongeio... Mas a v. ex.ª podem-se dizer estas cousas, porque pertence á elite: a desgraça de Portugal é a falta de gente. Isto é um paiz sem pessoal. Quer-se um bispo? Não ha um bispo. Quer-se um economista? Não ha um economista. Tudo assim! Veja v. ex.ª mesmo nas profissões subalternas. Quer-se um bom estofador? Não ha um bom estofador...

Um cheio de instrumentos e vozes, d’um tom sublime, passando pela porta da frisa entreaberta, cortou-lhe umas ultimas palavras sobre a defficiencia dos photographos... Escutou, com a mão no ar:

— ­É o coro dos punhaes, não? Ah vamos a ouvir... Ouve-se sempre isto com proveito. Ha philosophia n’esta musica... É pena que lembre tão vivamente os tempos da intolerancia religiosa, mas ha alli incontestavelmente philosophia!

Carlos, n’essa manhã, ia visitar de surpreza a casa do Ega, a famosa «Villa Balzac», que esse phantasista andára meditando e dispondo desde a sua chegada a Lisboa, e onde se tinha emfim installado.

Ega dera-lhe esta denominação litteraria, pelos mesmos motivos porque a alugára n’um suburbio longiquo, na solidão da Penha de França, — ­para que o nome de Balzac, seu padroeiro, o silencio campestre, os ares limpos, tudo alli fosse favoravel ao estudo, ás horas d’arte e d’ideal. Por que ia fechar-se lá, como n’um claustro de lettras, a findar as Memorias d’um Atomo! Sómente, por causa das distancias, tinha tomado ao mez um coupé da companhia.

Carlos teve difficuldades em encontrar a «Villa Balzac»: não era, como tinha dito Ega no Ramalhete, logo adiante do largo da Graça um chaletsinho retirado, fresco, assombreado, sorrindo entre arvores. Passava-se primeiro a Cruz dos Quatro Caminhos; depois penetrava-se n’uma vereda larga, entre quintaes, descendo pelo pendor da collina, mas accessivel a carruagens; e ahi, n’um recanto, ladeada de muros, apparecia emfim uma cazota de paredes enxovalhadas, com dois degraus de pedra á porta, e transparentes novos d’um escarlate estridente.

N’essa manhã, porém, debalde Carlos deu puxões desesperados á corda da campainha, martellou a aldrava da porta, gritou a toda a voz por cima do muro do quintal e das copas das arvores o nome do Ega: — ­a «Villa Balzac» permaneceu muda, como deshabitada, no seu retiro rustico. E todavia pareceu a Carlos que, justamente antes de bater, ouvira o estalar de rolhas de Champagne.

Quando Ega soube esta tentativa, mostrou-se indignado com os criados, que assim abandonavam a casa, lhe davam um ar suspeito de Torre de Nesle...

— ­Vae lá ámanhã, se ninguem responder, escala as janellas, pega fogo ao predio, como se fossem apenas as Tulherias.

Mas no dia seguinte, quando Carlos chegou, já a «Villa Balzac» o esperava, toda em festa: á porta «o pagem», um garoto de feições horrívelmente viciosas, perfilava-se na sua jaqueta azul de botões de metal, com uma gravata muito branca e muito teza; as duas janellas em cima, abertas, mostrando o reps verde das bambinellas, bebiam á larga todo o ar do campo e o sol de inverno: e no topo da estreita escada, tapetada de vermelho, Ega, n’um prodigioso robe-de-chambre, de um estofo adamascado do seculo dezoito, vestido de côrte de alguma das suas avós, exclamou dobrando a fronte ao chão:

— ­Bem vindo, meu principe, ao humilde tegurio do philosopho!

Ergueu, com um gesto rasgado, um reposteiro de reps verde, d’um verde feio e triste, e introduziu o «principe» na sala onde tudo era verde tambem: o reps que recobria uma mobilia de nogueira, o tecto de taboado, as listas verticaes do papel da parede, o pano franjado da mesa, e o reflexo d’um espelho redondo, inclinado sobre o sophá.

Não havia um quadro, uma flôr, um ornato, um livro — ­apenas sobre a jardineira uma estatueta de Napoleão I, de pé, equilibrado sobre o orbe terrestre, n’essa conhecida attitude em que o heroe, com um ar pansudo e fatal, esconde uma das mãos por traz das costas, e enterra a outra nas profundidades do seu collete. Ao lado uma garrafa de Champagne, encarapuçada de papel dourado, esperava entre dois copos esguios.

— ­Para que tens tu aqui Napoleão, John?

— ­Como alvo de injurias, disse Ega. Exercito-me sobre elle a fallar dos tyrannos...

Esfregou as mãos, radiante. Estava n’essa manhã em alegria e em verve. E quiz immediatamente mostrar a Carlos o seu quarto de cama: ahi reinava um cretone de ramagens alvadias sobre fundo vermelho; e o leito enchia, esmagava tudo. Parecia ser o motivo, o centro da «Villa Balzac»; e n’elle se esgotara a imaginação artistica do Ega. Era de madeira, baixo como um divan, com a barra alta, um roda-pé de renda, e d’ambos os lados um luxo de tapetes de felpo escarlate; um largo cortinado de seda da India avermelhada envolvia-o n’um apparato de tabernaculo; e dentro, á cabeceira, como n’um lupanar, reluzia um espelho.

Carlos, muito seriamente, aconselhou-lhe que tirasse o espelho. Ega deu a todo o leito um olhar silencioso e dôce, e disse depois de passar uma pontinha de lingua pelo beiço:

— ­Tem seu chic...

Sobre a mesinha de cabeceira erguia-se um montão de livros: a Educação de Spencer ao lado de Beaudelaíre, a Logica de Stuart Mill por cima do Cavalleiro da Casa Vermelha. No marmore da commoda havia outra garrafa de Champagne entre dous copos; o toucador, um pouco em desordem, mostrava uma enorme caixa de pó d’arroz no meio de plastrons e gravatas brancas do Ega, e um masso de ganchos do cabello ao lado de ferros de frisar.

— ­E onde trabalhas tu, Ega, onde fazes tu a grande arte?

— ­Alli! disse o Ega, alegremente, apontando para o leito.

Mas foi mostrar logo o seu recantosinho estudioso, formado por um biombo, ao lado da janella, e tomado todo por uma mesa de pé de gallo, onde Carlos assombrado descobriu, entre o bello papel de cartas do Ega, um Diccionario de Rimas...

E a visita á casa continuou.

Na sala de jantar, quasi nua, caiada de amarello, um armario de pinho envidraçado abrigava melancolicamente um serviço barato de louça nova; e do fecho da janella pendia um vestuario vermelho, que parecia roupão de mulher.

— ­É sobrio e simples — ­exclamou o Ega — ­como compete áquelle que se alimenta d’uma codea d’Ideal e duas garfadas de Philosophia. Agora, á cosinha!...

Abriu uma porta. Uma frescura de campos entrava pelas janellas abertas; e entreviam-se arvores de quintal, um verde de terrenos vagos, depois lá em baixo o branco de casarias rebrilhando ao sol; uma rapariga muito sardenta e muito forte sacudiu o gato do collo, ergueu-se, com o Jornal de Noticias na mão. Ega apresentou-a, n’um tom de farça:

— ­A sr.ª Josepha, solteira, de temperamento sanguineo, artista culinaria da «Villa Balzac», e como se póde observar pelo papel que lhe pende das garras, cultora das boas letras!

A moça sorria, sem embaraço, habituada de certo a estas familiaridades bohemias.

— ­Eu hoje não janto cá, senhora Josepha, continuava o Ega no mesmo tom. Este formoso mancebo que me acompanha, duque do Ramalhete, e principe de Santa Olavia, dá hoje de papar ao seu amigo e philosopho... E, como quando eu recolher, talvez a senhora Josepha esteja entregue ao somno da innocencia, ou á vigilia da devassidão, aqui lhe ordeno que me tenha amanhã para meu lunch duas formosas perdizes.

E subitamente, n’uma outra voz, com um olhar que ella devia perceber:

— ­Duas perdizesinhas bem assadas e bem córadinhas. Frias, está claro... O costume.

Travou do braço de Carlos, voltaram á sala.

— ­Com franqueza, Carlos, que te parece a «Villa Balzac»?

Carlos respondeu como a respeito do episodio da Hebrea:

— ­Está ardente.

Mas elogiou o aceio, a vista da casa e a frescura dos cretones. De resto, para um rapaz, para uma cella de trabalho...

— ­Eu, dizia o Ega, passeiando pela sala, com as mãos enterradas nos bolsos do seu prodigioso robe de chambre, eu não tolero o bibelot, o bric-à-brac, a cadeira archeologica, essas mobilias d’arte... Que diabo, o movel deve estar em harmonia com a idéa e o sentir do homem que o usa! Eu não penso, nem sinto como um cavalleiro do seculo XVI, para que me hei de cercar de cousas do seculo XVI? Não ha nada que me faça tanta melancolia, como ver n’uma sala um veneravel contador do tempo de Francisco I recebendo pela face conversas sobre eleições e altas de fundos. Faz-me o effeito d’um bello heroe de armadura d’aço, viseira cahida e crenças profundas no peito, sentado a uma mesa de voltarete a jogar copas. Cada seculo tem o seu genio proprio e a sua attitude propria. O seculo XIX concebeu a Democracia e a sua attitude é esta... — ­E enterrando-se d’estalo n’uma poltrona, espetou as pernas magras para o ar. — ­Ora esta attitude é impossivel n’um escabello do tempo do Prior do Crato. Menino, toca a beber o Champagne.

E como Carlos olhava a garrafa desconfiado, Ega accudiu:

— ­É excellente, que pensas tu? Vem directamente da melhor casa d’Epernay, arranjou-m’o o Jacob.

— ­Que Jacob?

— ­O Jacob Cohen, o Jacob.

Ia cortar as guitas da rolha, quando o atravessou uma subita recordação, e pousando a garrafa outra vez, entalando o monocolo no olho:

— ­É verdade! Então, n’outro dia, que tal, em casa dos Gouvarinhos? Eu infelizmente não poude ir.

Carlos contou a soirée. Havia dez pessoas, espalhadas pelas duas salas, n’um zum-zum dormente, á meia luz dos candieiros. O conde massara-o indiscretamente com a politica, admirações idiotas por um grande orador, um deputado de Mesão Frio, e explicações sem fim sobre a reforma da instrucção. A condessa, que estava muito constipada, horrorisou-o, dando sobre a Inglaterra, apesar de ingleza, as opiniões da rua de Cedofeita. Imaginava que a Inglaterra é um paiz sem poetas, sem artistas, sem ideaes, occupando-se só de amontoar libras... Emfim, seccara-se.

— ­Que diabo! murmurou o Ega n’um tom de viva desconsolação.

A rolha estalou, elle encheu os copos em silencio; e n’uma saude muda os dois amigos beberam o Champagne — ­que Jacob arranjara ao Ega, para o Ega se regalar com Rachel.

Depois, de pé, com os olhos no tapete, agitando de vagar o copo novamente cheio onde a espuma morria, Ega tornou a murmurar, n’aquella entoação triste de inesperado desapontamento:

— ­Que ferro!...

E após um momento:

— ­Pois menino, pensei que a Gouvarinho te appetecia...

Carlos confessou que nos primeiros dias, quando Ega lhe fallara d’ella, tivera um caprichosinho, interessara-se por aquelles cabellos côr de brasa...

— ­Mas agora, mal a conheci, o capricho foi-se...

Ega sentara-se, com o copo na mão; e depois de contemplar algum tempo as suas meias de seda, escarlates como as d’um prelado, deixou cair, muito serio, estas palavras:

— ­É uma mulher deliciosa, Carlinhos.

E, como Carlos encolhia os hombros, Ega insistio: a Gouvarinho era uma senhora de intelligencia e de gosto; tinha originalidade, tinha audacia, uma pontinha de romantismo muito picante...

— ­E, como corpinho de mulher, não ha melhor que aquillo de Badajoz para cá!

— ­Vae-te d’ahi, Mephistopheles de Celorico!

E Ega, divertido, cantarolou:

Je suis Mephisto...
Je suis Mephisto...

Carlos no entanto, fumando preguiçosamente, continuava a fallar na Gouvarinho e n’essa brusca saciedade que o invadira, mal trocara com ella tres palavras n’uma sala. E não era a primeira vez que tinha d’estes falsos arranques de desejo, vindo quasi com as formas do amor, ameaçando absorver, pelo menos por algum tempo, todo o seu ser, e resolvendo-se em tedio, em «secca». Eram como os fogachos de polvora sobre uma pedra; uma fagulha atêa-os, n’um momento tornam-se chamma vehemente que parece que vae consumir o Universo, e por fim fazem apenas um rastro negro que suja a pedra. Seria o seu um d’esses corações de fraco, molles e flaccidos, que não podem conservar um sentimento, o deixam fugir, escoar-se pelas malhas lassas do tecido relles?

— ­Sou um ressequido! disse elle sorrindo. Sou um impotente de sentimento, como Satanaz... Segundo os padres da Egreja, a grande tortura de Satanaz é que não póde amar...

— ­Que phrases essas, menino! murmurou Ega.

Como phrases? Era uma atroz realidade! Passava a vida a ver as paixões falharem-lhe nas mãos como phosphoros. Por exemplo, com a coronela de hussards em Vienna! Quando ella faltou ao primeiro rendez-vous, chorara lagrimas como punhos, com a cabeça enterrada no travesseiro e aos coices á roupa. E d’ahi a duas semanas, mandava postar o Baptista á janella do hotel, para elle se safar, mal a pobre coronela dobrasse a esquina! E com a hollandeza, com Madame Rughel, peior ainda. Nos primeiros dias foi uma insensatez: queria-se estabelecer para sempre na Hollanda, casar com ella (apenas ella se divorciasse), outras loucuras; depois os braços que ella lhe deitava ao pescoço, e que lindos braços, pareciam-lhe pesados como chumbo...

— ­Passa fóra, pedante! E ainda lhe escreves! gritou Ega.

— ­Isso é outra cousa. Ficamos amigos, puras relações de intelligencia. Madame Rughel é uma mulher de muito espirito. Escreveu um romance, um d’esses estudos intimos e delicados, como os de Miss Brougthon: chama-se as Rosas Murchas. Eu nunca li, é em hollandez...

— ­As Rosas Murchas! em hollandez! exclamou Ega apertando as mãos na cabeça.

Depois vindo plantar-se diante de Carlos, de monocolo no olho:

— ­Tu és extraordinario, menino!... Mas o teu caso é simples, é o caso de D. Juan. D. Juan tambem tinha essas alternações de chamma e cinza. Andava á busca do seu ideal, da sua mulher, procurando-a principalmente, como de justiça, entre as mulheres dos outros. E après avoir couché, declarava que se tinha enganado, que não era aquella. Pedia desculpa e retirava-se. Em Hespanha experimentou assim mil e tres. Tu és simplesmente, como elle, um devasso; e has de vir a acabar desgraçadamente como elle, n’uma tragedia infernal!

Esvasiou outro copo de Champagne, e a grandes passadas pela sala:

— ­Carlinhos da minha alma, é inutil que ninguem ande á busca da sua mulher. Ella virá. Cada um tem a sua mulher, e necessariamente tem de a encontrar. Tu estás aqui, na Cruz dos Quatro Caminhos, ella está talvez em Pekin: mas tu, ahi a raspar o meu reps com o verniz dos sapatos, e ella a orar no templo de Confucio, estaes ambos insensivelmente, irresistivelmente, fatalmente, marchando um para o outro!... Estou eloquentissimo hoje, e temos dito cousas idiotas. Toca a vestir. E, em quanto eu adorno a carcassa, prepara mais phrases sobre Satanaz!

Carlos ficou na sala verde, acabando o charuto — ­em quanto dentro o Ega batia com as gavetas, lançando, a todo o desafinado da sua voz roufenha, a Barcarolla de Gounod. Quando appareceu, vinha de casaca, gravata branca, enfiando o paletot — ­com o olho brilhante do Champagne.

Desceram. O pagem lá estava á porta perfilado, ao pé do coupé de Carlos, que esperara. E a sua fardeta azul de botões amarellos, a magnifica parelha baia reluzindo como um setim vivo, as pratas dos arreios, a magestade do cocheiro louro com o seu ramo na libré, tudo alli fazia, junto da «Villa Balzac», um quadro rico que deleitou o Ega.

— ­A vida é agradavel, disse elle.

O coupé partiu, ia entrar no largo da Graça, quando uma caleche de praça, aberta, o cruzou a largo trote. Dentro um sujeito de chapéo baixo ía lendo um grande jornal.

— ­É o Craft! gritou Ega, debruçando-se pela portinhola.

O coupé parou. Ega de um pulo estava na calçada, correndo, bradando:

— ­Oh Craft! oh Craft!

Quando, d’ahi a um momento, sentiu duas vozes approximarem-se, Carlos desceu tambem do coupé, achou-se em face d’um homem baixo, louro, de pelle rosada e fresca, e apparencia fria. Sob o fraque correcto percebia-se-lhe uma musculatura de athleta.

— ­O Carlos, o Craft, gritou o Ega, lançando esta apresentação com uma simplicidade classica.

Os dois homens, sorrindo, tinham-se apertado a mão. E Ega insistia para que voltassem todos á Villa Balzac, fossem beber a outra garrafa de Champagne, a celebrar o advento do Justo! Craft recusou, com o seu modo calmo e placido; chegara na vespera do Porto, abraçara já o nobre Ega, e aproveitava agora a viagem áquelle bairro longinquo para ir vêr o velho Shlegen, um allemão que vivia á Penha de França.

— ­Então outra cousa! exclamou Ega. Para conversarmos, para que vocês se conheçam mais, venham vocês jantar comigo amanhã ao Hotel Central. Dito, hein? Perfeitamente. Ás seis.

Apenas o coupé partiu de novo, Ega rompeu nas costumadas admirações pelo Craft, encantado com aquelle encontro que dava mais um retoque luminoso á sua alegria. O que o enthusiasmava no Craft era aquelle ar imperturbavel de gentleman correcto, com que elle egualmente jogaria uma partida de bilhar, entraria n’uma batalha, arremetteria com uma mulher, ou partiria para a Patagonia...

— ­É das melhores cousas que tem Lisboa. Vaes-te morrer por elle... E que casa que elle tem nos Olivaes, que sublime bric-a-brac!

Subitamente estacou, e com um olhar inquieto, uma ruga na testa:

— ­Como diabo soube elle da Villa Balzac?

— ­Tu não fazes segredo d’ella, hein?

— ­Não... Mas tambem não a puz nos annuncios! E o Craft chegou hontem, ainda não esteve com ninguem que eu conheça... É curioso!

— ­Em Lisboa sabe-se tudo...

— ­Canalha de terra! murmurou Ega.

O jantar no Central foi addiado, porque o Ega, alargando pouco a pouco a idéa, convertera-o agora n’uma festa de ceremonia em honra do Cohen.

— ­Janto lá muitas vezes, disse elle a Carlos, estou lá todas as noites... É necessario repagar a hospitalidade... Um jantar no Central é o que basta. E para o effeito moral, pespego-lhe á meza o marquez e a besta do Steinbroken. O Cohen gosta de gente assim...

Mas o plano teve ainda de ser alterado: o marquez partira para a Gollegã, e o pobre Steinbroken estava soffrendo d’um incommodo de entranhas. Ega pensou no Cruges e no Taveira — ­mas receiou a cabelleira desleixada do Cruges, e alguns dos seus ataques de amargo spleen que estragaria o jantar. Terminou por convidar dois intimos do Cohen; mas teve então de supprimir o Taveira, que estava de mal com um d’esses cavalheiros por palavras que tinham trocado em casa da «Lola gorda».

Decididos os convidados, fixado o jantar para uma segunda feira, Ega teve uma conferencia com o maitre de hotel do Central, em que lhe recommendou muita flôr, dois ananazes para enfeitar a meza, e exigiu que um dos pratos do menu, qualquer d’elles, fosse à la Cohen; e elle mesmo suggeriu uma idéa: tomates farcies à la Cohen...

N’essa tarde, ás seis horas, Carlos, ao descer a rua do Alecrim para o Hotel Central, avistou Craft dentro da loja de bric-a-brac do tio Abrahão.

Entrou. O velho judeo, que estava mostrando a Craft uma falsa faiença do Rato, arrancou logo da cabeça o sujo barrete de borla, e ficou curvado em dois, diante de Carlos, com as duas mãos sobre o coração.

Depois, n’uma linguagem exotica, misturada d’inglez, pediu ao seu bom senhor D. Carlos da Maia, ao seu digno senhor, ao seu beautiful gentleman, que se dignasse examinar uma maravilhasinha que lhe tinha reservada; e o seu muito generous gentleman tinha só a voltar os olhos, a maravilhasinha estava alli ao lado, n’uma cadeira. Era um retrato d’hespanhola, apanhado a fortes brochadellas de primeira impressão, e pondo, sobre um fundo audaz de côr de rosa murcha, uma face gasta de velha garça, picada das bexigas, caiáda, ressudando vicio, com um sorriso bestial que promettia tudo.

Carlos, tranquillamente, offereceu dez tostões. Craft pasmou d’uma tal prodigalidade; e o bom Abrahão, n’um riso mudo que lhe abria entre a barba grisalha uma grande boca d’um só dente, saboreou muito a «chalaça dos seus ricos senhores.» Dez tostõesinhos! Se o quadrinho tivesse por baixo o nomesinho de Fortuny, valia dez continhos de réis. Mas não tinha esse nomesinho bemdito... Ainda assim valia dez notasinhas de vinte mil réis...

— ­Dez cordas para te enforcar, hebreu sem alma! exclamou Carlos.

E sahiram, deixando o velho intrujão á porta, curvado em dois, com as mãos sobre o coração, desejando mil felicidades aos seus generosos fidalgos...

— ­Não tem uma unica cousa boa, este velho Abrahão, disse Carlos.

— ­Tem a filha, disse o Craft.

Carlos achava-a bonita, mas horrivelmente suja. Então, a proposito do Abrahão, fallou a Craft d’essas bellas collecções dos Olivaes, que o Ega, apesar do desdem que affectava pelo bibelot e pelo movel d’arte, lhe descrevera como sublimes.

Craft encolheu os hombros.

— ­O Ega não entende nada. Mesmo em Lisboa, não se póde chamar ao que eu tenho uma collecção. É um bric-a-brac d’acaso... De que, de resto, me vou desfazer!

Isto surprehendeu Carlos. Comprehendera das palavras do Ega ser essa uma collecção formada com amor, no laborioso decurso de annos, orgulho e cuidado d’uma existencia de homem...

Craft sorrio d’aquella legenda. A verdade era que só em 1872, elle começara a interessar-se pelo bric-a-brac; chegava então da America do Sul; e o que fora comprando, descobrindo aqui e além, accumulara-o n’essa casa dos Olivaes, alugada então por phantasia, uma manhã que aquelle pardieiro, com o seu bocado de quintal em redor, lhe parecera pittoresco, sob o sol de abril. Mas agora se podesse desfazer-se do que tinha, ia dedicar-se então a formar uma collecção homogenea e compacta d’arte do seculo desoito.

— ­Aqui nos Olivaes?

— ­Não. N’uma quinta que tenho ao pé do Porto, junto mesmo ao rio.

Entravam então no peristilo do Hotel Central — ­e n’esse momento um coupé da Companhia, chegando a largo trote do lado da rua do Arsenal, veiu estacar á porta.

Um esplendido preto, já grisalho, de casaca e calção, correu logo á portinhola; de dentro um rapaz muito magro, de barba muito negra, passou-lhe para os braços uma deliciosa cadelinha escosseza, de pellos esguedelhados, finos como seda e côr de prata; depois apeando-se, indolente e poseur, offereceu a mão a uma senhora alta, loura, com um meio véo muito apertado e muito escuro que realçava o explendor da sua carnação eburnea. Craft e Carlos affastaram-se, ella passou diante d’elles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atraz de si como uma claridade, um reflexo de cabellos d’ouro, e um aroma no ar. Trazia um casaco collante de velludo branco de Genova, e um momento sobre as lages do peristillo brilhou o verniz das suas bottinas. O rapaz ao lado, esticado n’um fato de xadresinho inglez, abria negligentemente um telegramma; o preto seguia com a cadelhinha nos braços. E no silencio a voz de Craft murmurou:

— ­Trés chic.

Em cima, no gabinete que o creado lhes indicou, Ega esperava, sentado no divan de marroquim, e conversando com um rapaz baixote, gordo, frisado como um noivo de provincia, de camelia ao peito e plastron azul celeste. O Craft conhecia-o; Ega apresentou a Carlos o sr. Damaso Salcêde, e mandou servir vermouth, por ser tarde, segundo lhe parecia, para esse requinte litterario e satanico do absintho...

Fôra um dia d’inverno suave e luminoso, as duas janellas estavam ainda abertas. Sobre o rio, no céu largo, a tarde morria, sem uma aragem, n’uma paz elysea, com nuvensinhas muito altas, paradas, tocadas de côr de rosa; as terras, os longes da outra banda já se iam affogando n’um vapor avelludado, do tom de violeta; a agoa jazia liza e luzidia como uma bella chapa d’aço novo; e aqui e alem, pelo vasto ancoradouro, grossos navios de carga, longos paquetes estrangeiros, dois couraçados inglezes, dormiam, com as mastreações immoveis, como tomados de preguiça, cedendo ao affago do clima doce...

— ­Vimos agora lá em baixo, disse Craft indo sentar-se no divan, uma esplendida mulher, com uma esplendida cadellinha griffon, e servida por um esplendido preto!

O sr. Damaso Salcêde, que não despegava os olhos de Carlos, acudiu logo:

— ­Bem sei! Os Castro Gomes... Conheço-os muito... Vim com elles de Bordeus... Uma gente muito chic que vive em Paris.

Carlos voltou-se, reparou mais n’elle, perguntou-lhe, affavel e interessando-se:

— ­O senhor Salcêde chegou agora de Bordeus?

Estas palavras pareceram deleitar Damaso como um favor celeste: ergueu-se immediatamente, approximou-se do Maia, banhado n’um sorriso:

— ­Vim aqui ha quinze dias, no Orenoque. Vim de Paris... Que eu em podendo é lá que me pilham! Esta gente conheci-a em Bordeus. Isto é, verdadeiramente conheci-a a bordo. Mas estavamos todos no Hotel de Nantes... Gente muito chic: creado de quarto, governanta ingleza para a filhita, femme de chambre, mais de vinte malas... Chic a valer! Parece incrivel, uns brazileiros... Que ella na voz não tem sutaque nenhum, falla como nós. Elle sim, elle muito sutaque... Mas elegante tambem, v. ex.ª não lhe pareceu?

— ­Vermouth? perguntou-lhe o creado, offerecendo a salva.

— ­Sim, uma gotinha para o appetite. V. ex.ª não toma, sr. Maia? Pois eu, assim que posso, é direitinho para Paris! Aquillo é que é terra! Isto aqui é um chiqueiro... Eu, em não indo lá todos os annos, acredite v. ex.ª, até começo a andar doente. Aquelle boulevarsinho, hein!... Ai, eu goso aquillo!... E sei gosar, sei gosar, que eu conheço aquillo a palmo... Tenho até um tio em Paris.

— ­E que tio! exclamou Ega, approximando-se. Intimo do Gambetta, governa a França... O tio do Damaso governa a França, menino!

Damaso, escarlate, estourava de gôso.

— ­Ah, lá isso influencia tem. Intimo do Gambetta, tratam-se por tu, até vivem quasi juntos... E não é só com o Gambetta; é com o Mac-Mahon, com o Rochefort, com o outro de que me esquece agora o nome, com todos os republicanos, emfim!... É tudo quanto elle queira. V. ex.ª não o conhece? É um homem de barbas brancas... Era irmão de minha mãe, chama-se Guimarães. Mas em Paris chamam-lhe Mr. de Guimaran...

N’esse momento a porta envidraçada abriu-se de golpe, Ega exclamou: «Saude ao poeta»!

E appareceu um individuo muito alto, todo abotoado n’uma sobrecasaca preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos, espessos, romanticos bigodes grisalhos: já todo calvo na frente, os anneis fôfos d’uma grenha muito secca cahiam-lhe inspiradamente sobre a golla: e em toda a sua pessoa havia alguma cousa de antiquado, de artificial e de lugubre.

Estendeu silenciosamente dous dedos ao Damaso, e abrindo os braços lentos para Craft, disse n’uma voz arrastada, cavernosa, atheatrada:

— ­Então és tu, meu Craft! Quando chegaste tu, rapaz? Dá-me cá esses ossos honrados, honrado inglez!

Nem um olhar dera a Carlos. Ega adiantou-se, apresentou-os:

— ­Não sei se são relações. Carlos da Maia... Thomaz d’Alencar, o nosso poeta...

Era elle! o illustre cantor das Vozes d’Aurora, o estylista de Elvira, o dramaturgo do Segredo do Commendador. Deu dois passos graves para Carlos, esteve-lhe apertando muito tempo a mão em silencio — ­e sensibilisado, mais cavernoso:

— ­V. ex.ª, já que as etiquetas sociaes querem que eu lhe dê excellencia, mal sabe a quem apertou agora a mão...

Carlos, surprehendido, murmurou:

— ­Eu conheço muito de nome...

E o outro com o olho cavo, o labio tremulo:

— ­Ao camarada, ao inseparavel, ao intimo de Pedro da Maia, do meu pobre, do meu valente Pedro!

— ­Então, que diabo, abracem-se! gritou Ega. Abracem-se, com um berro, segundo as regras...

Alencar já tinha Carlos estreitado ao peito, e quando o soltou, retomando-lhe as mãos, sacudindo-lh’as, com uma ternura ruidosa:

— ­E deixemo-nos já de excellencias! que eu vi-te nascer, meu rapaz! trouxe-te muito ao collo! sujaste-me muita calça! Co’os diabos, dá cá outro abraço!

Craft olhava estas cousas vehementes, impassivel; Damaso parecia impressionado; Ega apresentou um copo de vermouth ao poeta:

— ­Que grande scena, Alencar! Jesus, Senhor! Bebe, para te recuperares da emoção...

Alencar esgotou-o d’um trago: e declarou aos amigos que não era a primeira vez que via Carlos. Já o admirara no seu phaeton, muitas vezes, e aos seus bellos cavallos inglezes. Mas não se quizera dar a conhecer. Elle nunca se atirava aos braços de ninguem, a não ser das mulheres... Foi encher outro calice de vermouth, e com elle na mão, plantado diante de Carlos, começou, n’um tom pathetico:

— ­A primeira vez que te vi, filho, foi no Pote das Almas! Estava eu no Rodrigues, esquadrinhando alguma d’essa velha litteratura, hoje tão despresada... Lembro-me até que era um volume das Eclogas do nosso delicioso Rodrigues Lobo, esse verdadeiro poeta da natureza, esse rouxinol tão portuguez, hoje, está claro, mettido a um canto, desde que para ahi appareceu o Satanismo, o Naturalismo e o Bandalhismo, e outros esterquilinios em ismo... N’esse momento passaste, disseram-me quem eras, e cahiu-me o livro da mão... Fiquei alli uma hora, acredita, a pensar, a rever o passado...

E atirou o vermouth ás goellas. Ega, impaciente, olhava o relogio. Um creado, entrando, accendeu o gaz; a mesa surgiu da penumbra, com um brilho de cristaes e louças, um luxo de camelias em ramos.

No entanto Alencar (que á luz viva parecia mais gasto e mais velho) começara uma grande historia, e como fôra elle o primeiro que vira Carlos depois de nascer, e como fôra elle que lhe dera o nome.

— ­Teu pae, dizia elle, o meu Pedro, queria-te pôr o nome d’Affonso, d’esse santo, d’esse varão d’outras edades, Affonso da Maia! Mas tua mãe que tinha lá as suas idéas teimou em que havias de ser Carlos. E justamente por causa d’um romance que eu lhe emprestára; n’esses tempos podiam-se emprestar romances a senhoras, ainda não havia a pustula e o puz... Era um romance sobre o ultimo Stuart, aquelle bello typo do principe Carlos Eduardo, que vocês, filhos, conhecem todos bem, e que na Escossia, no tempo de Luiz XIV... Emfim, adiante! Tua mãe, devo dizel-o, tinha litteratura e da melhor. Consultou-me, consultava-me sempre, n’esse tempo eu era alguem, e lembro-me de lhe ter respondido... (Lembro-me apesar de já lá irem vinte e cinco annos... Que digo eu? Vinte e sete! Vejam vocês isto, filhos, vinte e sete annos!) Emfim, voltei-me para tua mãe, e disse-lhe, palavras textuaes: «Ponha-lhe o nome de Carlos Eduardo, minha rica senhora, Carlos Eduardo, que é o verdadeiro nome para o frontespicio d’um poema, para a fama d’um heroismo ou para o labio d’uma mulher!»

Damaso, que continuava a admirar Carlos, deu bravos estrondosos; Craft bateu ligeiramente os dedos; e o Ega, que rondava a porta, nervoso, de relogio na mão, soltou de lá um muito bem desenxabido.

Alencar, radiante com o seu effeito, derramava em roda um sorriso que lhe mostrava os dentes estragados. Abraçou outra vez Carlos, atirou uma palmada ao coração, exclamou:

— ­Caramba, filhos, sinto uma luz cá dentro!

A porta abriu-se, o Cohen entrou, todo apressado, desculpando-se logo da sua demora — ­emquanto Ega, que se precipitara para elle, lhe ajudava a despir o palletot. Depois apresentou-o a Carlos — ­a unica pessoa alli de quem o Cohen não era intimo. E dizia, tocando o botão da campainha electrica:

— ­O marquez não pôde vir, menino, e o pobre Steinbroken, coitado, está com a sua gôtta, a gôtta de diplomata, de lord e de banqueiro... A gôtta que tu has de ter, velhaco!

Cohen, um homem baixo, apurado, de olhos bonitos, e suissas tão pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz, sorria, descalçando as luvas, dizendo, que, segundo os inglezes, havia tambem a gôtta de gente pobre; e era essa naturalmente a que lhe competia a elle...

Ega, no entanto, travara-lhe do braço, collocara-o preciosamente á mesa, á sua direita: depois offereceu-lhe um botão de camelia d’um ramo: o Alencar florio-se tambem — ­e os creados serviram as ostras.

Fallou-se logo do crime da Mouraria, drama fadista que impressionava Lisboa, uma rapariga com o ventre rasgado á navalha por uma companheira, vindo morrer na rua em camisa, dois faias esfaqueando-se, toda uma viella em sangue — ­uma sarrabulhada como disse o Cohen, sorrindo e provando o Bucellas.

Damaso teve a satisfação de poder dar detalhes; conhecera a rapariga, a que dera as facadas, quando ella era amante do visconde da Ermidinha... Se era bonita? Muito bonita. Umas mãos de duqueza... E como aquillo cantava o fado! O peior era que mesmo no tempo do visconde, quando ella era chic, já se empiteirava... E o visconde, honra lhe seja, nunca lhe perdera a amisade; respeitava-a, mesmo depois de casado ía vel-a, e tinha-lhe promettido que se ella quizesse deixar o fado lhe punha uma confeitaria para os lados da Sé. Mas ella não queria. Gostava d’aquillo, do Bairro Alto, dos cafés de lepes, dos chulos...

Esse mundo de fadistas, de faias, parecia a Carlos merecer um estudo, um romance... Isto levou logo a fallar-se do Assommoir, de Zola e do realismo: — ­e o Alencar immediatmente, limpando os bigodes dos pingos de sôpa, supplicou que se não discutisse, á hora aceada do jantar, essa litteratura latrinaria. Alli todos eram homens d’aceio, de sala, hein? Então, que se não mencionasse o excremento!

Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições; essas rudes analyses, apoderando-se da Egreja, da Realeza, da Bureocracia, da Finança, de todas as cousas santas, dissecando-as brutalmente e mostrando-lhes a lesão, como a cadaveres n’um amphitheatro; esses estylos novos, tão precisos e tão ducteis, apanhando em flagrante a linha, a côr, a palpitação mesma da vida; tudo isso (que elle, na sua confusão mental, chamava a Idéa nova) caindo assim de chofre e escangalhando a cathedral romantica, sob a qual tantos annos elle tivera altar e celebrara missa, tinha desnorteado o pobre Alencar e tornara-se o desgosto litterario da sua velhice. Ao principio reagiu. «Para pôr um dique definitivo á torpe maré», como elle disse em plena Academia, escreveu dois folhetins crueis; ninguem os leu; a «maré torpe» alastrou-se, mais profunda, mais larga. Então Alencar refugiou-se na moralidade como n’uma rocha solida. O naturalismo, com as suas alluviões de obscenidade, ameaçava corromper o pudor social? Pois bem. Elle, Alencar, seria o paladino da Moral, o gendarme dos bons costumes. Então o poeta das Vozes d’Aurora, que durante vinte annos, em cançoneta e ode, propozera commercios lubricos a todas as damas da capital; então o romancista de Elvira que, em novella e drama, fizera a propaganda do amor illegitimo, representando os deveres conjugaes como montanhas de tedio, dando a todos os maridos formas gordurosas e bestiaes, e a todos os amantes a belleza, o esplendor e o genio dos antigos Apollos; então Thomaz Alencar que (a acreditarem-se as confissões autobiographicas da Flôr de Martyrio) passava elle proprio uma existencia medonha de adulterios, lubricidades, orgias, entre velludos e vinhos de Chypre — ­d’ora em diante austero, incorruptivel, todo elle uma torre de pudicicia, passou a vigiar attentamente o jornal, o livro, o theatro. E mal lobrigava symptomas nascentes de realismo n’um beijo que estalava mais alto, n’uma brancura de saia que se arregaçava de mais — ­eis o nosso Alencar que soltava por sobre o paiz um grande grito de alarme, corria á penna, e as suas imprecações lembravam (a academicos faceis de contentar) o rugir de Isaias. Um dia porém, Alencar teve uma d’estas revelações que prostram os mais fortes; quanto mais elle denunciava um livro como immoral, mais o livro se vendia como agradavel! O Universo pareceu-lhe cousa torpe, e o auctor de Elvira encavacou...

Desde então reduziu a expressão do seu rancor ao minimo, a essa phrase curta, lançada com nojo:

— ­Rapazes, não se mencione o excremento!

Mas n’essa noite teve o regosijo de encontrar alliados. Craft não admittia tambem o naturalismo, a realidade feia das cousas e da sociedade estatelada nua n’um livro. A arte era uma idealisação! Bem: então que mostrasse os typos superiores d’uma humanidade aperfeiçoada, as fórmas mais bellas do viver e do sentir... Ega horrorisado apertava as mãos na cabeça — ­quando do outro lado Carlos declarou que o mais intoleravel no realismo eram os seus grandes ares scientificos, a sua pretenciosa esthetica deduzida d’uma philosophia alheia, e a invocação de Claude Bernard, do experimentalismo, do positivismo, de Stuart Mill e de Darwin, a proposito d’uma lavadeira que dorme com um carpinteiro!

Assim atacado, entre dois fogos, Ega trovejou: justamente o fraco do realismo estava em ser ainda pouco scientifico, inventar enredos, crear dramas, abandonar-se á phantasia litteraria! a fórma pura da arte naturalista devia ser a monographia, o estudo secco d’um typo, d’um vicio, d’uma paixão, tal qual como se se tratasse d’um caso pathologico, sem pittoresco e sem estylo!...

— ­Isso é absurdo, dizia Carlos, os caracteres só se podem manifestar pela acção...

— ­E a obra d’arte, accrescentou Craft, vive apenas pela fórma...

Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram necessarias tantas philosophias.

— ­Vocês estão gastando cêra com ruins defuntos, filhos. O realismo critica-se d’este modo: mão no nariz! Eu quando vejo um d’esses livros, enfrasco-me logo em agua de colonia. Não discutamos o excremento.

— ­Sole normande? perguntou-lhe o creado, adiantando a travessa.

Ega ía fulminal-o. Mas, vendo que o Cohen dava um sorriso enfastiado e superior a estas controversias de litteraturas, calou-se; occupou-se só d’elle, quiz saber que tal elle achava aquelle S.t Emilion; e, quando o viu confortavelmente servido de sole normande, lançou com grande alarde de interesse esta pergunta:

— ­Então, Cohen, diga-nos você, conte-nos cá... O emprestimo faz-se ou não se faz?

E acirrou a curiosidade, dizendo para os lados, que aquella questão do emprestimo era grave. Uma operação tremenda, um verdadeiro episodio historico!...

O Cohen collocou uma pitada de sal á beira do prato, e respondeu, com auctoridade, que o emprestimo tinha de se realisar absolutamente. Os emprestimos em Portugal constituiam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensavel, tão sabida como o imposto. A unica occupação mesmo dos ministerios era esta — ­cobrar o imposto e fazer o emprestimo. E assim se havia de continuar...

Carlos não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, d’esse modo, o paiz ia alegremente e lindamente para a banca-rota.

— ­N’um galopesinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguem tem illusões, meu caro senhor. Nem os proprios ministros da fazenda!... A banca-rota é inevitavel: é como quem faz uma somma...

Ega mostrou-se impressionado. Olha que brincadeira, hein! E todos escutavam o Cohen. Ega, depois de lhe encher o calice de novo, fincara os cotovellos na meza para lhe beber melhor as palavras.

— ­A banca-rota é tão certa, as cousas estão tão dispostas para ella — ­continuava o Cohen — ­que seria mesmo facil a qualquer, em dois ou tres annos, fazer fallir o paiz...

Ega gritou sofregamente pela receita. Simplesmente isto: manter uma agitação revolucionaria constante; nas vesperas de se lançarem os emprestimos haver duzentos maganões decididos que cahissem á pancada na municipal e quebrassem os candieiros com vivas á Republica; telegraphar isto em letras bem gordas para os jornaes de Paris, Londres e do Rio de Janeiro; assustar os mercados, assustar o brazileiro, e a banca-rota estalava. Sómente, como elle disse, isto não convinha a ninguem.

Então Ega protestou com vehemencia. Como não convinha a ninguem? Ora essa! Era justamente o que convinha a todos! Á banca-rota seguia-se uma revolução, evidentemente. Um paiz que vive da inscripção, em não lh’a pagando, agarra no cacete; e procedendo por principio, ou procedendo apenas por vingança — ­o primeiro cuidado que tem é varrer a monarchia que lhe representa o calote, e com ella o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise, Portugal livre da velha divida, da velha gente, d’essa collecção grotesca de bestas...

A voz do Ega sibillava... Mas, vendo assim tratados de grotescos, de bestas, os homens d’ordem que fazem prosperar os Bancos, Cohen pousou a mão no braço do seu amigo e chamou-o ao bom-senso. Evidentemente, elle era o primeiro a dizel-o, em toda essa gente que figurava desde 46 havia mediocres e patetas, — ­mas tambem homens de grande valor!

— ­Ha talento, ha saber, dizia elle com um tom de experiencia. Você deve reconhecel-o, Ega... Você é muito exagerado! Não senhor, ha talento, ha saber.

E, lembrando-se que algumas d’essas bestas eram amigos do Cohen, Ega reconheceu-lhes talento e saber. O Alencar porém cofiava sombriamente o bigode. Ultimamente pendia para idéas radicaes, para a democracia humanitaria de 1848: por instincto, vendo o romantismo desacreditado nas letras, refugiava-se no romantismo politico, como n’um asylo paralello: queria uma republica governada por genios, a fraternisação dos povos, os Estados Unidos da Europa... Além d’isso, tinha longas queixas d’esses politiquotes, agora gente de Poder, outr’ora seus camaradas de redacção, de café e de batota...

— ­Isso, disse elle, lá a respeito de talento e de saber, historias... Eu conheço-os bem, meu Cohen...

O Cohen acudiu:

— ­Não senhor, Alencar, não senhor! Você tambem é dos taes... Até lhe fica mal dizer isso... É exageração. Não senhor, ha talento, ha saber.

E o Alencar, peranta esta intimação do Cohen, o respeitado director do Banco Nacional, o marido da divina Rachel, o dono d’essa hospitaleira casa da rua do Ferregial onde se jantava tão bem, recalcou o despeito — ­admittiu que não deixava de haver talento e saber.

Então, tendo assim, pela influencia do seu Banco, dos bellos olhos da sua mulher e da excellencia do seu cosinheiro, chamado estes espiritos rebeldes ao respeito dos Parlamentares e á veneração da Ordem, Cohen condescendeu em dizer, no tom mais suave da sua voz, que o paiz necessitava reformas...

Ega porém, incorrigivel n’esse dia, soltou outra enormidade:

— ­Portugal não necessita refórmas, Cohen, Portugal o que precisa é a invasão hespanhola.

Alencar, patriota à antiga, indignou-se. O Cohen, com aquelle sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava os bonitos dentes, vio alli apenas «um dos paradoxos do nosso Ega.» Mas o Ega fallava com seriedade, cheio de razões. Evidentemente, dizia elle, invasão não significa perda absoluta de independencia. Um receio tão estupido é digno só de uma sociedade tão estupida como a do Primeiro de Dezembro. Não havia exemplo de seis milhões de habitantes serem engolidos, de um só trago, por um paiz que tem apenas quinze milhões de homens. Depois ninguem consentiria em deixar cahir nas mãos de Hespanha, nação militar e maritima, esta bella linha de costa de Portugal. Sem contar as allianças que teriamos, a troco das colonias — ­das colonias que só nos servem, como a prata de familia aos morgados arruinados, para ir empenhando em casos de crise... Não havia perigo; o que nos aconteceria, dada uma invasão, n’um momento de guerra europea, seria levarmos uma sova tremenda, pagarmos uma grossa indemnisação, perdermos uma ou duas provincias, ver talvez a Galliza estendida até ao Douro...

— ­Poulet aux champignons, murmurou o creado, apresentando-lhe a travessa.

E em quanto elle se servia, perguntavam-lhe dos lados onde via elle a salvação do paiz, n’essa catastrophe que tornaria povoação hespanhola Celorico de Basto, a nobre Celorico, berço de heroes, berço dos Egas...

— ­N’isto: no ressuscitar do espirito publico e do genio portuguez! Sovados, humilhados, arrasados, escalavrados, tinhamos de fazer um esforço desesperado para viver. E em que bella situação nos achavamos! Sem monarchia, sem essa caterva de politicos, sem esse tortulho da inscripção, porque tudo desapparecia, estavamos novos em folha, limpos, escarollados, como se nunca tivessemos servido. E recomeçava-se uma historia nova, um outro Portugal, um Portugal serio e intelligente, forte e decente, estudando, pensando, fazendo civilisação como outr’ora... Meninos, nada regenera uma nação como uma medonha tarêa... Oh Deus d’Ourique, manda-nos o castelhano! E você, Cohen, passe-me o S.t Emilion.

Agora, n’um rumor animado, discutia-se a invasão. Ah, podia-se fazer uma bella resistencia! Cohen affiançava o dinheiro. Armas, artilheria, iam comprar-se á America — ­e Craft offereceu logo a sua collecção de espadas do seculo XVI. Mas generaes? Alugavam-se. Mac-Mahon, por exemplo, devia estar barato...

— ­O Craft e eu organisamos uma guerrilha, gritou Ega.

— ­Ás ordens, meu coronel.

— ­O Alencar, continuava Ega, é encarregado de ir despertar pela provincia o patriotismo, com cantos e com odes!

Então o poeta, pousando o calice, teve um movimento de leão que sacode a juba:

— ­Isto é uma velha carcassa, meu rapaz, mas não está só para odes! Ainda se agarra uma espingarda, e como a pontaria é boa, ainda vão a terra um par de gallegos... Caramba, rapazes, só a idéa d’essas cousas me põe o coração negro! E como vocés podem fallar n’isso, a rir, quando se trata do paiz, d’esta terra onde nascemos, que diabo! Talvez seja má, de accordo, mas, caramba! é a unica que temos, não temos outra! É aqui que vivemos, é aqui que rebentamos... Irra, fallemos d’outra cousa, fallemos de mulheres!

Dera um repellão ao prato, os olhos humedeciam-se-lhe de paixão patriotica...

E no silencio que se fez Damaso, que desde as informações sobre a rapariga do Ermidinha emmudecera, occupado a observar Carlos com religião, ergueu a voz pausadamente, disse, com um ar de bom senso e de finura:

— ­Se as cousas chegassem a esse ponto, se pozessem assim feias, eu cá, á cautela, ía-me raspando para Paris...

Ega triumphou, pulou de gosto na cadeira. Eis alli, no labio synthetico de Damaso, o grito espontaneo e genuino do brio portuguez! Raspar-se, pirar-se!... Era assim que d’alto a baixo pensava a sociedade de Lisboa, a malta constitucional, desde El-Rei nosso Senhor até aos cretinos de secretaria!...

— ­Meninos, ao primeiro soldado hespanhol que appareça á fronteira, o paiz em massa foge como uma lebre! Vae ser uma debandada unica na historia!

Houve uma indignação, Alencar gritou:

— ­Abaixo o traidor!

Cohen interveiu, declarou que o soldado portuguez era valente, á maneira dos turcos — ­sem disciplina, mas teso. O proprio Carlos disse, muito serio:

— ­Não senhor... Ninguem ha de fugir, e ha de se morrer bem.

Ega rugiu. Para quem estavam elles fazendo essa pose heroica? Então ignoravam que esta raça, depois de cincoenta annos de constitucionalismo, creada por esses saguões da Baixa, educada na piolhice dos lyceus, roída de syphlis, apodrecida no bolôr das secretarias, arejada apenas ao domingo pela poeira do Passeio, perdera o musculo como perdera o caracter, e era a mais fraca, a mais covarde raça da Europa?...

— ­Isso são os lisboetas, disse Craft.

— ­Lisboa é Portugal, gritou o outro. Fóra de Lisboa não ha nada. O paiz está todo entre a Arcada e S. Bento!...

A mais miseravel raça da Europa! continuava elle a berrar. E que exercito! Um regimento, depois de dois dias de marcha, dava entrada em massa no hospital! Com seus olhos tinha elle visto, no dia da abertura das Côrtes, um marujo sueco, um rapagão do Norte, fazer debandar, a soccos, uma companhia de soldados; as praças tinham litteralmente largado a fugir, com a patrona a batter-lhe os rins; e o official, enfiado de terror, metteu-se para uma escada, a vomitar!...

Todos protestaram. Não, não era possivel... Mas se elle tinha visto, que diabo!... Pois sim, talvez, mas com os olhos fallazes da phantasia...

— ­Juro pela saude da mamã! gritou Ega furioso.

Mas emmudeceu. O Cohen tocara-lhe no braço. O Cohen ía fallar.

O Cohen queria dizer que o futuro pertence a Deus. Que os hespanhoes porém pensassem na invasão isso parecia-lhe certo — ­sobretudo se viessem, como era natural, a perder Cuba. Em Madrid todo o mundo lh’o dissera. Já havia mesmo negocios de fornecimentos entabolados...

— ­Hespanholadas, gallegadas! rosnou Alencar, por entre dentes, sombrio e torcendo os bigodes.

— ­No Hotel de Paris, continuou Cohen, em Madrid, conheci eu um magistrado, que me disse com um certo ar que não perdia a esperança de se vir estabelecer de todo em Lisboa; tinha-lhe agradado muito Lisboa, quando cá estivera a banhos. E em quanto a mim, estou que ha muitos hespanhoes que estão á espera d’este augmento de territorio para se empregarem!

Então Ega cahiu em extasi, apertou as mãos contra o peito. Oh que delicioso traço! Oh que admiravelmente observado!

— ­Este Cohen! exclamava elle para os lados. Que finamente observado! Que traço adoravel! Hein, Craft? Hein, Carlos? Delicioso!

Todos cortezmente admiraram a finura do Cohen. Elle agradecia, com o olho enternecido, passando pelas suissas a mão onde reluzia um diamante. E n’esse momento os creados serviam um prato de ervilhas n’um molho branco, murmurando:

— ­Petits pois a la Cohen.

A la Cohen? Cada um verificou o seu menu mais attentamente. E lá estava, era o legume: petits pois a la Cohen! Damaso, enthusiasmado, declarou isto «chic a valer!» E fez-se, com o Champagne que se abria, a primeira saude ao Cohen!

Esquecera-se a banca rota, a invasão, a patria — ­o jantar terminava alegremente. Outras saudes crusaram-se, ardentes e loquazes: o proprio Cohen, com o sorriso de quem cede a um capricho de creança, bebeu á Revolução e á Anarchia, brinde complicado, que o Ega erguera, já com o olho muito brilhante. Sobre a toalha, a sobremeza alastrava-se, destroçada; no prato do Alencar as pontas de cigarros misturavam-se a bocados de ananaz mastigado. Damaso, todo debruçado sobre Carlos, fazia-lhe o elogio da parelha ingleza, e d’aquelle phaeton que era a cousa mais linda que passeiava Lisboa. E logo depois do seu brinde de demagogo, sem razão, Ega arremettera contra Craft, injuriando a Inglaterra, querendo excluil-a d’entre as nações pensantes, ameaçando-a de uma revolução social que a ensoparia em sangue: o outro respondia com acenos de cabeça, imperturbavel, partindo nozes.

Os creados serviram o café. E como havia já tres longas horas que estavam á meza, todos se ergueram, acabando os charutos, conversando, na animação viva que dera o Champagne. A sala, de tecto baixo, com os cinco bicos de gaz ardendo largamente, enchera-se de um calor pesado, onde se ia espalhando agora o aroma forte das chartreuses e dos licores por entre a nevoa alvadia do fumo.

Carlos e Craft, que abafavam, foram respirar para a varanda; e ahi recomeçou logo, n’aquella communidade de gostos que os começava a ligar, a conversa da rua do Alecrim sobre a bella collecção dos Olivaes. Craft dava detalhes; a cousa rica e rara que tinha era um armario hollandez do seculo XVI; de resto, alguns bronzes, faianças e boas armas...

Mas ambos se voltaram ouvindo, no grupo dos outros, junto á meza, estridencias de voz, e como um conflicto que rompia: Alencar, sacudindo a grenha, gritava contra a palhada philosophica; e do outro lado, com o calice de cognac na mão, Ega, pallido e affectando uma tranquillidade superior, declarava toda essa babuge lyrica que por ahi se publica digna da policia correccional...

— ­Pegaram-se outra vez, veiu dizer Damaso a Carlos, approximando-se da varanda. É por causa do Craveiro. Estão ambos divinos!

Era com effeito a proposito de poesia moderna, de Simão Craveiro, do seu poema a Morte de Satanaz. Ega estivera citando, com enthusiasmo, estrophes do episodio da Morte, quando o grande esqueleto symbolico passa em pleno sol no Boulevard, vestido como uma cocotte, arrastando sedas rumorosas

«E entre duas costellas, no decotte,
Tinha um bouquet de rosas!»

E o Alencar, que detestava o Craveiro, o homem da Idéa nova, o paladino do Realismo, triumphara, cascalhara, denunciando logo n’essa simples estrophe dois erros de grammatica, um verso errado, e uma imagem roubada a Beaudelaire!

Então Ega, que bebera um sobre outro dois calices de cognac, tornou-se muito provocante, muito pessoal.

— ­Eu bem sei por que tu fallas, Alencar, dizia elle agora. E o motivo não é nobre. É por causa do epigramma que elle te fez:

O Alencar d’Alemquer,
Acceso com a primavera...

— ­Ah, vocês nunca ouviram isto? continuou elle voltando-se, chamando os outros. É delicioso, é das melhores cousas do Craveiro. Nunca ouviste, Carlos? É sublime, sobre tudo esta estrophe:

O Alencar d’Alemquer
Que quer? Na verde campina
Não colhe a tenra bonina
Nem consulta o malmequer...
Que quer? Na verde campina
O Alencar d’Alemquer
Quer menina!

Eu não me lembro do resto, mas termina com um grito de bom senso, que é a verdadeira critica de todo esse lyrismo pandilha:

O Alencar d’Alemquer
Quer cacete!

Alencar passou a mão pela testa livida, e com o olho cavo fito no outro, a voz rouca e lenta:

— ­Olha, João da Ega, deixa-me dizer-te uma cousa, meu rapaz... Todos esses epigrammas, esses dichotes lorpas do rachitico e dos que o admiram, passam-me pelos pés como um enxurro de cloaca... O que faço é arregaçar as calças! Arregaço as calças... Mais nada, meu Ega. Arregaço as calças!

E arregaçou-as realmente, mostrando a ceroula, n’um gesto brusco e de delirio.

— ­Pois quando encontrares enchurros d’esses, gritou-lhe o Ega, agacha-te e bebe-os! Dão-te sangue e força ao lyrismo!

Mas Alencar, sem o ouvir, berrava para os outros, esmurrando o ar:

— ­Eu, se esse Craveirete não fosse um rachitico, talvez me entretivesse a rolal-o aos pontapés por esse Chiado abaixo, a elle e á versalhada, a essa lambisgonhice excrementicia com que seringou Satanaz! E depois de o besuntar bem de lama, esborrachava-lhe o craneo!

— ­Não se esborracham assim craneos, disse de lá o Ega n’um tom frio de troça.

Alencar voltou para elle uma face medonha. A colera e o cognac incendiavam-lhe o olhar; todo elle tremia:

— ­Esborrachava-lh’o, sim, esborrachava, João da Ega! Esborrachava-lh’o assim, olha, assim mesmo! — ­Rompeu a atirar patadas ao soalho, abalando a sala, fazendo tilintar crystaes e louças. — ­Mas não quero, rapazes! Dentro d’aquelle craneo só ha excremento, vomito, puz, materia verde, e se lh’o esborrachasse, por que lh’o esborrachava, rapazes, todo o miollo podre sahia, empestava a cidade, tinhamos o cholera! Irra! Tinhamos a peste!

Carlos, vendo-o tão excitado, tornou-lhe o braço, quiz calmal-o:

— ­Então, Alencar! Que tolice... Isso vale lá a pena!...

O outro desprendeu-se, arquejante, desabotoou a sobrecasaca, soltou o ultimo desabafo:

— ­Com effeito, não vale a pena ninguem zangar-se por causa d’esse Craveirote da Idéa nova, esse caloteiro, que se não lembra que a porca da irmã é uma meretriz de doze vintens em Marco de Canavezes!

— ­Não, isso agora é de mais, pulha! gritou Ega, arremeçando-se, de punhos fechados.

Cohen e Damaso, assustados, agarraram-n’o. Carlos puchara logo para o vão da janella o Alencar que se debatia, com os olhos chammejantes, a gravata solta. Tinha cahido uma cadeira; a correcta sala, com os seus divans de marroquim, os seus ramos de camelias, tomava um ar de taverna, n’uma bulha de faias, entre a fumaraça de cigarros. Damaso, muito pallido, quasi sem voz, ía d’um a outro:

— ­Oh meninos, oh meninos, aqui, no Hotel Central! Jesus!... Aqui no Hotel Central!...

E, d’entre os braços do Cohen, Ega berrava, já rouco:

— ­Esse pulha, esse covarde... Deixe-me, Cohen! Não, isso hei de esbofeteal-o!... A D. Anna Craveiro, uma santa!... Esse calumniador... Não, isso hei de esganal-o!...

Craft, no entanto, impassivel, bebia aos golos a sua chartreuse. Já presenceára, mais vezes, duas litteraturas rivaes engalphinhando-se, rolando no chão, n’um latir de injurias: a torpeza do Alencar sobre a irmã do outro fazia parte dos costumes de critica em Portugal: tudo isso o deixava indifferente, com um sorriso de desdem. Além d’isso sabia que a reconciliação não tardaria, ardente e com abraços. E não tardou. Alencar sahiu do vão da janella, atraz de Carlos, abotoando a sobrecasaca, grave e como arrependido. A um canto da sala, Cohen fallava ao Ega com auctoridade, severo, á maneira d’um pae: depois voltou-se, ergueu a mão, ergueu a voz, disse que alli todos eram cavalheiros: e como homens de talento e de coração fidalgo os dois deviam abraçar-se...

— ­Vá, um shake-hands, Ega, faça isso por mim!... Alencar, vamos, peço-lh’o eu!

O auctor de Elvira deu um passo, o auctor das Memorias d’um Atomo estendeu a mão: mas o primeiro aperto foi gôche e molle. Então Alencar, generoso e rasgado, exclamou que entre elle e o Ega não devia ficar uma nuvem! Tinha-se excedido... Fôra o seu desgraçado genio, esse calor de sangue, que durante toda a existencia só lhe trouxera lagrimas! E alli declarava bem alto que Anna Craveiro era uma santa! Tinha-a conhecido em Marco de Canavezes, em casa dos Peixotos... Como esposa, como mãe, Anna Craveiro era impeccavel. E reconhecia, do fundo d’alma, que o Craveiro tinha carradas de talento!...

Encheu um copo de Champagne, ergueu-o alto, diante do Ega, como um calice de altar:

— ­Á tua, João!

Ega, generoso tambem, respondeu:

— ­Á tua, Thomaz!

Abraçaram-se. Alencar jurou que ainda na vespera, em casa de D. Joanna Coutinho, elle dissera que não conhecia ninguem mais scintillante que o Ega! Ega affirmou logo que em poemas nenhuns corria, como nos do Alencar, uma tão bella veia lyrica. Apertaram-se outra vez, com palmadas pelos hombros. Trataram-se de irmãos na arte, trataram-se de genios!...

— ­São extraordinarios, disse Craft baixo a Carlos, procurando o chapéo. Desorganisam-me, preciso ar!...

A noite alongava-se, eram onze horas. Ainda se bebeu mais cognac. Depois Cohen sahiu levando o Ega. Damaso e Alencar desceram com Carlos — ­que ia recolher a pé pelo Aterro.

Á porta, o poeta parou com solemnidade.

— ­Filhos, exclamou elle tirando o chapéo e refrescando largamente a fronte, então? Parece-me que me portei como um gentleman!

Carlos concordou, gabou-lhe a generosidade...

— ­Estimo bem que me digas isso, filho, porque tu sabes o que é ser gentleman! E agora vamos lá por esse Aterro fóra... Mas deixa-me ir alli primeiro comprar um pacote de tabaco...

— ­Que typo! exclamou Damaso, vendo-o affastar-se. E a cousa ía-se pondo feia...

E immediatamente, sem transição, começou a fazer elogios a Carlos. O sr. Maia não imaginava ha quanto tempo elle desejava conhecel-o!

— ­Oh senhor...

— ­Creia v. ex.ª... Eu não sou de sabujices... Mas pode v. ex.ª perguntar ao Ega, quantas vezes o tenho dito: v. ex.ª é a cousa melhor que ha em Lisboa!

Carlos, baixava a cabeça, mordendo o riso. Damaso, repetia, do fundo do peito.

— ­Olhe que isto é sincero, sr. Maia! Acredite v. ex.ª que isto é do coração!

Era realmente sincero. Desde que Carlos habitava Lisboa, tivera alli, n’aquelle moço gordo e bochechudo, sem o saber, uma adoração muda e profunda; o proprio verniz dos seus sapatos, a côr das suas luvas eram para o Damaso motivo de veneração, e tão importantes como principios. Considerava Carlos um typo supremo de chic, do seu querido chic, um Brummel, um d’Orsay, um Morny, — ­uma «d’estas cousas que só se vêem lá fóra», como elle dizia arregalando os olhos. N’essa tarde sabendo que vinha jantar com o Maia, conhecer o Maia, estivera duas horas ao espelho experimentando gravatas, perfumara-se como para os braços d’uma mulher; — ­e por causa de Carlos mandara estacionar alli o coupé, ás dez horas, com o cocheiro de ramo ao peito.

— ­Então essa senhora brazileira vive aqui? perguntou Carlos, que dera dous passos, olhava uma janella allumiada no segundo andar.

Damaso seguiu-lhe o olhar.

— ­Vive lá do outro lado. Estão aqui ha quinze dias... Gente chic... E ella é de appetecer, v. ex.ª reparou? Eu a bordo atirei-me... E ella dava cavaco! Mas tenho andado muito preso desde que cheguei, jantar aqui, soirée acolá, umas aventurasitas... Não tenho podido cá vir, deixei-lhes só bilhetes; mas trago-a d’olho, que ella demora-se... Talvez venha cá ámanhã, estou cá agora a sentir umas cocegas... E se me pilho só com ella, zás, ferro-lhe logo um beijo! Que eu cá, não sei se v. ex.ª é a mesma cousa, mas eu cá, com mulheres, a minha theoria é esta: attracão! Eu cá, é logo: attracão!

N’esse momento Alencar voltava do estanco, de charuto na boca. Damaso despediu-se, atirando muito alto ao cocheiro, para que Carlos ouvisse, a adresse da Morelli, a segunda dama de S. Carlos.

— ­Bom rapaz, este Damaso, dizia Alencar, travando de braço de Carlos, ao seguirem ambos pelo Aterro. É lá muito dos Cohens, muito querido na sociedade. Rapaz de fortuna, filho do velho Silva, o agiota, que esfolou muito teu pae; e a mim tambem. Mas elle assigna Salcede; talvez nome da mãe; ou talvez inventado. Bom rapaz... O pae era um velhaco! Parece que estou a ouvir o Pedro dizer-lhe com o seu ar de fidalgo, que o tinha e do grande: «Silva judeu, dinheiro, e a rôdo!»... Outros tempos, meu Carlos, grandes tempos. Tempos de gente!

E então por esse longo Aterro, triste no ar escuro, com as luzes do gaz dormente luzindo em fila d’enterro, Alencar foi fallando d’esses «grandes tempos» da sua mocidade e da mocidade de Pedro; e, atravéz das suas phrases de lyrico, Carlos sentia vir como um aroma antiquado d’esse mundo defunto... Era quando os rapazes ainda tinham um resto de calor das guerras civis, e o calmavam indo em bando varrer botequins ou rebentando pilecas de sejes em galopadas para Cintra. Cintra era então um ninho de amores, e sob as suas romanticas ramagens as fidalgas abandonavam-se aos braços dos poetas. Ellas eram Elviras, elles eram Antonys. O dinheiro abundava; a côrte era alegre; a Regeneração litterata e galante ia engrandecer o paiz, bello jardim da Europa; os bachareis chegavam de Coimbra, frementes de eloquencia; os ministros da corôa recitavam ao piano; o mesmo sopro lyrico inchava as odes e os projectos de lei...

— ­Lisboa era bem mais divertida, disse Carlos.

— ­Era outra cousa, meu Carlos! Vivia-se! Não existiriam esses ares scientificos, toda essa palhada philosophica, esses badamecos positivistas... Mas havia coração, rapaz! Tinha-se faisca! Mesmo n’essas cousas da politica... Vê esse chiqueiro agora ahi, essa malta de bandalhos... N’esse tempo ía-se alli á camara e sentia-se a inspiração, sentia-se o rasgo!... Via-se luz nas cabeças!... E depois, menino, havia muitissimo boas mulheres.

Os hombros descahiam-lhe na saudade d’esse mundo perdido. E parecia mais lugubre, com a sua grenha d’inspirado sahindo-lhe de sob as abas largas do chapéo velho, a sobrecasaca coçada e mal feita collando-se-lhe lamentavelmente ás ilhargas.

Um momento caminharam em silencio. Depois, na rua das Janellas Verdes, o Alencar quiz refrescar. Entraram n’uma pequena venda, onde a mancha amarella d’um candieiro de petroleo destacava n’uma penumbra de subterraneo, allumiando o zinco humido do balcão, garrafas nas prateleiras, e o vulto triste da patroa com um lenço amarrado nos queixos. Alencar parecia intimo no estabelecimento: apenas soube que a sr.ª Candida estava com dôr de dentes, aconselhou logo remedios, familiar, descido das nuvens romanticas, com os cotovellos sobre o balcão. E quando Carlos quiz pagar a canna branca zangou-se, bateu a sua placa de dois tostões sobre o zinco polido, exclamou, com nobreza:

— ­Eu é que faço a honra da bodega, meu Carlos! Nos palacios os outros pagarão... Cá na taberna pago eu!

Á porta tomou o braço de Carlos. Depois d’alguns passos lentos no silencio da rua, parou de novo, e murmurou n’uma voz vaga, contemplativa, como repassada da vasta solemnidade da noite:

— ­Aquella Rachel Cohen é divinamente bella, menino! Tu conhecel’a?

— ­De vista.

— ­Não te faz lembrar uma mulher da Biblia? Não digo lá uma d’essas viragos, uma Judith, uma Dalila... Mas um d’esses lyrios poeticos da Biblia... É seraphica!

Era agora a paixão platonica do Alencar, a sua dama, a sua Beatriz...

— ­Tu viste ha tempos, no Diario Nacional, os versos que eu lhe fiz?

«Abril chegou! Sê minha»
Dizia o vento á rosa.

Não me sahiu mau! Aqui ha uma maliciasinha: Abril chegou, sê minha... Mas logo: dizia o vento á rosa. Comprehendes? Calhou bem este effeito. Mas não imagines lá outras cousas, ou que lhe faço a côrte... Basta ser a mulher do Cohen, um amigo, um irmão... E a Rachel, para mim, coitadinha, é como uma irmã... Mas é divina. Aquelles olhos, filho, um velludo liquido!...

Tirou o chapeu, refrescou a fronte vasta. Depois n’outro tom, e como a custo:

— ­Aquelle Ega tem muito talento... Vae lá muito aos Cohens... A Rachel acha-lhe graça...

Carlos parára, estavam defronte do Ramalhete. Alencar deu um olhar á severa frontaria de convento, adormecida, sem um ponto de luz.

— ­Tem bom ar esta vossa casa... Pois entra tu, meu rapaz, que eu vou andando por aqui para a minha toca. E quando quizeres, filho, lá me tens na rua do Carvalho, 52, 3.^o andar. O predio é meu, mas eu occupo o terceiro andar. Comecei por habitar no primeiro, mas tenho ido trepando... A unica cousa mesmo que tenho trepado, meu Carlos, é de andares...

Teve um gesto, como desdenhando essas miserias.

— ­E has de ir lá jantar um dia. Não te posso dar um banquete, mas has de ter uma sopa e um assado... O meu Matheus, um preto, (um amigo!) que me serve ha muito anno, quando ha que cosinhar, sabe cosinhar! Fez muito jantar a teu pae, ao meu pobre Pedro... Que aquillo foi casa de alegria, meu rapaz. Dei lá cama e mesa, e dinheiro para a algibeira, a muita d’essa canalha que hoje por ahi trota em coupé da companhia e de correio atraz... E agora, quando me avistam, voltam para o lado o focinho...

— ­Isso são imaginações, disse Carlos com amisade.

— ­Não são, Carlos, respondeu o poeta, muito grave, muito amargo. Não são. Tu não sabes a minha vida. Tenho soffrido muito repellão, rapaz. E não o merecia! Palavra, que o não merecia.

Agarrou o braço de Carlos, e com a voz abalada:

— ­Olha que esses homens que por ahi figuram embebedavam-se comigo, emprestei-lhes muito pinto, dei-lhes muita ceia... E agora são ministros, são embaixadores, são personagens, são o diabo. Pois offereceram-te elles um bocado do bolo agora que o teem na mão? Não. Nem a mim. Isto é duro, Carlos, isto é muito duro, meu Carlos. E que diabo, eu não queria que me fizessem conde, nem que me dessem uma embaixada... Mas ahi alguma cousa n’uma secretaria... Nem um chavelho! Emfim, ainda há para o bocado do pão, e para a meia onça do tabaco... Mas esta ingratidão tem-me feito cabellos brancos... Pois não te quero massar mais, e que Deus te faça feliz como tu mereces, meu Carlos!

— ­Tu não queres subir um bocado, Alencar?

Tanta franqueza enterneceu o poeta.

— ­Obrigado, rapaz, disse elle, abraçando Carlos. E agradeço-te isso, porque sei que vem do coração... Todos vocês teem coração... Já teu pae o tinha, e largo, e grande como o d’um leão! E agora crê uma cousa: é que tens aqui um amigo. Isto não é palavriado, isto vem de dentro... Pois adeus, meu rapaz. Queres tu um charuto?

Carlos acceitou logo, como um presente do ceu.

— ­Então ahi tens um charuto, filho! exclamou Alencar com enthusiasmo.

E aquelle charuto dado a um homem tão rico, ao dono do Ramalhete, fazia-o por um momento voltar aos tempos em que n’esse Marrare elle estendia em redor a charuteira cheia, com o seu grande ar de Manfredo triste. Interessou-se então pelo charuto. Accendeu elle mesmo um phosphoro. Verificou se ficava bem acceso. E que tal, charuto rasoavel? Carlos achava um excellente charuto!

— ­Pois ainda bem que te dei um bom charuto!

Abraçou-o outra vez; e estava batendo uma hora, quando elle emfim se affastou, mais ligeiro, mais contente de si, trauteando um trecho de fado.

Carlos no seu quarto, antes de se deitar, acabando o pessimo charuto do Alencar estirado n’uma chaise-longue, em quanto Baptista lhe fazia uma chavena de chá, ficou pensando n’esse estranho passado que lhe evocara o velho lyrico...

E era sympathico o pobre Alencar! Com que cuidado exagerado, ao fallar de Pedro, d’Arroios, dos amigos e dos amores d’então, elle evitara pronunciar sequer o nome de Maria Monforte! Mais de uma vez, pelo Aterro fóra, estivera para lhe dizer: — ­pódes fallar da mamã, amigo Alencar, que eu sei perfeitamente que ella fugiu com um italiano!

E isto fêl-o insensivelmente recordar da maneira como essa lamentavel historia lhe fôra revelada, em Coimbra, n’uma noite de troça, quasi grotescamente. Por que o avô, obdecendo á carta testamentaria de Pedro, contara-lhe um romance decente: um casamento de paixão, incompatibilidades de naturezas, uma separação cortez, depois a retirada da mamã com a filha para a França, onde tinham morrido ambas. Mais nada. A morte de seu pae fôra-lhe apresentada sempre como o brusco remate d’uma longa nevrose...

Mas Ega sabia tudo, pelos tios... Ora uma noite tinham ceiado ambos; Ega muito bebedo, e n’um accesso de idealismo, lançara-se n’um paradoxo tremendo, condemnando a honestidade das mulheres como origem da decadencia das raças: e dava por prova os bastardos, sempre intelligentes, bravos, gloriosos! Elle, Ega, teria orgulho se sua mãe, sua propria mãe, em logar de ser a santa burgueza que resava o terço á lareira, fosse como a mãe de Carlos, uma inspirada, que por amor d’um exilado abandonara fortuna, respeitos, honra, vida! Carlos, ao ouvir isto, ficara petrificado, no meio da ponte, sob o calmo luar. Mas não poude interrogar o Ega, que já taramellava, agoniado, e que não tardou a vomitar-lhe ignobilmente nos braços. Teve de o arrastar á casa das Seixas, despil-o, aturar-lhe os beijos e a ternura borracha, até que o deixou abraçado ao travesseiro, babando-se, balbuciando — ­«que queria ser bastardo, que queria que a mamã fosse uma marafona!...»

E elle mal podera dormir essa noite, com a idéa d’aquella mãe, tão outra do que lhe haviam contado, fugindo nos braços d’um desterrado — ­um polaco talvez! Ao outro dia, cedo, entrava pelo quarto do Ega, a pedir-lhe, pela sua grande amisade, a verdade toda...

Pobre Ega! Estava doente: fez-se branco como o lenço que tinha amarrado na cabeça com pannos de agua sedativa: e não achava uma palavra, coitado! Carlos, sentado na cama, como nas noites de cavaco, tranquillisou-o. Não vinha alli offendido, vinha alli curioso! Tinham-lhe occultado um episodio extraordinario da sua gente, que diabo, queria sabel-o! Havia romance? Para alli o romance!

Ega, então, lá ganhou animo, lá balbuciou a sua historia — ­a que ouvira ao tio Ega — ­a paixão de Maria por um principe, a fuga, o longo silencio d’annos que se fizera sobre ella...

Justamente as ferias chegavam. Apenas em S.ta Olavia, Carlos contou ao avô a bebedeira do Ega, os seus discursos doidos, aquella revelação vinda entre arrotos. Pobre avô! Um momento nem poude fallar — ­e a voz por fim veiu-lhe tão debil e dolente como se dentro do peito lhe estivesse morrendo o coração. Mas narrou-lhe, detalhe a detalhe, o feio romance todo até áquella tarde em que Pedro lhe apparecera, livido, coberto de lama, a cahir-lhe nos braços, chorando a sua dôr com a fraqueza d’uma creança. — ­E o desfecho d’esse amor culpado, accrescentara o avô, fôra a morte da mãe em Vienna d’Austria, e a morte da pequenita, da neta que elle nunca vira, e que a Monforte levara... E eis ahi tudo. E assim, aquella vergonha domestica estava agora enterrada, alli, no jazigo de S.ta Olavia, e em duas sepulturas distantes, em paiz estrangeiro...

Carlos recordava-se bem que n’essa tarde, depois da melancolica conversa com o avô, devia elle experimentar uma egoa ingleza: e ao jantar não se fallou senão da egoa que se chamava Sultana. E a verdade era que d’ahi a dias tinha esquecido a mamã. Nem lhe era possivel sentir por esta tragedia senão um interesse vago e como litterario. Isso passara-se havia vinte e tantos annos, n’uma sociedade quasi desapparecida. Era como o episodio historico de uma velha chronica de familia, um antepassado morto em Alcacer-Kebir, ou uma das suas avós dormindo n’um leito real. Aquillo não lhe dera uma lagrima, não lhe pozera um rubor na face. De certo, prefiriria poder orgulhar-se de sua mãe, como d’uma rara e nobre flôr de honra: mas não podia ficar toda a vida a amargurar-se com os seus erros. E porque? A sua honra d’elle não dependia dos impulsos falsos ou torpes que tivera o coração d’ella. Peccara, morrera, acabou-se. Restava, sim, aquella idéa do pae, findando n’uma poça de sangue, no desespero d’essa traição. Mas não conhecera seu pae: tudo o que possuia d’elle e da sua memoria, para amar, era uma fria tela mal pintada, pendurada no quarto de vestir, representando um moço moreno, de grandes olhos, com luvas de camurça amarellas e um chicote na mão... De sua mãe não ficara nem um daguerreotypo, nem sequer um contorno a lapis. O avô tinha-lhe dito que era loura. Não sabia mais nada. Não os conhecera; não lhes dormira nos braços; nunca recebera o calor da sua ternura. Pae, mãe, eram para elle como symbolos d’um culto convencional. O papá, a mamã, os seres amados, estavam alli todos — ­no avô.

Baptista trouxera o chá, o charuto do Alencar acabara; — ­e elle continuava na chaise-longue, como amollecido n’estas recordações, e cedendo já, n’um meio adormecimento, á fadiga do longo jantar... E então, pouco a pouco, diante das suas palpebras cerradas, uma visão surgiu, tomou côr, encheu todo o aposento. Sobre o rio, a tarde morria n’uma paz elysia. O peristillo do Hotel Central alargava-se, claro ainda. Um preto grisalho vinha, com uma cadelinha no collo. Uma mulher passava, alta, com uma carnação eburnea, bella como uma Deusa, n’um casaco de velludo branco de Genova. O Craft dizia ao seu lado très-chic. E elle sorria, no encanto que lhe davam estas imagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloração de cousas vivas.

Eram tres horas quando se deitou. E apenas adormecera, na escuridão dos cortinados de seda, outra vez um bello dia de inverno morria sem uma aragem, banhado de côr de rosa: o banal peristillo de Hotel alargava-se, claro ainda na tarde; o escudeiro preto voltava, com a cadellinha nos braços; uma mulher passava, com um casaco de velludo branco de Genova, mais alta que uma creatura humana, caminhando sobre nuvens, com um grande ar de Juno que remonta ao Olympo: a ponta dos seus sapatos de verniz enterrava-se na luz do azul, por trás as saias batiam-lhe como bandeiras ao vento. E passava sempre... O Craft dizia très-chic. Depois tudo se confundia, e era só o Alencar, um Alencar colossal, enchendo todo o céu, tapando o brilho das estrellas com a sua sobrecasaca negra e mal feita, os bigodes esvoaçando ao vendaval das paixões, alçando os braços, clamando no espaço:

Abril chegou, sê minha!

No Ramalhete, depois do almoço, com as tres janellas do escriptoro abertas bebendo a tepida luz do bello dia de março, Affonso da Maia e Craft jogavam uma partida de xadrez ao pé da chaminé já sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva como um altar domestico. N’uma facha obliqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifacio, enorme e fôfo, dormia de leve a sua sesta.

Craft tornara-se, em poucas semanas, intimo no Ramalhete. Carlos e elle, tendo muitas similitudes de gosto e de idéas, o mesmo fervor pelo bric-a-brac e pelo bibelot, o uso apaixonado da esgrima, egual dilettantismo d’espirito, uniram-se immediatamente em relações de superficie, faceis e amaveis. Affonso, por seu lado começara logo a sentir uma estima elevada por aquelle gentleman de boa raça ingleza, como elle os admirava, cultivado e forte, de maneiras graves, de habitos rijos, sentindo finamente e pensando com rectidão. Tinham-se encontrado ambos enthusiastas de Tacito, de Macaulay, de Burke, e até dos poetas lakistas; Craft era grande no xadrez; o seu carater ganhara nas longas e trabalhadas viagens a rica solidez d’um bronze; para Affonso da Maia «aquillo era deveras um homem». Craft, madrugador, sahia cedo dos Olivaes a cavallo, e vinha assim ás vezes almoçar de surpreza com os Maias; por vontade de Affonso jantaria lá sempre; — ­mas ao menos as noites passava-as invariavelmente no Ramalhete, tendo emfim, como elle dizia, encontrado em Lisboa um recanto onde se podia conversar bem sentado, no meio de idéas, e com boa educação.

Carlos sahia pouco de casa. Trabalhava no seu livro. Aquella revoada de clientella que lhe dera esperanças d’uma carreira cheia, activa, tinha passado miseravelmente, sem se fixar; restavam-lhe tres doentes no bairro; e sentia agora que as suas carruagens, os cavallos, o Ramalhete, os habitos de luxo, o condemnavam irremediavelmente ao dillettantismo. Já o fino dr. Theodosio lhe dissera um dia, francamente: «você é muito elegante p’ra medico! As suas doentes, fatalmente, fazem-lhe olho! Quem é o burguez que lhe vae confiar a esposa dentro d’uma alcova?... Você aterra o pater-familias!» O laboratorio mesmo prejudicara-o. Os collegas diziam que o Maia, rico, intelligente, avido de innovações, de modernismos, fazia sobre os doentes experiencias fataes. Tinha-se troçado muito a sua idéa, apresentada na Gazeta Medica, a prevenção das epidemias pela inoculação dos virus. Consideravam-no um phantasista. E elle, então, refugiava-se todo n’esse livro sobre a medicina antiga e moderna, o seu livro, trabalhado com vagares d’artista rico, tornando-se o interesse intellectual de um ou dous annos.

N’essa manhã, em quanto dentro proseguia grave e silenciosa a partida de xadrez, Carlos no terrasso, estendido n’uma vasta cadeira india de bambu, á sombra do toldo, acabava o seu charuto, lendo uma Revista ingleza, banhado pela caricia tepida d’aquelle bafo de primavera que avelludava o ar, fazia já desejar arvores e relvas...

Ao lado d’elle, n’uma outra cadeira de bambu, tambem de charuto na boca, o sr. Damaso Salcede percorria o Figaro. De perna estirada, n’uma indolencia familiar, tendo o amigo Carlos ao seu lado, vendo junto ao terrasso as rosas das roseiras de Affonso, sentindo por trás, atravez das janellas abertas, o rico e nobre interior do Ramalhete — ­o filho do agiota saboreava alli uma d’essas horas deliciosas que ultimamente encontrava na intimidade dos Maias.

Logo na manhã seguinte ao jantar do Central, o sr. Salcede fôra ao Ramalhete deixar os seus bilhetes, objectos complicados e vistosos, tendo ao angulo, n’uma dobra simulada, o seu retratosinho em photographia, um capacete com plumas por cima do nome — ­DAMASO CANDIDO DE SALCEDE, por baixo as suas honras — COMMENDADOR DE CHRISTO, ao fundo a sua adresse — ­Rua de S. Domingos, á Lapa; mas esta indicação estava riscada, e ao lado, a tinta azul, esta outra mais apparatosa — GRAND HOTEL, BOULEVARD DES CAPUCINES, CHAMBRE Nº 103. Em seguida procurou Carlos no consultorio, confiou ao creado outro cartão. Emfim, uma tarde, no Aterro, vendo passar Carlos a pé, correu para elle, pendurou-se d’elle, conseguiu acompanhal-o ao Ramalhete.

Ahi, logo desde o pateo, rompeu em admirações extaticas, como dentro d’um museu, lançando, diante dos tapetes, das faienças e dos quadros, a sua grande phrase — ­«chic a valer!» Carlos levou-o para o fumoir, elle aceitou um charuto; e começou a explicar, de perna traçada, algumas das suas opiniões e alguns dos seus gostos. Considerava Lisboa chinfrin, e só estava bem em Paris — ­sobre tudo por causa do genero «femea» de que em Lisboa se passavam fomes: ainda que n’esse ponto a Providencia não o tratava mal. Gostava tambem do bric-a-brac; mas apanhava-se muita espiga, e as cadeiras antigas, por exemplo, não lhe pareciam commodas para a gente se sentar. A leitura entretinha-o, e ninguem o pilhava sem livros á cabeceira da cama; ultimamente andava ás voltas com Daudet, que lhe diziam ser muito chic, mas elle achava-o confusote. Em rapaz perdia sempre as noites, até ás quatro ou cinco da madrugada, no delirio! Agora não, estava mudado e pacato; emfim, não dizia que de vez em quando não se abandonasse a um excessozinho; mas só em dias duples... E as suas perguntas foram terriveis. O sr. Maia achava chic ter um cab inglez? Qual era mais elegante, assim para um rapaz de sociedade que quizesse ir passar o verão lá fóra, Nice ou Trouville?... Depois ao sahir, muito serio, quasi commovido, perguntou ao sr. Maia (se o sr. Maia não fazia segredo) quem era o seu alfaiate.

E desde esse dia, não o deixou mais. Se Carlos apparecia no theatro, Damaso immediatamente arrancava-se da sua cadeira, ás vezes na solemnidade d’uma bella aria, e pisando os botins dos cavalheiros, amarrotando a compostura das damas, abalava, abria d’estalo a claque, vinha-se installar na frisa, ao lado de Carlos, com a bochecha corada, camelia na casaca, exhibindo os botões de punho que eram duas enormes bolas. Uma ou duas vezes que Carlos entrara casualmente no Gremio, Damaso abandonou logo a partida, indifferente á indignação dos parceiros, para se vir collar á ilharga do Maia, offerecer-lhe marrasquino ou charutos, seguil-o de sala em sala como um rafeiro. N’uma d’essas occasiões, tendo Carlos soltado um trivial gracejo, eis o Damaso rompendo em risadas soluçantes, rebolando-se pelos sophás, com as mãos nas ilhargas, a gritar que rebentava! Juntaram-se socios; elle, suffocado, repetia a pilheria; Carlos fugiu vexado. Chegou a odial-o; respondia-lhe só com monossyllabos; dava voltas perigosas com o dog-cart se lhe avistava de longe a bochecha, a coxa roliça. Debalde: Damaso Candido Salcede filara-o, e para sempre.

Depois, um dia, Taveira appareceu no Ramalhete com uma extraordinaria historia. Na vespera, no Gremio (tinham-lhe contado, elle não presenceara) um sujeito, um Gomes, n’um grupo onde se commentavam os Maias, erguera a voz, exclamara que Carlos era um asno! Damaso, que estava ao lado mergulhado na Ilustração, levantou-se, muito pallido, declarou que, tendo a honra de ser amigo do sr. Carlos da Maia, quebrava a cara com a bengala ao sr. Gomes se elle ousasse babujar outra vez esse cavalheiro; e o sr. Gomes tragou, com os olhos no chão, a affronta, por ser rachitico de nascença — ­e porque era inquilino de Damaso e andava muito atrasado na renda. Affonso da Maia achou este feito brilhante: e foi por desejo seu que Carlos trouxe o sr. Salcede uma tarde a jantar ao Ramalhete.

Este dia pareceu bello a Damaso como se fosse feito de azul e oiro. Mas melhor ainda foi a manhã em que Carlos, um pouco incommodado e ainda deitado, o recebeu no quarto, como entre rapazes... D’ahi datava a sua intimidade: começou a tratar Carlos por você. Depois, n’essa semana, revelou aptidões uteis. Foi despachar á alfandega (Villaça achava-se no Alemtejo) um caixote de roupa para Carlos. Tendo apparecido n’um momento em que Carlos copiava um artigo para a Gazeta Medica offereceu a sua boa letra, letra prodigiosa, de uma belleza lithographica; e d’ahi por diante passava horas á banca de Carlos, applicado e vermelho, com a ponta da lingua de fóra, o olho redondo, copiando apontamentos, transcripções de Revistas, materiaes para o livro... Tanta dedicação merecia um tu de familiaridade. Carlos deu-lh’o.

Damaso, no entanto, imitava o Maia com uma minuciosidade inquieta, desde a barba que começava agora a deixar crescer até á forma dos sapatos. Lançara-se no bric-a-brac. Trazia sempre o coupé cheio de lixos archeologicos, ferragens velhas, um bocado de tijolo, a aza rachada de um bule... E se avistava um conhecido, fazia parar, entreabria a portinhola como um addito de sacrario, exhibia a preciosidade:

— ­Que te parece? Chic a valer!... Vou mostral-a ao Maia. Olha-me isto, hein! Pura meia edade, do reinado de Luiz XIV. O Carlos vae-se roer de inveja!

N’esta intimidade de rosas havia todavia para Damaso horas pesadas. Não era divertido assistir em silencio, do fundo d’uma poltrona, ás infindaveis discussões de Carlos e de Craft sobre arte e sobre sciencia. E, como elle confessou depois, chegara a encavacar um pouco quando o levaram ao laboratorio para fazer no seu corpo experiencias de electricidade... — ­«Pareciam dois demonios engalphinhados em mim, disse elle á sr.ª condessa de Gouvarinho; e eu então que embirro com o spiritismo!...»

Mas tudo isto ficava regiamente compensado, quando á noite, n’um sophá, do Gremio, ou ao chá n’uma casa amiga, elle podia dizer, correndo a mão pelo cabello:

— ­Passei hoje um dia divino com o Maia. Fizemos armas, bric-a-brac, discutimos... Um dia, chic! Ámanhã tenho uma manhã de trabalho com o Maia... Vamos ás colxas.

N’esse domingo, justamente, deviam ir ás colxas, ao Lumiar. Carlos concebera um boudoir, todo revestido de colxas antigas de setim, bordadas a dous tons especiaes, perola e botão d’ouro. O tio Abrahão esquadrinhava-as por toda a Lisboa e pelos suburbios; e n’essa manhã viera annunciar a Carlos a existencia de duas preciosidades, so beautiful! oh! so lovely! em casa de umas senhoras Medeiros que esperavam o sr. Maia ás duas horas...

Já tres vezes Damaso tossira, olhara o relogio, — ­mas, vendo Carlos confortavelmente mergulhado na Revista, recahia tambem na sua indolencia de homem chic, investigando o Figaro. Emfim, dentro, o relogio Luiz XV cantou argentinamente as duas...

— ­Esta é boa, exclamou Damaso ao mesmo tempo, com uma palmada na coxa. Olha quem aqui me apparece! A Suzanna! A minha Suzanna!

Carlos não despegara os olhos da pagina.

— ­Oh Carlos, accrescentou elle, fazes favor? Ouve. Ouve esta que é boa. Esta Suzanna é uma pequena que eu tive em Paris... Um romance! Apaixonou-se por mim, quiz-se envenenar, o diabo!... Pois diz aqui o Figaro que debutou nas Folies-Bergeres. Falla n’ella... É boa, hein? E era rapariguita chic... E o Figaro diz que ella teve aventuras, naturalmente sabia o que se passou comigo... Todo o mundo sabia em Paris. Ora a Suzanna!... Tinha bonitas pernas. E custou-me a vêr livre d’ella!

— ­Mulheres! murmurou Carlos, refugiando-se mais no fundo da Revista.

Damaso era interminavel, torrencial, inundante a fallar das «suas conquistas», n’aquella solida satisfação em que vivia de que todas as mulheres, desgraçadas d’ellas, soffriam a fascinação da sua pessoa e da sua toilette. E em Lisboa, realmente, era exacto. Rico, estimado na sociedade, com coupè e parelha, todas as meninas tinham para elle um olhar doce. E no démi-monde, como elle dizia, «tinha prestigio a valer.» Desde moço fôra celebre, na capital, por pôr casas a hespanholas; a uma mesmo dera carruagem ao mez; e este fausto excepcional tornara-o bem depressa o D. João V dos prostibulos. Conhecia-se tambem a sua ligação com a viscondessa da Gafanha, uma carcassa esgalgada, caiada, rebocada, gasta por todos os homens validos do paiz: ía nos cincoenta annos, quando chegou a vez do Damaso — ­e não era decerto uma delicia ter nos braços aquelle esqueleto rangente e lubrico; mas dizia-se que em nova dormira n’um leito real, e que augustos bigodes a tinham lambuzado; tanta honra fascinou Damaso, e collou-se-lhe ás saias com uma fidelidade tão sabuja, que a decrepita creatura, farta, enojada já, teve de o enxotar á força e com desfeitas. Depois gozou uma tragedia: uma actriz do Principe Real, uma montanha de carne, apaixonada por elle, n’uma noite de ciume e de genebra, engoliu uma caixa de phosphoros; naturalmente d’ahi a horas estava boa, tendo vomitado abominavelmente sobre o collete do Damaso que chorava ao lado — ­mas desde então este homem de amor julgou-se fatal! Como elle dizia a Carlos, depois de tanto drama na sua vida quasi tremia, tremia verdadeiramente de fitar uma mulher...

— ­Passaram-se scenas com esta Suzanna! murmurou elle depois de um silencio em que estivera catando pelliculas nos beiços.

E, com um suspiro, retomou o Figaro. Houve outra vez um silencio no terrasso. Dentro, a partida continuava. Para lá da sombra do toldo, agora, o sol ía aquecendo, batendo a pedra, os vasos de louça branca, n’uma refracção d’ouro claro em que palpitavam as azas das primeiras borboletas voando em redor dos craveiros sem flor: em baixo, o jardim verdejava, immovel na luz, sem um bolir de ramo, refrescado pelo cantar do repuxo, pelo brilho liquido da agoa do tanque, avivado, aqui e além, pelo vermelho ou o amarello das rosas, pela carnação das ultimas camelias... O bocado de rio que se avistava entre os predios era azul ferrete como o céu: e entre rio e céu o monte punha uma grossa barra verde-escura, quasi negra no resplendor do dia, com os dois moinhos parados no alto, as duas casinhas alvejando em baixo, tão luminosas e cantantes que pareciam viver. Um repouso dormente de domingo envolvia o bairro: e, muito alto, no ar, passava o claro repique d’um sino.

— ­O duque de Norfolk chegou a Paris, disse Damaso n’um tom entendido e traçando a perna. O duque de Norfolk é chic, não é verdade, ó Carlos?

Carlos, sem erguer os olhos, lançou para os céus um gesto, como exprimindo o infinito do chic!

Damaso largara o Figaro para metter um charuto na boquilha; depois desapertou os ultimos botões do collete, deu um puchão á camisa para mostrar melhor a marca que era um S enorme sob uma corôa de conde, e de palpebra cerrada, com o beiço trombudo, ficou mamando gravemente a boquilha...

— ­Tu estás hoje em belleza, Damaso, disse-lhe Carlos que deixara tambem a Revista e o contemplava com melancolia.

Salcede corou de gozo. Escorregou um olhar ao verniz dos sapatos, á meia côr de carne, e revirando para Carlos o bogalho azulado da orbita:

— ­Eu agora ando bem... Mas, muito blazè.

E foi realmente com um ar blazè que se ergueu a ir buscar a uma mesa de jardim, ao lado, onde estavam jornaes e charutos, a Gazeta Illustrada, «para vêr o que ia pela patria.» Apenas lhe deitou os olhos soltou uma exclamação.

— ­Outro debute? perguntou Carlos.

— ­Não, é a besta do Castro Gomes!

A Gazeta Illustrada annunciava que «o sr. Castro Gomes, o cavalheiro brasileiro que no Porto fôra victima da sua dedicação por occasião da desgraça occorrida na Praça Nova, e de que o nosso correspondente J. T. nos deu uma descripção tão opulenta de colorido realista, acha-se restabelecido e é hoje esperado no Hotel Central. Os nossos parabens ao arrojado gentleman.»

— ­Ora está s. ex.ª restabelecida! exclamou Damaso, atirando para o lado o jornal. Pois deixa estar, que agora é a occasião de lhe dizer na cara o que penso... Aquelle pulha!

— ­Tu exageras, murmurou Carlos, que se apoderara vivamente do jornal, e relia a noticia.

— ­Ora essa! exclamou Damaso, erguendo-se. Ora essa! Queria vêr, se fosse comtigo... É uma besta! É um selvagem!

E repetiu mais uma vez a Carlos essa historia que o magoava. Desde a sua chegada de Bordeus, logo que o Castro Gomes se installara no Hotel Central, elle fôra deixar-lhe bilhetes duas vezes — ­a ultima na manhã seguinte ao jantar do Ega. Pois bem, s. ex.ª não se dignara agradecer a visita! Depois elles tinham partido para o Porto; fôra ahi que, passeiando só na Praça Nova, vendo a parelha de uma caleche desbocada, duas senhoras em gritos, Castro Gomes se lançára ao freio dos cavallos — ­e, cuspido contra as grades, tinha deslocado um braço. Teve de ficar no Porto, no Hotel, cinco semanas. E elle immediatamente (sempre com o olho na mulher) mandara-lhe dois telegrammas: um de sentimento, lamentando; outro de interesse, pedindo noticias. Nem a um, nem a outro, o animal respondeu!

— ­Não, isso — ­exclamava Salcede, passeiando pelo terraço, e recordando estas injurias — ­hei de lhe fazer uma desfeita!... Não pensei ainda o quê, mas ha de amargar-lhe... Lá isso, desconsiderações não admitto a ninguem! a ninguem!

Arredondava o olho, ameaçador. Desde o seu feito no Gremio, quando o rachitico apavorado emmudecera diante d’elle, Damaso ia-se tornando feroz. Pela menor cousa fallava em «quebrar caras.»

— ­A ninguem! repetia elle, com puxões ao collete. Desconsiderações, a ninguem!

N’esse momento ouviu-se dentro, no escriptorio, a voz rapida do Ega — ­e quasi immediatamente elle appareceu, com um ar de pressa, e atarantado.

— ­Olá, Damasosinho!... Carlos, dás-me aqui em baixo uma palavra?

Desceram do terraço, penetraram no jardim, até junto de duas olaias em flôr.

— ­Tu tens dinheiro? — ­foi ahi logo a exclamação anciosa do Ega.

E contou a sua terrivel atrapalhação. Tinha uma letra de noventa libras que se vencia no dia seguinte. Além d’isso, vinte e cinco libras que devia ao Eusebiosinho, e que elle lhe reclamara n’uma carta indecente: e era isto que desesperava o Ega...

— ­Quero pagar a esse canalha, e quando o vir collar-lhe a carta á cara com um escarro. Além d’isso a letra! E tenho para tudo isto quinze tostões...

— ­O Eusebiosinho é homem de ordem... Emfim, queres cento e quinze libras, disse Carlos.

Ega hesitou, com uma côr no rosto. Já devia dinheiro a Carlos. Estava-se sempre dirigindo áquella amisade, como a um cofre inexgotavel...

— ­Não, bastam-me oitenta. Ponho o relogio no prego, e a pelissa, que já não faz frio...

Carlos sorriu, subiu logo ao quarto a escrever um cheque — ­em quanto Ega procurava cuidadosamente um bonito botão de rosa para florir a sobrecasaca. Carlos não tardou, trazendo na mão o cheque, que alargara até cento e vinte libras, para o Ega ficar armado...

— ­Seja pelo amor de Deus, menino! disse o outro, embolsando o papel, com um bello suspiro de allivio.

Immediatamente trovejou contra o Eusebiosinho, esse villão! Mas tinha já uma vingança. Ia remetter-lhe a somma toda em cobre, n’um sacco de carvão, com um rato morto dentro, e um bilhete, começando assim: — ­ascorosa lombriga e immunda osga, ahi te atiro ao focinho, etc...

— ­Como tu podes consentir aqui, usando as tuas cadeiras, respirando o teu ar, aquelle ser repulsivo!...

Mas era até sujo mencionar o Eusebiosinho!... Quiz saber dos trabalhos de Carlos, do grande livro. Fallou tambem do seu Atomo: — ­e, por fim, n’uma voz differente, applicando o monocolo a Carlos:

— ­Dize-me outra cousa. Porque não tens tu voltado aos Gouvarinhos?

Carlos tinha só esta rasão: não se divertia lá.

Ega encolheu os hombros. Parecia-lhe aquillo uma puerilidade...

— ­Tu não percebeste nada, exclamou elle. Aquella mulher tem uma paixão por ti... Basta que se pronuncie o teu nome, sobe-lhe todo o sangue á cara.

E como Carlos ria, incredulo, Ega, muito grave, deu a sua palavra de honra. Ainda na vespera, estava-se fallando de Carlos, e elle espreitara-a. Sem ser um Balzac, nem uma broca de observação, tinha a visão correcta: pois bem, lá lhe vira na face, nos olhos, toda a expressão de um sentimento sincero...

— ­Não estou a fazer romance, menino... Gosta de ti, palavra! Tenl-a quando quiseres.

Carlos achava deliciosa aquella naturalidade mephistophelica com que Ega o induzia a quebrar uma infinidade de leis religiosas, moraes, sociaes, domesticas...

— ­Ah bem, exclamou Ega, se tu me vens com essa blague da cartilha e do codigo, então não fallemos mais n’isso! Se apanhaste a sarna da virtude, com comichões por qualquer cousa, então era uma vez um homem, vae para a Trappa commentar o Ecclesiastes...

— ­Não — ­disse Carlos, sentando-se n’um banco sob as arvores, ainda com uns restos da preguiça do terraço — ­o meu motivo não é tão nobre. Não vou lá, porque acho o Gouvarinho um massador.

Ega teve um sorriso mudo.

— ­Se a gente fosse a fugir das mulheres que tem maridos massadores...

Sentou-se ao lado de Carlos, começou a riscar em silencio o chão areado; e sem erguer os olhos, deixando cahir as palavras, uma a uma, com melancolia:

— ­Antes de hontem, toda a noite, a pé firme, das dez á uma, estive a ouvir a historia da demanda do Banco Nacional!

Era quasi uma confidencia, e como o desabafo dos tedios secretos em que se debatia, n’aquelle mundo dos Cohens, o seu temperamento de artista. Carlos enterneceu-se.

— ­Meu pobre Ega, então toda a demanda?

— ­Toda! E a leitura do relatorio da assembléa geral! E interessei-me! E tive opiniões!... A vida é um inferno.

Subiram ao terraço. Damaso reoccupara a sua cadeira de vime, e, com um canivetesinho de madreperola, estava tratando das unhas.

— ­Então decidiu-se? perguntou elle logo ao Ega.

— ­Decidiu-se hontem! Não ha cotillon.

Tratava-se de uma grande soirée mascarada que íam dar os Cohens, no dia dos annos de Rachel. A idéa d’esta festa sugerira-a o Ega, ao principio com grandes proporções de gala artistica, a ressurreição historica de um sarau no tempo de D. Manuel. Depois viu-se que uma tal festa era irrealisavel em Lisboa — ­e desceu-se a um plano mais sobrio, um simples baile costumé, a capricho...

— ­Tu, Carlos, já decidiste como vaes?

— ­De dominó, um severo dominó preto, como convém a um homem de sciencia...

— ­Então, exclamou Ega se se trata de sciencia, vae de rabona e chinellas de ourello!... A sciencia faz-se em casa e de chinellas... Nunca ninguem descobriu uma lei do Universo mettido dentro de um dominó... Que sensaboria, um dominó!...

Justamente a sr.ª D. Rachel desejava evitar, no seu baile, essa monotonia dos dominós. E em Carlos não havia desculpa. Não o prendiam vinte ou trinta libras; e, com aquelle esplendido physico de cavalleiro da Renascença, devia ornar a sala pelo menos com um soberbo Francisco I.

— ­É n’isto, ajuntava elle com fogo, que está a belleza de uma soirée de mascaras! Não lhe parece, você, Damaso? Cada um deve aproveitar a sua figura... Por exemplo, a Gouvarinho vae muito bem. Teve uma inspiração: com aquelle cabello ruivo, o nariz curto, as maçãs do rosto salientes, é Margarida de Navarra...

— ­Quem é Margarida de Navarra? perguntou Affonso da Maia, apparecendo no terraço com Craft.

— ­Margarida, a duqueza d’Angouleme, a irmã de Francisco I, a Margarida das Margaridas, a perola dos Valois, a padroeira da Renascença, a sr.ª condessa de Gouvarinho!...

Rio muito, foi abraçar Affonso, explicou-lhe que se discutia o baile dos Cohens. E appellou logo para elle, para o Craft tambem, ácerca do nefando dominó de Carlos. Não estava aquelle mocetão, com os seus ares de homem d’armas, talhado para um soberbo Francisco I, em toda a gloria de Marignan?

O velho deu um olhar enternecido á belleza do neto.

— ­Eu te digo, John, talvez tenhas razão; mas Francisco I, rei de França, não se póde apear de uma tipoia e entrar n’uma sala, só. Precisa côrte, arautos, cavalleiros, damas, bobos, poetas... Tudo isso é difficil.

Ega curvou-se. Sim senhor, d’accordo! Alli estava uma maneira intelligente de comprehender o baile dos Cohens!

— ­E tu, de que vaes? perguntou-lhe Affonso.

Era um segredo. Tinha a theoria de que, n’aquellas festas, um dos encantos consistia na surpreza: dois sujeitos por exemplo que tendo jantado juntos, de jaquetão, no Bragança, se encontram á noite, um na purpura imperial de Carlos V, outro com a escopeta de bandido da Calabria...

— ­Eu cá não faço segredo, disse ruidosamente Damaso. Eu cá vou de selvagem.

— ­Nú?

— ­Não. De Nelusko na Africana. Oh sr. Affonso da Maia, que lhe parece? Acha chic?

— ­Chic não exprime bem, disse Affonso sorrindo. Mas grandioso, é, decerto.

Quizeram então saber como ía Craft. Craft não ía de cousa nenhuma; Craft ficava nos Olivaes, de robe de chambre.

Ega encolheu os hombros com tedio, quasi com colera. Aquellas indifferenças pelo baile dos Cohens feriam-n’o como injurias pessoaes. Elle estava dando a essa festa o seu tempo, estudos na bibliotheca, um trabalho fumegante de imaginação; e pouco a pouco ella tomava aos seus olhos a importancia de uma celebração d’arte, provando o genio de uma cidade. Os «dominós», as abstenções, pareciam-lhe evidencias de inferioridade de espirito. Citou então o exemplo do Gouvarinho: alli estava um homem de occupações, de posição politica, nas vesperas de ser ministro, que não só ía ao baile, mas estudara o seu costume: estudara, e ía muito bem, ía de marquez de Pombal!

— ­Reclame para ser ministro, disse Carlos.

— ­Não o precisa, exclamou Ega. Tem todas as condições para ser ministro: tem voz sonora, leu Mauricio Block, está encalacrado, e é um asno!...

E no meio das risadas dos outros, elle, arrependido de demolir assim um cavalheiro que se interessava pelo baile dos Cohens, acudiu logo:

— ­Mas é muito bom rapaz, e não se dá ares nenhuns! É um anjo!

Affonso reprehendia-o, risonho e paternal:

— ­Ora tu, John, que não respeitas nada...

— ­O desacato é a condição do progresso, sr. Affonso da Maia. Quem respeita decahe. Começa-se por admirar o Gouvarinho, vae-se a gente esquecendo, chega a reverenciar o monarcha, e quando mal se precata tem descido a venerar o Todo-Poderoso!... É necessario cautela!

— ­Vae-te embora, John, vae-te embora! Tu és o proprio Anti-Christo...

Ega ía responder, exhuberante e em veia — ­mas dentro o tinir argentino do relogio Luiz XV, com o seu gentil minuete, emmudeceu-o.

— ­O que? quatro horas!

Ficou aterrado, verificou no seu proprio relogio, deu em redor rapidos, silenciosos apertos de mão, desappareceu como um sopro.

Todos de resto estavam pasmados de ser tão tarde! E assim passara a hora de ir ao Lumiar vêr as colxas antigas das senhoras Medeiros...

— ­Quer você então meia hora de florete, Craft? perguntou Carlos.

— ­Seja: e é necessario dar a lição ao Damaso...

— ­É verdade, a lição... — ­murmurou Damaso, sem enthusiasmo, com um sorriso murcho.

A sala de esgrima era uma casa terrea, debaixo dos quartos de Carlos, com janellas gradeadas para o jardim, por onde resvalava, atravez das arvores, uma luz esverdinhada. Em dias enevoados era necessario accender os quatro bicos de gaz. Damaso seguiu, atraz dos dois, com uma lentidão de rez desconfiada.

Aquellas lições, que elle sollicitara por amor do chic, íam-se-lhe tornando odiosas. E n’essa tarde, como sempre, apenas se enchumaçou com o plastrão d’anta, se cobriu com a caraça de arame, começou a transpirar, a fazer-se branco. Diante d’elle Craft, de florete na mão, parecia-lhe cruel e bestial, com aquelles seus hombros de Hercules sereno, o olhar claro e frio. Os dois ferros rasparam. Damaso estremeceu todo.

— ­Firme, gritou-lhe Carlos.

O desgraçado equilibrava-se sobre a perna roliça; o florete de Craft vibrou, rebrilhou, voou sobre elle; Damaso recuou, suffocado, cambaleando e com o braço frouxo...

— ­Firme! berrava-lhe Carlos.

Damaso, exhausto, abaixou a arma.

— ­Então que querem vocês, é nervoso! É por ser a brincar... Se fosse a valer, vocês veriam.

Assim acabava sempre a lição; e ficava depois abatido sobre uma banqueta de marroquim, arejando-se com o lenço, pallido como a cal dos muros.

— ­Vou-me até casa, disse elle d’ahi a pouco, fatigado de tanto crusar de ferro. Queres alguma cousa, Carlinhos?

— ­Quero que venhas cá jantar ámanhã... Tens o marquez.

— ­Chic a valer... Não faltarei.

Mas faltou. E, como toda essa semana aquelle moço ponctual não appareceu no Ramalhete, Carlos sinceramente inquieto, julgando-o moribundo, foi uma manhã a casa d’elle, á Lapa. Mas ahi, o creado (um gallego achavascado e triste, que, desde as suas relações com os Maias, Damaso trazia entalado n’uma casaca e mortalmente aperreado em sapatos de verniz) affirmou-lhe que o sr. Damasosinho estava de boa saude, e até sahira a cavallo. Carlos veiu então ao tio Abrahão; o tio Abrahão tambem não avistara, havia dias, aquelle bom senhor Salcede, that beautiful gentleman! A curiosidade de Carlos levou-o ao Gremio: no Gremio nenhum creado vira ultimamente o sr. Salcede. «Está por ahi de lua de mel com alguma bella andaluza» pensou Carlos.

Chegara ao fim da rua do Alecrim quando viu o conde de Steinbroken que se dirigia ao Aterro, a pé, seguido da sua vittoria a passo. Era a segunda vez que o diplomata fazia exercicio depois do seu desgraçado ataque de entranhas. Mas não tinha já vestigios da doença: vinha todo rosado e loiro, muito solido na sua sobrecasaca, e com uma bella rosa de chá na botoeira. Declarou mesmo a Carlos que estava «más forrte». E não lamentava os soffrimentos, porque elles lhe tinham dado o meio de apreciar as sympathias que gosava em Lisboa. Estava enternecido. Sobre tudo o cuidado de S. M. — ­o augusto cuidado de S. M. — ­fizera-lhe melhor que «todos os drogues de botique»! Realmente nunca as relações entre esses dois paizes, tão estreitamente alliados, Portugal e a Filandia, tinham sido «màs firmes, pur assi dizerre, màs intimes, que durrante seu ataque de intestinaes»!

Depois, travando do braço a Carlos, alludiu commovido ao offerecimento de Affonso da Maia, que pozera á sua disposição S.ta Olavia, para elle se restabelecer n’esses ares fortes e limpos do Douro. Oh, esse convite tocara-o au plus profond de son cœur. Mas, infelizmente, S.ta Olavia era longe, tão longe!... Tinha de se contentar com Cintra, d’onde podia vir todas as semanas, uma, duas vezes, vigiar a Legação. C’était ennuyeux, mais... A Europa estava n’um d’esses momentos de crise, em que homens d’estado, diplomatas, não podiam affastar-se, gosar as menores ferias. Precisavam estar alli, na brecha, observando, informando...

— ­C’est très grave, murmurou elle, parando, com um pavor vago no olhar azulado... C’est excessivement grave!

Pediu a Carlos que olhasse em torno de si para a Europa. Por toda a parte uma confusão, um gachis. Aqui a questão do Oriente; alem o socialismo; por cima o Papa, a complicar tudo... Oh, très grave!

— ­Tenez, la France, par exemple... D’abord Gambetta. Oh, je ne dis pas non, il est très fort, il est excessivement fort... Mais... Voilà! C’est très grave...

Por outro lado os radicaes, les nouvelles couches... Era excessivamente grave...

— ­Tenez, je vais vous dire une chose, entre nous!

Mas Carlos não escutava, nem sorria já. Do fim do Aterro approximava-se, caminhando depressa, uma senhora — ­que elle reconheceu logo, por esse andar que lhe parecia de uma deusa pisando a terra, pela cadellinha côr de prata que lhe trotava junto ás saias, e por aquelle corpo maravilhoso, onde vibrava, sob linhas ricas de marmore antigo, uma graça quente, ondeante e nervosa. Vinha toda vestida de escuro, n’uma toilette de serge muito simples que era como o complemento natural da sua pessoa, collando-se bem sobre ella, dando-lhe, na sua correcção, um ar casto e forte; trazia na mão um guarda-sol inglez, apertado e fino como uma cana; e toda ella, adiantando-se assim no luminoso da tarde, tinha, n’aquelle caes triste de cidade antiquada, um destaque estrangeiro, como o requinte raro de civilisações superiores. Nenhum véo, n’essa tarde, lhe assombreava o rosto. Mas Carlos não poude detalhar-lhe as feições; apenas d’entre o esplendor eburneo da carnação sentiu o negro profundo de dois olhos que se fixaram nos seus. Insensivelmente deu um passo para a seguir. Ao seu lado Steinbroken, sem vêr nada, estava achando Bismarch assustador. Á maneira que ella se affastava, parecia-lhe maior, mais bella: e aquella imagem falsa e litteraria de uma deusa marchando pela terra prendia-se-lhe á imaginação. Steinbroken ficara aterrado com o discurso do Chanceller no Reichstag... Sim, era bem uma deusa. Sob o chapéo, n’uma fórma de trança enrolada, apparecia o tom do seu cabello castanho, quasi louro á luz; a cadelinha trotava ao lado, com as orelhas direitas.

— ­Evidentemente, disse Carlos, Bismarck é inquietador...

Steinbroken porém já deixara Bismarck. Steinbroken agora atacava lord Beaconsfield.

— ­Il est très fort... Oui, je vous l’accorde, il est excessivement fort... Mais voilà... Ou va-t-il?

Carlos olhava para o caes de Sodré. Mas tudo lhe parecia deserto. Steinbroken antes de adoecer, justamente, tinha dito ao ministro dos negocios estrangeiros aquillo mesmo: lord Beaconsfield é muito forte, mas para onde vae elle? O que queria elle?... E s. ex.ª tinha encolhido os hombros... S. ex.ª não sabia...

— ­Eh, oui! Beaconsfield est très fort... Vous avez lu son speech chez le Lord-Maire? Epatant, mon cher, epatant!... Mais voilà... Où va-t-il?

— ­Steinbroken, não me parece que seja prudente deixar-se estar aqui a arrefecer no Aterro...

— ­Devérras? exclamou o diplomata, passando logo a mão rapidamente pelo estomago e pelo ventre.

E não se quiz demorar um instante mais! Como Carlos ía recolher tambem, offereceu-lhe um logar na vittoria até ao Ramalhete.

— ­Venha então jantar comnosco, Steinbroken.

— ­Charmé, mon cher, charmé...

A vittoria partiu. E o diplomata agazalhando as pernas e o estomago n’um grande plaid escossez:

— ­Pôs, Maia, fezemos um bello passêo... Mas este Atêrro no é deverrtido.

Não era divertido o Aterro!... Carlos achara-o n’essa tarde o mais delicioso logar da terra!

Ao outro dia, voltou mais cedo; e, apenas dera alguns passos entre as arvores, viu-a logo. Mas não vinha só; ao seu lado o marido, esticado, apurado n’uma jaqueta de casimira quasi branca, com uma ferradura de diamantes no setim negro da gravata, fumava, indolente e languido, e trazia a cadellinha debaixo do braço. Ao passar, deu um olhar surprehendido a Carlos — ­como descobrindo emfim entre os barbaros um ser de linha civilisada, e disse-lhe algumas palavras baixo, a ella.

Carlos encontrara outra vez os seus olhos, profundos e serios: mas não lhe parecera tão bella; trazia uma outra toilette menos simples, de dois tons, côr de chumbo e côr de creme, e no chapéo, d’abas grandes á ingleza, vermelhava alguma cousa, flôr ou penna. N’essa tarde não era a deusa descendo das nuvens d’ouro que se enrolavam alem sobre o mar; era uma bonita senhora estrangeira que recolhia ao seu hotel.

Voltou ainda tres vezes ao Aterro, não a tornou a vêr; e então envergonhou-se, sentiu-se humilhado com este interesse romanesco que o trazia assim, n’uma inquietação de rafeiro perdido, farejando o Aterro, da rampa de Santos ao caes de Sodré, á espera de uns olhos negros e de uns cabellos louros de passagem em Lisboa, e que um paquete da Royal Mail levaria uma d’essas manhãs...

E pensar que toda essa semana deixara o seu trabalho abandonado sobre a meza! E que todas as tardes, antes de sahir, se demorava ao espelho, estudando a gravata! Ah, miseravel, miseravel natureza...

Ao fim d’essa semana, Carlos estava no consultorio, já para sahir, calçando as luvas, quando o creado entreabriu o reposteiro, e murmurou com alvoroço:

— ­Uma senhora!

Appareceu um menino muito pallido, de caracoes louros, vestido de velludo preto — ­e atraz uma mulher, toda de negro, com um véo justo e espesso como uma mascara.

— ­Creio que vim tarde, disse ella, hesitando, junto da porta. O sr. Carlos da Maia ía sahir...

Carlos reconheceu a Gouvarinho.

— ­Oh senhora condessa!

Desembaraçou logo o divan dos jornaes e das brochuras; ella olhou um momento, como indecisa, aquelle amplo e molle assento de serralho; depois sentou-se á borda e de leve, com o pequeno junto de si.

— ­Venho trazer-lhe um doente, disse ella sem erguer o véu, como fallando do fundo d’aquella toilette negra que a dissimulava. Não o mandei chamar, por que realmente pouco é, e tinha hoje de passar por aqui... Além d’isso, o meu pequeno é muito nervoso; se vê entrar o medico, parece-lhe que vae morrer. Assim é como uma visita que se faz... E não tens medo, não é verdade, Charlie?

O pequeno não respondeu; de pé, quedo ao lado da mamã; mimoso e debil sob os caracoes d’anjo que lhe cahiam até aos hombros, devorava Carlos com uns grandes olhos tristes.

Carlos poz um interesse quasi terno na sua pergunta:

— ­Que tem elle?

Havia dias, apparecera-lhe uma empigem no pescoço. Além d’isso, por traz da orelha, tinha como uma dureza de caroço. Aquillo inquietava-a. Ella era forte, de uma boa raça, que dera athletas e velhos de grande edade. Mas na familia do marido, em todos os Gouvarinhos, havia uma anemia hereditaria. O conde mesmo, com aquella solida apparencia, era um achacado. E ella, receiando que a influencia debilitante de Lisboa não conviesse a Charlie, estava com o vago projecto de lhe fazer ir passar algum tempo ao campo, em Formoselha, a casa da avó.

Carlos, approximando ligeiramente a cadeira, estendeu os braços a Charlie:

— ­Ora venha cá o meu lindo amigo, para vermos isso. Que magnifico cabello elle tem, senhora condessa!...

Ella sorrio. E Charlie, seriosinho, bem ensinado, sem aquelle terror do medico de que fallara a mamã, veio logo, desapertou delicadamente o seu grande collarinho, e, quasi entre os joelhos de Carlos, dobrou o pescoço macio e alvo como um lyrio.

Carlos vio apenas uma pequena mancha côr de rosa desvanecendo-se; do «caroço» não havia vestigio; e então uma ligeira vermelhidão subiu-lhe ao rosto, procurou vivamente os olhos da condessa, como comprehendendo tudo, querendo vêr n’elles a confissão do sentimento que a trouxera alli com um pretexto pueril, sob aquella toilette negra, aquelles véos que a mascaravam...

Mas ella permaneceu impenetravel, sentada á borda do divan, com as mãos crusadas, attenta, como esperando as suas palavras, n’um vago susto de mãe.

Carlos abotoou o collarinho do pequeno, e disse:

— ­Não é absolutamente nada, minha senhora.

No entanto, fez perguntas de medico sobre o regimen e a natureza de Charlie. A condessa, n’um tom pesaroso, queixou-se de que a educação da creança não fosse, como ella desejava, mais forte e mais viril; mas o pae oppunha-se ao que elle chamava «a aberração ingleza», a agua fria, os exercicios a todo o ar, a gymnastica...

— ­A agoa fria e a gymnastica, disse Carlos sorrindo, teem melhor reputação do que merecem... É o seu unico filho, senhora condessa?

— ­É, tem os mimos de morgado, disse ella passando a mão pelos cabellos louros do pequeno.

Carlos assegurou-lhe que, apezar do seu aspecto nervoso e delicado, Charlie não devia dar-lhe cuidado; nem havia necessidade de o exilar para os ares de Formoselha... Depois ficaram um momento callados.

— ­Não imagina como me tranquillisou, disse ella, erguendo-se, dando um geito ao veu. De mais a mais é um gosto vir consultal-o... Não ha aqui o menor ar de doença, nem de remedios... E realmente tem isto muito bonito... — ­accrescentou, dando um olhar lento em redor aos velludos do gabinete.

— ­Tem justamente esse defeito, exclamou Carlos rindo. Não inspira nenhum respeito pela minha sciencia... Eu estou com idêas d’alterar tudo, pôr aqui um crocodilho empalhado, corujas, retortas, um esqueleto, pilhas d’in-folios...

— ­A cella de Fausto.

— ­Justamente, a cella de Fausto.

— ­Falta-lhe Mephistopheles, disse ella alegremente, com um olhar que brilhou sob o véo.

— ­O que me falta é Margarida!

A senhora condessa, com um lindo movimento, encolheu os hombros, como duvidando discretamente; depois tomou a mão de Charlie, e deu um passo lento para a porta, puxando outra vez o véo.

— ­Como v. ex.ª se interessa pela minha installação, acudiu Carlos querendo retel-a, deixe-me mostrar-lhe a outra sala.

Correu o reposteiro. Ella approximou-se, murmurou algumas palavras, approvando a frescura dos cretones, a harmonia dos tons claros: depois o piano fel-a sorrir.

— ­Os seus doentes dançam quadrilhas?

— ­Os meus doentes, senhora condessa, respondeu Carlos, não são bastante numerosos para formar uma quadrilha. Raras vezes mesmo tenho dois para uma valsa... O piano está simplesmente alli para dar idêas alegres; é como uma promessa tacita de saude, de futuras soirèes, de bonitas arias do Trovador, em familia...

— ­É engenhoso, disse ella dando familiarmente alguns passos na sala, com Charlie collado aos vestidos.

E Carlos, caminhando ao lado d’ella:

— ­V. ex.ª não imagina como eu sou engenhoso!

— ­Já n’outro dia me disse... Como foi que disse? Ah! que era muito inventivo quando odiava.

— ­Muito mais quando amo, disse elle rindo.

Mas ella não respondeu: parára junto do piano, remexeu um momento as musicas espalhadas, feriu duas notas no teclado.

— ­É um chocalho.

— ­Oh, senhora condessa!

Ella seguiu, foi examinar um quadro a oleo, copiado de Landseer — ­um focinho de cão de S. Bernardo, macisso e bonacheirão, adormecido sobre as patas. Quasi roçando-lhe o vestido, Carlos sentia o fino perfume de verbena que ella usava sempre exageradamente: e, entre aquelles tons negros que a cobriam, a sua pelle parecia mais clara, mais doce á vista, e attrahindo como um setim.

— ­Este é um horror, murmurou ella, voltando-se; mas disse-me o Ega que ha quadros lindos no Ramalhete... Fallou-me sobretudo d’um Greuze e d’um Rubens... É pena que se não possam vêr essas maravilhas.

Carlos lamentava tambem que uma existencia de solteirões lhes impedisse, a elle e ao avô, de receberem senhoras. O Ramalhete estava tomando uma melancolia de mosteiro. Se assim continuassem mais alguns mezes, sem que se sentisse alli um calor de vestido, um aroma de mulher, vinha a nascer a herva pelos tapetes.

— ­É por isso, accrescentou elle muito serio, que eu vou obrigar o avô a casar-se.

A condessa riu, os seus lindos dentes miudinhos alvejaram na sombra do véo.

— ­Gosto da sua alegria, disse ella.

— ­É uma questão de regimen. V. ex.ª não é alegre?

Ella encolheu os hombros, sem saber... Depois, batendo com a ponta do guarda-sol na sua botina de verniz que brilhava sobre o tapete claro, murmurou com os olhos baixos, deixando ir as palavras, n’um tom d’intimidade e de confidencia:

— ­Dizem que não, que sou triste, que tenho spleen...

O olhar de Carlos seguira o d’ella, pousara-se na botina de verniz que calçava delicadamente um pé fino e comprido: Charlie, entretido, mexia nas teclas do piano — ­e elle baixou a voz para lhe dizer:

— ­É que a senhora condessa tem um mau regimen. É necessario tratar-se, voltar aqui, consultar-me... Tenho talvez muito que lhe dizer!

Ella interrompeu-o vivamente, erguendo para elle os olhos, d’onde se escapou um clarão de ternura e de triumpho:

— ­Venha-m’o antes dizer um d’estes dias, tomar chá comigo, ás cinco horas... Charlie!

O pequeno veiu logo dependurar-se-lhe do braço.

Carlos, acompanhando-a abaixo á rua, lamentava a fealdade da sua escada de pedra:

— ­Mas vou mandar tapetar tudo para quando a senhora condessa volte a dar-me a honra de me vir consultar...

Ella gracejou, toda risonha:

— ­Ah não! O sr. Carlos da Maia prometteu-nos a todos a saude... E naturalmente não espera que seja eu que venha cá tomar chá comsigo...

— ­Oh, minha senhora, eu quando começo a esperar, não ponho limites nenhuns ás minhas esperanças...

Ella parou, com o pequeno pela mão, olhou para elle, como pasmada, encantada com aquella grandiosa certeza de si mesmo.

— ­Então vae por ahi além, por ahi além...?

— ­Vou por ahi além, por ahi além, minha senhora!

Estavam no ultimo degrau, diante da claridade e do rumor da rua.

— ­Mande-me chegar um coupé.

Um cocheiro, ao aceno de Carlos, lançou logo a tipoia.

— ­E agora, disse ella sorrindo, mande-o ir á egreja da Graça.

— ­A senhora condessa vai beijar o pé do Senhor dos Passos?

Ella corou de leve, murmurou:

— ­Ando fazendo as minhas devoções...

Depois saltou ligeiramente para o coupé — ­deixando Charlie, que Carlos ergueu nos braços e lhe collocou ao lado, paternalmente.

— ­Que Deus a leve em sua santa guarda, senhora condessa!

Ella agradeceu com um olhar, um movimento de cabeça — ­ambos tão doces como caricias.

Carlos subio: e, sem tirar o chapéo, ficou ainda enrolando uma cigarrette, passeando n’aquella sala sempre deserta, sempre fria, onde ella deixara agora alguma cousa do seu calor e do seu aroma...

Realmente gostava d’aquella audacia d’ella — ­ter vindo assim ao consultorio, toda escondida, quasi mascarada n’uma grande toilette negra, inventando um caroço no pescocinho são de Charlie, para o vêr, para dar um nó brusco e mais apertado n’aquelle leve fio de relações que elle tão negligentemente deixara cahir e quebrar...

O Ega d’esta vez não phantasiara: aquelle bonito corpo offerecia-se, tão claramente como se se despisse. Ah! se ella fosse de sentimentos errantes e faceis — ­que bella flôr a colher, a respirar, a deitar fóra depois! Mas não: como dizia o Baptista, a senhora condessa nunca se tinha divertido. E o que elle não queria era achar-se envolvido n’uma paixão ciosa, uma d’essas ternuras tumultuosas de mulher de trinta annos, de que depois se desembaraçaria difficilmente... Nos braços d’ella o seu coração ficaria mudo: e apenas esgotada a primeira curiosidade, começaria o tedio dos beijos que se não desejam, a horrivel massada do prazer a frio. Depois, teria de ser intimo da casa, receber pelo hombro as palmadas do senhor conde, ouvir-lhe a voz morosa distillando doutrina... Tudo isto o assustava... E, todavia, gostara d’aquella audacia! Havia ali uma pontinha de romantismo, muito irregular, e pícante... E devia ser deliciosamente bem feita... A sua imaginação despia-a, enrolava-se-lhe no setim das fórmas onde sentia ao mesmo tempo alguma cousa de maduro e de virginal... E outra vez, como nas primeiras noites que os vira em S. Carlos, aquelles cabellos tentavam-n’o, assim avermelhados, tão crespos e quentes...

Sahiu. E dera apenas alguns passos na rua Nova do Almada, quando avistou o Damaso, n’um coupé lançado a grande trote, que o chamava, mandava parar, com a face á portinhola, vermelho e radiante:

— ­Não tenho podido lá ir, exclamou elle, apoderando-se-lhe da mão, apenas Carlos se approximou, e apertando-lh’a com enthusiasmo. Tenho andado n’um turbilhão!.. Eu te contarei! Um romance divino... Mas eu te contarei!.. Tem cuidado com a roda! Bate lá, ó Calção!

A parelha abalou; elle ainda se debruçou da portinhola, agitou a mão, gritou no rumor da rua:

— ­Um romance divino, chic a valer!

Justamente, dias depois, no Ramalhete, na sala de bilhar, Craft que acabava de «bater» o marquez, perguntou, pousando o taco e accendendo o cachimbo:

— ­E noticias do nosso Damaso? Já se esclareceu esse lamentavel desapparecimento?...

Carlos então contou como o encontrára, afogueado e triumphante, atirando-lhe da portinhola do coupé, em plena rua Nova do Almada, a noticia de um romance divino!

— ­Bem sei, disse o Taveira.

— ­Como sabes?... exclamou Carlos.

Taveira vira-o na vespera, n’um grande landeau da Companhia, com uma esplendida mulher, muito elegante e que parecia estrangeira...

— ­Ora essa! gritou Carlos. E com uma cadelinha escoceza?

— ­Exactamente, uma cadelinha escoceza, um griffon côr de prata... Quem são?

— ­E um rapaz magro, de barba muito preta, com um ar inglezado?

— ­Justamente... Muito correcto, um ar sport... Que gente é?

— ­Uma gente brazileira, penso eu.

Eram os Castros Gomes, de certo! Isto parecia-lhe espantoso. Havia apenas duas semanas que no terraço o Damaso, de punhos fechados, bramara contra os Castro Gomes e as suas «desconsiderações»! Ia pedir outros pormenores ao Taveira — ­mas o marquez ergueu a voz do fundo da poltrona onde se estirára, e quiz saber a opinião de Carlos sobre o grande acontecimento d’essa manhã na Gazeta Illustrada. — ­Na Gazeta Illustrada?... Carlos não sabia, essa manhã não vira jornal nenhum.

— ­Então não lhe digam nada, gritou o marquez. Venha a surpreza! Cá ha a Gazeta? Manda buscar a Gazeta!

Taveira puxou o cordão da campainha; — ­e quando o escudeiro trouxe a Gazeta, elle apoderou-se d’ella, quiz fazer uma leitura solemne.

— ­Deixa-lhe vêr primeiro o retrato, berrou o marquez, erguendo-se.

— ­Primeiro o artigo! exclamava o Taveira, defendendo-se, com o jornal atraz das costas.

Mas cedeu, e poz o papel deante dos olhos de Carlos, largamente, como um sudario desdobrado. Carlos reconheceu logo o retrato do Cohen... E a prosa que se alastrava em redor, encaixilhando a face escura de suissas retintas, era um trabalho de seis columnas, em estylo emplumado e cantante, celebrando até aos céus as virtudes domesticas do Cohen, o genio financeiro do Cohen, os ditos d’espirito do Cohen, a mobilia das salas do Cohen; havia ainda um paragrapho alludindo á festa proxima, ao grande sarau de mascaras do Cohen. E tudo isto vinha assignado — ­J. da E. — ­as iniciaes de João da Ega!

— ­Que tolice! exclamou Carlos, com tedio, atirando o jornal para cima do bilhar.

— ­É mais que tolice, observou Craft; é uma falta de senso moral.

O marquez protestou. Gostava do artigo. Achava-o brilhante, e de velhaco!... E de resto em Lisboa quem dava por uma falta de senso moral?...

— ­Você, Craft, não conhece Lisboa! Todo o mundo acha isto muito natural. É intimo da casa, celebra os donos. É admirador da mulher, lisongea o marido. Está na logica cá da terra... Você verá que successo isto vae ter... E lá que o artigo está lindo, isso está!

Tomou-o de cima do bilhar, leu alto o trecho sobre o boudoir côr de rosa de madame Cohen: «respira-se alli (dizia o Ega) alguma cousa de perfumado, intimo e casto, como se todo aquelle côr de rosa exhalasse de si o aroma que a rosa tem»!

— ­Isto, caramba, é lindo em toda a parte! exclamou o marquez. Tem muito talento, aquelle diabo! Tomara eu ter o talento que elle tem!...

— ­Nada d’isso impede, repetiu Craft, cachimbando tranquillamente, que seja uma extraordinaria falta de senso moral.

— ­Pura e simplesmente insensato! disse Cruges, desenroscando-se do canto d’um sophá, para deixar cahir ás syilabas esta pesada opinião.

O marquez investiu com elle.

— ­Que entende você d’isso, seu maestro? O artigo é sublime! E saiba mais: é de finorio!

O maestro, com preguiça de argumentar, foi-se enroscar em silencio ao outro canto do sophá.

E então o marquez, de pé e bracejando, appellou para Carlos, e quiz saber o que é que Craft em principio entendia por senso moral. Carlos, que dava pela sala passos impacientes, não respondeu, tomou o braço do Taveira, levou-o para o corredor.

— ­Dize-me uma cousa: onde viste tu o Damaso, com essa gente? Para que lado iam?

— ­Iam pelo Chiado abaixo; ante-hontem, ás duas horas... Estou convencido que iam para Cintra. Levavam uma maleta no landau, e atraz ia uma criada n’um coupé com uma mala maior... Aquillo cheirava a ida a Cintra. E a mulher é divina! Que toilette, que ar, que chic!.. É uma Venus, menino!... Como conheceria elle aquillo?...

— ­Em Bordeus, n’um paquete, não sei onde!

— ­Eu do que gostei foi dos ares que elle se ia dando por aquelle Chiado! Cumprimento para a direita, cumprimento para a esquerda... A debruçar-se, a fallar muito baixo para a mulher, com olho terno, alardeando conquista...

— ­Que besta! exclamou Carlos, batendo com o pé no tapete.

— ­Chama-lhe besta, disse o Taveira. Vem a Lisboa, por acaso, uma mulher civilisada e decente, e é elle que a conhece, e é elle que vae com ella para Cintra! Chama-lhe besta!... Anda d’ahi, vamos á partidinha de dominó.

Taveira ultimamente introduzira o dominó no Ramalhete — ­e havia agora alli, ás vezes, partidas ardentes, sobretudo quando apparecia o marquez. Porque a paixão do Taveira era bater o marquez.

Mas foi necessario que o marquez acabasse de bracejar, de desenrolar o arrazoado com que estava acabrunhando o Craft — ­que do fundo da poltrona, de cachimbo na mão e com um ar de somno, respondia por monossyllabos. Era ainda a proposito do artigo do Ega, da definição de senso moral. Já tinha fallado de Deus, de Garibaldi, até do seu famoso perdigueiro Finorio; e agora definia a Consciencia... Segundo elle, era o medo da policia. Tinha o amigo Craft visto já alguem com remorsos? Não, a não ser no theatro da Rua dos Condes, em dramalhões...

— ­Acredite você uma cousa, Craft — ­terminou elle por dizer, cedendo ao Taveira que o puchava para a meza — ­isto de consciencia é uma questão de educação. Adquire-se como as boas maneiras; soffrer em silencio por ter trahido um amigo, aprende-se exactamente como se aprende a não metter os dedos no nariz. Questão d’educação... No resto da gente é apenas medo da cadeia, ou da bengala... Ah! vocês querem levar outra sova ao dominó como a de sabbado passado? Perfeitamente, sou todo vosso...

Carlos, que estivera passando de novo os olhos pelo artigo do Ega, approximou-se tambem da meza. E estavam sentados, remexiam as pedras — ­quando á porta da sala appareceu o conde de Steinbroken, de casaca e crachá, gran-cruz sobre o colete branco, loiro como uma espiga, esticado e resplandecente. Tinha jantado no Paço, e vinha acabar no Ramalhete a sua soirée, em familia...

Então o marquez que o não via desde o famoso ataque de intestinos, abandonou o dominó, correu a abraçal-o ruidosamente — ­e sem o deixar sequer sentar, nem estender a mão aos outros, implorou-lhe logo uma das suas bellas canções filandezas, uma só, d’aquellas que lhe faziam tão bem á alma!...

— ­Só a Ballada, Steinbroken... Eu tambem não me posso demorar, que tenho aqui a partida á espera. Só a Ballada!... Vá, salta lá para dentro para o piano, Cruges...

O diplomata sorria, dizia-se cançado, tendo já feito musica deliciosa no Paço com Sua Magestade. Mas nunca sabia resistir áquelle modo folgazão do marquez — ­e lá foram para a sala do piano, de braço dado, seguidos pelo Cruges, que levara uma eternidade a desenroscar-se do canto do sophá. E d’ahi a um momento, atravez dos resposteiros meio corridos, a bella voz de barytono do diplomata espalhava pelas salas, entre os suspiros do piano, a emballadora melancolia da Ballada, com a sua lettra traduzida em francez, que o marquez adorava, e em que se fallava das nevoas tristes do Norte, de lagos frios e de fadas loiras...

Taveira e Carlos, no entanto, tinham começado uma grande partida de dominó, a tostão o ponto. Mas Carlos n’essa noite não se interessava, jogando distrahido, a cantarolar tambem baixo bocados tristes da Ballada: depois, quando já Taveira tinha só uma pedra diante de si, e elle estava comprando interminavelmente as que restavam, voltou-se para o lado, para o Craft, a perguntar se o hotel da Lawrence, em Cintra, estava aberto todo o anno...

— ­A ida do Damaso para Cintra deu-te no goto, rosnou Taveira impaciente. Anda, joga!

Carlos, sem responder, pousou mollemente uma pedra.

— ­Dominó! gritou Taveira.

E em triumpho, aos pulos, contou elle mesmo os sessenta e oito pontos que Carlos perdia.

Justamente o marquez entrava, e a victoria do Taveira indignou-o.

— ­Agora nós, exclamou elle, puxando vivamente uma cadeira. Oh Carlos, deixe-me você dar aqui uma sova n’este ladrão. Depois jogamos de tres... Como queres tu isto, Taveirete? A dous tostões o ponto? Ah, queres só a tostão... Muito bem, eu te ensinarei. Anda, desembaraça-te já d’esse dôble-seis, miseravel...

Carlos ficou ainda um momento olhando o jogo, com uma cigarette apagada nos dedos, o mesmo ar distrahido: de repente, pareceu tomar uma decisão, atravessou o corredor, entrou na sala de musica. Steinbroken fôra ao escriptorio vêr Affonso da Maia, e a partida de whist; e Cruges só, entre as duas vélas do piano, com os olhos errantes pelo tecto, improvisava para si, melancolicamente.

— ­Dize cá, Cruges, perguntou-lhe Carlos, queres vir ámanhã a Cintra?

O teclado callou-se, o maestro ergueu um olhar espantado! Carlos nem o deixou fallar.

— ­Está claro que queres, não te faz senão bem vir a Cintra... Ámanhã lá estou á porta, com o break. Mette sempre uma camisa n’uma maleta, que talvez passemos lá a noite... Ás oito em ponto, hein?... E não digas nada lá dentro.

Carlos voltou para a sala, ficou a olhar a partida de dominó. Agora havia um largo silencio. O marquez e Taveira moviam lentamente as pedras, sem uma palavra, com um ar de rancor surdo. Em cima do pano verde do bilhar as bolas brancas dormiam juntas, sob a luz que cahia dos abat-jours de porcelana. Um som de piano, dolente e vago, passava por vezes. E Craft, com o braço descahido ao longo da poltrona, dormitava, beatificamente.

Na manhã seguinte, ás oito horas pontualmente, Carlos parava o break na rua das Flores, diante do conhecido portão da casa do Cruges. Mas o trintanario, que elle mandara acima bater á campainha do terceiro andar, desceu com a estranha nova de que o sr. Cruges já não morava ali. Onde diabo morava então o sr. Cruges? A criada dissera que o sr. Cruges vivia agora na rua de S. Francisco, quatro portas adiante do Gremio. Durante um momento, Carlos, desesperado, pensou em partir só para Cintra. Depois lá largou para a rua de S. Francisco, amaldiçoando o maestro, que mudara de casa sem avisar, sempre vago, sempre tenebroso!... E era em tudo assim. Carlos nada sabia do seu passado, do seu interior, das suas affeições, dos seus habitos. O marquez uma noite levara-o ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos que estava alli um genio. Elle encantara logo todo o mundo pela modestia das suas maneiras e a sua arte maravilhosa ao piano: e todo o mundo no Ramalhete começou a tratar Cruges por maestro, a fallar tambem do Cruges como de um genio, a declarar que Choppin nunca fizera obra egual á Meditação de Outono do Cruges. E ninguem sabia mais nada. Fôra pelo Damaso que Carlos conhecera a casa do Cruges e soubera que elle vivia lá com a mãe, uma senhora viuva, ainda fresca, e dona de predios na Baixa.

Ao portão da rua de S. Francisco, Carlos teve de esperar um quarto de hora. Primeiro appareceu furtivamente ao fundo da escada uma criada em cabello, que espreitou o break, os criados de farda, e fugiu pelos degraus acima. Depois veiu um creado em mangas de camisa trazer a maleta do senhor e um chaile-manta. Emfim, o maestro desceu, a correr, quasi aos trambulhões, com um cache-nez de seda na mão, o guarda-chuva debaixo do braço, abotoando atarantadamente o paletot.

Quando vinha pulando os ultimos degraus, uma voz esganiçada de mulher gritou-lhe de cima:

— ­Olha não te esqueçam as queijadas!

E Cruges subiu precipitadamente para a almofada, para o lado de Carlos, rosnando que, com a preoccupação de se levantar tão cedo, tivera uma insomnia abominavel...

— ­Mas que diabo de idéa é essa de mudar de casa, sem avisar a gente, homem? — ­exclamou Carlos, atirando-lhe para cima dos joelhos um bocado do plaid que o agasalhava, porque o maestro parecia arrepiado.

— ­É que esta casa tambem é nossa, disse simplesmente Cruges.

— ­Está claro, ahi está uma razão! murmurou Carlos rindo e encolhendo os hombros.

Partiram.

Era uma manhã muito fresca, toda azul e branca, sem uma nuvem, com um lindo sol que não aquecia, e punha nas ruas, nas fachadas das casas, barras alegres de claridade dourada. Lisboa acordava lentamente: as saloias ainda andavam pelas portas com os seus ceirões d’hortaliças: varria-se de vagar a testada das lojas: no ar macio morria a distancia um toque fino de missa.

Cruges, tendo acabado de arranjar o cache-nez e de abotoar as luvas, estendeu um olhar á esplendida parelha baia reluzindo como um setim sob o faiscar de prata dos arreios, aos criados com os seus ramos nas librés, a todo aquelle luxo correcto e rolando em cadencia — ­onde fazia mancha o seu paletot: mas o que o impressionou foi o aspecto resplandecente de Carlos, o olhar acceso, as bellas côres, o bello riso, o quer que fosse de vibrante e de luminoso, que, sob o seu simples veston de xadrezinho castanho, n’aquella almofada burgueza de break, lhe dava um arranque de heroe jovial, lançando o seu carro de guerra... Cruges farejou uma aventura, soltou logo a pergunta que desde a vespera lhe ficara nos labios.

— ­Com franqueza, aqui para nós, que idéa foi esta de ir a Cintra?

Carlos gracejou. O maestro jurava o segredo pela alma melodiosa de Mozart, e pelas fugas de Bach? Pois bem, a idéa era vir a Cintra, respirar o ar de Cintra, passar o dia em Cintra... Mas, pelo amor de Deus, que o não revelasse a ninguem!

E accrescentou, rindo:

— ­Deixa-te levar, que não te has de arrepender...

Não, Cruges não se arrependia. Até achava delicioso o passeio, gostara sempre muito de Cintra... Todavia não se lembrava bem, tinha apenas uma vaga idéa de grandes rochas e de nascentes d’aguas vivas... E terminou por confessar que desde os nove annos não voltara a Cintra.

O que! o maestro não conhecia Cintra?... Então era necessario ficarem lá, fazer as peregrinações classicas, subir á Pena, ir beber agua á Fonte dos Amores, barquejar na varzea...

— ­A mim o que me está a appetecer muito é Sitiaes; e a manteiga fresca.

— ­Sim, muita manteiga, disse Carlos. E burros, muitos burros... Emfim, uma ecloga!

O break rodava na estrada de Bemfica: iam passando muros enramados de quintas, casarões tristonhos de vidraças quebradas, vendas com o seu masso de cigarros á porta dependurado de uma guita: e a menor arvore, qualquer bocado de relva com papoulas, um fugitivo longe de collina verde, encantavam Cruges. Ha que tempos elle não via o campo!

Pouco a pouco o sol elevara-se. O maestro desembaraçou-se do seu grande cache-nez. Depois, encalmado, despiu o paletot — ­e declarou-se morto de fome.

Felizmente estavam chegando á Porcalhota.

O seu vivo desejo seria comer o famoso coelho guisado, — ­mas, como era cedo para esse acepipe, decidiu-se, depois de pensar muito, por uma bella pratada de ovos com chouriço. Era uma cousa que não provava havia annos, e que lhe daria a sensação de estar na aldêa... Quando o patrão, com um ar importante e como fazendo um favor, pousou sobre a meza sem toalha a enorme travessa com o petisco, Cruges esfregou as mãos, achando aquillo deliciosamente campestre.

— ­A gente em Lisboa estraga a saude! disse elle. puxando para o prato uma montanha de ovo e chouriço. Tu não tomas nada?...

Carlos, para lhe fazer companhia, acceitou uma chavena de café.

D’ahi a pouco Cruges, que devorava, exclamou com a bocca cheia:

— ­O Rheno tambem deve ser magnifico!

Carlos olhou-o espantado e rindo. A que vinha agora alli o Rheno?... É que o maestro, desde que sahira as portas, estava cheio de idéas de viagens e de paisagens; queria vêr as grandes montanhas onde ha neve, os rios de que se falla na Historia. O seu ideal seria ir á Allemanha, percorrer a pé, com uma mochilla, aquella patria sagrada dos seus deuses, de Beethoven, de Mozart, de Wagner...

— ­Não te appetecia mais ir á Italia? perguntou Carlos accendendo o charuto.

O maestro esboçou um gesto de desdem, teve uma das suas phrases sybillinas:

— ­Tudo contradanças!...

Carlos então fallou de um certo plano de ir á Italia, com o Ega, no inverno. Ir á Italia, para o Ega, era uma hygiene intellectual: precisava calmar aquella imaginação tumultuosa de nervoso peninsular entre a placida magestade dos marmores...

— ­O que elle precisava antes de tudo era chicote, rosnou o Cruges.

E voltou a fallar do caso da vespera, do famoso artigo da Gazeta. Achava aquillo, como elle dissera, pura e simplesmente insensato, e de uma sabujice indecorosa. E o que o affligia é que o Ega, com aquelle talento, aquella verve fumegante, não fizesse nada...

— ­Ninguem faz nada, disse Carlos espreguiçando-se. Tu, por exemplo, que fazes?

Cruges, depois de um silencio, rosnou encolhendo os hombros:

— ­Se eu fizesse uma boa opera, quem é que m’a representava?

— ­E se o Ega fizesse um bello livro, quem é que lh’o lia?

O maestro terminou por dizer:

— ­Isto é um paiz impossivel... Parece-me que tambem vou tomar café.

Os cavallos tinham descançado, Cruges pagou a conta, partiram. D’ahi a pouco entravam na charneca que lhes pareceu infindavel. D’ambos os lados, a perder de vista, era um chão escuro e triste; e por cima um azul sem fim, que n’aquella solidão parecia triste tambem. O trote compassado dos cavallos batia monotonamente a estrada. Não havia um rumor: por vezes um passaro cortava o ar, n’um vôo brusco, fugindo do ermo agreste. Dentro do break um dos criados dormia; Cruges, pesado dos ovos com chouriço, olhava, vaga e melancolicamente, as ancas lustrosas dos cavallos.

Carlos, no entanto, pensava no motivo que o trazia a Cintra. E realmente não sabia bem porque vinha: mas havia duas semanas que elle não avistava certa figura que tinha um passo de deusa pisando a terra, e que não encontrava o negro profundo de dois olhos que se tinham fixado nos seus: agora suppunha que ella estava em Cintra, corria a Cintra. Não esperava nada, não desejava nada. Não sabia se a veria, talvez ella tivesse já partido. Mas vinha: e era já delicioso o pensar n’ella assim por aquella estrada fóra, penetrar, com essa doçura no coração, sob as bellas arvores de Cintra... Depois, era possivel que d’ahi a pouco, na velha Lawrence, elle a cruzasse de repente no corredor, roçasse talvez o seu vestido, ouvisse talvez a sua voz. Se ella lá estivesse, decerto viria jantar á sala, aquella sala que elle conhecia tão bem, que já lhe estava appetecendo tanto, com as suas pobres cortininhas de cassa, os ramos toscos sobre a meza, e os dois grandes candieiros de latão antigo... Ella entraria alli, com o seu bello ar claro de Diana loira; o bom Damaso, apresentaria o seu amigo Maia; aquelles olhos negros que elle vira passar de longe como duas estrellas, pousariam mais de vagar nos seus; e, muito simplesmente, á ingleza, ella estender-lhe-hia a mão...

— ­Ora até que finalmente! exclamou Cruges, com um suspiro de allivio e respirando melhor.

Chegavam ás primeiras casas de Cintra, havia já verduras na estrada, e batia-lhes no rosto o primeiro sopro forte e fresco da serra.

E a passo, o break foi penetrando sob as arvores do Ramalhão. Com a paz das grandes sombras, envolvia-os pouco a pouco uma lenta e emballadora sussurração de ramagens, e como o diffuso e vago murmurio de agoas correntes. Os muros estavam cobertos de heras e de musgos: atravez da folhagem, faiscavam longas flechas de sol. Um ar subtil e avelludado circulava, rescendendo ás verduras novas; aqui e além, nos ramos mais sombrios, passaros chilreavam de leve; e n’aquelle simples bocado de estrada, todo salpicado de manchas do sol, sentia-se já, sem se vêr, a religiosa solemnidade dos espessos arvoredos, a frescura distante das nascentes vivas, a tristeza que cae das penedias e o repouso fidalgo das quintas de verão... Cruges respirava largamente, voluptuosamente.

— ­A Lawrence onde é? Na serra? — ­perguntou elle com a idéa repentina de ficar alli um mez n’aquelle paraiso.

— ­Nós não vamos para a Lawrence, disse Carlos sahindo bruscamente do seu silencio, e espertando os cavallos. Vamos para o Nunes, estamos lá muito melhor!

Era uma idéa que lhe viera de repente, apenas passara as primeiras casas de S. Pedro, e o break começara a rolar n’aquellas estradas onde a cada momento elle a poderia encontrar. Tomara-o uma timidez, a que se misturava um laivo de orgulho, o receio melindrado de ser indiscreto, seguindo-a assim a Cintra, ainda que ella o não reconhecesse, indo installar-se sob as mesmas telhas, apoderando-se de um logar á mesma meza... E ao mesmo tempo repugnou-lhe a idéa de lhe ser apresentado pelo Damaso: via-o já, bochechudo e vestido de campo, a esboçar um gesto de ceremonia, a mostrar o seu amigo Maia, a tratal-o por tu, affectando intimidades com ella, cocando-a com um olho terno... Isto seria intoleravel.

— ­Vamos para o Nunes, que se come melhor!

Cruges não respondeu, mudo, enlevado, recebendo como uma impressão religiosa de todo aquelle esplendor sombrio de arvoredo, dos altos fragosos da serra entrevistos um instante lá em cima nas nuvens, d’esse aroma que elle sorvia deliciosamente, e do sussurro doce de aguas descendo para os valles...

Só ao avistar o Paço descerrou os labios:

— ­Sim senhor, tem cachet!

E foi o que mais lhe agradou — ­este macisso e silencioso palacio, sem florões e sem torres, patriarchalmente assentado entre o casario da villa, com as suas bellas janellas manuelinas que lhe fazem um nobre semblante real, o valle aos pés, frondoso e fresco, e no alto as duas chaminés collossaes, disformes, resumindo tudo, como se essa residencia fosse toda ella uma cosinha talhada ás proporções de uma gula de Rei que cada dia come todo um Reino...

E apenas o break parou á porta do Nunes, foi-lhe ainda dar um olhar, timido e de longe — ­receiando alguma palavra rude da sentinella.

Carlos no entanto, saltando logo da almofada, tomou á parte o criado do hotel, que descera a recolher as maletas.

— ­Vossê conhece o sr. Damaso Salcede? Sabe se elle está em Cintra?

O creado conhecia muito bem o sr. Damaso Salcede. Ainda na vespera pela manhã o vira entrar defronte, no bilhar, com um sujeito de barbas pretas... Devia estar na Lawrence, porque só com raparigas e em pandiga é que o sr. Damaso vinha para o Nunes.

— ­Então, depressa, dous quartos! exclamou Carlos, com uma alegria de creança, certo agora que ella estava em Cintra. E uma sala particular, só para nós, para almoçarmos!

Cruges, que se approximava, protestou contra esta sala solitaria. Preferia a meza redonda. Ordinariamente na meza redonda encontram-se typos...

— ­Bem, exclamou Carlos, rindo e esfregando as mãos, põe o almoço na sala de jantar, põe-n’o até na Praça... E muita manteiga fresca para o sr. Cruges!

O cocheiro levou o break, o creado sobraçou as maletas. Cruges, enthusiasmado com Cintra, rompeu pela escada acima, a assobiar — ­conservando aos hombros o chaile-manta, de que se não queria separar, porque lh’o emprestara a mamã. E apenas chegou á porta da sala do jantar, estacou, ergueu os braços, teve um grito.

— ­Oh Euzebiosinho!

Carlos correu, olhou... Era elle, o viuvo, acabando de almoçar, com duas raparigas hespanholas.

Estava no topo da meza, como presidindo, diante de uns restos de pudim e de pratos de fructa, amarellado, despenteado, carregado de luto, com a larga fita das lunetas pretas passada por traz da orelha, e uma rodela de taffetá negro sobre o pescoço tapando alguma espinha rebentada.

Uma das hespanholas era um mulherão trigueiro, com signaes de bexigas na cara; a outra muito franzina, de olhos meigos, tinha uma roseta de febre, que o pó de arroz não desfarçava. Ambas vestiam de setim preto, e fumavam cigarro. E na luz e na frescura que entrava pela janella, pareciam mais gastas, mais molles, ainda pegajosas da lentura morna dos colxões, e cheirando a bafio de alcova. Pertencendo á sucia havia um outro sujeito, gordo, baixo, sem pescoço, com as costas para a porta e a cabeça sobre o prato, babujando uma metade de laranja.

Durante um momento, Euzebiosinho ficou interdito com o garfo no ar; depois lá se ergueu, de guardanapo na mão, veiu apertar os dedos aos amigos, balbuciando logo uma justificação embrulhada, a ordem do medico para mudar de ares, aquelle rapaz que o acompanhara, e que quizera trazer raparigas... E nunca parecera tão funebre, tão relles, como resmungando estas cousas hypocritas, encolhido á sombra de Carlos.

— ­Fizeste muito bem, Eusebiosinho, disse Carlos por fim, batendo-lhe no hombro. Lisboa está um horror, e o amor é cousa doce.

O outro continuava a justificar-se. Então a hespanhola magrita, que fumava, afastada da meza e com a perna traçada, elevou a voz, perguntou ao Cruges se elle não lhe fallava. O maestro affirmou-se um momento, e partiu de braços abertos para a sua amiga Lolla. E foi, n’esse canto da meza, uma grulhada em hespanhol, grandes apertos de mão, e hombre, que no se le ha visto! e mira, que me he accordado de ti! e caramba, que reguapa estas... Depois a Lolla, tomando um arsinho espremido, apresentou o outro mulherão, la señorita Concha...

Vendo isto, impressionado com tanta familiaridade — ­o sujeito obeso, que apenas levantara um instante a cabeça do prato, decidiu-se a examinar mais attentamente os amigos do Euzebio: crusou o talher, limpou com o guardanapo a bocca, a testa e o pescoço, encavallou laboriosamente no nariz uma grande luneta de vidros grossos, e erguendo a face larga, balofa e côr de cidra, examinou detidamente Cruges, e depois Carlos, com uma impudencia tranquilla.

Eusebiosinho apresentou o seu amigo Palma: e o seu amigo Palma, ouvindo o nome conhecido de Carlos da Maia, quiz logo mostrar diante de um gentleman, que era um gentleman tambem. Arrojou para longe o guardanapo, arredou para fóra a cadeira; e de pé, estendendo a Carlos os dedos molles e de unhas roidas, exclamou, com um gesto para os restos da sobremeza:

— ­Se. v. ex.ª é servido, é sem ceremonia... Que isto quando a gente vem a Cintra, é para abrir o appetite e fazer bem á barriga...

Carlos agradeceu, e ia retirar-se. Mas Cruges, que se animava e gracejava com a Lolla, fez tambem do outro lado da meza a sua apresentação:

— ­Carlos, quero que conheças aqui a lindissima Lolla, relações antigas, e a señorita Concha, que eu tive agora o prazer...

Carlos saudou respeitosamente as damas.

O mulherão da Concha rosnou seccamente os buenos dias: parecia de mau humor, pesada do almoço, amodorrada para alli, sem dizer uma palavra, com os cotovellos fincados na meza, os olhos pestanudos meio cerrados, ora fumando, ora palitando os dentes. Mas a Lolla foi amavel, fez de senhora, ergueu-se, offereceu a Carlos a mãosita suada. Depois retomando o cigarro, dando um geito ás pulseiras de ouro, declarou com um requebro d’olhos, que conhecia de ha muito Carlos...

— ­No ha estado ustêd con Encarnacion?

Sim, Carlos tivera essa honra... E que era feito d’ella, d’essa bella Encarnacion?

A Lolla sorriu com finura, tocou no cotovello do maestro. Não acreditava que Carlos ignorasse o que era feito da Encarnacion... Emfim, terminou por dizer que a Encarnacion estava agora com o Saldanha.

— ­Mas olhe que não é com o duque de Saldanha! exclamou Palma, que se conservara de pé, com a bolsa do tabaco aberta sobre a meza, fazendo um grande cigarro.

A Lolita, com um modo secco, replicou que o Saldanha não seria duque, mas era um chico muy decente...

— ­Olha, disse o Palma lentamente, de cigarro na bocca e tirando a isca da algibeira, duas boas bofetadas na cara lhe dei eu ainda não ha tres semanas... Pergunta ao Gaspar, o Gaspar assistiu... Foi até no Montanha... Duas bofetadas que lhe foi logo o chapéo parar ao meio da rua... O sr. Maia ha de conhecer o Saldanha... Ha de conhecer, que elle tambem tem um carrito e um cavallo.

Carlos fez um gesto indicando que não; e despedia-se de novo, saudando as damas, quando Cruges o chamou ainda, retendo-o mais um instante, em quanto satisfazia uma curiosidade: queria saber qual d’aquellas meninas era a esposa do amigo Eusebio.

Assim interpellado, o viuvo encordoou, rosnou com uma voz morosa, sem erguer as lunetas da laranja que descascava, que estava alli de passeio, não tinha esposa, e ambas aquellas meninas pertenciam ao amigo Palma...

E ainda elle mascava as ultimas palavras, quando Concha, que digeria de perna estendida, se endireitou bruscamente como se fosse saltar, atirou um murro á borda da meza, e com os olhos chammejantes, desafiou o Eusebio a que repetisse aquillo! Queria que elle repetisse! Queria que dissesse se tinha vergonha d’ella, e de dizer que a tinha trazido a Cintra!... E como o Eusebio, já enfiado, tentava gracejar, fazer-lhe uma festa — ­ella despropositou, atirou-lhe os peiores nomes, dando sempre punhadas na meza, com uma furia que lhe torcia a bocca, lhe punha duas manchas de sangue no carão trigueiro. A Lolita, vexada, puchava-lhe pelo braço: a outra deu-lhe um repellão; e, mais excitada com a estridencia da propria voz, esvasiou-se de toda a bilis, chamou-lhe porco, accusou-o de forreta, usou-o como um trapo vil.

Palma afflicto, debruçado sobre a meza, exclamava n’um tom ancioso:

— ­Ó Concha, escuta lá!... Ouve lá!... Concha, eu te explico...

De repente, ella ergueu-se, a cadeira tombou para o lado: e o mulherão abalou pela sala fóra, a grande cauda de setim varreu desabridamente o soalho, ouviu-se dentro estalar uma porta. No chão ficara cahido um pedaço da mantilha de renda.

O creado que entrava do outro lado com a cafeteira estacou, afiando o olho curioso, farejando o escandalo; depois, calado e seccamente, foi servindo em roda o café.

Durante um momento houve um silencio. Apenas porém o criado sahiu — ­a Lolita e o Palma, agitados mas abafando a voz, atacaram o Eusebiosinho. Elle portara-se muito mal! Aquillo não fôra de cavalheiro! Tinha trazido a rapariga a Cintra, devia-a respeitar, não a ter renegado assim, á bruta, diante de todos...

— ­Esto no se hace, dizia a Lolita, de pé, gesticulando, com os olhos brilhantes, voltada para Carlos, ha sido una cosa muy fêa!..

E como o Cruges lamentava, sorrindo, ter sido a causa involuntaria da catastrophe — ­ella baixou a voz, contou que a Concha era uma furia, viera a Cintra com pouca vontade, e desde manhã estava de muy malo humor... Pero lo de Silbeira habia sido una gran pulhice...

Elle, coitado, com a cabeça cahida e as orelhas em braza, remexia desoladamente o seu café; não se lhe viam os olhos escondidos pelas lunetas pretas, mas percebia-se-lhe o grosso soluço que lhe affogava a garganta. Então Palma pouzou a chavena, lambeu os beiços, e de pé no meio da sala, com a face luzidia, o collete desabotoado, fez n’um tom entendido o resumo d’aquelle desgosto.

— ­Tudo provém d’isto, e desculpe-me você dizel-o, Silveira: é que você não sabe tratar com hespanholas!

A esta cruel palavra o viuvo succumbiu. A colher cahiu-lhe dos dedos. Ergueu-se, acercou-se de Carlos e de Cruges, como refugiando-se n’elles, vindo reconfortar-se ao calor da sua amizade, — ­e desabafou, estas palavras angustiosas escaparam-se-lhe dos labios:

— ­Vejam vocês! vem a gente a um sitio d’estes para gosar um bocado de poesia, e no fim é uma d’estas!...

Carlos bateu-lhe melancolicamente no hombro:

— ­A vida é assim, Eusebiosinho.

Cruges fez-lhe uma festa nas costas:

— ­Não se póde contar com prazeres, Silveirinha.

Mas Palma, mais pratico, declarou que era forçoso arranjarem-se as cousas. Virem a Cintra, para questões e amuos, isso não! N’aquellas pandegas queria-se harmonia, chalaça, e gosar. Couces, não. Então ficava-se em Lisboa, que era mais barato.

Chegou-se a Lolla, passou-lhe os dedos pela face, com amor:

— ­Anda Lolita, vae tu lá dentro á Concha, dize-lhe que se não faça tola, que venha tomar café... Anda, que tu sabe-l’a levar... Dize-lhe que peço eu!

Lolita esteve um momento escolhendo duas boas laranjas, foi dar um geito ao cabello diante do espelho, apanhou a cauda — ­e sahiu, atirando a Carlos, ao passar, um olhar e um sorrisinho.

Apenas ficaram sós, Palma voltou-se para o Eusebio, e deu-lhe conselhos muito serios sobre o systema de tratar hespanholas. Era necessario leval-as por bons modos; por isso é que ellas se pellavam por portuguezes, porque lá em Hespanha era á bordoada... Emfim, elle não dizia que em certos casos, duas boas bolachas, mesmo um bom par de bengaladas, não fossem uteis... Sabiam, por exemplo, os amigos, quando se devia bater? Quando ellas não gostavam da gente, e se faziam ariscas. Então, sim. Então zás, tapona, que ellas ficavam logo pelo beiço... Mas depois bons modos, delicadeza, tal qual como com francezas...

— ­Acredite você isto, Silveira. Olhe que eu tenho experiencia. E o sr. Maia que lhe diga se isto não é verdade, elle que tem tambem experiencia e sabe viver com hespanholas!

E isto foi dito com tanto calor, tanto respeito — ­que Cruges desatou a rir, fez rir Carlos tambem.

O sr. Palma, um pouco chocado, compoz mais as lunetas, e olhou para elles:

— ­Os senhores riem-se? Imaginam que eu que estou a mangar? Olhem que eu comecei a lidar com hespanholas aos quinze annos! Não, escusam de rir, que n’isso ninguem me ganha! Lá o que se chama ter geito para hespanholas, cá o meco! E, vamos lá, que não é facil! É necessario ter um certo talento!... Olhem, o Herculano é capaz de fazer bellos artigos e estylo catita... Agora tragam-n’o cá para lidar com hespanholas e veremos! Não dá meia...

Eusebiosinho no entanto fôra duas vezes escutar á porta. Todo o hotel cahira n’um grande silencio, a Lolita não voltava. Então Palma aconselhou um grande passo:

— ­Vá você lá dentro, Silveira, entre pelo quarto, e assim sem mais nem menos, chegue-se ao pé d’ella...

— ­E tapona? perguntou Cruges, muito seriamente, gosando o Palma.

— ­Qual tapona! Ajoelhe e peça perdão... N’este caso é pedir perdão... E como pretexto, Silveira, leve-lhe você mesmo o café.

Eusebiosinho, com um olhar ancioso e mudo, consultou os seus amigos. Mas o seu coração já decidira: e d’ahi a um momento, com o pedaço de mantilha n’uma das mãos, a chavena de café na outra, enfiado e commovido, lá partia a passos lentos pelo corredor a pedir perdão á Concha.

E, logo atraz d’elle, Carlos e Cruges deixaram a sala, sem se despedirem do sr. Palma — ­que de resto, indifferente tambem, já se accommodara à meza a preparar regaladamente o seu grog.

Eram duas horas quando os dous amigos sahiram emfim do hotel, a fazer esse passeio a Sitiaes — ­que desde Lisboa tentava tanto o maestro. Na praça, por defronte das lojas vasias e silenciosas, cães vadios dormiam ao sol: atravez das grades da cadêa os presos pediam esmola. Creanças, enxovalhadas e em farrapos, garotavam pelos cantos; e as melhores casas tinham ainda as janellas fechadas, continuando o seu somno de inverno, entre as arvores já verdes. De vez em quando apparecia um bocado da serra, com a sua muralha de ameias correndo sobre as penedias, ou via-se o castello da Pena, solitario, lá no alto. E por toda a parte o luminoso ar de abril punha a doçura do seu velludo.

Defronte do hotel da Lawrence, Carlos retardou o passo, mostrou-o ao Cruges.

— ­Tem o ar mais sympathico, disse o maestro. Mas valeu muito a pena ir para o Nunes, só para vêr aquella scena... E então com quê o sr. Carlos da Maia tem experiencia de hespanholas?

Carlos não respondeu, os seus olhos não se despegavam d’aquella fachada banal, onde só uma janella estava aberta com um par de botinas de duraque seccando ao ar. Á porta, dous rapazes inglezes, ambos de knicker-bokers, cachimbavam em silencio; e defronte, sentados sobre um banco de pedra, dous burriqueiros ao lado dos burros, não lhes tiravam o olho de cima, sorrindo-lhes, cocando-os como uma presa.

Carlos ia seguir, mas pareceu-lhe ouvir, distante e melancolico, sahindo do silencio do hotel, um vago som de flauta; e parou ainda, remexendo as suas recordações, quasi certo de Damaso lhe ter dito que a bordo Castro Gomes tocava flauta...

— ­Isto é sublime! exclamou do lado o Cruges, commovido.

Parara diante da grade d’onde se domina o valle. E d’ali olhava, enlevadamente, a rica vastidão de arvoredo cerrado, a que só se veem os cimos redondos, vestindo um declive da serra como o musgo veste um muro, e tendo aquella distancia, no brilho da luz, a suavidade macia de um grande musgo escuro. E n’esta espessura verde-negra havia uma frontaria de casa que o interessava, branquejando, affogada entre a folhagem, com um ar de nobre repouso, debaixo de sombras seculares... Um momento teve uma idéa de artista: desejou habital-a com uma mulher, um piano e um cão da Terra-nova.

Mas o que o encantava era o ar. Abria os braços, respirava a tragos deliciosos:

— ­Que ar! Isto dá saude, menino! Isto faz reviver!...

Para o gosar mais docemente, sentou-se adiante, n’um bocado de muro baixo, defronte de um alto terraço gradeado, onde velhas arvores assombreiam bancos de jardim, e estendem sobre a estrada a frescura das suas ramagens, cheias do piar das aves. E como Carlos lhe mostrava o relogio, as horas que fugiam para ir vêr o palacio, a Pena, as outras bellezas de Cintra — ­o maestro declarou que preferia estar ali, ouvindo correr a agua, a vêr monumentos caturras...

— ­Cintra não são pedras velhas, nem cousas gothicas... Cintra é isto, uma pouca de agua, um bocado de musgo... Isto é um paraiso!...

E, n’aquella satisfação que o tornava loquaz, acrescentou, repetindo a sua chalaça:

— ­E v. ex.ª deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiencia de hespanholas!...

— ­Poupa-me, respeita a natureza, murmurou Carlos, que riscava pensativamente o chão com a bengala.

Ficaram callados. Cruges agora admirava o jardim, por baixo do muro em que estavam sentados. Era um espesso ninho de verdura, arbustos, flores e arvores, suffocando-se n’uma prodigalidade de bosque silvestre, deixando apenas espaço para um tanquesinho redondo, onde uma pouca de agua, immovel e gelada, com dous ou tres nenufares, se esverdinhava sob a sombra d’aquella ramaria profusa. Aqui e alem, entre a bella desordem da folhagem, distinguiam-se arranjos de gosto burguez, uma volta de ruasita estreita como uma fita, faiscando ao sol, ou a banal palidez de um gesso. N’outros recantos, aquelle jardim de gente rica, exposto ás vistas, tinha retoques pretenciosos de estufa rara, aloes e cactos, braços aguardasolados de auraucarias erguendo-se d’entre as agulhas negras dos pinheiros bravos, laminas de palmeira, com o seu ar triste de planta exilada, roçando a rama leve e perfumada das olaias floridas de côr de rosa. A espaços, com uma graça discreta, branquejava um grande pé de margaridas; ou em torno de uma rosa, solitaria na sua haste, palpitavam borboletas aos pares.

— ­Que pena que isto não pertença a um artista! murmurou o maestro. Só um artista saberia amar estas flores, estas arvores, estes rumores...

Carlos sorriu. Os artistas, dizia elle, só amam na natureza os effeitos de linha e côr; para se interessar pelo bem-estar de uma tulipa, para cuidar de que um craveiro não soffra sede, para sentir magoa de que a geada tenha queimado os primeiros rebentões das acacias — ­para isso só o burguez, o burguez que todas as manhãs desce ao seu quintal com um chapéo velho e um regador, e vê nas arvores e nas plantas uma outra familia muda, por que elle é tambem responsavel...

Cruges, que escutara distrahidamente, exclamou:

— ­Diabo! É necessario que não me esqueçam as queijadas!

Um som de rodas interrompeu-os, uma caleche descoberta desembocou a trote do lado de Sitiaes. Carlos ergueu-se logo, certo de que era ella, e que elle ia vêr os seus bellos olhos brilhar e fugir como duas estrellas. A caleche passou, levando um ancião de barbas de patriarcha, e uma velha ingleza com o regaço cheio de flores, e o véo azul fluctuando ao ar. E logo atraz, quasi no pó que as rodas tinham erguido, appareceu, caminhando pensativamente, de mãos atraz das costas, um homem alto, todo de preto, com um grande chapéo Panamá sobre os olhos. Foi Cruges que reconheceu os longos bigodes romanticos, que gritou:

— ­Olha o Alencar! Oh! grande Alencar!...

Durante um momento, o poeta ficou assombrado, com os braços abertos, no meio da estrada. Depois, com a mesma effusão ruidosa, apertou Carlos contra o coração, beijou o Cruges na face — ­porque conhecia Cruges desde pequeno, Cruges era para elle como um filho. Caramba! Eis ahi uma surpreza que elle não trocava pelo titulo de duque! Ora o alegrão de os vêr ali! Como diabo tinham elles vindo ali parar?

E não esperou a resposta, contou elle logo a sua historia. Tivera um dos seus ataques de garganta, com uma ponta de febre, e o Mello, o bom Mello, recommendara-lhe mudança d’ares. Ora elle, bons ares, só comprehendia os de Cintra: porque alli não eram só os pulmões que lhe respiravam bem, era tambem o coração, rapazes!... De sorte que viera na vespera, no omnibus.

— ­E onde estás tu, Alencar? perguntou logo Carlos.

— ­Pois onde queres tu que eu esteja, filho? Lá estou com a minha velha Lawrence. Coitada! está bem velha! mas para mim é sempre uma amiga, é quasi uma irmã!... E vocês, que diabo? Para onde vão vocês com essas flores nas lapellas?

— ­A Sitiaes... Vou mostrar Sitiaes ao maestro.

Então tambem elle voltava a Sitiaes! Não tinha nada que fazer senão sorver bom ar, e scismar... Toda a manhã andara alli, vagamente, pendurando sonhos dos ramos das arvores. Mas agora já os não largava; era mesmo um dever ir elle proprio fazer ao maestro as honras de Sitiaes...

— ­Que aquillo é sitio muito meu, filhos! Não ha alli arvore que me não conheça... Eu não vos quero começar já a impingir versos; mas emfim, vocês lembram-se de uma cousa que eu fiz a Sitiaes, e de que por ahi se gostou...

Quantos luares eu lá vi!
Que doces manhãs d’abril!
E os ais que soltei alli
Não foram sete, mas mil!

Pois então já vocês vêem, rapazes, que tenho razão para conhecer Sitiaes...

O poeta lançou ao ar um vago suspiro, e durante um instante caminharam todos tres callados.

— ­Dize-me uma cousa, Alencar, perguntou Carlos baixo, parando, e tocando no braço do poeta. O Damaso está na Lawrence?

Não, que elle o tivesse visto. Verdade seja que na vespera, apenas chegara, fôra-se deitar, fatigado; e n’essa manhã almoçara só com dois rapazes inglezes. O unico animal que avistara fôra um lindo cãosinho de luxo, ladrando no corredor...

— ­E vocês onde estão?

— ­No Nunes.

Então o poeta parando de novo, contemplando Carlos com sympathia:

— ­Que bem que fizeste em arrastar cá o maestro, filho!... Quantas vezes eu tenho dito áquelle diabo, que se mettesse no omnibus, viesse passar dous dias a Cintra. Mas ninguem o tira de martelar o piano. E olha tu que mesmo para a musica, para compor, para entender um Mozart, um Choppin, é necessario ter visto isto, escutado este rumor, esta melodia da ramagem...

Baixou a voz, apontando para o maestro, que caminhava adiante, enlevado:

— ­Tem muito talento, tem muita idéa melodica!... Olha que andei com aquillo ás cabritas... E a mãe, menino, foi muitissimo boa mulher.

— ­Vejam vocês isto! gritou Cruges que parara, esperando-os. Isto é sublime.

Era apenas um bocadito d’estrada, apertada entre dous velhos muros cobertos d’hera, assombreada por grandes arvores entrelaçadas, que lhe faziam um toldo de folhagem aberto á luz como uma renda: no chão tremiam manchas de sol: e, na frescura e no silencio, uma agoa que se não via ia fugindo e cantando.

— ­Se tu queres sublime, Cruges, exclamou Alencar, então tens de subir á serra. Ahi tens o espaço, tens a nuvem, tens a arte...

— ­Não sei, talvez goste mais d’isto, murmurou o maestro.

A sua natureza de timido preferiria, de certo, estes humildes recantos, feitos de uma pouca de folhagem fresca e de um pedaço de muro musgoso, logares de quietação e de sombra, onde se aninha com um conforto maior o scismar dos indolentes...

— ­De resto, filho, continuou Alencar, tudo em Cintra é divino. Não ha cantinho que não seja um poema... Olha, alli tens tu, por exemplo, aquella linda florinha azul... — ­e, ternamente, apanhou-a.

— ­Vamos andando, vamos andando, murmurou Carlos impaciente, e agora, desde que o poeta fallara do cãosinho de luxo, mais certo de que ella estava na Lawrence, e que a ia brevemente encontrar.

Mas, ao chegar a Sitiaes, Cruges teve uma desillusão diante d’aquelle vasto terreiro coberto de herva, com o palacete ao fundo, enxovalhado, de vidraças partidas, e erguendo pomposamente sobre o arco, em pleno ceu, o seu grande escudo de armas. Ficara-lhe a idéa, de pequeno, que Sitiaes era um montão pittoresco de rochedos, dominando a profundidade de um valle; e a isto misturava-se vagamente uma recordação de luar e de guitarras... Mas aquillo que elle alli via era um desapontamento.

— ­A vida é feita de desapontamentos, disse Carlos. Anda para diante!

E apressou o passo atravez do terreiro, em quanto o maestro, cada vez mais animado, lhe gritava a chalaça do dia:

— ­E v. ex.ª deve sabel-o, sr. Maia, porque tem experiência de hespanholas!...

Alencar, que se demorara atraz a accender o cigarro, estendeu o ouvido, curioso, quiz saber o que era isso de hespanholas? O maestro contou-lhe o encontro no Nunes e os furores da Concha.

Iam ambos caminhando por uma das alamedas lateraes, verde e fresca, de uma paz religiosa, como um claustro feito de folhagem. O terreiro estava deserto; a herva que o cobria, crescia ao abandono, toda estrellada de botões de ouro brilhando ao sol, e de malmequersinhos brancos. Nenhuma folha se movia: atravez da ramaria ligeira o sol atirava mólhos de raios de ouro. O azul parecia recuado a uma distancia infinita, repassado de silencio luminoso; e só se ouvia, ás vezes, monotona e dormente, a voz de um cuco nos castanheiros.

Toda aquella vivenda, com a sua grade enferrujada sobre a estrada, os seus florões de pedra roídos da chuva, o pesado brazão rococó, as janellas cheias de teias de aranha, as telhas todas quebradas, parecia estar-se deixando morrer voluntariamente n’aquella verde solidão, — ­amuada com a vida, desde que d’alli tinham desapparecido as ultimas graças do tricorne e do espadim, e os derradeiros vestidos de anquinhas tinham roçado essas relvas... Agora Cruges ía descrevendo ao Alencar a figura do Eusebiosinho, com a chavena de café na mão, a ir pedir perdão á Concha; e a cada momento o poeta, com o seu grande chapéo panamá, se agachava a colher florinhas silvestres.

Quando passaram o Arco, encontraram Carlos sentado n’um dos bancos de pedra, fumando pensativamente a sua cigarette. O palacete deitava sobre aquelle bocado de terraço a sombra dos seus muros tristes; do valle subia uma frescura e um grande ar; e algures, em baixo, sentia-se o prantear de um repuxo. Então o poeta, sentando-se ao lado do seu amigo, fallou com nojo do Eusebiosinho. — ­Ahi está uma torpeza que elle nunca commettera, trazer meretrizes a Cintra! Nem a Cintra, nem a parte nenhuma... Mas muito menos a Cintra! Sempre tivera, todo o mundo devia ter, a religião d’aquellas arvores e o amor d’aquellas sombras...

— ­E esse Palma, accrescentou elle, é um traste! Eu conheço-o; elle teve uma especie de jornal, e já lhe dei muita bofetada na rua do Alecrim. Foi uma historia curiosa... Ora eu t’a conto Carlos... Aquelle canalha! quando me lembro!... Aquella vil bolinha de materia putrida!... Aquelle chouricinho de pus!

Levantou-se, passando a mão nervosa sobre os bigodes, já excitado pela lembrança d’aquella velha desordem, vergastando o Palma com nomes ferozes, todo n’uma d’essas fervuras de sangue que eram a sua desgraça.

Cruges, no entanto, encostado ao parapeito, olhava a grande planicie de lavoura que se estendia em baixo, rica e bem trabalhada, repartida em quadrados verde-claros e verde-escuros, que lhe faziam lembrar um panno feito de remendos assim que elle tinha na meza do seu quarto. Tiras brancas de estradas serpeavam pelo meio: aqui e além, n’uma massa de arvoredo, branquejava um casal: e a cada passo, n’aquelle solo onde as aguas abundam, uma fila de pequenos olmos revelava algum fresco ribeiro, correndo e reluzindo entre as hervas. O mar ficava ao fundo, n’uma linha unida, esbatida na tenuidade diffusa da bruma azulada: e por cima arredondava-se um grande azul lustroso como um bello esmalte, tendo apenas, lá no alto, um farraposinho de nevoa, que ficara alli esquecido, e que dormia enovellado e suspenso na luz...

— ­Tive nojo! exclamava o Alencar, rematando fogosamente a sua historia. Palavra que tive nojo! Atirei-lhe a bengala aos pés, crusei os braços e disse-lhe: ahi tem você a bengala, seu covarde, a mim bastam-me as mãos!

— ­Que diabo, não me hão de esquecer as queijadas! murmurou Cruges, para si mesmo, affastando-se do parapeito.

Carlos erguera-se tambem, olhava o relogio. Mas antes de deixar Sitiaes, Cruges quiz explorar o outro terraço ao lado: e, apenas subira os dous velhos degraus de pedra, soltou de lá um grito alegre:

— ­Bem dizia eu! cá estão elles... E vocês a dizer que não!

Foram-n’o encontrar triumphante, diante de um montão de penedos, polidos pelo uso, já com um vago feitio de assentos, deixados ali outr’ora, poeticamente, para dar ao terraço uma graça agreste de selva brava. Então, não dizia elle? Bem dizia elle que em Sitiaes havia penedos!

— ­Se eu me lembrava perfeitamente! Penedo da Saudade, não é que se chama, Alencar?

Mas o poeta não respondeu. Diante d’aquellas pedras crusara os braços, sorria dolorosamente; e immovel, sombrio no seu fato negro, com o panamá carregado para a testa, envolveu todo aquelle recanto n’um olhar lento e triste.

Depois, no silencio, a sua voz ergueu-se, saudosa e dolente:

— ­Vocês lembram-se, rapazes, nas Flôres e Martyrios, de uma das cousas melhores que lá tenho, em rimas livres, chamada 6 de Agosto? Não se lembram talvez... Pois eu vol-a digo, rapazes!

Machinalmente tirara do bolso o lenço branco. E com elle fluctuante na mão, puxando Carlos para junto de si, chamando do outro lado o Cruges, baixou a voz como n’uma confidencia sagrada, recitou, com um ardor surdo, mordendo as syllabas, tremulo, n’uma paixão ephemera de nervoso:

Vieste! Cingi-te ao peito.
Em redor que noite escura!
Não tinha rendas o leito,
Nem tinha lavores na barra
Que era só a rocha dura...
Muito ao longe uma guitarra
Gemia vagos harpejos...
(Vê tu que não me esqueceu)...
E a rocha dura aqueceu
Ao calor dos nossos beijos!

Esteve um momento embebendo o olhar nas pedras brancas batidas do sol, atirou para lá um gesto triste, e murmurou:

— ­Foi alli.

E affastou-se, alquebrado sob o seu grande chapéo panamá, com o lenço branco na mão. Cruges, que aquelles romantismos impressionavam, ficou a olhar para os penedos como para um sitio historico. Carlos sorria. E quando ambos deixaram esse recanto do terraço — ­o poeta, agachado junto do arco, estava apertando o atilho da ceroula.

Endireitou-se logo, já toda a emoção o deixara, mostrava os maus dentes n’um sorriso amigo, e exclamou, apontando para o arco:

— ­Agora, Cruges, filho, repara tu n’aquella tela sublime.

O maestro embasbacou. No vão do arco, como dentro de uma pesada moldura de pedra, brilhava, á luz rica da tarde, um quadro maravilhoso, de uma composição quasi phantastica, como a illustração de uma bella lenda de cavallaria e de amor. Era no primeiro plano o terreiro, deserto e verdejando, todo salpicado de botões amarellos; ao fundo, o renque cerrado de antigas arvores, com hera nos troncos, fazendo ao longo da grade uma muralha de folhagem reluzente; e emergindo abruptamente d’essa copada linha de bosque assoalhado, subia no pleno resplendor do dia, destacando vigorosamente n’um relevo nitido sobre o fundo de céu azul claro, o cume airoso da serra, toda côr de violeta escura, coroada pelo castello da Pena, romantico e solitario no alto, com o seu parque sombrio aos pés, a torre esbelta perdida no ar, e as cupulas brilhando ao sol como se fossem feitas de ouro...

Cruges achou aquelle quadro digno de Gustavo Doré. Alencar teve uma bella phrase sobre a imaginação dos arabes. Carlos, impaciente, foi-os apressando para diante.

Mas agora Cruges, impressionado, estava com desejo de subir á Pena. Alencar, por si, ía tambem com prazer. A Pena para elle era outro ninho de recordações. Ninho? Devia antes dizer cemiterio... Carlos hesitava, parado junto da grade. Estaria ella na Pena? E olhava a estrada, olhava as arvores, como se podesse adivinhar pelas pegadas no pó, ou pelo mover das folhas, que direcção tinham tomado os passos que elle seguia... Por fim teve uma idéa.

— ­Vamos indo primeiro á Lawrence. E depois se quizermos ir á Pena, arranjam-se lá os burros...

E nem mesmo quiz escutar o Alencar, que tivera, tambem uma idéa, fallava de Collares, de uma visita ao seu velho Carvalhosa; accelerou o passo para a Lawrence, emquanto o poeta tornava a arranjar o atilho da ceroula, e o maestro, n’um enthusiasmo bucolico, ornava o chapéo de folhas de hera.

Defronte da Lawrence, os dois burriqueiros, de cigarro na bocca, não tendo podido apoderar-se dos inglezes, preguiçavam ao sol.

— ­Vocês sabem, perguntou-lhes Carlos, se uma familia, que está aqui no hotel, foi para a Pena?...

Um dos homens pareceu adivinhar, exclamou logo, desbarretando-se.

— ­Sim, senhor, foram para lá ha bocado, e aqui está o burrinho tambem para v. ex.ª, meu amo!

Mas o outro, mais honesto, negou. Não senhor, a gente que fôra para a Pena estava no Nunes...

— ­A familia que o senhor diz foi agora ali para baixo, para o palacio...

— ­Uma senhora alta?

— ­Sim senhor.

— ­Com um sujeito de barba preta?

— ­Sim senhor.

— ­E uma cadellinha?

— ­Sim senhor.

— ­Tu conheces o sr. Damaso Salcede?

— ­Não senhor... É o que tira retratos?

— ­Não, não tira retratos... Tomae lá.

Deu-lhes uma placa de cinco tostões; e voltou ao encontro dos outros, declarando que realmente era tarde para subirem á Pena.

— ­Agora o que tu deves vêr, Cruges, é o palacio. Isso é que tem originalidade e cachet! Não é verdade, Alencar?...

— ­Eu vos digo, filhos, começou o auctor de Elvira, historicamente fallando...

— ­E eu tenho de comprar as queijadas, murmurou Cruges.

— ­Justamente! exclamou Carlos. Tens ainda as queijadas; é necessario não perder tempo; a caminho!

Deixou os outros ainda indecisos, abalou para o palacio, em quatro largas passadas estava lá. E logo da praça avistou, saindo já o portão, passando rente da sentinella, a famosa familia hospedada na Lawrence e a sua cadellinha de luxo. Era, com effeito, um sujeito de barba preta, e de sapatos de lona branca; e, ao lado d’elle, uma matrona enorme, com um mantelete de seda, cousas de ouro pelo pescoço e pelo peito, e o cãosinho felpudo ao collo. Vinham ambos rosnando o quer que fosse, com mau modo um para o outro, e em hespanhol.

Carlos ficou a olhar para aquelle par com a melancolia de quem contempla os pedaços d’um bello marmore quebrado. Não esperou mais pelos outros, nem os quiz encontrar. Correu á Lawrence por um caminho differente, avido de uma certeza: — ­e ahi, o criado que lhe appareceu, disse-lhe que o sr. Salcede e os srs. Castro Gomes tinham partido na vespera para Mafra...

— ­E de lá?...

O criado ouvira dizer ao sr. Damaso que de lá voltavam a Lisboa.

— ­Bem, disse Carlos atirando o chapéo para cima da meza, traga-me você um calice de cognac, e uma pouca d’agua fresca.

Cintra, de repente, pareceu-lhe intoleravelmente deserta e triste. Não teve animo de voltar ao palacio, nem quiz sahir mais d’ali; e arrancando as luvas passeiando em volta da meza de jantar, onde murchavam os ramos da vespera, sentia um desejo desesperado de galopar para Lisboa, correr ao Hotel Central, invadir-lhe o quarto, vêl-a, saciar os seus olhos n’ella!... Porque, o que o irritava agora era não poder encontrar, na pequenez de Lisboa, onde toda a gente se acotovella, aquella mulher que elle procurava anciosamente! Duas semanas farejara o Aterro como um cão perdido: fizera perigrinações ridiculas de theatro em theatro: n’uma manhã de domingo percorrera as missas! E não a tornara a vêr. Agora sabia-a em Cintra, voava a Cintra, e não a via tambem. Ella cruzava-o uma tarde, bella como uma deusa transviada no Aterro, deixava-lhe cahir n’alma por accaso um dos seus olhares negros, e desapparecia, evaporava-se, como se tivesse realmente remontado ao céo, d’ora em diante invisivel e sobrenatural: e elle ali ficava, com aquelle olhar no coração, perturbando todo o seu ser, orientando surdamente os seus pensamentos, desejos, curiosidades, toda a sua vida interior, para uma adoravel desconhecida, de quem elle nada sabia senão que era alta e loira, e que tinha uma cadellinha escosseza... Assim acontece com as estrellas d’acaso! Ellas não são d’uma essencia diferente, nem contéem mais luz que as outras: mas, por isso mesmo que passam fugitivamente e se esvaem, parecem despedir um fulgor mais divino, e o deslumbramento que deixam nos olhos é mais perturbador e mais longo... Elle não a tornara a vêr. Outros viam-n’a. O Taveira vira-a. No Gremio, ouvira um alferes de lanceiros fallar d’ella, perguntar quem era, porque a encontrava todos os dias. O alferes encontrava-a todos os dias. Elle não a via, e não socegava...

O criado trouxe o cognac. Então Carlos, preparando vagarosamente o seu refresco, conversou com elle, fallou um momento dos dois rapazes inglezes, depois da hespanhola obesa... Emfim, dominando uma timidez, quasi córando, fez, atravez de grandes silencios, perguntas sobre os Castro Gomes. E cada resposta lhe parecia uma acquisição preciosa. A senhora era muito madrugadora, dizia o criado: ás sete horas tinha tomado banho, estava vestida, e sahia só. O sr. Castro Gomes, que dormia n’um quarto separado, nunca se mexia antes do meio dia; e, á noite, ficava uma eternidade á meza, fumando cigarettes e molhando os beiços em copinhos de cognac e agua. Elle e o sr. Damaso jogavam o dominó. A senhora tinha montões de flôres no quarto; e tencionavam ficar até domingo, mas fôra ella que apressára a partida...

— ­Ah, disse Carlos depois de um silencio, foi a senhora que apressou a partida?...

— ­Sim, senhor, com cuidado na menina que tinha ficado em Lisboa... V. ex.ª toma mais cognac?

Com um gesto Carlos recusou, e veiu sentar-se no terraço. A tarde descia, calma, radiosa, sem um estremecer de folhagem, cheia de claridade dourada, n’uma larga serenidade que penetrava a alma. Elle tel-a-hia pois encontrado, ali mesmo n’aquelle terraço, vendo tambem cahir a tarde — ­se ella não estivesse impaciente por tornar a vêr a filha, algum bébésinho loiro que ficára só com a ama. Assim, a brilhante deusa era tambem uma boa mamã; e isto dava-lhe um encanto mais profundo, era assim que elle gostava mais d’ella, com este terno estremecimento humano nas suas bellas fórmas de marmore. Agora, já ella estava em Lisboa; e imaginava-a nas rendas do seu peignoir, com o cabello enrolado à pressa, grande e branca, erguendo ao ar o bébé nos seus explendidos braços de Juno, e fallando-lhe com um riso d’ouro. Achava-a assim adoravel, todo o seu coração fugia para ella... Ah! poder ter o direito de estar junto d’ella, n’essas horas d’intimidade, bem junto, sentindo o aroma da sua pelle, e sorrindo tambem a um bébé. E, pouco a pouco, foi-lhe surgindo na alma um romance, radiante e absurdo: um sopro de paixão, mais forte que as leis humanas, enrolava violentamente, levava juntos o seu destino e o d’ella; depois, que divina existencia, escondida n’um ninho de flôres e de sol, longe, n’algum canto da Italia... E, toda a sorte de idéas d’amor, de devoção absoluta, de sacrificio, invadiam-n’o deliciosamente — ­emquanto os seus olhos se esqueciam, se perdiam, enlevados na religiosa solemnidade d’aquelle bello fim da tarde. Do lado do mar subia uma maravilhosa côr d’ouro pallido, que ia no alto diluir o azul, dava-lhe um branco indeciso e opalino, um tom de desmaio doce; e o arvoredo cobria-se todo de uma tinta loura, delicada e dormente. Todos os rumores tomavam uma suavidade de suspiro perdido. Nenhum contorno se movia como na immobilidade de um extase. E as casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janella accesa em braza, os cimos redondos das arvores apinhadas, descendo a serra n’uma espessa debandada para o valle, tudo parecera ficar de repente parado n’um recolhimento melancolico e grave, olhando a partida do sol, que mergulhava lentamente no mar...

— ­Oh Carlos, tu estás ahi?

Era em baixo, na estrada, a voz grossa do Alencar gritando por elle. Carlos appareceu á varanda do terraço.

— ­Que diabo estás tu ahi a fazer, rapaz? exclamou Alencar, agitando alegremente o seu panamá. Nós lá estivemos à espera, no covil real... Fomos ao Nunes... Iamos agora procurar-te á cadeia!

E o poeta riu largamente da sua pilheria — ­emquanto Cruges, ao lado, de mãos atraz das costas, e a face erguida para o terraço, bocejava desconsoladamente.

— ­Vim refrescar, como tu dizes, tomar um pouco de cognac, que estava com sêde.

Cognac? eis ahi o mimo por que o pobre Alencar estivera anciando toda a tarde, desde Sitiaes. E galgou logo as escadas do terraço — ­depois de ter gritado para dentro, para a sua velha Lawrence, que lhe mandasse acima meia da fina.

— ­Viste o Paço, hein, Cruges? perguntou Carlos ao maestro, quando elle appareceu, arrastando os passos. Então, parece-me que o que nos resta a fazer é jantar, e abalar...

Cruges concordou. Voltava do palacio com um ar murcho, fatigado d’aquelle vasto casarão historico, da voz monotona do cicerone mostrando a cama de S. M. El-Rei, as cortinas do quarto de S. M. a Rainha, «melhores que as de Mafra,» o tira-botas de S. A.; e trazia de lá uma pouca d’essa melancolia que erra, como uma atmosphera propria, nas residencias reaes.

E aquella natureza de Cintra, ao escurecer, dizia elle, começava a entristecel-o.

Então concordaram em jantar ali, na Lawrence, para evitar o espectaculo torpe do Palma e das damas, mandar vir á porta o break, e partir depois ao nascer do luar. Alencar, aproveitando a carruagem, recolhia tambem a Lisboa.

— ­E, para ser festa completa, exclamou elle, limpando os bigodes do cognac, emquanto vocês vão ao Nunes pagar a conta, e dar ordens para o break, eu vou-me entender lá abaixo á cosinha com a velha Lawrence, e preparar-vos um bacalhau á Alencar, recipe meu... E vocês verão o que é um bacalhau! Porque, lá isso, rapazes, versos os farão outros melhor; bacalhau, não!

Atravessando a praça, Cruges pedia a Deus que não encontrassem mais o Eusebiosinho. Mas, apenas pozeram os pés nos primeiros degraus do Nunes, ouviram em cima o chalrar da sucia. Estavam na ante-sala, já todos reconciliados, a Concha contente — ­e installados aos dois cantos de uma meza, com cartas. O Palma, munido d’uma garrafa de genebra, fazia uma batotinha para o Eusebio; e as duas hespanholas, de cigarro na bocca, jogavam languidamente a bisca.

O viuvo, enfiado, perdia. No monte, que começára miseravelmente com duas corôas, já luzia ouro; e Palma triumphava, chalaceiando, dando beijocas na sua moça. Mas, ao mesmo tempo, fazia de cavalheiro, fallava de dar a desforra, ficar ali, sendo necessario, até de madrugada.

— ­Então vv. ex.as não se tentam? Isto é para passar o tempo... Em Cintra tudo serve... Valete! Perdeu você outro mico no rei. Deve a libra mais quinze tostões, sô Silveira!

Carlos passára, sem responder, seguido pelo criado — ­no momento em que Euzebiosinho, furioso, já desconfiado, quiz verificar, com as lunetas negras sobre o baralho, se lá estavam todos os reis.

Palma alastrou as cartas largamente, sem se zangar. Entre amigos, que diabo, tudo se admittia! A sua hespanhola, essa sim, escandalisou-se, defendendo a honra do seu homem: então Palmita havia de ter empalmado o rei? Mas, a Concha, zelava o dinheiro do seu viuvo, exclamava que o rei podia estar perdido... Os reis estavam lá.

Palma atirou um calice de genebra ás goelas, e recomeçou a baralhar magestosamente.

— ­Então v. ex.ª não se tenta? repetia elle para o maestro.

Cruges, com effeito, parára, roçando-se pela meza, com o olho nas cartas e no ouro do monte, já sem força, remexendo o dinheiro nas algibeiras. Subitamente um az decidiu-o. Com a mão nervosa, escorregou-lhe uma libra por baixo, jogando cinco tostões, e de porta. Perdeu logo. Quando Carlos voltou do quarto com o criado que descia as malas, o maestro estava em pleno vicio, com a libra entalada, os olhos accezos, o ar esguedelhado.

— ­Então tu?... — ­exclamou Carlos com severidade.

— ­Já desço, rosnou o maestro.

E, á pressa, foi á paz da libra, n’um terno contra o rei. Cartada de colicas! como disse o Palma: e foi com emoção que elle começou a puxar as cartas, espremendo-as uma a uma, n’um vagar mortal. A apparição de um bico arrancou-lhe uma praga. Era apenas um duque, Eusebiosinho perdia mais uma placa. Palma teve um suspirinho de alivio; e, escondendo com ambas as mãos o baralho, erguendo as lunetas faiscantes para o maestro:

— ­Então, sempre continúa toda a libra?...

— ­Toda.

Palma teve outro suspiro, d’anciedade; e, mais pallido, voltou bruscamente as cartas.

— ­Rei! gritou elle, empolgando o ouro.

Era o rei de paus, a sua hespanhola bateu as palmas, o maestro abalou furioso.

Na Lawrence o jantar prolongou-se até ás oito horas, com luzes; — ­e o Alencar fallou sempre. Tinha esquecido n’esse dia as desillusões da vida, todos os rancores litterarios, estava n’uma veia excellente; e foram historias dos velhos tempos de Cintra, recordações da sua famosa ida a Paris, cousas picantes de mulheres, bocados da chronica intima da Regeneração... Tudo isto com estridencias de voz, e filhos isto! e rapazes aquillo! e gestos que faziam oscillar as chammas das vellas, e grandes copos de Collares emborcados de um trago. Do outro lado da meza, os dois inglezes, correctos nos seus fraques negros, de cravos brancos na botoeira, pasmavam, com um ar embaraçado a que se misturava desdem, para esta desordenada exhuberancia de meridional.

A apparição do bacalhau foi um triumpho: — ­e a satisfação do poeta tão grande, que desejou mesmo, caramba, rapazes, que ali estivesse o Ega!

— ­Sempre queria que elle provasse este bacalhau! Já que me não aprecia os versos, havia de me apreciar o cozinhado, que isto é um bacalhau de artista em toda a parte!... N’outro dia fil-o lá em casa dos meus Cohens; e a Rachel, coitadinha, veiu para mim e abraçou-me... Isto, filhos, a poesia e a cozinha são irmãs! Vejam vocês Alexandre Dumas... Dirão vocês que o pae Dumas não é um poeta... E então d’Artagnan? D’Artagnan é um poema... É a faisca é a phantasia, é a inspiração, é o sonho, é o arrobo! Então, pôço, já vêem vocês, que é poeta!... Pois vocês hão-de vir um dia d’estes jantar commigo, e ha-de vir o Ega, e hei-de-vos arranjar umas perdizes á hespanhola, que vos hão-de nascer castanholas nos dedos!... Eu, palavra, gosto do Ega! Lá essas cousas de realismo e romantismo, historias... Um lyrio é tão natural como um persevejo... Uns preferem fedôr de sargeta; perfeitamente, destape-se o cano publico... Eu prefiro pós de marechala n’um seio branco; a mim o seio, e, lá vae á vossa. O que se quer, é coração. E o Ega tem-n’o. E tem faisca, tem rasgo, tem estylo... Pois, assim é que elles se querem, e, lá vae á saude do Ega!

Pousou o copo, passou a mão pelos bigodes, e rosnou mais baixo:

— ­E, se aquelles inglezes continuam a embasbacar para mim, vae-lhes um copo na cara, e é aqui um vendaval, que ha-de a Gran-Bretanha ficar sabendo o que é um poeta portuguez!...

Mas não houve vendaval, a Gran-Bretanha ficou sem saber o que é um poeta portuguez, e o jantar terminou n’um café tranquillo. Eram nove horas, fazia luar, quando Carlos subiu para a almofada do break.

Alencar, embuçado n’um capote, um verdadeiro capote de padre de aldêa, levava na mão um ramo de rosas: e agora, guardara o seu panamá na maleta, trazia um bonet de lontra. O maestro, pesado do jantar, com um começo de spleen, encolheu-se a um canto do break, mudo, enterrado na gola do paletot, com a manta da mamã sobre os joelhos. Partiram. Cintra ficava dormindo ao luar.

Algum tempo o break rodou em silencio, na belleza da noite. A espaços, a estrada apparecia banhada d’uma claridade quente que faiscava. Fachadas de casas, caladas e pallidas, surgiam, d’entre as arvores com um ar de melancolia romantica. Murmurios de agoas perdiam-se na sombra; e, junto dos muros enramados, o ar estava cheio d’aroma. Alencar accendera o cachimbo, e olhava a lua.

Mas, quando passaram as casas de S. Pedro, e entraram na estrada, silenciosa e triste, Cruges mexeu-se, tossiu, olhou tambem para a lua, e murmurou d’entre os seus agasalhos:

— ­Oh Alencar, recita para ahi alguma cousa...

O poeta condescendeu logo — ­apesar de um dos criados ir ali ao lado d’elles, dentro do break. Mas, que havia elle de recitar, sob o encanto da noite clara? Todo o verso parece frouxo, escutado diante da lua! Emfim, ía dizer-lhe uma historia bem verdadeira e bem triste... Veiu sentar-se ao pé do Cruges, dentro do seu grande capotão, esvaziou os restos do cachimbo, e, depois de acariciar algum tempo os bigodes, começou, n’um tom familiar e simples:

Era o jardim d’uma vivenda antiga,
Sem arrebiques d’arte ou flôres de luxo;
Ruas singellas d’alfazema e buxo,
Cravos, roseiras...

— ­Com mil raios! exclamou de repente o Cruges, saltando de dentro da manta, com um berro que emmudeceu o poeta, fez voltar Carlos na almofada, assustou o trintanario.

O break parára, todos o olhavam suspensos; e, no vasto silencio da charneca, sob a paz do luar, Cruges, succumbido, exclamou:

— ­Esqueceram-me as queijadas!

O dia famoso da soirée dos Cohens, ao fim d’essa semana tão luminosa e tão doce, amanheceu enevoado e triste. Carlos, abrindo cedo a janella sobre o jardim, vira um céu baixo que pesava como se fosse feito de algodão em rama enxovalhado: o arvoredo tinha um tom arripiado e humido; ao longe o rio estava turvo, e no ar molle errava um halito morno de sudoeste. Decidira não sahir — ­e desde as nove horas, sentado á banca, embrulhado no seu vasto robe-de-chambre de velludo azul, que lhe dava o bello ar de um principe artista da Renascença, tentava trabalhar: mas, apesar de duas chavenas de café, de cigarettes sem fim, o cerebro, como o céu fóra, conservava-se-lhe n’essa manhã afogado em nevoas. Tinha d’estes dias terriveis; julgava-se então «uma besta»; e a quantidade de folhas de papel, dilaceradas, amarfanhadas, que lhe juncavam o tapete aos pés, davam-lhe a sensação de ser todo elle uma ruina.

Foi realmente um allivio, uma tregoa n’aquella lucta com as idéas rebeldes, quando Baptista annunciou Villaça, que lhe vinha fallar de uma venda de montados no Alemtejo, pertencentes á sua legitima.

— ­Negociosinho, disse o administrador, pousando o chapéo a um canto da mesa e dentro um rolo de papeis, que lhe mette na algibeira para cima de dois contos de réis... E não é mau presente, logo assim pela manhã...

Carlos espreguiçou-se, crusando fortemente as mãos por trás da cabeça:

— ­Pois olhe, Villaça, preciso bem de dous contos de réis, mas preferia que me trouxesse ahi alguma lucidez de espirito... Estou hoje d’uma estupidez!

Villaça considerou-o um momento, com malicia.

— ­Quer v. ex.ª dizer que antes queria escrever uma bonita pagina do que receber assim perto de quinhentas libras? São gostos, meu senhor, são gostos... Elle é bom sahir-se a gente um Herculano ou um Garrett, mas dous contos de réis, são dous contos de réis... Olhe que sempre valem um folhetim. Emfim, o negocio é este.

Explicou-lh’o, sem se sentar, apressado, emquanto Carlos, de braços cruzados, considerava quanto era medonho o alfinete de peito que Villaça trazia (um macacão de coral comendo uma pera de ouro) e distinguia vagamente, atravez da sua neblina mental, que se tratava de um visconde de Torral e de porcos... Quando Villaça lhe apresentou os papeis, assignou-os com um ar moribundo.

— ­Então não fica para almoçar, Villaça? disse elle, vendo o procurador metter o seu rolo de papeis debaixo do braço.

— ­Muito agradecido a v. ex.ª Tenho de me encontrar com o nosso amigo Eusebio... Vamos ao ministerio do reino, elle tem lá uma pertenção... Quer a commenda da Conceição... Mas este governo está desgostoso com elle.

— ­Ah, murmurou Carlos com respeito e atravez d’um bocejo, o governo não está contente com o Eusebiosinho?

— ­Não se portou bem nas eleições. Ainda ha dias, o ministro do reino me dizia, em confidencia: «O Eusebio é rapaz de merecimento, mas atravessado...» V. Ex.ª n’outro dia, disse-me o Cruges, encontrou-o em Cintra.

— ­Sim, lá estava a fazer jus á commenda da Conceição.

Quando Villaça saiu Carlos retomou lentamente a penna, e ficou um momento, com os olhos na pagina meio-escripta, coçando a barba, desanimado e esteril. Mas quasi em seguida appareceu Affonso da Maia, ainda de chapéo, á volta do seu passeio matinal no bairro, e com uma carta na mão, que era para Carlos, e que elle achara no escriptorio misturada ao seu correio. Além d’isso, esperava encontrar ali o Villaça.

— ­Esteve ahi, mas deitou a correr, para ir arranjar uma commenda para o Eusebiosinho — ­disse Carlos, abrindo a carta.

E teve uma surpreza, vendo no papel — ­que cheirava a verbena como a condessa de Gouvarinho — ­um convite do conde para jantar no sabbado seguinte, feito em termos de sympathia tão escolhidos que eram quasi poeticos; tinha mesmo uma phrase sobre a amisade, fallava dos atomos em gancho de Descartes. Carlos desatou a rir, contou ao avô que era um par do reino que o convidava a jantar, citando Descartes...

— ­São capazes de tudo, murmurou o velho.

E dando um olhar risonho, aos manuscriptos espalhados sobre a banca:

— ­Então, aqui, trabalha-se, hein?

Carlos encolheu os hombros:

— ­Se é que se póde chamar a isto trabalhar... Olhe ahi para o chão. Veja esses destroços... Em quanto se trata de tomar notas, colligir documentos, reunir materiaes, bem, lá vou indo. Mas quando se trata de pôr as idéas, a observação, n’uma fórma de gosto e de symetria, dar-lhe côr, dar-lhe relevo, então... Então foi-se!

— ­Preoccupação peninsular, filho, disse Affonso sentando-se ao pé da mesa, com o seu chapéo desabado na mão. Desembaraça-te d’ella. É o que eu dizia n’outro dia ao Craft, e elle concordava... O portuguez nunca póde ser homem de idéas, por causa da paixão da fórma. A sua mania é fazer bellas phrases vêr-lhes o brilho, sentir-lhes a musica. Se fôr necessario falsear a idéa, deixal-a incompleta, exageral-a, para a phrase ganhar em belleza, o desgraçado não hesita... Vá-se pela agoa abaixo o pensamento, mas salve-se a bella phrase.

— ­Questão de temperamento, disse Carlos. Ha sêres inferiores, para quem a sonoridade de um adjectivo é mais importante que a exactidão de um systema... Eu sou d’esses monstros.

— ­Diabo! então és um rhetorico...

— ­Quem o não é? E resta saber por fim se o estylo não é uma disciplina do pensamento. Em verso, o avô sabe, é muitas vezes a necessidade de uma rima que produz a originalidade de uma imagem... E quantas vezes o esforço para completar bem a cadencia de uma phrase, não poderá trazer desenvolvimentos novos e inesperados de uma idéa... Viva a bella phrase!

— ­O sr. Ega annunciou o Baptista, erguendo o reposteiro, quando começava justamente a tocar a sineta do almoço.

— ­Fallae na phrase... — ­disse Affonso, rindo.

— ­Hein? Que phrase? O que?.. — ­exclamou Ega, que rompeu pelo quarto, com o ar estonteado, a barba por fazer, a gola do paletot levantada. Oh! por aqui a esta hora sr. Affonso da Maia! Como está v. ex.ª? Dize-me cá, Carlos, tu é que me podes tirar d’uma atrapalhação... Tu terás por acaso uma espada que me sirva?

E, como Carlos o olhava assombrado, acrescentou, já impaciente:

— ­Sim, homem, uma espada! Não é para me batter, estou em paz com toda a humanidade... É para esta noute, para o fato de mascara.

O Mattos, aquelle animal, só na vespera lhe dera o costume para o baile: e, qual é o seu horror, ao vêr que lhe arranjara, em logar de uma espada artistica, um sabre da guarda municipal! Tivera vontade de lh’o passar atravez das entranhas. Correu ao tio Abrahão, que só tinha espadins de côrte, reles e pelintras como a propria côrte! Lembrara-se do Craft e da sua collecção; vinha de lá; mas ahi eram uns espadões de ferro, catanas pesando arrobas, as durindanas tremendas dos brutos que conquistaram a India... Nada que lhe servisse. Fôra então que lhe tinham vindo á idéa as panoplias antigas do Ramalhete.

— ­Tu é que deves ter... Eu preciso uma espada longa e fina, com os copos em concha, d’aço rendilhado, forrados de velludo escarlate. E sem cruz, sobretudo sem cruz!

Affonso, tomando logo um interesse paternal por aquella difficuldade do John, lembrou que havia no corredor, em cima, umas espadas hespanholas...

— ­Em cima, no corredor? exclamou Ega, já com a mão no reposteiro.

Inutil precipitar-se, o bom John não as poderia encontrar. Não estavam á vista, arranjadas em panoplia, conservavam-se ainda nos caixões em que tinham vindo de Bemfica.

— ­Eu lá vou, homem fatal, eu lá vou, disse Carlos, erguendo-se com resignação. Mas olha que ellas não têem bainhas.

Ega ficou succumbido. E foi ainda Affonso que achou uma idéa, o salvou.

— ­Manda fazer uma simples bainha de velludo negro; isso faz-se n’uma hora. E manda-lhe cozer ao comprido rodellas de velludo escarlate...

— ­Explendido, gritou Ega: o que é ter gosto!

E apenas Carlos sahiu, trovejou contra o Mattos.

— ­Veja v. ex.ª isto, um sabre da guarda municipal! E é quem faz ahi os fatos para todos os theatros! Que idiota!.. E é tudo assim, isto é um paiz insensato!...

— ­Meu bom Ega, tu não queres tornar de certo Portugal inteiro, o Estado, sete milhões d’almas, responsaveis por esse comportamento do Mattos?

— ­Sim senhor, exclamava o Ega passeiando pelo gabinete, com as mãos enterradas nos bolsos do paletot; sim senhor, tudo isso se prende. O costumier com um fato do seculo XIV manda um sabre da guarda municipal; por seu lado o ministro, a proposito de impostos, cita as Meditações de Lamartine; e o litterato, essa besta suprema...

Mas calou-se, vendo a espada que Carlos trazia na mão, uma folha do seculo XVI, de grande tempera, fina e vibrante, com copos trabalhado como uma renda — ­e tendo gravado no aço o nome illustre do espadeiro, Francisco Ruy de Toledo.

Embrulhou-a logo n’um jornal, recusou á pressa o almoço, que lhe offereciam, deu dous vivos shakehands, atirou o chapéu para a nuca, ia abalar, quando a voz de Affonso o deteve:

— ­Ouve la, John, dizia o velho alegremente, isso é uma espada cá da casa, que nunca brilhou sem gloria, creio eu... Vê como te serves d’ella!

Ao pé do resposteiro, Ega voltou-se, exclamou, apertando contra o peito do paletot o ferro, enrolado, no Jornal do Commercio:

— ­Não a sacarei sem justiça, nem a embainharei sem honra. Au revoir!

— ­Que vida, que mocidade! murmurou Affonso. Muito feliz é este John!... Pois vae-te arranjando filho, que já tocou a primeira vez para o almoço.

Carlos ainda se demorou um instante a reler, com um sorriso, a apparatosa carta do Gouvarinho; e ia emfim chamar o Baptista para se vestir, quando em baixo, á entrada particular, o timbre electrico começou a vibrar violentamente. Um passo ancioso ressoou na ante-camara, o Damaso appareceu esbaforido, d’olho esgazeado, com a face em braza. E, sem dar tempo a que Carlos exprimisse a surpreza de o ver emfim no Ramalhete, exclamou, lançando os braços ao ar:

— ­Ainda bem que te encontro, caramba! Quero que venhas d’ahi, que me venhas ver um doente... Eu te explicarei... É aquella gente brazileira. Mas pelo amor de Deus, vem depressa, menino!

Carlos erguera-se, pallido:

— ­É ella?

— ­Não, é a pequena, esteve a morrer... Mas veste-te, Carlinhos, veste-te, que a responsabilidade é minha!

— ­É um bébé, não é?

— ­Qual bébé!... É uma pequena crescida, de seis annos... Anda d’ahi!

Carlos, já em mangas de camisa, estendia o pé ao Baptista, que, com um joelho em terra, apressado tambem, quasi fez saltar os botões da bota. E Damaso, de chapéu na cabeça, agitava-se, exagerando a sua impaciencia, a estalar de importancia.

— ­Sempre a gente se vê em coisas!.. Olha que responsabilidade a minha! Vou visital-os, como costumo ás vezes, de manhã... E vae, tinham partido para Queluz.

Carlos voltou-se, com a sobrecasaca meia vestida:

— ­Mas então?..

— ­Escuta, homem! Foram para Queluz, mas a pequena ficou com a governanta... Depois do almoço deu-lhe uma dôr. A governante queria um medico inglez, porque não falla senão inglez... Do hotel foram procurar o Smith, que não appareceu... E a pequena a morrer!... Felizmente, cheguei eu, e lembrei-me logo de ti... Foi sorte encontrar-te, caramba!

E acrescentou, dando um olhar ao jardim:

— ­Tambem, irem a Queluz com um dia d’estes! Hão-de-se divertir... Estás prompto, hein? Eu tenho lá em baixo o coupé... Deixa as luvas, vaes muito bem sem luvas!

— ­O avô que não me espere para almoçar, gritou Carlos ao Baptista, já do fundo da escada.

Dentro do coupé, um ramo enorme enchia quasi o assento.

— ­Era para ella, disse o Damaso, pondo-o sobre os joelhos. Pela-se por flores.

Apenas o coupé partiu, Carlos cerrando a vidraça, fez a pergunta que desde a apparição do Damaso lhe faiscava nos labios.

— ­Mas então tu, que querias quebrar a cara a esse Castro Gomes?..

O Damaso contou logo tudo, triumphante. Fôra tudo um equivoco! Ah, as explicações do Castro Gomes tinham sido d’um gentleman. Senão quebrava-lhe a cara. Isso não, desconsiderações, a ninguem! a ninguem! Mas fôra assim: os bilhetes de visita que elle lhe deixara conservavam o seu adresse do Grand Hotel em Paris. E o Castro Gomes, suppondo que elle vivia lá, obdecendo á indicação, mandara para lá os seus cartões! Curioso, hein? E de estupído... E a falta de resposta aos telegrammas fôra culpa de Madame, descuido, n’aquelle momento de afflicção, vendo o marido com o braço escavacado... Ah, tinham-lhe dado satisfações humildes. E agora eram intimos, estava lá quasi sempre...

— ­Emfim, menino, um romance... Mas isso é para mais tarde!

O coupé parara á porta do Hotel Central. Damaso saltou, correu ao guarda portão.

— ­Mandou o telegramma, Antonio?

— ­Já lá vae...

— ­Tu comprehendes, dizia elle a Carlos, galgando as escadas, mandei-lhes logo um telegramma para o hotel em Queluz. Não estou para ter mais responsabilidades!...

No corredor, defronte do escriptorio, um criado passava, com um guardanapo debaixo do braço:

— ­Como está a menina? gritou-lhe o Damaso.

O criado encolheu os hombros, sem comprehender.

Mas Damaso já trepava o outro lanço de escada, soprando, gritando:

— ­Por aqui Carlos, eu conheço isto a palmos! Numero 26!

Abriu com estrondo a porta do numero 26. Uma criada, que estava á janella, voltou-se.

Ah bonjour, Melanie! exclamava Damaso, no seu extraordinario francez. A creança estava melhor? l’enfant etait meilleur? Ali lhe trazia o doutor, monsieur le docteur Maia.

Melanie, uma rapariga magra e sardenta, disse que Mademoiselle estava mais socegada, e ella ia avisar miss Sarah, a governanta. Passou o espanador pelo marmore d’uma console, ageitou os livros sobre a meza, e sahiu, dardejando a Carlos um olhar vivo como uma faisca.

A sala era espaçosa, com uma mobilia de réps azul, e um grande espelho sobre a console dourada, entre as duas janellas: a meza estava coberta de jornaes, de caixas de charutos, e de romances de Cappendu; sobre uma cadeira, ao lado, ficára enrolado um bordado.

— ­Esta Melanie, esta desleixada, murmurava o Damaso, fechando a janella com um esforço sobre o feixo perro. Deixar assim tudo aberto! Jesus, que gente!

— ­Este cavalheiro é bonapartista, disse Carlos vendo sobre a meza os numeros do Pays.

— ­Isso, temos questões terriveis! exclamou o Damaso. E eu enterro-o sempre... É bom rapaz, mas tem pouco fundo.

Melanie voltou pedindo a Monsieur le Docteur para entrar um instante no gabinete de toilette. E ahi, depois de apanhar uma toalha cahida, de dardejar a Carlos outro olharsinho petulante, disse que Miss Sarah vinha immediatamente, e retirou-se na ponta dos sapatos. Fóra, na sala, ergueu-se logo a voz do Damaso, fallando a Melanie de sa responsabilité, et que il etait très affligé.

Carlos ficou só, na intimidade d’aquelle gabinete de toilette, que n’essa manhã ainda não fôra arrumado. Duas malas, pertencentes de certo a Madame, enormes, magnificas, com fecharias e cantos de aço polido, estavam abertas: d’uma trasbordava uma cauda rica, de seda forte côr de vinho: e na outra era um delicado alvejar de roupa branca, todo um luxo secreto e raro de rendas e baptistes, d’um brilho de neve, macio pelo uso e cheirando bem. Sobre uma cadeira alastrava-se um monte de meias de seda, de todos os tons, unidas, bordadas, abertas em renda e tão leves, que uma aragem as faria voar; e, no chão corria uma fila de sapatinhos de verniz, todos do mesmo estylo, longos, com o tacão baixo e grandes fitas de laçar. A um canto estava um cesto acolchoado de seda côr de rosa, onde de certo viajara a cadellinha.

Mas o olhar de Carlos prendia-se sobre tudo a um sophá onde ficará estendido, com as duas mangas abertas, á maneira de dous braços que se offerecem, o casaco branco de velludo lavrado de Genova com que elle a vira, a primeira vez, apear-se á porta do hotel. O forro, de setim branco, não tinha o menor acolxoado, tão perfeito devia ser o corpo que vestia: e assim, deitado sobre o sophá, n’essa attitude viva, n’um desabotoado de semi-nudez, adiantando em vago relevo o cheio de dois seios, com os braços alargando-se, dando-se todos, aquelle estofo parecia exhalar um calor humano, e punha ali a fórma d’um corpo amoroso, desfallecendo n’um silencio d’alcova. Carlos sentiu bater o coração. Um perfume indefinido e forte de jasmim, de marechala, de tanglewood, elevava-se de todas aquellas cousas intimas, passava-lhe pela face com um bafo suave de caricia...

Então desviou os olhos, approximou-se da janella, que tinha por perspectiva a fachada enxovalhada do hotel Shneid. Quando se voltou, miss Sarah estava diante d’elle, vestida de preto e muito córada: era uma pessoa sympathica, redondinha e pequena, com um ar de rola farta, os olhos sentimentaes, e uma testa de virgem sob bandós lisos e louros. Balbuciava umas palavras em francez, em que Carlos só percebeu docteur.

— ­Yes, I am the doctor, disse elle.

A face da boa ingleza illuminou-se. Oh! era tão bom, ter emfim com quem se entender! A menina estava muito melhor! Oh, o doutor vinha livral-a d’uma responsabilidade!...

Abriu o reposteiro, fêl-o penetrar n’um quarto com as janellas todas cerradas, onde elle apenas distinguiu a fórma d’um grande leito e o brilho de cristaes n’um toucador. Perguntou para que eram aquellas trevas?

Miss Sarah pensara que a escuridão faria bem à menina, e a adormeceria. E trouxera-a ali para o quarto da mamã, por ser mais largo e mais arejado.

Carlos fez abrir as janellas: e, quando a grande luz entrou, ao avistar a pequena no leito, sob os cortinados abertos, não conteve a sua admiração.

— ­Que linda creança!

E ficou um instante a contemplal-a, n’um enlevo d’artista, pensando que os brancos mais mimosos, mais ricos, sob a mais sabia combinação de luz, não egualariam a pallidez eburnea d’aquella pelle maravilhosa: e esta adoravel brancura era ainda realçada por um cabello negro, tenebroso, forte, que reluzia sob a rede. Os seus por dois olhos grandes, d’um azul profundo e liquido, pareciam n’esse instante maiores, muito serios, e muito abertos para elle.

Estava encostada a um grande travesseiro, toda quieta, com o susto ainda da dôr, perdida n’aquelle vasto leito, e apertando nos braços uma enorme boneca paramentada, de pello riçado, d’olhos tambem azues e arregalados tambem.

Carlos tomou-lhe a mãosinha e beijou-lh’a, — ­perguntando se a boneca tambem estava doente.

— ­Cri-cri tambem teve dôr, respondeu ella muito séria, sem tirar d’elle os seus magnificos olhos. Eu já não tenho...

Estava com effeito fresca como uma flor, com a lingoasinha muito rosada, e a sua vontade já de lunchar.

Carlos tranquillisou miss Sarah. Oh, ella via bem que mademoiselle estava boa. O que a assustara fôra achar-se ali só, sem a mamã, com aquella responsabilidade. Por isso a tinha deitado... Oh se fosse uma creança ingleza saía com ella para o ar... Mas estas meninas estrangeiras, tão debeis, tão delicadas... E o labiosinho gordo da ingleza trahia um desdem compassivo por estas raças inferiores e deterioradas.

— ­Mas a mamã não é doente?

Oh, não! Madame era muito forte. O senhor, esse sim, parecia mais fraco...

— ­E, como se chama a minha querida amiga? perguntou Carlos, sentado à cabeceira do leito.

— ­Esta é Cri-cri, disse a pequena, apresentando outra vez a boneca. Eu chamo-me Rosa, mas o papá diz que eu que sou Rosicler.

— ­Rosicler? realmente? disse Carlos sorrindo d’aquelle nome de livro de cavallaria, rescendente a torneios, e a bosques de fadas.

Então, como colhendo simplesmente informações de medico, perguntou a miss Sarah se a menina sentira a mudança de clima. Habitavam ordinariamente Paris, não é verdade?

Sim, viviam em Paris no inverno, no parque Monceaux; de verão iam para uma quinta da Touraine ao pé mesmo de Tours, onde ficavam até ao começo da caça; e iam sempre passar um mez a Dieppe. Pelo menos fora assim, nos ultimos tres annos, desde que ella estava com Madame.

Emquanto a ingleza fallava, Rosa, com a sua boneca nos braços, não cessava de olhar Carlos gravemente e como maravilhada. Elle, de vez em quando sorria-lhe, ou acariciava-lhe a mãosinha. Os olhos da mãe eram negros: os do pae d’azeviche e pequeninos: de quem herdara ella aquellas maravilhosas pupillas d’um azul tão rico, liquido e doce.

Mas a sua visita de medico findara, ergueu-se para receitar um calmante. Emquanto a ingleza preparava muito cuidadosamente o papel, e experimentava a pena, elle examinou um momento o quarto. N’aquella installação banal d’hotel, certos retoques d’uma elegancia delicada revelavam a mulher de gosto e de luxo: sobre a commoda e sobre a meza havia grandes ramos de flores: os travesseiros e os lençoes não eram do hotel, mas proprios, de bretanha fina, com rendas e largos monogrammas bordados a duas côres. Na poltrona que ella usava uma cachemira de Tarnah disfarçava o medonho reps desbotado.

Depois, ao escrever a receita, Carlos notou ainda sobre a meza alguns livros de encadernações ricas, romances e poetas inglezes: mas destoava ali, estranhamente, uma brochura singular — ­o Manual de interpretação dos sonhos. E ao lado, em cima do toucador, entre os marfins das escovas, os cristaes dos frascos, as tartarugas finas, havia outro objecto estravagante, uma enorme caixa de pó de arroz, toda de prata dourada, com uma magnifica safira engastada na tampa dentro d’um circulo de brilhantes miudos, uma joia exagerada de cocotte, pondo ali uma dissonancia audaz de explendor brutal.

Carlos voltou junto do leito, e pediu um beijo a Rosicler: ella estendeu-lhe logo a boquinha fresca como um botão de rosa; elle não ousou beijal-a assim n’aquelle grande leito da mãe, e tocou-lhe apenas na testa.

— ­Quando vens tu outra vez? perguntou ella agarrando-o pela manga do casaco.

— ­Não é necessario vir outra vez, minha querida. Tu estás boa, e Cri-cri tambem.

— ­Mas eu quero o meu lunch... Dize a Sarah que eu posso tomar o meu lunch... E Cri-cri tambem.

— ­Sim já podeis ambas petiscar alguma cousa...

Fez as suas recommendações á mestra, e depois, apertando a mãosinha da pequena:

— ­E agora adeus, minha linda Rosicler, uma vez que és Rosicler...

E não quiz ser menos amavel com a boneca, deu-lhe tambem um shake-hands.

Isto pareceu captivar Rosa ainda mais. A ingleza, ao lado, sorria, com duas covinhas na face.

Não era necessario, lembrou Carlos, conservar a creança na cama, nem tortural-a com cautellas exageradas...

— ­Oh, nò, sir!

E se a dôr reapparecesse, ainda que ligeira, mandal-o logo chamar...

— ­Oh yes, sir!

E ali deixava o seu bilhete, com a sua adresse.

— ­Oh thank you, sir!

Ao voltar á sala, o Damaso saltou do sophá, onde percorria um jornal, como uma féra a quem se abre a jaula.

— ­Credo, imaginei que ias lá ficar toda a vida! Que estivestes tu a fazer? Irra, que estopada!

Carlos, calçando as luvas, sorria, sem responder.

— ­Então, é cousa de cuidado?

— ­Não tem nada. Tem uns lindos olhos... E um nome extraordinario.

— ­Ah, Rosicler, murmurou Damaso, agarrando o chapéo com mau modo; muito ridiculo, não é verdade?

A creada franceza appareceu outra vez a abrir a porta da sala, — ­dardejando para Carlos o mesmo olhar quente e vivo. Damaso recommendou-lhe muito que dissesse aos senhores, que elle tinha vindo logo com o medico; e que havia de voltar á noite para lhes fazer uma surpreza, e para saber se tinham gostado de Queluz — ­si ils avaient aimè Queluz.

Depois, ao passar diante do escriptorio, metteu a cabeça, para dizer ao guarda-livros, que a menina estava boa, tudo ficava em socego.

O guarda livros sorrio, e cortejou.

— ­Queres que te vá levar a casa? perguntou elle a Carlos, em baixo, abrindo a porta do coupé, ainda com um resto de mau humor.

Carlos preferia ir a pé.

— ­E acompanha-me tu um bocado, Damaso, tu agora não tens que fazer.

Damaso hesitou, olhando o céu aspero, as nuvens pesadas de chuva. MasCarlos tomara-lhe o braço, arrastava-o, amavel e gracejando.

— ­Agora que te tenho aqui, velhaco, homem fatal, quero o romance... Tu disseste que tinhas um romance. Não te largo. És meu. Venha o romance. Eu sei que os tens sempre bons. Quero o romance!

Pouco a pouco Damaso sorria, as bochechas esbrazeavam-se-lhe de satisfação.

— ­Vae-se fazendo pela vida, disse elle a estoirar de jactancia.

— ­Vocês estiveram em Cintra?...

— ­Estivemos, mas isso não foi divertido... O romance é outro!

Desprendeu-se do braço de Carlos, fez um signal ao cocheiro para que os seguisse, e regalou-se pelo Aterro fóra de contar o seu romance.

— ­A coisa é esta... O marido d’aqui a dias vai para o Brazil, tem lá negocios. E ella fica! Fica com as criadas e com a pequena, á espera, dois ou tres mezes. Diz que já andaram até a vêr casas mobiladas, que ella não quer estar no hotel... E eu, intimo, a unica pessoa que ella conhece, mettido de dentro... Hein, percebes agora?

— ­Perfeitamente, disse Carlos, arrojando para longe o charuto, com um gesto nervoso. E de certo, a pobre creatura já está fascinada! Já lhe déste, como costumas, um beijo ardente entre duas portas! Já a desgraçada se surtiu da caixa de phosphoros, para mais tarde quando a abandonares!

Damaso enfiava.

— ­Não venhas já tu com o espirito e com a chufasinha... Não lhe dei beijos que ainda não houve occasião... Mas, o que te posso dizer, é que tenho mulher!

— ­Pois já era tempo, exclamou Carlos, sem conter um gesto brusco, e atirando-lhe as palavras como chicotadas. Já era tempo! Andavas ahi mettido com umas creaturas ignobeis, uma ralé de lupanar. Emfim, agora ha progresso. E eu gosto que os meus amigos vivam n’uma ordem de sentimentos decentes... Mas vê lá... Não sejas o costumado Damaso! Não te vás pôr a alardear isso pelo Gremio e pela casa Havaneza!

D’esta vez Damaso estacou, suffocado, sem comprehender aquelle modo, semelhante azedume. E terminou por balbuciar, livido:

— ­Tu podes entender muito de medicina e de bric-a-brac, mas lá a respeito de mulheres, e da maneira de fazer as cousas, não me dás licções...

Carlos olhou-o, com um desejo brutal de o espancar. E de repente, sentio-o tão innofensivo, tão insignificante, com o seu ar bochechudo, e molle, que se envergonhou do surdo despeito que o atravessara, tomou-lhe o braço, teve duas palavras amaveis.

— ­Damaso, tu não me comprehendeste. Eu não te quiz fazer zangar... É para teu bem... O que eu receava é que tu, imprudente, arrebatado, apaixonado, fosses perder essa bella aventura por uma indiscrição...

E o outro ficou logo contente, sorrindo já, abandonando-se ao braço do seu amigo, certo que o desejo do Maia era que elle tivesse uma amante chic. Não, elle não se tinha zangado, nunca se zangava com os intimos... Comprehendia bem que o que Carlos dizia era por amisade...

— ­Mas tu, ás vezes, tens essa cousa que te pegou o Ega, gostas do teu bocadinho de espirito...

E então tranquillisou-o. Não, por imprudencia não havia elle de «perder a cousa». Aquillo ia com todas as regras. Lá n’isso sobrava-lhe experiencia. A Melanie já a tinha na mão; já lhe dera duas libras.

— ­Isto de mais a mais é uma cousa muito seria... Ella conhece meu tio, é intima d’elle desde pequena, tratam-se até por tu...

— ­Que tio?

— ­Meu tio Joaquim... Meu tio Joaquim Guimarães. Mr. de Guimaran, o que vive em Paris, o amigo de Gambetta...

— ­Ah sim, o communista...

— ­Qual communista, até tem carruagem!

Subitamente lembrou-lhe outra cousa, um ponto de toilette em que queria consultar Carlos.

— ­Ámanhã vou jantar com elles, e vão tambem dois brazileiros, amigos d’elle, que chegaram ahi ha dias, e que partem pelo mesmo paquete... Um é chic, é da Legação do Brazil em Londres. De maneira que é jantar de ceremonia. O Castro Gomes não me disse nada; mas que te parece, achas que vá de casaca?...

— ­Sim, atira-lhe casaca, e uma boa rosa na lapella.

O Damaso olhou-o, pensativo.

— ­A mim tinha-me lembrado o habito de Christo.

— ­O habito de Christo... Sim, põe o habito de Christo ao pescoço, e põe a rosa na botoeira.

— ­Será talvez de mais, Carlos!

— ­Não, fica bem ao teu typo.

Damaso fizera parar o coupé que os tinha seguido a passo. E no ultimo aperto de mão a Carlos:

— ­Tu sempre vaes á noite, aos Cohens, de dominó? O meu fato de selvagem ficou divino. Eu venho mostral-o á noite á brazileira... Entro no Hotel embrulhado n’um capote, e appareço-lhes de repente na sala, de selvagem, de Nelusko, a cantar:

Alerta, marinari,
Il vento cangia...

Chic a valer!... Good bye!

Ás dez horas Carlos vestia-se para o baile dos Cohens. Fóra, a noite fizera-se tenebrosa, com lufadas de vento, pancadas d’agoa, que a cada instante batiam agrestemente o jardim. Ali, no gabinete de toilette, errava no ar tepido um vago aroma de sabonete e de bom charuto. Sobre duas commodas de pau preto, marchetadas a marfim, duas serpentinas de velho bronze erguiam os seus molhos de vellas accezas, pondo largos reflexos doces sobre a seda castanha das paredes. Ao lado do alto espelho-psyché alastrava-se, em cima d’uma poltrona, o dominó de já setim negro com um grande laço azul-claro.

Baptista, com a casaca na mão, esperava que Carlos acabasse a chavena de chá preto que elle estava bebendo aos golos, de pé, em mangas de camisa, e de gravata branca.

De repente, o timbre electrico da porta particular reteniu, apressado e violento.

— ­Talvez outra surpreza, murmurou Carlos, hoje é o dia das surprezas...

Baptista sorriu, ia pousar a casaca para abrir — ­quando em baixo vibrou outro repique brutal, d’uma impaciencia phrenetica.

Então Carlos, curioso, sahiu á ante-camara: e ahi, á meia luz das lampadas Carcel, ainda quebrantada pelo tom dos velludos côr de cereja, viu, ao abrir-se a porta por onde entrou um sopro aspero da noite, apparecer vivamente uma fórma esguia e vermelha, com um confuso tinir de ferro. Depois, pela escada acima, duas pennas negras de gallo ondearam, um manto escarlate esvoaçou — ­e o Ega estava diante d’elle, caracterisado, vestido de Mephistopheles!

Carlos apenas poude dizer bravo — ­o aspecto do Ega emmudeceu-o. Apezar dos toques de caracterisação que quasi o mascaravam, sobrancelhas de diabo, guias de bigode ferozmente exageradas — ­sentia-se bem a afflicção em que vinha, com os olhos injectados, perdido, n’uma terrivel pallidez. Fez um gesto a Carlos, arremessou-se pelo gabinete dentro. Baptista, logo, discretamente, retirou-se cerrando o reposteiro.

Estavam sós. Então Ega, apertando desesperadamente as mãos, n’uma voz rouca e d’agonia:

— ­Tu sabes o que me succedeu, Carlos?

Mas não poude dizer mais, suffocado, tremendo todo; e diante d’elle, devorando-o com os olhos, Carlos tremia tambem, enfiado.

— ­Cheguei a casa dos Cohens, continuou Ega por fim com esforço e quasi balbuciando, mais cedo, como tinhamos combinado. Ao entrar na sala, já estavam duas ou tres pessoas... Elle vem direito a mim, e diz-me: «Você, seu infame, ponha-se já no meio da rua... Já no meio da rua senão, diante d’esta gente, corro-o a pontapés!» E eu, Carlos...

Mas a colera outra vez abafou-lhe a voz. E esteve um momento mordendo os beiços, recalcando os soluços, com os olhos reluzentes de lagrimas.

Quando as palavras voltaram, foi uma explosão selvagem:

— ­Quero-me batter em duello com aquelle malvado, a cinco passos, metter-lhe uma bala no coração!

Outros sons estrangulados escaparam-se-lhe da garganta; e, batendo furiosamente o pé, esmurrando o ar, berrava, sem cessar, como cevando-se na estridencia da propria voz.

— ­Quero matal-o! Quero matal-o! Quero matal-o!

Depois, allucinado, sem ver Carlos, rompeu a passear desabridamente pelo quarto, ás patadas, com o manto deitado para traz, a espada mal afivelada batendo-lhe as canellas escarlates.

— ­Então descobriu tudo, murmurou Carlos.

— ­Está claro que descobriu tudo! exclamou o Ega, no seu passear arrebatado, atirando os braços ao ar. Como descobriu, não sei. Sei isto, já não é pouco. Poz-me fóra!... Hei-de-lhe metter uma bala no corpo! Pela alma de meu pae, hei-de-lhe varar o coração!... Quero que vás lá logo pela manhã com o Craft... E as condições são estas: á pistolla, a quinze passos!

Carlos, agora outra vez sereno, acabava a sua chavena de chá. Depois disse muito simplesmente:

— ­Meu querido Ega, tu não podes mandar desafiar o Cohen.

O outro estacou de repellão, atirando pelos olhos dois relampagos d’ira — ­a que as medonhas sobrancelhas de crepe, as duas pennas de gallo ondeando na gorra, davam uma ferocidade theatral e comica.

— ­Não o posso mandar desafiar?

— ­Não.

— ­Então põe-me fóra de casa...

— ­Estava no seu direito.

— ­No seu direito!... Diante de toda a gente?...

— ­E tu, não eras amante da mulher diante de toda a gente?...

O Ega ficou a olhar um momento para Carlos, como atordoado. Depois fez um grande gesto:

— ­Não se trata da mulher!... não se fallou da mulher!... É uma questão d’honra para mim, quero mandal-o desafiar, quero matal-o...

Carlos encolheu os hombros.

— ­Tu não estás em ti. Tens só uma coisa a fazer; é ficar ámanhã em casa, a vêr se elle te manda desafiar a ti...

— ­O que, o Cohen! exclamou Ega. É um covarde, é um canalha!... Ou o mato, ou lhe rasgo a cara com um chicote. Desafiar-me! Olha quem... Tu estás doido...

E recomeçou o seu passear desabalado do espelho para a janella, soprando, rilhando os dentes, com repellões para traz ao manto que faziam oscillar, nas serpentinas, as chammas altas das vellas.

Carlos não dizia nada, de pé junto da meza, enchendo lentamente de novo a sua chavena. Tudo aquillo começava a parecer-lhe pouco serio, pouco digno, as ameaças de pontapés do marido, os furores melodramaticos do Ega: — ­e mesmo não podia deixar de sorrir diante d’aquelle Mephistopheles esgouroviado, espalhando pelo quarto o brilho escarlate do seu manto de velludo, e a fallar furiosamente d’honra e de morte, com sobrancelhas postiças, e escarcella de coiro á cinta.

— ­Vamos fallar ao Craft! exclamou de repente Ega, parando, com esta brusca resolução. Quero vêr o que diz o Craft. Tenho lá em baixo uma tipoia; estamos lá n’um instante!

— ­Ir agora á quinta, aos Olivaes? disse Carlos, olhando o relogio.

— ­Se és meu amigo, Carlos!...

Carlos immediatamente, sem chamar o Baptista, acabou de se vestir.

Ega, no entanto, ia preparando uma chavena de chá, deitando-lhe rhum, ainda tão nervoso, que mal podia segurar a garrafa. Depois, com um grande suspiro, accendeu uma cigarrete. Carlos entrára na alcova de banho, ao lado, allumiada por um forte jacto de gaz que assobiava. Fóra, a chuva continuava seguida e monotona, as goteiras escoavam-se no chão molle do jardim.

— ­Achas que a tipoia aguentará? perguntou Carlos de dentro.

— ­Aguenta, é o Canhôto, disse Ega.

Agora reparara no dominó, fôra erguel-o, examinava-lhe o setim rico, o bello laço azul claro. Depois, tendo encontrado diante de si o grande espelho-psyché, entalou o monoculo no olho, recuou um passo, contemplou-se d’alto a baixo; — ­e terminou por pousar uma das mãos na cinta, appoiar a outra, galhardamente, sobre os copos da espada.

— ­Eu não estava mal, oh Carlos, hein?

— ­Estavas explendido, respondeu o outro de dentro da alcova. Foi pena estragar-se tudo... Como estava ella?

— ­Devia estar de Margarida.

— ­E elle?

— ­A besta? De beduino.

E continuou ao espelho, gosando a sua figura esguia, as pennas da gorra, os sapatos bicudos de velludo, e a ponta flamante da espada erguendo o manto por traz, n’uma prega fidalga.

— ­Mas então, disse Carlos, apparecendo a enxugar as mãos, tu não fazes idéa do que se passou, o que elle diria á mulher, o escandalo...

— ­Não faço idéa nenhuma, disse o Ega, agora mais sereno. Quando entrei na primeira sala estava elle, de beduino; estava um outro sujeito d’urso, e uma senhora não sei de que, de Tyrollesa creio eu... Elle veiu para mim, e disse-me aquillo: ponha-se fóra! Não sei mais nada... Nem posso perceber... O canalha, se descobriu, naturalmente, para não estragar a festa, não disse nada a Rachel... Depois é que ellas são!

Ergueu as mãos para o ceu, murmurou:

— ­É horroroso!

Deu ainda uma volta pelo quarto, e depois n’uma outra voz, franzindo a face:

— ­Não sei que diabo aquelle Godefroy me deu para collar as sobrancelhas, que me picam que tem diabo!

— ­Tira-as...

Deante do espelho, Ega hesitava em desmanchar o seu semblante feroz de Santanaz. Mas arrancou-as por fim — ­e a gorra emplumada, muito justa, que lhe escaldava a cabeça. Então Carlos lembrou-lhe que, para ir a casa do Craft, se desembaraçasse do manto e da espada, se agasalhasse n’um paletot d’elle. Ega deu ainda um longo e mudo olhar ao seu flamejante traje infernal, e com um profundo suspiro começou a desafivelar o talim. Mas o paletot era muito largo, muito comprido; teve de lhe dar uma dobra nas mangas. Depois Carlos metteu-lhe um bonet escossez na cabeça. — ­E assim arranjado, com as canellas vermelhas de diabo apparecendo sob o paletot, a gargantilha escarlate á Carlos IX emergindo da gola, a velha casqueta de viagem na nuca, o pobre Ega tinha o ar lamentavel d’um Satanaz pelintra, agasalhado pela caridade d’um gentleman, e usando-lhe o fato velho.

Baptista allumiou, grave e discreto. Ega ao passar por elle, murmurou:

— ­Isto vae mal, Baptista, isto vae mal...

O velho creado teve um movimento triste d’hombros, como significando que nada no mundo ia bem.

Na rua negra, a parelha quieta dobrava a cabeça sob a chuva. O Canhoto, ao ouvir fallar d’uma gorgeta de libra, fez um grande espalhafato, rompeu ás chicotadas; e a velha traquitana lá partiu a galope, a escorrer d’agua, atroando a calçada.

Por vezes um coupé particular crusava-os, os casacos de gutta-perche dos criados branquejavam á luz das lanternas. Então a idéa da festa que devia agora resplandecer; Margarida ignorando tudo, walsando nos braços d’outros, anciosa, á espera d’elle; a ceia depois, o champagne, as cousas brilhantes que elle teria dito — ­todas estas delicias perdidas se vinham cravar no coração do pobre Ega, arrancavam-lhe pragas surdas, Carlos fumava silenciosamente, com o pensamento no Hotel Central.

Depois de Santa Apolonia a estrada começou, infindavel, desabrigada, batida pelo ar agreste do rio. Nenhum dizia uma palavra, cada um para o seu canto, arripiados na friagem que entrava pelas gretas da tipoia. Carlos não cessava de vêr o casaco branco de velludo, com as duas mangas abertas, como dois braços que se offereciam...

Passava da uma hora quando chegaram á quinta: a sineta do portão, aos puxões do cocheiro encharcado, retumbou lugubre n’aquelle silencio escuro de aldeia. Um cão ladrou furiosamente: outros latidos ao longe responderam; e ainda esperaram muito, antes que um creado, somnolento e resmungão, apparecesse com uma lanterna. Uma rua d’acacias conduzia á casa: o Ega praguejava, enterrando os seus bellos sapatos de velludo no chão lamacento.

Craft, surprehendido com aquelle tumulto, veiu-lhes ao encontro no corredor, de robe-de-chambre, e a Revista dos Dois Mundos debaixo do braço. Percebeu logo que havia desastre. Levou-os em silencio para o seu gabinete onde um bom lume de carvão na chaminé aquecia, alegrava o aposento todo estofado de cretones claros. Ambos foram direitos ao lume.

Ega rompera logo a contar o seu caso — ­emquanto Craft, sem espanto nem exclamações, ia preparando methodicamente sobre a meza tres grogs de cognac e limão. Carlos, sentado ao pé do fogão, aquecia os pés: e Craft veiu acabar de ouvir o Ega, accommodando-se tambem na sua poltrona, do outro lado da chaminé, com o seu cachimbo na bocca.

— ­Emfim, exclamou Ega, de pé, cruzando os braços, que me aconselhas tu agora?

— ­Tens a fazer só isto, disse Craft: esperar ámanhã em casa que elle te mande os seus padrinhos... Que tenho a certeza que não manda... E depois, se vos baterdes, deixar-te ferir ou matar.

— ­Perfeitamente o que eu disse, murmurou Carlos, provando o seu grog.

Ega olhou-os a ambos, successivamente, petrificado. E logo, n’um fluxo de palavras desordenadas, queixou-se de não ter amigos. Ali estava, n’aquella crise, a maior da sua vida: e em logar de encontrar, nos seus camaradas de infancia e de Coimbra, apoio, solidariedade, lealdade à tort et à travers, abandonavam-n’o, pareciam querer enterral-o, e expol-o a irrisões maiores... Ia-se commovendo; os olhos vermelhejavam-lhe sob as lagrimas. E quando algum d’elles ia interrompel-o, n’uma palavra de senso, batia o pé, persistia na sua teima — ­um desafio, matar o Cohen, vingar-se! Tinha sido insultado. Não existia outra cousa. Não se tinha fallado na mulher. Era elle que devia primeiro mandar padrinhos, lavar a sua honra. Havia pessoas na sala, quando o outro o insultou. Havia um urso, e uma tyrolesa... E emquanto a deixar-se varar por uma bala, não! Tinha mais direito a viver que o Cohen, que era um burguez, e um agiota... E elle era um homem de estudo e de arte! Tinha na cabeça livros, idéas, cousas grandes. Devia-se ao paiz, á civilisação!... Se fosse ao campo, era para fazer a sua pontaria, e abater o Cohen, ali, como uma besta immunda...

— ­Mas o que é, é que não tenho amigos! gritou elle exhausto por fim, cahindo para o canto d’um sophá.

Craft bebia em silencio, e aos golos, o seu cognac.

Foi Carlos que se ergueu, serio e aspero. Elle não tinha direito de duvidar da sua amisade. Quando lhe tinha ella faltado? Mas era necessario não ser pueril; nem theatral... A questão estava simplesmente em que o Cohen o surprehendera, amando-lhe a mulher. Logo, podia matal-o, podia entregal-o aos tribunaes, podia escavacal-o na sala a pontapés...

— ­Ou peor, interrompeu Craft. Mandar-te a senhora, com este bilhetinho: «Guarde-a».

— ­Ou isso! continuava Carlos. Não, senhor: limita-se a prohibir-te a entrada em casa, um pouco asperamente, sim, mas indicando que, depois de ter feito isto, não quer nada mais violento, nem mais dramatico. Teve portanto um acto de moderação. E tu queres mandal-o desafiar por isso?...

Mas Ega revoltou-se outra vez, deu um pulo, disparatou pela sala, sem paletot agora, esguedelhado, parecendo mais phantastico n’aquelle simples gibão escarlate, com os sapatos de velludo enlameados, as longas pernas de cegonha cobertas de malha de seda vermelha. E teimava que se não tratava d’isso! Não, não se tratava da mulher! A questão era outra...

Carlos então zangou-se.

— ­Para que diabo te expulsou elle de casa então? Não disparates, homem! Nós estamos-te a dizer o que faz um homem de senso. E é triste, que te custe tanto a perceber o que manda o senso. Trahiste um amigo teu... Nada de equivocos! tu declaravas bem alto a tua amisade pelo Cohen. Trahistel-o, tens de acceitar a lei: se elle te quizer matar tens de morrer. Se elle não quizer fazer nada, tens de ficar de braços cruzados. Se elle te quizer chamar ahi por essas ruas um infame, tens de baixar a cabeça, e reconhecer-te infame...

— ­Então tenho de engolir a affronta?

Os dois amigos explicaram-lhe que aquelle fato de Satanaz lhe perturbava a lucidez do criterio mundano — ­e que chegava a ser torpe fallar elle, Ega, de affronta.

Ega, outra vez acabrunhado sobre o sophá, conservou um momento a cabeça enterrada nas mãos.

— ­Eu já nem sei, disse elle por fim. Vocês devem ter rasão... Eu estou-me a sentir idiota ... Então, vamos, que hei de eu fazer?

— ­Vocês teem a tipoia á espera? perguntou tranquillamente Craft.

Carlos mandara desapparelhar, recolher o gado esfalfado.

— ­Excellente! Então, meu caro Ega, tens outra cousa a fazer, antes de morrer ámanhã talvez, é cear esta noite. Eu ia ceiar, e por motivos longos d’explicar, ha n’esta casa um peru frio. E ha-de haver uma garrafa de Bourgonhe...

D’ahi a pouco estavam á mesa — ­n’aquella bella sala de jantar do Craft, que encantava sempre Carlos, com as suas tapeçarias ovaes representando bocados solitarios d’arvoredo, as severas faenças da Persia, e a sua original chaminé flanqueada por duas figuras negras de Nubios com olhos rutilantes de crystal. Carlos, que se declarara esfomeado, trinchava já o perú, emquanto Craft, desarrolhava, com veneração, duas garrafas do seu velho Chambertin, para reconfortar Mephistopheles.

Mas Mephistopheles, sombrio e com os olhos avermelhados, repelliu o prato, desviou o copo. Depois, sempre condescendeu em provar o Chambertin.

— ­Pois eu, dizia Craft empunhando o talher, quando vocês chegaram, estava a lêr um artigo interessante sobre a decadencia do protestantismo em Inglaterra...

— ­Que é aquillo, além, n’aquella lata? perguntou Ega, com uma voz moribunda.

Um pâté de foie-gras. Mephistopheles escolheu com tedio uma trufa.

— ­Bem bom, este teu Chambertin, suspirou elle.

— ­Anda come e bebe com franqueza, gritou-lhe Craft. Não te romantises. Tu o que tens é fome. Todas as tuas idéas esta noite se ressentem da debilidade!

Então Ega confessou que devia estar fraco. Com aquella excitação do seu trage de Satanaz nem jantára, contando ceiar bem em casa do outro... Sim, com effeito, tinha appetite! Excellente foie-gras...

E d’ahi a pouco devorava: foram talhadas de perú, uma porção immensa de lingua d’Oxford, duas vezes presunto d’York, todas aquellas boas cousas inglezas que havia sempre em casa do Craft. E elle só bebeu quasi toda uma garrafa de Chambertin.

O escudeiro fôra preparar o café: e, no entanto, ia-se discutindo, em todas as hypotheses, a attitude provavel do Cohen com a mulher. Que faria elle? Talvez lhe perdoasse. Ega affirmava que não: era vaidoso, e de rancores longos! N’um convento tambem não a fechava, sendo judia...

— ­Talvez a mate, disse Craft, com toda a seriedade.

Ega, já com os olhos brilhantes do Bourgogne, declarou tragicamente que elle então entrava n’um mosteiro. Os dois gracejaram, sem piedade. Em que mosteiro queria elle entrar? Nenhum era congenere com o Ega! Para dominicano era muito magro, para trapista muito lascivo, muito palrador para jesuita, e para benedictino muito ignorante... Era necessario crear uma ordem para elle! Craft lembrou a Santa Blague!

— ­Vocês não teem coração, exclamou Ega, enchendo outro grande copo. Vocês não sabem, eu adorava aquella mulher!

Então largou a fallar de Rachel. E teve alli, de certo, os momentos melhores de toda aquella paixão, — ­porque poude, sem escrupulo, fazer reluzir a sua aureola de amante, banhar-se no mar de leite das confidencias vaidosas. Começou por contar o encontro com ella na Foz — ­emquanto Craft, sem perder uma palavra, como quem se instrue, se erguera a abrir uma garrafa de Champagne. Disse depois os passeios na Cantareira; as cartinhas ainda hesitantes e platonicas, trocadas entre folhas de livros emprestados, em que ella se assignava Violetta de Parma; o primeiro beijo, o melhor, surripiado entre duas portas, emquanto o marido correra acima a buscar-lhe charutos especiaes; os rendez-vous no Porto, no Cemiterio do Repouso, as pressões ardentes de mãos á sombra dos cyprestes, e os planos de voluptuosidade combinados entre as lapides funebres...

— ­Muito curioso! dizia o Craft.

Mas Ega teve de se calar, o criado entrava com o café. Emquanto se enchiam as chavenas, e Craft fôra buscar uma caixa de charutos, elle acabou a garrafa de Champagne, já pallido, com o nariz afilado.

O criado sahiu, correndo o reposteiro de tapeçaria: e logo Ega, com o calice de cognac ao lado, recomeçou as confidencias, contou a volta a Lisboa, a Villa Balzac, as manhãs deliciosas passadas lá com ella no calor d’um ninho d’amor...

Mas agora interrompia-se, vago e com os olhos turvos, enterrando um momento a cabeça entre os punhos. Depois lá vinha outro detalhe, os nomes lubricos que ella lhe dava, uma certa coberta de seda preta onde ella brilhava como um jaspe... Duas lagrimas embaciaram-lhe os olhos, jurou que queria morrer!

— ­Se vocês soubessem que corpo de mulher! gritou elle de repente. Oh meninos, que corpo de mulher... Imaginem vocês um peito...

— ­Não queremos saber, disse Carlos. Cala-te, tu estás bebado, miseravel!

Ega ergueu-se, retezando a perna, arrimado de lado á meza.

Bebado! Elle? Ora essa!... Era cousa que não podia, era empiteirar-se. Tinha feito o possivel, bebido tudo, até agua raz. Nunca! Não podia...

— ­Olha, vou pôr aquella garrafa á boca, tu verás... E fico frio, fico impassivel. A discutir philosophia... Queres que te diga o que penso de Darwin? É uma besta... Ora ahi tens. Dá cá a garrafa.

Mas Craft recusou-lh’a; e, um momento Ega ficou oscillando, a olhar para elle, com a face livida.

— ­Ou me dás a garrafa... ou me dás a garrafa, ou te metto uma bala no coração... Não, nem vales a bala... Vou-te dar uma bolacha!

De repente os olhos cerraram-se-lhe, abatteu-se sobre a cadeira, d’ahi sobre o chão, como um fardo.

— ­Terra! disse tranquillamente Craft.

Tocou a campainha, o escudeiro entrou, apanharam João da Ega. E emquanto o levavam para o quarto dos hospedes e lhe despiam o fato de Satanaz, não cessou de choramingar, dando beijos babosos pelas mãos de Carlos, balbuciando:

— ­Rachelsinha!... Racaqué, minha Raquesinha! gostas do teu bibichinho?...

Quando Carlos partiu na tipoia para Lisboa, não chovia, um vento frio ia varrendo o ceu, já clareava a alvorada.

Ao outro dia, ás dez horas, Carlos voltou aos Olivaes. Achou Craft dormindo, e subiu ao quarto do Ega. As janellas tinham ficado abertas, um largo raio de sol dourava o leito; e elle ressonava ainda, no meio d’aquella aureola, deitado de lado, com os joelhos contra o estomago, o nariz dentro dos lençoes.

Quando Carlos o sacudio, o pobre John abriu um olho triste, e bruscamente ergueu-se sobre o cotovello, espantado para o quarto, para os cortinados de damasco verde, para um retrato de dama empoada que lhe sorria de dentro da sua moldura dourada. De certo as memorias da vespera o assaltaram, porque se enterrou para baixo, com os lençoes até ao queixo; e a sua face esverdeada, envelhecida, exprimiu a desconsolação de deixar aquelles fofos colxões, a paz confortavel da quinta — ­para ir affrontar a Lisboa toda a sorte de cousas amargas.

— ­Está frio lá fóra? perguntou elle melancholicamente.

— ­Não, está um dia adoravel. Mas levanta-te, depressa! Se lá fôr alguem da parte do Cohen, podem imaginar que fugiste...

Ega deu immediatamente um pulo da cama, e atordoado, esguedelhado, procurava a roupa, com as canellas nuas, tropeçando contra os moveis. Só achou o gibão de Satanaz. Chamaram o criado, que trouxe umas calças de Craft. Ega enfiou-as á pressa: e sem se lavar, com a barba por fazer, a gola do paletot erguida, enterrou emfim na cabeça o bonet escossez, voltou-se para Carlos, disse com um ar tragico:

— ­Vamos a isso!

Craft, que se erguera, foi acompanhal-os ao portão, onde esperava o coupé de Carlos. Na alameda de acacias, tão tenebrosa na vespera sob a chuva, cantavam agora os passaros. A quinta, fresca e lavada, verdejava ao sol. O grande Terra-nova do Craft pulava em roda d’elles.

— ­Doe-te a cabeça, Ega? perguntou Craft.

— ­Não, respondeu o outro, acabando de abotoar o paletot. Eu hontem não estava bebado... O que estava era fraco.

Mas, ao entrar para o coupé, fez, com um ar profundo e philosophico, esta reflexão:

— ­O que é a gente beber bons vinhos... Estou como se não fosse nada!

Craft recommendou que se houvesse novidade, lhe mandassem um telegramma; fechou a portinhola, o coupé partiu.

Durante a manhã não veiu telegramma á quinta; e quando Craft appareceu na Villa Balzac, onde uma carruagem de Carlos esperava á porta, já escurecera, duas vélas ardiam na triste sala verde. Carlos, estirado no sophá, dormitava, com um livro aberto sobre o estomago: e Ega passeiava d’um lado para outro, todo vestido de preto, pallido, com uma rosa na botoeira. Tinham estado alli na sala, n’aquella sécca, esperando todo o dia as testemunhas do Cohen.

— ­Que te dizia eu? Não ha nada, nem podia haver, murmurou Craft.

Mas Ega, agora agitado de idéas negras, temia que elle tivesse assassinado a mulher! O sorriso sceptico de Craft indignou-o. Quem conhecia melhor o Cohen do que elle? Sob a apparencia burgueza, era um monstro! Tinha-lhe visto matar um gato, só por capricho de derramar sangue...

— ­Tenho um presentimento de desgraça, balbuciou elle aterrado.

E logo n’esse momento a campainha retiniu. Ega acordou precipitadamente Carlos, empurrou os dois amigos para o quarto de cama. Craft ainda lhe disse que, áquella hora, não podiam ser os amigos do Cohen. Mas elle queria estar só na sala: e lá ficou, mais pallido, rigido, muito abotoado na sobrecasaca, com os olhos cravados na porta.

— ­Que massada! dizia Carlos dentro, tenteando a escuridão do quarto.

Craft accendeu no toucador um resto de vella. Uma luz triste espalhou-se, tudo appareceu n’um desarranjo: no meio do chão estava cahida uma camisa de dormir; a um canto ficara a bacia de banho com agoa de sabão; e, no centro, o enorme leito, envolto nas suas cortinas de seda vermelha, conservava uma magestade de tabernaculo.

Um momento estiveram callados. Craft methodico, e como quem se instrue, examinava o toucador, onde havia um maço de ganchos de cabello, uma liga com o fecho quebrado, um ramo de violetas murchas. Depois foi olhar o marmore da commoda; ahi ficara um prato com ossos de frango, e ao lado uma meia folha de papel escripta a lapis, toda emendada, de certo trabalho litterario do Ega. Elle achava tudo isto muito curioso.

Da sala, no entanto, vinha um ciciar de vozes subtil e intimo. Carlos escutando, julgou sentir uma falla abafada de mulher... Impaciente, foi á cozinha. A criada estava sentada á meza, com a mão mettida pelos cabellos, sem fazer nada, a olhar para a luz: o pagem, espaparrado n’uma cadeira, chupava o seu cigarro.

— ­Quem foi que entrou? perguntou Carlos.

— ­Foi a criada do sr. Cohen, disse o garoto, escondendo o cigarro atraz das costas.

Carlos voltou ao quarto, annunciando:

— ­É a confidente. As cousas terminam amavelmente.

— ­E como queria você que terminassem? disse Craft. O Cohen tem o seu Banco, os seus negocios, as suas letras a vencer, o seu credito, a sua respeitabilidade, todo um arranjo de cousas a que não convém um escandalo... É isto que calma os maridos. Além d’isso, já se satisfez, já lhe offereceu pontapés...

N’esse instante houve um rumor na sala, Ega abriu violentamente a porta.

— ­Não ha nada, exclamou elle, deu-lhe uma coça, e vão ámanhã para Inglaterra!

Carlos olhou para o Craft — ­que movia a cabeça, como vendo todas as suas previsões realisadas, e approvando plenamente.

— ­Uma coça, dizia o Ega, com os olhos chammejantes e n’uma voz que sibillava. E depois fizeram as pazes... Vem ainda a ser um menage modelo! A bengala purifica tudo... Que canalha!

Estava furioso. N’esse momento odiava Rachel — ­não perdoando ao seu idolo ter-se deixado desfazer á paulada. Lembrava-se justamente da bengala do Cohen, um junco da India, com uma cabeça de galgo por castão. E aquillo zurzira as carnes que elle tinha apertado com paixão! Aquillo pozera vergões roxos onde os seus labios tinham avivado signaes côr de rosa! E tinham feito as pazes. E assim terminava, relles e chinfrim, o romance melhor da sua vida! Preferiria sabel-a morta, a sabel-a espancada. Mas não! levava a sova, deitava-se depois com o marido, e elle mesmo, decerto arrependido, chamando-lhe nomes doces, a ajudava, em ceroulas, a fazer as applicações de arnica! Aquillo acabava em arnica!

— ­Entre vocemecê para aqui, sr.ª Adelia, gritou elle para a sala, entre para aqui! Aqui só ha amigos. O segredo acabou, o pudor acabou! Isto são amigos! Somos tres, mas somos um! Tem vocemecê diante de si o grande mysterio da Santissima Trindade. Sente-se, sr.ª Adelia, sente-se... Não faça ceremonia... E póde contar... Aqui a sr.ª Adelia, meninos, viu tudo, viu a coça!

A sr.ª Adelia, uma moça gordinha e baixa, de bonitos olhos, com um chapéo de flôres vermelhas, veiu logo da sala rectificando. Não, ella não vira... Então o sr. Ega não tinha percebido bem... Ella só ouvira.

— ­Aqui está como foi, meus senhores... Eu tinha ficado a pé, naturalmente, até ao fim do baile, que estava que nem me tinha nas pernas. Era já dia claro, quando o senhor, ainda vestido de moiro, se fechou no quarto com a senhora. Eu fiquei na cozinha com o Domingos á espera que elles tocassem a campainha. De repente ouvimos gritos!... Eu fiquei estarrecida, pensei até que eram ladrões. Corremos, eu e o Domingos, mas a porta do quarto estava fechada, e os dois estavam por dentro, lá para o fundo da alcova. Eu ainda puz o olho á fechadura, mas não pude vêr nada... Lá o estalar de bofetadas, e trambulhões, e sons de bengalada, isso sim, isso ouvia-se perfeitamente; e os gritos. Eu disse logo ao Domingos «ai que é uma questão, ai que lá se foi tudo.» Mas de repente, silencio geral! Nós voltámos para a cozinha; d’ahi a pouco o sr. Cohen appareceu, todo esguedelhado, em mangas de camisa, a dizer que nos podiamos deitar, que elles não precisavam nada, e que amanhã fallariamos!... Depois lá ficaram toda a noite, e pela manhã parece que estavam muito amiguinhos... Que eu não puz os olhos na senhora. O sr. Cohen, apenas se levantou, veiu á cozinha, fez-me elle as contas, e pôz-me fóra; muito mal creado, até me ameaçou com a policia... Foi pelo Domingos, que eu soube agora, quando fui buscar o bahú com um gallego, que o sr. Cohen ía com a senhora para Inglaterra. Emfim, um chinfrim... Eu até tenho estado todo o dia com o estomago embrulhado.

A sr.ª Adelia com um suspiro, pondo os olhos no chão, calou-se. Ega, com os braços cruzados, olhava amargamente para os seus amigos. Que lhes parecia aquillo? Uma coça!.. Se um covarde d’aquelles não merecia uma bala no coração! Mas ella tambem, deixar-se tocar, não ter fugido, consentir ainda depois em dormir com elle!.. Tudo uma corja!

— ­E a sr.ª Adelia, perguntava Craft, não tem idéa de como elle descobriu?..

— ­Isso é que é prodigioso! gritou Ega, apertando as mãos na cabeça.

Sim, prodigioso! Não fôra carta apanhada: elles não se escreviam. Não podia ter surprehendido as visitas á Villa Balzac: as cousas estavam combinadas com uma arte muito subtil, perfeitamente impenetraveis. Para vir ali, nunca ella commettera a indiscripção de se servir da sua carruagem. Nunca ella claramente entrara pela porta. Os criados d’elle nunca a tinham visto, não sabiam quem era a senhora que o visitava... Tantos cuidados, e tudo estragado!

— ­Estranho, estranho! murmurava Craft.

Houve um silencio. A sr.ª Adelia terminara por descançar familiarmente n’uma cadeira, com a sua trouxasinha no regaço.

— ­Pois olhe, sr. Ega, disse ella, depois de reflectir, creia então uma cousa, é que foi em sonhos. Já tem acontecido... Foi a senhora que sonhou alto com v. ex.ª, disse tudo, o sr. Cohen ouviu, ficou de pedra no sapato, espreitou-a, e descobriu a marosca... E eu sei que ella sonha alto.

Ega, diante da sr.ª Adelia, percorria-a desde as flôres do chapéo até á roda das saias, com os olhos faiscantes.

— ­Como é possivel que elle ouvisse? Se elles tinham quartos separados!... Eu sei que tinham.

A sr.ª Adelia baixou as palpebras, acariciou com os dedos calçados de luvas pretas a sua trouxasinha redonda, e disse mais baixo estas palavras:

— ­Não tinham, não senhor. Nem a senhora consentia em tal arranjo... A senhora gosta muito do marido, e tem muitos ciumes d’elle.

Houve um silencio embaraçado e desagradavel. Sobre o toucador o resto da vella acabava, com uma luz lugubre. E Ega, que affectara sorrir, encolher os hombros, dava pelo quarto passos lentos e murchos, triturando o bigode com a mão tremula.

Então Carlos enojado, cançado d’aquelle episodio que durava desde a vespera, e onde constantemente se remexera em lodo, declarou que era necessario findar! Eram oito horas, e elle queria jantar...

— ­Sim, vamos todos jantar, murmurou o Ega, com o ar confuso e embaçado.

De repente fez um signal á sr.ª Adelia, arrastou-a para a sala, fechou-se lá outra vez.

— ­Você não está farto d’isto, Craft? exclamou Carlos, desesperado.

— ­Não. Acho um estudo curioso.

Esperaram ainda dez minutos. Subitamente a vella extinguiu-se. Carlos, furioso, gritou pelo pagem. E o garoto entrava com um immundo candieiro de petroleo — ­quando Ega, mais composto, voltou da sala. Tudo acabara, a sr.ª Adelia partira.

— ­Vamos lá jantar, disse elle. Mas aonde, a esta hora?

E elle mesmo lembrou o André, ao Chiado. Em baixo, alem do coupé de Carlos, esperava a tipoia do Craft. As duas carruagens partiram. A Villa Balzac ficava apagada, muda, d’ora em diante inutil.

No André tiveram de esperar muito tempo, n’um gabinete triste, com um papel de estrellinhas douradas, cortininhas de cassa barata sob sanefas de reps azul, e dois bicos de gaz que silvavam. Ega, enterrado no sophá de mollas gastas e lassas, cerrara os olhos, parecia exhausto. Carlos ía contemplando as gravuras pela parede, todas relativas a hespanholas: uma saíndo da egreja; outra saltando uma pocinha de agua; outra, de olhos baixos, escutando os conselhos de um canonico. Craft, já á meza, com a cabeça entre os punhos, percorria um Diario da Manhã, que o criado offerecera para os senhores se entreterem.

De repente o Ega deu um murro no sophá, que rangeu lamentavelmente.

— ­Eu o que não percebo, gritou elle, é como aquelle malvado descobriu!..

— ­A hypothese da sr.ª Adelia, disse Craft erguendo os olhos do jornal, parece provavel. Ou em sonhos, ou acordada, a pobre senhora descahiu-se. Ou talvez uma denuncia anonyma. Ou talvez apenas um acaso... O facto é que o homem desconfiou, espreitou-a, e apanhou-a.

Ega erguera-se:

— ­Eu não vos quiz dizer diante da Adelia, que não estava no segredo todo. Mas vocês sabem a casa defronte da minha, do outro lado da viella, uma casa com um grande quintal? Ahi mora uma tia do Gouvarinho, a D. Maria Lima, uma pessoa respeitavel. A Rachel ía vêl-a de vez em quando. São intimas, a D. Maria Lima é intima de todo o mundo. Depois sahia por uma portinha do quintal, atravessava a viella, e estava á porta da minha casa, á porta escusa, á porta da escada que vae ter ao cacifro de banho. Já vocês vêem... Os criados nem a avistavam. Quando ella lá lunchava, o lunch estava já posto no meu quarto, as portas fechadas. Mesmo se alguem visse, era uma senhora com um véo preto, que vinha de casa da Lima... Como podia o homem apanhal-a?.. Além d’isso, em casa da Lima, ella mudava de chapéo, e punha um waterproof...

Craft cumprimentou.

— ­É brilhante! Parece de Scribe.

— ­Então, disse Carlos sorrindo, essa respeitavel fidalga...

— ­A D. Maria, coitada... Eu te digo, é uma excellente velha, recebida em toda a parte, mas pobre, e faz d’estes favores... Ás vezes mesmo em casa d’ella.

— ­Leva caro por esses serviços? perguntou tranquillamente Craft, que em todo aquelle caso procurava instruir-se.

— ­Não, coitada, disse o Ega. Dão-se-lhe de vez em quando cinco libras.

O criado entrava com uma travessa de camarões, os tres em silencio accommodaram-se á meza.

Depois do jantar recolheram ao Ramalhete. Ega ía lá dormir, receiando, com os nervos tão excitados, a solidão da villa Balzac. Partiram, de charutos accesos, n’uma caleche descoberta, sob a noite estrellada e doce.

Felizmente não estava ninguem no Ramalhete; Ega, cançado, poude retirar-se logo para o seu quarto, um aposento d’hospedes no segundo andar, onde havia um bello leito antigo de pau preto. Ahi, apenas o criado o deixou, Ega approximou-se do tremó onde ardiam as luzes, e tirou do pescoço, de sob a camiza, um medalhão de ouro. Tinha dentro uma photographia de Rachel: — ­e a sua intenção agora era queimal-a, deitar ao balde das agoas sujas as cinzas d’aquella paixão. Mas, ao abrir o medalhão, a face bonita, banhada n’um sorriso, sob o vidro oval, pareceu olhar para elle com uma tristeza no velludo das pupillas languidas... A photographia mostrava apenas a cabeça, com uma abertura de decote no começo do vestido: e as recordações de Ega alargaram aquelle decote uma vez mais, revendo o collo, o extraordinario setim da pelle, o signalsinho sobre o seio esquerdo... O sabor dos seus beijos passou-lhe de novo nos labios, sentiu n’alma outra vez como o ecco dos suspiros cançados que ella soltara nos seus braços. E ella ia-se embora, nunca mais a veria! Esta desolada amargura do nunca mais revolveu-o todo — ­e com a face enterrada no travesseiro, o pobre demagogo, o grande phraseador soluçou muito tempo no segredo da noite.

Toda essa semana foi dolorosa para o Ega. Logo ao outro dia Damaso apparecera no Ramalhete, e por elle ouviram os rumores de Lisboa. Já se sabia no Gremio, no Chiado, por toda a parte, que elle fôra expulso da casa dos Cohens. O urso, a pastora do Tyrol, testemunhas do episodio, tinham-n’o badallado com enthusiasmo. Dizia-se mesmo que o Cohen lhe dera um pontapé. Os amigos da casa, esses, sobretudo o Alencar, prégavam com fervor a innocencia da sr.ª D. Rachel. O Alencar contava publicamente que o Ega, provinciano inexperiente e leão de Celorico, tendo tomado por evidencias de paixão os sorrisos de amabilidade de uma senhora que recebe, — ­escrevera á sr.ª D. Rachel uma carta quasi obscena, que ella, coitadinha, toda em lagrimas, viera mostrar ao marido.

— ­Então dão-me para baixo, hein, Damaso? murmurou Ega que, no gabinete de Carlos, embrulhado n’uma velha ulster, e encolhido n’uma poltrona, escutava estas cousas com um ar cançado e doente.

Damaso confessou que na sociedade lhe davam para baixo.

Ah, elle sabia-o bem! tinha antipathias em Lisboa. Ninguem lhe perdoara ainda a pelissa. A sua verve, toda em sarcasmos, offendia. E era desagradavel para muita gente que um homem, com esse espirito tão perigoso de ferro em braza, tivesse uma mãe rica, e fosse independente.

Depois, no sabbado seguinte, Carlos, ao voltar do jantar dos Gouvarinhos — ­que fôra excellente — ­contou-lhe a conversa que tivera com a sr.ª condessa. A condessa fallara-lhe muito livremente, como um homem, d’aquelle desastre do Ega. Tinha-se affligido muito, não só pela Rachel, coitada, de quem era amiga, mas pelo Ega, que ella apreciava tanto, tão interessante, tão brilhante, e que sahia de tudo aquillo enxovalhado! O Cohen dizia a todos (dissera-o ao Gouvarinho) que ameaçára o Ega de pontapés, por elle ter escripto a sua mulher uma carta immunda. Os que não sabiam nada, como o Gouvarinho, acreditavam, apertavam as mãos na cabeça; e os que sabiam, os que havia seis mezes sorriam da intimidade do Ega com os Cohens, affectavam tambem acreditar, cerravam os punhos de indignação. O Ega era odiado. E a pequena Lisboa, que vive entre o Gremio e a casa Havaneza, folgava em «enterrar» o Ega.

Ega, com effeito, sentia-se «enterrado». E n’essa noite declarou a Carlos que decidira recolher-se á quinta da mãe, passar lá um anno a acabar as Memorias d’um Atomo, e reapparecer em Lisboa com o seu livro publicado, triumphando sobre a cidade, esmagando os mediocres. Carlos não perturbou esta radiante illusão.

Mas quando Ega, antes de partir, foí a recapitular os seus negocios de casa, de dinheiro, encontrou-se diante de cousas abominaveis. Devia a todo o mundo, desde o estofador até ao padeiro; tinha tres letras a vencer; aquellas dividas, se as deixasse, soltas e ladrando, juntar-se-iam, na tagarallice publica, ao caso dos Cohens — ­e elle seria, além do amante ameaçado de pontapés, o pelintra perseguido pelos credores! Que havia de fazer, senão valer-se de Carlos? Carlos, para regular tudo, emprestou-lhe dois contos de réis.

Depois, tendo despedido os criados da Villa Balzac, surgiram-lhe outras complicações. A mãe do pagem veiu d’ahi a dias ao Ramalhete, muito insolente, gritando que o filho lhe desapparecera! E era exacto: o famoso pagem, pervertido pela cozinheira, sumira-se com ella para as viellas da Mouraria, a começar ahi uma divertida carreira de faia.

Ega recusou-se a attender ás reclamações da matrona. Que diabo tinha elle com essas torpezas?

Então o amante da creatura interveiu, ameaçadoramente, Era um policia, um esteio da ordem: e deu a entender que lhe seria facil provar como na Villa Balzac se passavam «cousas contra a natureza», e que o pagem não era só para servir á meza... Nauseado até á morte, Ega pacteou com a intrugice, largou cinco libras ao policia. Quando n’essa noite, uma noite triste d’agoa, Carlos e Craft o acompanharam a Santa Apolonia, elle disse-lhes na carruagem estas palavras, triste resumo d’um amor romantico:

— ­Sinto-me como se a alma me tivesse cahido a uma latrina! Preciso um banho por dentro!

Affonso da Maia ao saber este desastre do Ega, tinha dito a Carlos, com tristeza:

— ­Má estreia, filho, pessima estreia!

E n’essa noite, depois de voltar de Santa Apolonia, Carlos pensava n’estas palavras, dizia tambem comsigo: — ­Pessima estreia!... E nem só a estreia do Ega era pessima; tambem a sua. E talvez, por pensar n’isso, as palavras do avô tinham tido aquella tristeza. Pessimas estreias! Havia seis mezes que o Ega chegara de Celorico, embrulhado na sua grande pellissa, preparado a deslumbrar Lisboa com as Memorias d’um Atomo, a dominal-a com a influencia de uma Revista, a ser uma luz, uma força, mil outras cousas... E agora, cheio de dividas e cheio de ridiculo, lá voltava para Celorico, escorraçado. Pessima estreia! Elle, por seu lado, desembarcara em Lisboa, com idéas collossaes de trabalho, armado como um luctador: era o consultorio, o laboratorio, um livro iniciador, mil cousas fortes... E, que tinha feito? Dois artigos de jornal, uma duzia de receitas, e esse melancolico capitulo da Medicina entre os Gregos. Pessima estreia!

Não, a vida não lhe parecia promettedora, n’esse instante, passeiando na sala de bilhar com as mãos nos bolsos, emquanto ao lado os amigos conversavam, e fóra uivava o sudoeste. Pobre Ega, que infeliz elle iria, encolhido ao canto do seu wagon!.. Mas os outros, ali, não estavam mais alegres. Craft e o Marquez tinham começado uma conversa sobre a vida, soturna e desconsoladora. De que servia viver, dizia Craft, não se sendo um Livingstone ou um Bismark? E o Marquez, com um ar philosophico, achava que o mundo se ia tornando estupido. Depois chegou o Taveira com a historia horrivel d’um collega d’elle, cujo filho cahira pela escada, se despedaçara, no momento em que a mulher estava a morrer d’uma pleurisia. Cruges resmungou o quer que fosse sobre suicidio. As palavras arrastavam-se, melancolicas. Instinctivamente, Carlos, de vez em quando, ia despertar as lampadas.

Mas tudo lhe pareceu resplandecer, quando d’ahi a instantes Damaso chegou, e lhe disse que o Castro Gomes estava incommodado, e de cama.

— ­Naturalmente, accrescentou o Damaso, mandam-te chamar, por teres já visto a pequena...

Carlos ao outro dia não sahiu de casa, esperando um recado, faiscando d’impaciencia. Nenhum recado veiu. E, duas tardes depois, ao descer para o Aterro — ­o primeiro encontro que teve, ás Janellas Verdes, foi o Castro Gomes, de caleche descoberta, com a mulher ao lado, e a cadellinha no collo.

Ella passou, sem o vêr. E logo ali Carlos decidiu findar aquella tortura, pedir muito simplesmente ao Damaso que o apresentasse ao Castro Gomes, antes d’elle partir para o Brazil... Não podia mais, precisava ouvir a voz d’ella, vêr o que os seus olhos diziam quando eram interrogados de perto.

Mas toda essa semana achou-se, constantemente, sem saber como, na companhia dos Gouvarinhos. Começou por encontrar o conde, que lhe travou do braço, arrastou-o á rua de S. Marçal, installou-o n’uma poltrona, no seu escriptorio, e leu-lhe um artigo que destinava ao Jornal do Commercio sobre a situação dos partidos em Portugal: depois convidou-o a jantar. Na tarde seguinte elles tinham uma partida de croquet. Carlos foi. E, a uma janella, aberta sobre o jardim, teve um momento de intimidade com a condessa, contou-lhe, rindo, como os cabellos d’ella o tinham encantado, a primeira vez que a vira. N’essa noite, ella fallou d’um livro de Tennyson, que não lera; Carlos offereceu-lh’o, foi-lh’o levar ao outro dia, de manhã. Encontrou-a só, toda vestida de branco: e riam, baixavam já a voz, as duas cadeias estavam mais juntas — ­quando o escudeiro annunciou a sr.ª D. Maria da Cunha. Era uma cousa tão extraordinaria, a D. Maria da Cunha áquella hora! Carlos, de resto, gostava muito da D. Maria da Cunha, uma velha engraçada, toda bondade, cheia de sympathia por todos os peccados — ­e ella mesma muito peccadora quando era a linda Cunha. D. Maria era muito falladora, parecia ter que dizer em particular á condessa; e Carlos deixou-as, promettendo voltar uma d’essas tardes tomar chá, e fallar de Tennyson.

Na tarde em que elle se vestia para lá ir, Damaso appareceu-lhe no quarto, a dar-lhe uma novidade que o enchia de desgosto e de «ferro». O telhudo do Castro Gomes mudára de idéa, já não ia ao Brazil! Ficava ali, no Central, até ao meiado do verão! De sorte que estava tudo estragado...

Carlos pensou logo em fallar da sua apresentação ao Castro Gomes. Mas, como em Cintra, sem saber porquê, veiu-lhe uma repugnancia de a conhecer por meio do Damaso. E foi-se vestindo em silencio.

Damaso no entanto maldizia a sua chance:

— ­E eu que tinha mulher, eu que a tinha, se houvesse occasião. Mas que diabo queres tu, assim?...

Queixou-se então do Castro Gomes. Em resumo, era um telhudo. E a vida d’aquelle homem era mysteriosa... Que diabo estava elle a fazer em Lisboa? Ali havia difficuldades de dinheiro... E elles não se davam bem. Na vespera houvera de certo questão. Quando elle entrara, ella estava com os olhos vermelhos, e enfiada; e elle, nervoso, a passeiar pela sala, a retorcer a barba... Ambos contrafeitos, uma palavra cada quarto d’hora...

— ­Sabes tu? exclamou elle. Tenho minha vontade de os mandar á fava.

Queixou-se tambem d’ella. Era sobretudo muito desegual. Ora bom modo, ora regelada; e, ás vezes, elle dizia qualquer cousa muito natural, d’estas cousas de conversa de sociedade, e ella punha-se a rir. Era de encavacar, hein? Emfim, gente muito exquisita.

— ­Onde vaes tu? disse elle, com um suspiro de aborrecimento, vendo Carlos pôr o chapeu.

Ia tomar chá com a Gouvarinho.

— ­Pois olha, vou comtigo... Estou d’uma secca!

Carlos hesitou um instante, terminou por dizer:

— ­Vem, fazes-me até favor...

A tarde estava lindissima, Carlos ia no dog-cart.

— ­Ha que tempos que não damos assim um passeio juntos, disse Damaso.

— ­Tu andas lá mettido com estrangeiros!...

Damaso deu outro suspiro, e não tornou a dizer mais nada. Depois, á porta dos Gouvarinhos, quando soube que a sr.ª condessa recebia, resolveu subitamente não entrar. Não, não entrava. Estava muito estupido, incapaz de achar uma palavra...

— ­Ah, e outra cousa que me lembrou agora, exclamou elle, demorando ainda Carlos diante do portão. O Castro Gomes, hontem, perguntou-me o que te havia de mandar pela visita á pequena... Eu disse que tu tinhas ido lá por favor, como meu amigo. E elle disse que te havia de vir deixar um bilhete... Naturalmente vens a conhecel-os.

Não era, pois, necessario que Damaso o apresentasse!

— ­Apparece á noite, Damasosinho, vai lá jantar ámanhã! exclamou Carlos, subitamente radiante, dando um ardente aperto de mão ao seu amigo.

Quando entrou na sala, um escudeiro acabava de servir chá. A sala, forrada d’um papel severo, verde e ouro, com retratos de familia em caixilhos pesados, abria por duas varandas sobre a folhagem do jardim. Em cima das mezas havia cestos de flôres. No sophá, duas senhoras de chapeu, ambas de preto, conversavam, com a chavena na mão. A condessa, ao estender os dedos a Carlos, ficara tão côr de rosa — ­como a seda acolchoada da cadeira em que estava recostada, ao pé d’um velador de pau santo. Notou logo, sorrindo, o ar radiante de Carlos. Que lhe tinha acontecido de bom? Carlos sorriu tambem, disse que não era possivel entrar ali com outro ar. Depois perguntou pelo conde...

O conde ainda não apparecera, detido de certo na camara dos pares, onde se discutia o projecto sobre a Reforma da Instrucção Publica.

Uma das senhoras de preto fazia votos para que se alliviassem os estudos. As pobres creanças succumbiam verdadeiramente á quantidade exaggerada de materias, de cousas a decorar: o d’ella, o Joãosinho, andava tão pallido e tão desfigurado, que ella ás vezes tinha vontade de o deixar ficar ignorante de todo. A outra senhora pousou a chavena sobre um console ao lado, e passando sobre os labios a renda do lenço, queixou-se sobretudo dos examinadores. Era um escandalo as exigencias, as difficuldades que punham, só para poder deitar RR... Ao pequeno d’ella tinham feito as perguntas mais estupidas, as mais reles; assim, por exemplo, o que era o sabão, porque lavava o sabão?...

A outra senhora e a condessa apertaram as mãos contra o peito, consternadas. E Carlos, muito amavel, concordou que era uma abominação. O marido d’ella — ­continuava a dama de preto — ­ficara tão desesperado que, encontrando o examinador no Chiado, o ameaçou de lhe dar bengaladas. Uma imprudencia, de certo; mas, emfim, o homem fôra malvado!... Não havia verdadeiramente senão uma cousa digna de se estudar, eram as linguas. Parecia insensato que se torturasse uma creança com botanica, astronomia, physica... Para que? Cousas inuteis na sociedade. Assim, o pequeno d’ella, agora, tinha lições de chimica... Que absurdo! Era o que o pae dizia — ­para que, se elle o não queria para boticario?

Depois d’um silencio, as duas senhoras ergueram-se ao mesmo tempo; e houve um murmurio de beijos, um frou-frou de sedas.

Carlos ficou só com a sr.ª condessa, que reoccupara a sua cadeira côr de rosa.

Immediatamente ella perguntou pelo Ega.

— ­Coitado, lá está para Celorico.

Ella protestou, com um lindo riso, contra aquella phrase tão feia «lá está para Celorico» Não, não queria... Coitado do Ega! Merecia uma melhor oração funebre. Celorico era horrível para um fim de romance...

— ­De certo, exclamou Carlos, rindo tambem, era mais bello dizer-se: lá está para Jerusalem!

N’esse momento o criado annunciou um nome, e appareceu o amigo Telles da Gama, um intimo da casa. Quando soube que o conde devia estar ainda batalhando sobre a Reforma da Instrucção, levou as mãos á cabeça como lamentando um tão feio desperdicio de tempo, e não se quiz demorar. Não, nem mesmo o excellente chá da sr.ª condessa o tentava. A verdade era que estava tão abandonado da graça de Deus, perdera de tal modo o sentimento das cousas bellas, que entrara, não para vêr a sr.ª condessa — ­mas simplesmente fallar ao conde. Então ella teve um bonito ar de princeza offendida, perguntou a Carlos se uma tão rude sinceridade de montanhez não fazia saudades das maneiras polidas do antigo regimen. E Telles da Gama, gingando de leve, declarava-se democrata, homem da natureza, com um riso que lhe mostrava dentes magnificos. Depois, ao sair, dando um shake-hands ao amigo Maia, quiz saber quando o principe de S.^t Olavia lhe dava emfim a honra de vir jantar com elle. A sr.ª condessa indignou-se. Não, era realmente de mais! Fazer convites, na sua sala, diante d’ella, — ­um homem que fallava tanto da sua cozinheira allemã, e nem sequer lhe offerecera jámais um prato de chou-crôute!

Telles da Gama, rindo sempre e gingando, jurou que andava a arranjar a sua sala de jantar para dar á sr.ª condessa uma festa, que havia de ficar nos annaes do reino! Agora com o Maia era differente: jantavam ambos na cozinha, com os pratos sobre os joelhos. E abalou, gingando sempre, rindo ainda da porta, mostrando os dentes magnificos.

— ­Muito alegre, este Gama, não é verdade? disse a condessa.

— ­Muito alegre, disse Carlos.

Então a condessa olhou o relogio. Eram cinco e meia, áquella hora ella já não recebia: podiam, emfim, conversar um momento, em boa camaradagem. E, o que houve, foi um silencio lento, em que os olhos de ambos se encontraram. Depois Carlos perguntou por Charlie, o seu lindo doente. Não estava bem, com uma ligeira tosse apanhada no passeio da Estrella. Ah, aquella creança nunca deixava de lhe dar o cuidado! Ficou callada, com o olhar esquecido no tapete, movendo languidamente o leque: tinha n’essa tarde uma toilette exaggerada, d’um tom de folha de outono amarellada, d’uma seda grossa, que ao menor movimento fazia um ruge-ruge de folhas seccas.

— ­Que lindo tempo tem feito! exclamou ella de repente, como acordando.

— ­Lindo! disse Carlos. Eu estive ha dias em Cintra, e não imagina... Era d’uma belleza de idyllio.

E immediatamente arrependeu-se, quiz-se mal por ter fallado da sua ida a Cintra, n’aquella sala.

Mas a condessa mal o escutára. Tinha-se erguido, fallando de algumas canções que essa manhã recebera de Inglaterra, as novidades frescas da season. Depois, sentou-se ao piano, correu os dedos no teclado, perguntou a Carlos se conhecia aquella melodia — ­The pale star. Não, Carlos não conhecia. Mas todas essas canções inglezas se parecem, sempre do mesmo tom dolente, romanesco, e muito miss. E trata-se sempre d’um parque melancolico, um regato lento, um beijo sob os castanheiros...

Então a condessa leu alto a letra da Pale star. E era a mesma cousa, uma estrellinha de amor palpitando no crepusculo, um lago pallido, um timido beijo sob as arvores...

— ­É sempre o mesmo, disse Carlos, e é sempre delicioso.

Mas a condessa atirou o papel para o lado, achando aquillo estupido. Começou a remexer entre os papeis de musica, nervosa, e com um olhar que escurecia. Para quebrar o silencio, Carlos gabou-lhe as suas lindas flores.

— ­Ah, vou-lhe dar uma rosa! exclamou ella logo, deixando as musicas.

Mas, a flôr que ella lhe queria dar estava no boudoir, ao lado. Carlos seguiu a sua grande cauda, onde corria um reflexo dourado de folhagem de outono batida do sol. Era um gabinete forrado de azul, com um bonito tremó do seculo XVIII, e sobre um forte pedestal de carvalho, o busto em barro do conde, na sua expressão de orador, a fronte erguida, a gravata desmanchada, o labio fremente...

A condessa escolheu um botão com duas folhas, e ella mesmo lhe veiu florir a sobrecasaca. Carlos sentia o seu aroma de verbena, o calor que subia do seu seio arfando com força. E ella não acabava de prender a flôr, com os dedos tremulos, lentos, que pareciam collar-se, deixar-se adormecer sobre o panno...

— ­Voila! murmurou emfim, muito baixo. Ahi está o meu bello cavalleiro da Rosa Vermelha... E agora, não me agradeça!

Insensivelmente, irresistivelmente, Carlos achou-se com os labios nos labios d’ella. A seda do vestido roçava-lhe, com um fino ruge-ruge entre os braços; — ­e ella pendia para traz a cabeça, branca como uma cera, com as palpebras docemente cerradas. Elle deu um passo, tendo-a assim enlaçada, e como morta; o seu joelho encontrou um sophá baixo, que rolou e fugiu. Com a cauda de seda enrolada nos pés, Carlos seguiu, tropeçando, o largo sophá, que rolou, fugiu ainda, até que esbarrou contra o pedestal onde o sr. conde erguia a fronte inspirada. E um longo suspiro morreu, n’um rumor de saias amarrotadas.

D’ahi a um momento estavam ambos de pé: Carlos, junto do busto, coçando a barba, com o ar embaraçado, e já vagamente arrependido: ella, diante do tremó Luiz XV, compondo, com os dedos tremulos, o frisado do cabello. De repente, na antecamara, ouviu-se a voz do conde. Ella, bruscamente, voltou-se, correu a Carlos, e, com os longos dedos cobertos de pedrarias, agarrou-lhe o rosto, atirou-lhe dois beijos faiscantes ao cabello e aos olhos. Depois, sentou-se largamente no sophá — ­e estava fallando de Cintra, rindo alto, quando o conde entrou, seguido de um velho calvo, que se vinha a assoar a um enorme lenço de seda da India.

Ao vêr Carlos no boudoir, o conde teve uma bella surpreza, esteve-lhe apertando as mãos muito tempo, com calor, assegurando-lhe que ainda n’essa manhã, na camara, se lembrara d’elle...

— ­Então, por que vieram tão tarde? exclamou a condessa, que se apoderara logo do velho, rindo, mexendo-se, animada, amavel.

— ­O nosso conde fallou! disse o velho, ainda com o olho brilhante de enthusiasmo.

— ­Fallaste? exclamou ela, voltando-se com um interesse encantador.

É verdade, fallara; e desprevenido! Quando ouvira porém o Torres Valente (homem de litteratura, mas um doido, sem senso pratico) quando o ouvira defender a gymnastica obrigatoria nos collegios — ­ erguera-se. Mas não imaginasse o amigo Maia, que elle tinha feito um discurso.

— ­Ora essa! exclamou o velho, agitando o lenço. E um dos melhores que eu tenho ouvido na camara! Dos de arromba!

O Conde modestamente protestou. Não: tinha simplesmente lançado uma palavra de bom senso, e de bom principio. Perguntara apenas ao seu illustre amigo, o sr. Torres Valente, se na sua idéa, os nossos filhos, os herdeiros das nossas casas, estavam destinados para palhaços!...

— ­Ah, esta piada, sr.ª condessa! exclamou o velho. Eu só queria que v. ex.ª ouvisse esta piada... E como elle a disse! com um chic!

O conde sorriu, agradeceu para o lado, ao velho. Sim, dissera-lhe aquillo. E, respondendo a outras reflexões do Torres Valente, que não queria nos lyceus, nem nos collegios, um ensino «todo impregnado de cathecismo», elle lançara-lhe uma palavra cruel.

— ­Terrivel, exclamou o velho n’um tom cavo, preparando o lenço para se assoar outra vez.

— ­Sim, terrivel... Voltei-me para elle, e disse-lhe isto... «Creia o digno par, que nunca este paiz retomará o seu logar á testa da civilisação, se, nos lyceus, nos collegios, nos estabelecimentos de instrucção, nós outros os legisladores formos, com mão impia, substituir a cruz pelo trapezio...

— ­Sublime, rosnou o velho, dando um ronco medonho dentro do lenço.

Carlos, erguendo-se, declarou aquillo d’uma ironia adoravel.

E o conde, quando elle se despediu, não se contentou com um simples aperto de mão, passou-lhe o braço pela cinta, chamou-lhe o seu querido Maia. A condessa sorria, com o olhar ainda humido, um resto de pallidez, movendo o leque languidamente, recostada em duas almofadas do sophá — ­debaixo do busto do marido que erguia a fronte inspirada.

Tres semanas depois, por uma tarde quente, com um ceu triste de trovoada, e no momento em que estavam cahindo algumas gotas grossas de chuva, — ­Carlos apeava-se d’um coupé de praça, que viera parar, de vagar, á esquina da Patriarchal, com os stores verdes mysteriosamente corridos. Dous sujeitos que passavam sorriram-se, como se o vissem escoar-se desgeitosamente d’uma portinha suspeita. E com effeito a velha traquitana de rodas amarellas acabava de ser uma alcova d’amor, perfumada de verbena, durante as duas horas que Carlos rolara dentro d’ella, pela estrada de Queluz, com a sr.ª condessa de Gouvarinho.

A condessa tinha descido no largo das Amoreiras. E Carlos aproveitara a solidão da Patriarchal para se desembaraçar do calhambeque d’assento duro, onde durante a ultima hora suffocára, sem ousar descer as vidraças, com as pernas adormecidas, enfastiado de tantas sedas amarrotadas e dos beijos interminaveis que ella lhe dava na barba...

Até ahi, durante essas tres semanas, tinham-se encontrado n’uma casa da rua de Santa Izabel, pertencente a uma tia da condessa que fôra para o Porto com a criada, deixando-lhe a chave da casa e o cuidado do gato. A boa titi, uma velha pequenina, chamada miss Jones, era uma santa, uma apostola militante da Egreja Anglicana, missionaria da Obra da Propaganda; e todos os mezes fazia assim uma viagem de cathechisação á provincia, distribuindo Biblias, arrancando almas á treva catholica, purificando (como ella dizia) o tremedal papista... Já na escada havia um cheirinho adocicado e triste a devoção e a virgem velha: e no patamar pendia um largo cartão, com um distico em letras de ouro entrelaçadas de lyrios roxos, rogando aos que entravam que preserverassem nas vias do Senhor! Carlos entrou, tropeçando logo n’um montão de Biblias. O quarto todo era um ninho de Biblias; havia-as ás pilhas por cima dos moveis, transbordando de velhas chapelleiras, misturadas a pares de galochas, cahidas para o fundo da bacia d’assento, todas do mesmo formato, entaladas n’uma encadernação negra como n’uma armadura de combate, carrancudas e aggressivas! As paredes resplandeciam, forradas de cartonagens impressas em lettras de côr, irradiando versiculos duros da Biblia, asperos conselhos de moral, gritos dos psalmos, ameaças insolentes do inferno... E no meio d’esta religiosidade anglicana, á cabeceira d’um leitosinho de ferro, rigido e virginal, duas garrafas quasi vasias de cognac e de gin. Carlos bebeu o gin da santa; e o leito rigido ficou revolto como um campo de batalha.

Depois a condessa começou a ter medo d’uma visinha, uma Borges, que visitava a titi, e era viuva de um antigo procurador dos Gouvarinhos. Uma occasião em que, no casto leito de miss Jones, elles fumavam languidamente cigarrilhas, tres enormes argoladas á porta atroaram a casa. A pobre condessa quasi desmaiou; Carlos, correndo á janella, viu um homem que se affastava, com uma estatueta de gesso na mão, outras dentro d’um cesto. Mas a condessa jurava que fôra a Borges quem mandára o italiano das imagens atirar-lhes para dentro aquellas aldrabadas, como tres avisos, tres rebates da Moral... Não quizera voltar mais ao beatifico cuté da titi. E n’essa tarde, como não havia ainda outro escondrijo, tinham abrigado os seus amores dentro d’aquella tipoia de praça.

Mas Carlos vinha de lá enervado, amollecido, sentindo já na alma os primeiros bocejos da saciedade. Havia tres semanas apenas que aquelles braços perfumados de verbena se tinham atirado ao seu pescoço, — ­e agora, pelo passeio de S. Pedro d’Alcantara, sob o ligeiro chuvisco que batia as folhagens da alameda, elle ía pensando como se poderia desembaraçar da sua tenacidade, do seu ardor, do seu peso... É que a condessa ía-se tornando absurda com aquella determinação anciosa e audaz de invadir toda a sua vida, tomar n’ella o logar mais largo e mais profundo — ­como se o primeiro beijo trocado tivesse unido não só os labios de ambos um momento, mas os seus destinos tambem e para sempre. N’essa tarde lá tinham voltado as palavras que ella balbuciava, cahida sobre o seu peito, com os olhos affogados n’uma ternura supplicante: Se tu quizesses! que felizes que seriamos! que vida adoravel! ambos sós!... E isto era claro — ­a condessa concebera a idéa extravagante de fugir com elle, ir viver n’um sonho eterno de amor lyrico, n’algum canto do mundo, o mais longe possivel da rua de S. Marçal! Se tu quizesses! Não, com mil demonios, não queria fugir com a sr.ª condessa de Gouvarinho!...

E não era só isto — ­mas ainda exigencias, egoismos, explosões tumultuosas d’um temperamento cioso: já mais de uma vez, n’essas duas curtas semanas, por pieguices, ella despropositára, fallara de morrer, debulhada em lagrimas... Ah! nas lagrimas havia ainda uma voluptuosidade, faziam parecer mais tenro o setim do seu collo! O que o inquietava eram certos clarões que lhe sulcavam o rosto, um dardejar nervoso dos olhos seccos, revelando a paixão que se accendera n’aquelles nervos de mulher de trinta e tres annos, e a queimava até ás profundidades do seu ser... Certamente este amor punha na sua vida um luxo mais, e um perfume. Mas o seu encanto estava em conservar-se facil, sereno, sem penetrar mais fundo que a epiderme. Se ella, por qualquer cousa, tinha os olhos turvos d’agua, e fallava em morrer, e torcia os braços, e queria fugir com elle — ­então adeus! Tudo estava estragado; e a sr.ª condessa com a sua verbena, os seus cabellos côr de braza, e o seu pranto, era apenas um trambolho!

O chuveiro parara, um bocado d’azul lavado appareceu entre nuvens. E Carlos descia a rua de S. Roque — ­quando encontrou o marquez, sahindo d’uma confeitaria, tristonho, com um embrulho na mão, e o pescoço abafado n’um enorme cache-nez de seda branca.

— ­Que é isso? Constipação? perguntou Carlos.

— ­Tudo, disse o marquez, pondo-se a caminhar ao lado d’elle com uma lentidão de moribundo. Deitei-me tarde. Cançasso. Oppressão no peito. Pigarreira. Dôres no lado. Um horror... Levo já aqui rebuçados.

— ­Não seja piegas, homem! Você o que precisa é roast-beef e uma garrafa de Borgonha... Não é hoje que você janta lá no Ramalhete?... É, até tem lá o Craft e o Damaso... Então descemos por essa rua do Alecrim, que já não chove, depois pelo Aterro fóra, a passo gymnastico, e em chegando lá você está curado.

O pobre marquez encolheu os hombros. Apenas sentia o menor encommodo, uma dôr, um arrepio, considerava-se logo, como elle dizia, liquidado. O mundo começava a findar para elle: tomavam-no terrores catholicos, uma preoccupação angustiosa da Eternidade. N’esses dias fechava-se no quarto com o padre capellão — ­com quem ás vezes, todavia, terminava por jogar as damas.

— ­Em todo o caso, disse elle, tirando cautelosamente o chapeu ao passar pela porta aberta da egreja dos Martyres, deixe-me você ir primeiro ao Gremio... Quero escrever á Manoeleta que não conte comigo esta noite...

Depois, distrahida e melancolicamente, perguntou noticias d’esse devasso do Ega. Esse devasso do Ega lá estava em Celorico, na quinta materna, ouvindo arrotar o padre Seraphim, e refugiando-se, segundo dizia, na grande arte: andava a compor uma comedia em cinco actos, que se devia chamar o Lodaçal — ­escripta para se vingar de Lisboa.

— ­O peor, murmurou o marquez, depois de um silencio, e abafando-se mais no cache-nez, é se eu estou assim no domingo para as corridas!

— ­O quê! exclamou Carlos, então as corridas são já no domingo?

O marquez foi-lhe explicando, em quanto desciam o Chiado, que as corridas se tinham apressado a pedido do Clifford, o grande sportman de Cordova, que devia trazer dois cavallos inglezes... Era um bocado humilhante depender do Clifford. Mas emfim o Clifford era um gentleman e com os seus cavallos de raça, os seus jockeys inglezes, constituia a unica feição séria do Hyppodromo de Belem. Sem o Clifford aquillo era uma brincadeira de pilecas e d’abas...

— ­Você não conhece o Clifford?.. Bello rapaz! Um pouco poseur, mas oiro de lei.

Tinham entrado no pateo do Gremio, o marquez estendeu o braço a Carlos.

— ­Veja esse pulso!

— ­O pulso está excellente... Vá você dar lá esse golpe á Manoela, que eu fico aqui á espera.

No domingo pois, d’ahi a cinco dias, eram as corridas... E ella estaria lá, elle ia conhecel-a, emfim! Durante essas tres ultimas semanas vira-a duas vezes: uma occasião, estando a conversar com o Taveira á porta do hotel Central, ella chegara a uma das varandas, de chapeu, calçando uma grande luva preta; d’outra vez, havia dias, por uma tarde de chuva, ella viera parar á porta do Mourão, ao Chiado, n’um coupé da Companhia, e ficara esperando emquanto o trintanario levava dentro á loja um embrulho que tinha a fórma d’um cofre, apertado com uma fita vermelha. D’ambas as vezes ella vira-o, demorara os olhos n’elle um momento: e parecera a Carlos que o ultimo olhar se prolongara mais, como abandonando-se, humedecendo-se, n’uma leve doçura, ao pousar no seu... Era talvez uma illusão; mas isto decidiu-o, na sua impaciencia, a realisar a antiga idéa (ainda que desagradavel) de ser apresentado pelo Damaso ao Castro Gomes. O pobre Damaso, ao principio, diante d’esta exigencia, ficou perturbado; e com um ar de cão que defende o seu osso, lembrou logo a Carlos o deploravel comportamento do Castro Gomes, que não viera como lh’o annunciara, havia tres semanas, deixar o seu cartão ao Ramalhete... Mas Carlos desdenhava essas formalidades estreitas entre rapazes: o Castro Gomes parecia-lhe um homem de gosto e de sport; nem todos os dias apparecia em Lisboa quem soubesse dar com correcção o nó da gravata; e seria agradavel, mesmo para elle Damaso, reunirem-se todos de vez em quando, com o Craft, com o marquez, a fumar um charuto e a fallar de cavallos. Isto decidiu Damaso, que terminou por propôr a Carlos o leval-o uma tarde ao hotel Central. Carlos porém não queria entrar pelo hotel dentro, de chapeu na mão, atraz do Damaso. Resolveram então esperar pelas corridas, onde os Castro Gomes tencionavam ir. «Ahi, no recinto da pesagem, disse o Damaso, a apresentação é mais chic... É mesmo pôdre de chic

— ­Deus queira com effeito que não chova no domingo, murmurou Carlos quando o marquez desceu, mais tristonho, mais abafado no seu cache-nez.

Foram seguindo pelo meio da rua, em direcção ao Ferregial. Adiante do Gremio, encostado ao passeio, estava um coupé da Companhia, com um trintanario de luvas brancas esperando junto ao portal. Carlos olhou, casualmente; e viu, debruçado á portinhola, um rosto de creança, d’uma brancura adoravel sorrindo-lhe, com um bello sorriso que lhe punha duas covinhas na face. Reconheceu-a logo. Era Rosa, era Rosicler: e ella não se contentou em sorrír, com o seu doce olhar azul fugindo todo para elle, — ­deitou a mãosinha de fóra, atirou-lhe um grande adeus. No fundo do coupé, forrado de negro, destacava um perfil claro d’estatua, um tom ondeado de cabello louro. Carlos tirou profundamente o chapeu, tão perturbado, que os seus passos hesitaram. Ella abaixou a cabeça, de leve; alguma cousa de luminoso, um confuso rubor d’emoção, espalhou-se-lhe no rosto. E fugitivamente foi como se, da mãe e da filha, ao mesmo tempo, viesse para elle uma suave e quente emanação de sympathia.

— ­Caramba, aquillo pertence-lhe? perguntou o marquez, que notara a impressão de Madame Gomes.

Carlos córou.

— ­Não, é uma senhora brazileira a quem eu curei aquella pequerrucha...

— ­Irra! que gratidão! rosnou o outro de dentro das dobras do seu cachenez.

Caminhando em silencio pelo Ferregial, Carlos revolvia uma idéa que lhe viera de repente, ao receber aquelle doce olhar. Por que é que Damaso não levaria uma manhã o Castro Gomes aos Olivaes, a vêr as collecções do Craft?... Elle estaria lá, abria-se uma garrafa de Champagne, discutiam bric-à-brac. Depois, muito naturalmente, elle convidava Castro Gomes a almoçar no Ramalhete, para lhe mostrar o grande Rubens, e as suas velhas colxas da India. E assim, já antes das corridas existiria entre elles uma camaradagem, talvez um tratamento de você.

No Aterro, temendo o ar do rio, o marquez quiz tomar uma tipoia; e, até ao Ramalhete, continuaram callados. O marquez, outra vez inquieto, apalpava a garganta. Carlos discutia complicadamente comsigo aquella lenta inclinação de cabeça, o olhar d’ella, o vivo rubor fugitivo... Ella até ahi não o conhecia talvez. Mas, depois de atirar o seu grande adeus, Rosa, ainda sorrindo, voltara-se para a mãe, a dizer-lhe decerto que aquelle era o medico que a curara, a ella e á boneca... E então a linda côr que lhe enternecera o rosto tomava uma significação mais profunda — ­era como a surpreza feliz, o enleio casto, ao saber que o homem que ella notára já de algum modo tinha penetrado na sua intimidade, beijara a sua filha, se tinha mesmo sentado á beira do seu leito...

Depois ia refazendo o plano da visita aos Olivaes, mais largo agora, mais brilhante. Porque não iria ella tambem vêr as curiosidades do Craft? Que tarde encantadora, que festa, que lindo idyllio! O Craft arranjava um lunch delicado no seu velho serviço de Wedgewood. Elle ficava á meza junto d’ella. Depois iam vêr o jardim já em flôr; ou tomavam chá no pavilhão japonez, forrado de esteiras. Mas, o que mais lhe appetecia era percorrer com ella as duas salas de Craft, parando ambos diante d’uma bella faiença ou d’um movel raro, e sentindo, atravez da concordancia dos seus gostos, subir, como um perfume, a sympathia dos seus corações... Nunca a vira tão formosa como n’essa tarde, dentro do coupé forrado de escuro, onde brilhava mais puramente a brancura do seu perfil. Sobre o regaço do vestido negro pousava o tom claro das suas luvas; e no chapéo frisava-se a ponta de uma penna cor de neve.

A tipoia parara ao portão do Ramalhete, estavam agora entre as silenciosas tapessarias da ante-camara.

— ­Como é que ella conhece os Cruges? perguntou de repente o marquez, com um tom desconfiado, desembaraçando-se do cache-nez.

Carlos olhou para elle, como mal acordado.

— ­Ella quem? Aquella senhora? Como conhece o Cruges?... Homem, sim, tem você razão!.. Aquella era a casa do Cruges! a carruagem estava parada à porta do Cruges!.. Talvez alguem que móre n’outro andar.

— ­Não móra ninguem, disse o marquez, dando um passo para o corredor. Em todo o caso, é um mulherão.

Carlos achou a palavra odíosa.

Do corredor ouvia-se já no escriptorio de Affonso, atravez da porta aberta, a voz petulante do Damaso fallando alto d’handicap e de dead-beat... E foram-n’o encontrar discursando sobre as corridas, com convicção, com auctoridade, como membro do Jockey-Club. Affonso, na sua velha poltrona, escutava-o, cortez e risonho, com o reverendo Bonifacio no collo. Ao canto do sophá, Craft folheava um livro.

E o Damaso appellou logo para o marquez. Não era verdade, como elle estivera dizendo ao sr. Affonso da Maia, que iam ser as melhores corridas que se tinham feito em Lisboa? Só para o grande premio nacional de seiscentos mil réis havia oito cavallos inscriptos! E além d’isso, o Clifford trazia a Mist.

— ­Ah, é verdade, oh marquez, é necessario que você appareça sexta-feira á noite no Jockey-Club, para acabarmos o handicap!

O marquez arrastara uma cadeira para o pé de Affonso, para lhe fazer a confidencia dos seus achaques; mas como Damaso se mettia entre elles, fallando ainda da Mist, decidindo que a Mist era chic, querendo apostar cinco libras pela Mist contra o campo — ­o marquez terminou por se voltar, enfastiado, dizendo que o sr. Damazosinho se estava a dar ares patuscos... Apostar pela Mist! Todo o patriota devia apostar pelos cavallos do visconde de Darque, que era o unico criador portuguez!...

— ­Pois não é verdade, sr. Affonso da Maia?

O velho sorrio, amaciando o seu gato.

— ­O verdadeiro patriotismo talvez, disse elle, seria, em logar de corridas, fazer uma boa tourada.

Damazo levou as mãos á cabeça. Uma tourada! Então o sr. Affonso da Maia preferia touros a corridas de cavallos? O sr. Affonso da Maia, um inglez!...

— ­Um simples beirão, sr. Salcede, um simples beirão, e que faz gosto n’isso; se habitei a Inglaterra é que o meu rei, que era então, me pôz fóra do meu paiz... Pois é verdade, tenho esse fraco portuguez, prefiro touros. Cada raça possue o seu sport proprio, e o nosso é o toiro: o toiro com muito sol, ar de dia santo, agua fresca, e foguetes... Mas sabe o sr. Salcede qual é a vantagem da toirada? É ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza... Em Portugal não ha instituição que tenha uma importancia egual á tourada de curiosos. E acredite uma cousa: é que se n’esta triste geração moderna ainda ha em Lisboa uns rapazes com certo musculo, a espinha direita, e capazes de dar um bom socco, deve-se isso ao touro e á tourada de curiosos...

O marquez enthusiasmado bateu as palmas. Aquillo é que era fallar! Aquillo é que era dar a philosophia do toiro! Está claro que a tourada era uma grande educação phisica! E havia imbecis que fallavam em acabar com os touros! Oh, estupidos, acabaes então com a coragem portugueza!...

— ­Nós não temos os jogos de destresa das outras nações, exclamava elle, bracejando pela sala e esquecido dos seus males. Não temos o cricket, nem o football, nem o running, como os inglezes: não temos a gymnastica como ella se faz em França; não temos o serviço militar obrigatorio que é o que torna o allemão solido... Não temos nada capaz de dar a um rapaz um bocado de fibra. Temos só a tourada... Tirem a tourada, e não ficam senão badamecos derreados da espinha, a mellarem-se pelo Chiado! Pois você não acha, Craft?

Craft, do canto do sophá, onde Carlos se fôra sentar e lhe fallava baixo, respondeu, convencido:

— ­O que, o touro? Está claro! o touro devia ser n’este paiz como o ensino é lá fóra: gratuito e obrigatorio.

Damazo no entanto jurava a Affonso compenetradamente que gostava tambem muito de touros. Ah, lá n’essas cousas de patriotismo ninguem lhe levava a palma... Mas as corridas tinham outro chic! Aquelles Bois de Boulogne, n’um dia de Grand-Prix, hein!... Era de embatucar!

— ­Sabes o que é pena? exclamou elle voltando-se de repente para Carlos. É que tu não tenhas um four-in-hand, um mail coach. Iamos todos d’aqui, cahia tudo de chic!

Carlos pensou tambem comsigo que era uma pena não ter um four-in-hand. Mas gracejou, achando mais em harmonia com o Jockey Club da travessa da Conceição irem todos dentro d’um omnibus.

Damazo voltou-se para o velho, deixando cahir os braços, descorçoado:

— ­Ahi está, sr. Affonso da Maia! Ahi está por que em Portugal nunca se faz nada em termos! É por que ninguem quer concorrer para que as cousas saiam bem... Assim não é possivel! Eu cá entendo isto: que n’um paiz, cada pessoa deve contribuir, quanto possa, para a civilisação.

— ­Muito bem, sr. Salcede! disse Affonso da Maia. Eis ahi uma nobre, uma grande palavra!

— ­Pois não é verdade? gritou Damazo, triumphante, a estoirar de goso. Assim eu, por exemplo...

— ­Tu, o quê? exclamaram dos lados. Que fizeste tu pela civilisação?...

— ­Mandei fazer para o dia das corridas uma sobrecasaca branca... E vou de véo azul no chapéo!

Um escudeiro entrou com uma carta para Affonso, n’uma salva. O velho, sorrindo ainda das idéas de Damaso sobre a civilisação, puxou a luneta, leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se logo, tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado Bonifacio.

— ­Isto é que é ter gosto, isto é que é comprehender as cousas! exclamava o Damaso, agitando os braços para Carlos, quando o velho desappareceu atravez do reposteiro de damasco. Este teu avô, menino, é podre de chic!..

— ­Deixa lá o chic do avô... Anda cá, que te quero dizer uma cousa.

Abriu uma das janellas do terraço, levou para lá o Damaso, e disse-lhe ahi, á pressa, o seu plano da visita aos Olivaes, e a linda tarde que poderiam passar na quinta com os Castro Gomes... Elle já fallara ao Craft, que estava de accordo, achava delicioso, ia encher tudo de flores. E agora só restava que Damaso amigo, como amabilidade sua, convidasse os Castro Gomes...

— ­Caramba! murmurou Damaso desconfiado, estás com furor de a conhecer!

Mas emfim concordou que era chic a valer! E via ahi uma bella occasião para elle!... Em quanto Carlos e Craft andassem mostrando as curiosidades ao Castro Gomes e lhe fallassem de cavallos, elle, zás, ia para a quinta passear com ella... A calhar!

— ­Pois vou ámanhã já fallar-lhes... Estou convencido que aceitam logo. Ella pela-se por bric-a-brac!

— ­E vens dizer-me se acceitaram ou não...

— ­Venho dizer-te... Tu vaes gostar d’ella; tem lido muito, entende tambem de litteratura; e olha que ás vezes a conversar atrapalha...

O marquez veiu chamal-os para dentro, impaciente, querendo fechar a porta envidraçada, outra vez preoccupado com a garganta. E desejava antes de jantar ir ao quarto de Carlos gargarejar com agua e sal...

— ­E é isto um portuguez forte! exclamou Carlos, travando-lhe alegremente do braço.

— ­Eu sou piegas na garganta, replicou logo o marquez, desprendendo-se d’elle e olhando-o com ferocidade. E você é-o no sentimento. E o Craft é-o na respeitabilidade. E o Damasosinho é-o na tolice. Em Portugal é tudo Pieguice e Companhia!

Carlos rindo, arrastou-o pelo corredor. E de repente, ao entrarem na ante-camara, deram com Affonso fallando a uma mulher, carregada de luto, que lhe beijava a mão, meia de joelhos, suffocada de lagrimas: e ao lado outra mulher, com os olhos turvos d’agua tambem, embalava dentro do chaile uma criancinha que parecia doente e gemia. Carlos parara embaraçado; o marquez instinctivamente levou a mão á algibeira. Mas o velho, assim surprehendido na sua caridade, foi logo empurrando as duas mulheres para a escada: ellas desciam, encolhidas, abençoando-o, n’um murmurio de soluços; e elle voltando-se para Carlos, quasi se desculpou n’uma voz que ainda tremia:

— ­Sempre estes peditorios... Caso bem triste todavia... E o que é peior é que por mais que se dê nunca se dá bastante. Mundo muito mal feito, marquez.

— ­Mundo muito mal feito, sr. Affonso da Maia, respondeu o marquez commovido.

No domingo seguinte, pelas duas horas, Carlos no seu phaeton de oito molas, levando ao lado Craft que durante os dois dias de corridas se installara no Ramalhete, parou ao fim do largo de Belem, no momento em que para o lado do Hyppodromo estavam já estalando foguetes. Um dos criados desceu a comprar o bilhete de pesagem para o Craft, n’uma tosca guarita de madeira, armada alli de vespera, onde se mexia um homemsinho de grandes barbas grisalhas.

Era um dia já quente, azul ferrete, com um d’esses rutilantes soes de festa que enflammam as pedras da rua, doiram a poeirada baça do ar, poem fulgores d’espelho pelas vidraças, dão a toda a cidade essa branca faiscação de cal, d’um vivo monotono e implacavel, que na lentidão das horas de verão cança a alma, e vagamente entristece. No largo dos Jeronymos silencioso, e a escaldar na luz, um omnibus esperava, desatrelado, junto ao portal da Egreja. Um trabalhador com o filho ao collo, e a mulher ao lado no seu chaile de ramagens, andava alli, pasmando para a estrada, pasmando para o rio, a gosar ociosamente o seu domingo. Um garoto ia apregoando desconsoladamente programmas das corridas que ninguem comprava. A mulher da agua fresca, sem freguezes, sentara-se com a sua bilha á sombra, a catar um pequeno. Quatro pesados municipaes a cavallo patrulhavam a passo aquella solidão. E a distancia, sem cessar, o estalar alegre de foguetes morria no ar quente.

No entanto o tritanario continuava debruçado na guarita, sem poder arranjar lá dentro o troco d’uma libra. Foi necessario Craft saltar da almofada, ir lá parlamentar — ­emquanto Carlos, impaciente, raspando com o chicote as ancas das egoas, luzidias como um setim castanho, riscava no largo uma volta brusca e nervosa. Desde o Ramalhete viera assim governando, irritadamente, sem descerrar os labios. É que toda aquella semana, desde a tarde em que combinara com o Damaso a visita aos Olivaes, fôra desconsoladora. O Damaso tinha desapparecido, sem mandar a resposta dos Castro Gomes. Elle, por orgulho, não procurara o Damaso. Os dias tinham passado, vazios; não se realisara o alegre idyllio dos Olivaes; ainda não conhecia Madame Gomes; não a tornara a ver; não a esperava nas corridas. E aquelle domingo de festa, o grande sol, a gente pelas ruas, vestida de casimiras e de sedas de missa, enchiam-n’o de melancolia e de malestar.

Uma caleche de praça passou, com dous sujeitos de flores ao peito, acabando de calçar as luvas; depois um dog-cart, governado por um homem gordo, de lunetas pretas, quasi foi esbarrar contra o Arco. Emfim, Craft voltou com o seu bilhete, tendo sido descomposto pelo homem de barbas propheticas.

Para além do arco, a poeira suffocava. Pelas janellas havia senhoras debruçadas, olhando por debaixo de sombrinhas. Outros municipaes, a cavallo, atravancavam a rua.

Á entrada para o hyppodromo, abertura escalavrada n’um muro de quintarola, o phaeton teve de parar atráz do dog-cart do homem gordo — ­que não podia tambem avançar porque a porta estava tomada pela caleche de praça, onde um dos sujeitos de flor ao peito berrava furiosamente com um policia. Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O sr. Savedra, que era do Jockey-Club, tinha-lhe dito que elle podia entrar sem pagar a carruagem! Ainda lh’o disséra na vespera, na botica do Azevedo! Queria que se fosse chamar o sr. Savedra! O policia bracejava, enfiado. E o cavalleiro, tirando as luvas, ia abrir a portinhola, esmurrar o homem — ­quando, trotando na sua grande horsa, um municipal de punho alçado correu, gritou, injuriou o cavalleiro gordo, fez rodar para fóra a caleche. Outro municipal entrometteu-se, brutalmente. Duas senhoras, agarrando os vestidos, fugiram para um portal, espavoridas. E atravez do reboliço, da poeira, sentia-se adiante, melancolicamente, um realejo tocando a Traviata.

O phaeton entrou — ­atraz do dog-cart, onde o homem gordo, a estoirar de furia, voltava ainda para traz a face escarlate, jurando dar parte do municipal:

— ­Tudo isto está arranjado com decencia, murmurou Craft.

Diante d’elles, o hyppodromo elevava-se suavemente em colina, parecendo, depois da poeirada quente da calçada e das cruas reverberações da cal, mais fresco, mais vasto, com a sua relva já um pouco crestada pelo sol de junho, e uma ou outra papoula vermelhejando aqui e além. Uma aragem larga e repousante chegava vagarosamente do rio.

No centro, como perdido no largo espaço verde, negrejava, no brilho do sol, um magote apertado de gente, com algumas carruagens pelo meio, d’onde sobresahiam tons claros de sombrinhas, o faiscar d’um vidro de lanterna, ou um casaco branco de cocheiro. Para além, dos dois lados da tribuna real forrada de um baetão vermelho de mesa de Repartição, erguiam-se as duas tribunas publicas, com o feitio de traves mal pregadas, como palanques d’arraial. A da esquerda vasia, por pintar, mostrava á luz as fendas do taboado. Na da direita, bezuntada por fóra d’azul claro, havia uma fila de senhoras quasi todas de escuro encostadas ao rebordo, outras espalhadas pelos primeiros degraus; e o resto das bancadas permanecia deserto e desconsolado, d’um tom alvadio de madeira, que abafava as côres alegres dos raros vestidos de verão. Por vezes a briza lenta agitava no alto dos dois mastros o azul das bandeirolas. Um grande silencio caía do ceu faiscante.

Em volta do recinto da tribuna, fechado por um tapume de madeira, havia mais soldados de infanteria, com as bayonetas lampejando ao sol. E no homem triste que estava á entrada, recebendo os bilhetes, mettido dentro d’um enorme collete branco, reteso de gomma, e que lhe chegava até aos joelhos — ­Carlos reconheceu o servente do seu laboratorio.

Apenas tinham dado alguns passos encontraram Taveira á porta do buffete onde se estivera reconfortando com uma cerveja. Tinha um molho de cravos amarellos ao peito, polainas brancas, — ­e queria animar as corridas. Já vira a Mist, a egoa de Clifford, e decidira apostar pela Mist. Que cabeça d’animal, meninos, que finura de pernas!...

— ­Palavra que me enthusiasmou! E está decidido, um dia não são dias, é necessario animar isto! Aposto trez mil réis. Quer você Craft?

— ­Pois sim, talvez, depois... Vamos primeiro vêr o aspecto geral.

No recinto em declive, entre a tribuna e a pista, havia só homens, a gente do Gremio, das Secretarias e da Casa Havaneza; a maior parte á vontade, com jaquetões claros, e de chapéo côco; outros mais em estylo, de sobrecasaca e binoculo a tiracollo, pareciam embaraçados e quasi arrependidos do seu chic. Fallava-se baixo, com passos lentos pela relva, entre leves fumaraças de cigarro. Aqui e além um cavalheiro, parado, de mãos atraz das costas, pasmava languidamente para as senhoras. Ao lado de Carlos dois brazileiros queixavam-se do preço dos bilhetes, achando aquillo «uma semsaboria de rachar.»

Defronte a pista estava deserta, com a relva pisada, guardada por soldados: e junto á corda, do outro lado, apinhava-se o magote de gente, com as carruagens pelo meio, sem um rumor, n’uma pasmaceira tristonha, sob o peso do sol de junho. Um rapazote, com uma voz dolente, apregoava agua fresca. Lá ao fundo o largo Tejo faiscava, todo azul, tão azul como o ceu, n’uma pulverisação fina de luz.

O visconde de Darque, com o seu ar placido de gentleman louro que começa a engordar, veio apertar a mão a Carlos e a Craft. E mal elles lhe fallaram dos seus cavallos (Rabbino, o favorito, e o outro potro) encolheu os hombros, cerrou os olhos, como um homem que se sacrifica. Então, que diabo, os rapazes tinham querido!... Mas elle, realmente, não podia apresentar um cavallo decente, com as suas côres, senão d’ahi a quatro annos. De resto não apurava cavallos para aquella melancolia de Belem, não imaginassem os amigos que elle era tão patriota: o seu fim era ir a Hespanha, bater os cavallos de Caldillo...

— ­Emfim, vamos a vêr... Dê você cá lume. Isto está um horror. E depois, que diabo, para corridas é necessario cocottes e Champagne. Com esta gente seria, e agua fresca, não vae!

N’esse momento um dos commissarios das corridas, um rapagão sem barba, vermelho como uma papoula, a pingar de suor sob o chapéo branco deitado para a nuca, veio arrebatar o Darque, «que era muito preciso, lá na pesagem, para uma duvidasinha.»

— ­Eu sou o diccionario, dizia o Darque, tornando a encolher os hombros resignadamente. De vez em quando vem um d’estes senhores do Jockey-Club, e folheia-me... Veja você, Maia, em que estado eu fico depois das corridas! Ha-de ser necessario encadernar-me de novo...

E lá foi, rindo da sua pilheria — ­empurrado para diante pelo commissario, que lhe dava palmadas familiares nas costas, e lhe chamava catita.

— ­Vamos nós vêr as mulheres, disse Carlos.

Seguiram devagar ao comprido da tribuna. Debruçadas no rebordo, n’uma fila muda, olhando vagamente, como d’uma janella em dia de procissão, estavam ali todas as senhoras que vêem no high-life dos jornaes, as dos camarotes de S. Carlos, as das terças-feiras dos Gouvarinhos. A maior parte tinha vestidos serios de missa. Aqui e além um d’esses grandes chapéos emplumados á Gainsborough, que então se começavam a usar, carregava d’uma sombra maior o tom trigueiro de uma carinha miuda. E na luz franca da tarde, no grande ar da collina descoberta, as pelles appareciam murchas, gastas, molles, com um baço de pó de arroz.

Carlos cumprimentou as duas irmãs do Taveira, magrinhas, loirinhas, ambas correctamente vestidas de xadrezinho: depois a viscondessa d’Alvim, nedia e branca, com o corpete negro reluzente de vidrilhos, tendo ao lado a sua terna inseparavel, a Joaninha Villar, cada vez mais cheia, com um quebranto cada vez mais doce nos olhos pestanudos. Adiante eram as Pedrosos, as banqueiras, de côres claras, interessando-se pelas corridas, uma de programma na mão, a outra de pé e de binoculo estudando a pista. Ao lado, conversando com Steinbroken, a condessa de Soutal, desarranjada, com um ar de ter lama nas saias. N’uma bancada isolada, em silencio, Villaça com duas damas de preto.

A condessa de Gouvarinho ainda não viera. E não estava tambem aquella que os olhos de Carlos procuravam, inquietamente e sem esperança.

— ­É um canteirinho de camelias meladas, disse o Taveira, repetindo um dito do Ega.

Carlos, no entanto, fôra fallar á sua velha amiga D. Maria da Cunha que, havia momentos, o chamava com o olhar, com o leque, com o seu sorriso de bôa mamã. Era a unica senhora que ousara descer do retiro ajanellado da tribuna, e vir sentar-se em baixo, entre os homens: mas, como ella disse, não aturara a séca de estar lá em cima perfilada, á espera da passagem do Senhor dos Passos. E, bella ainda sob os seus cabellos já grisalhos, só ella parecia divertir-se alli, muito á vontade, com os pés pousados na travessa d’uma cadeira, o binoculo no regaço, cumprimentada a cada instante, tratando os rapazes por meninos... Tinha comsigo uma parenta que apresentou a Carlos, uma senhora hespanhola, que seria bonita se não fossem as olheiras negras, cavadas até ao meio da face. Apenas Carlos se sentou ao pé d’ella, D. Maria perguntou-lhe logo por esse aventureiro do Ega. Esse aventureiro, disse Carlos, estava em Celorico compondo uma comedia para se vingar de Lisboa, chamada o Lodaçal...

— ­Entra o Cohen? perguntou ella, rindo.

— ­Entramos todos, sr.ª D. Maria. Todos nós somos lodaçal...

N’esse momento, por traz do recinto, rompia, com um taran-tan-tan mollengão de tambores e pratos, o hymno da Carta, a que se misturou uma voz de official e o bater de coronhas. E, entre dourados de dragonas, El-rei appareceu na tribuna, sorrindo, de quinzena de velludo, e chapéo branco. Aqui e além, raros sujeitos cumprimentaram, muito de leve: a senhora hespanhola, essa, tomou o oculo do regaço de D. Maria, e de pé, muito descançadamente, poz-se a examinar o rei. D. Maria achava ridicula a musica, dando ás corridas um ar de arraial... Além d’isso, que tolice, o hymno, como n’um dia de parada!

— ­E este hymno, então, que é medonho, dizia Carlos. A sr.ª D. Maria não sabe a definição do Ega, e a sua theoria dos hymnos? Maravilhosa!

— ­Aquelle Ega! dizia ella sorrindo, já encantada.

— ­O Ega diz que o hymno é a definição pela musica do caracter d’um povo. Tal é o compasso do hymno nacional, diz elle, tal é o movimento moral da nação. Agora veja a sr.ª D. Maria os differentes hymnos, segundo o Ega. A Marselheza avança com uma espada núa. O God save the queen adianta-se, arrastando um manto real...

— ­E o hymno da Carta?

— ­O hymno da Carta ginga, de rabona.

E D. Maria ria ainda, quando a hespanhola, sentando-se e repousando-lhe tranquillamente o binoculo no regaço, murmurou:

— ­Tiene cara de buena persona.

— ­Quem, o rei? exclamaram a um tempo D. Maria e Carlos. Excellente!

No entanto uma sineta tocava, perdida no ar. E no quadro indicador subiram os numeros dos dois cavallos que corriam o primeiro premio dos Productos. Eram o n.º 1 e o n.º 4. D. Maria Telles quiz-lhe saber os nomes, com o appetite de apostar e ganhar cinco tostões a Carlos. E como Carlos se erguia para arranjar um programma:

— ­Deixe estar o menino, disse ella, tocando-lhe no braço. Ahi vem o nosso Alencar, com o programma... Olhe para aquillo! Veja se ainda hoje os ha por ahi com aquelle ar de sentimento e de poesia...

Com um fato novo de cheviote claro que o remoçava, de luvas gris-perle, o seu bilhete de pezagem na botoeira, o poeta vinha-se abanando com o programma, e já de longe sorrindo á sua boa amiga D. Maria. Quando chegou junto d’ella, descoberto, bem penteado n’esse dia, com um lustre d’oleo na grenha, levou-lhe a mão aos labios, fidalgamente.

D. Maria fôra uma das suas lindas contemporaneas. Tinham dançado muita ardente mazurka nos salões de Arroios. Ella tratava-o por tu. Elle dizia sempre boa amiga, e querida Maria.

— ­Deixa vêr os nomes d’esses cavallos, Alencar... Senta-t’ahi, anda, faze companhia.

Elle puchou uma cadeira, rindo do interesse que ella tomava pelas corridas. E elle que a conhecera sempre uma enthusiasta de toiros!... Pois os nomes dos cavallos eram Jupiter e Escossez...

— ­Nenhum d’esses nomes me agrada, não aposto. E então que te parece tudo isto, Alencar?... A nossa Lisboa vae-se sahindo da concha...

Alencar, pousando o chapéo sobre uma cadeira, e passando a mão pela sua vasta fronte de bardo, confessou que aquillo tinha realmente um certo ar de elegancia, um perfume de côrte... Depois, lá em baixo, aquelle maravilhoso Tejo... Sem fallar na importancia do apuramento das raças cavallares...

— ­Pois não é verdade, meu Carlos? Tu que entendes superiormente d’isso, que és um mestre em todos os sports, sabes bem que o apuramento...

— ­Sim, com effeito, o apuramento, muito importante... — ­disse Carlos, vagamente, erguendo-se a olhar outra vez a tribuna.

Eram quasi tres horas, e agora, de certo, ella já não vinha: e a condessa de Gouvarinho não apparecia tambem... Começava a invadil-o uma grande lassitude. Respondendo, com um leve movimento de cabeça, ao sorriso doce que lhe dava da tribuna a Joaninha Villar, pensava em voltar para o Ramalhete, acabar tranquillamente a tarde dentro do seu robe-de-chambre, com um livro, longe de todo aquelle tédio.

No entanto, ainda entravam senhoras. A menina Sá Videira, filha do rico negociante de sapatos d’ourello, passou pelo braço do irmão, abonecada, com o arsinho petulante e enojado de tudo, fallando alto inglez. Depois foi a ministra da Baviera, a baroneza de Craben, enorme, empavoada, com uma face macissa de matrona romana, a pelle cheia de manchas côr de tomate, a estalar dentro d’um vestido de gorgorão azul com riscas brancas: e atraz o barão, pequenino, amavel, aos pulinhos, com um grande chapéo de palha.

D. Maria da Cunha erguera-se para lhes fallar: e durante um momento ouviu-se, como um glou-glou grosso de perú, a voz da baroneza achando que c’était charmant, c’était très beau. O barão, aos pulinhos, aos risinhos, trouvait ça ravissant. E o Alencar, diante d’aquelles estrangeiros que o não tinham saudado, apurava a sua attitude de grande homem nacional, retorcendo a ponta dos bigodes, alçando mais a fronte núa.

Quando elles seguiram para a tribuna, e a boa D. Maria se tornou a sentar, o poeta, indignado, declarou que abominava allemães! O ar de sobranceria com que aquella ministra, com feitio de barrica deixando sahir o cebo por todas as costuras do vestido, o olhára, a elle! Ora, a insolente baleia!

D. Maria sorria, olhando com sympathia o poeta. E voltando-se de repente para a senhora hespanhola:

— ­Concha, deja-me presentar-te D. Thomaz de Alencar, nuestro gran poeta lyrico...

N’esse momento, algum dos rapazes mais amadores, dos que traziam binoculos a tiracollo, apressaram o passo para a corda da pista. Dois cavallos passavam n’um galope sereno, quasi juntos, sob as vergastadas estonteadas de dois jockeys de grande bigode. Uma voz erguendo-se disse que tinha ganhado Escossez. Outros affirmavam que fôra Jupiter. E no silencio que se fez, de lassidão e de desapontamento, ondeou mais viva no ar, lançada pelos flautins da banda, a valsa de madame Angot. Alguns sujeitos tinham-se conservado de costas para a pista, fumando, olhando a tribuna — ­onde as senhoras continuavam debruçadas no parapeito, á espera do Senhor dos Passos. Ao lado de Carlos, um cavalheiro resumiu as impressões, dizendo que tudo aquillo era uma intrujice.

E quando Carlos se ergueu para ir procurar o Damaso, Alencar, muito animado com a hespanhola, fallava de Sevilha, de malagueñas e do coração d’Espronceda.

O desejo de Carlos agora era achar Damazo, saber porque falhara a visita aos Olivaes — ­e depois ir-se embora para o Ramalhete, esconder aquella melancolia que o enevoava, estranha e pueril, misturada de irritabilidade, fazendo-lhe detestar as vozes que lhe fallavam, os rantatans da musica, até a belleza calma da tarde... Mas ao dobrar a esquina da tribuna, topou com Craft, que o deteve, o apresentou a um rapaz loiro e forte com quem estava fallando alegremente. Era o famoso Clifford, o grande sportman de Cordova. Em redor sujeitos tinham parado, embasbacados para aquelle inglez legendario em Lisboa, dono de cavallos de corridas, amigo do rei d’Hespanha, homem de todos os chics. Elle, muito á vontade, um pouco poseur, com um simples veston de flanella azul como no campo, ria alto com o Craft do tempo em que tinham estado no collegio de Rugby. Depois pareceu-lhe reconhecer Carlos, amavelmente. Não se tinham encontrado havia quasi um anno, em Madrid, n’um jantar, em casa de Pancho Calderon? E assim era. O aperto de mão que repetiram foi mais intimo — ­e Craft quiz que fossem regar aquella flor d’amisade com uma garrafa de mau Champagne. Em roda crescera a pasmaceira.

O buffete estava installado debaixo da tribuna, sob o taboado nú, sem sobrado, sem um ornato, sem uma flor. Ao fundo corria uma prateleira de taberna com garrafas e pratos de bolos. E, no balcão tosco, dois criados, estonteados e sujos, achatavam á pressa as fatias de sandwiches com as mãos humidas da espuma da cerveja.

Quando Carlos e os seus amigos entraram, havia junto d’um dos barrotes que especavam os degraus da tribuna, n’um grupo animado, com copos de champagne na mão, o marquez, o visconde de Darque, o Taveira, um rapaz pallido de barba preta, que tinha debaixo do braço enrolada a bandeira vermelha de Starter, e o commissario imberbe, com o chapéo branco cada vez mais atirado para a nuca, a face mais esbrazeada, o collarinho já molle de suor. Era elle que offerecia o champagne; e apenas viu entrar Clifford, rompeu para elle, de taça no ar, fez tremer as vigas, soltando o seu vozeirão:

— ­Á saude do amigo Clifford! o primeiro sportman da península, e rapaz cá dos nossos!... Hip hip, hurrah!

Os copos ergueram-se, n’um clamor d’hurrahs, onde destacou, vibrante e enthusiasta, a voz do starter. Clifford agradecia, risonho, tirando lentamente as luvas — ­em quanto o marquez, puxando Carlos pelo braço para o lado, lhe apresentava rapidamente o commissario, seu primo D. Pedro Vargas.

— ­Muito gosto em conhecer...

— ­Qual historias! Eu é que fazia furor! exclamou o commissario. Cá a rapaziada do sport deve-se conhecer toda... Porque isto cá é a confraria, e todo o resto é chinfrinada!

E immediatamente arrebatou o copo ao ar, berrou com um impeto que lhe trazia mais sangue á face:

— ­Á saude de Carlos da Maia, o primeiro elegante cá da patria! a melhor mão de redea... Hip, hip, hurrah...

— ­Hip, hip, hip... Hurrah!

E foi ainda a voz do starter que deu o hurrah mais vibrante e mais enthusiasta.

Um empregado assomou á porta do buffete, e chamou o sr. commissario. O Vargas atirou uma libra para o balcão, abalou, gritando já de fóra, com o olho acceso:

— ­Isto vae-se animando, rapazes! Caramba! É carregar no liquido! E você, oh lá de baixo, o patrão, sô Manuel, mande vir esse gelo... Está a gente aqui a tomar a bebida quente... Despache um proprio, vá você, rebente! Irra!

No entanto em quanto se desarrolhava o champagne de Craft, Carlos tinha convidado Clifford a jantar n’essa noite no Ramalhete. O outro acceitou, molhando os labios no copo, achando excellente que se continuasse a tradição de jantarem juntos, sempre que se encontravam.

— ­Olá! o general por aqui! exclamou Craft.

Os outros voltaram-se. Era o Sequeira, com a face como um pimentão, entalado n’uma sobrecasaca curta que o fazia mais atarracado, de chapeu branco sobre o olho, e grande chicote debaixo do braço.

Acceitou um copo de Champagne, e teve muito prazer em conhecer o sr. Clifford...

— ­E que me diz você a esta semsaboria? exclamou elle logo, voltando-se para Carlos.

Em quanto a si estava contente, pulava... Aquella corrida insipida, sem cavallos, sem jockeys, com meia duzia de pessoas a bocejar em roda, dava-lhe a certeza que eram talvez as ultimas, e que o Jockey-Club rebentava... E ainda bem! Via-se a gente livre d’um divertimento que não estava nos habitos do paiz. Corridas era para se apostar. Tinha-se apostado? Não, então historias!... Em Inglaterra e em França, sim! Ahi eram um jogo como a roletta, ou como o monte... Até havia banqueiros, que eram os bookmakers... Então já viam!

E como o marquez, pousando o copo, e querendo calmar o general, fallava do apuramento das raças, e da remonta, — ­o outro ergueu os hombros, com indignação:

— ­Que me está você a cantar! Quer você dizer que se apura a raça para a remonta da cavallaria?... Ora vá lá montar o exercito com cavallos de corridas!... Em serviço o que se quer não é o cavallo que corra mais, é o cavallo que aguente mais... O resto é uma historia... Cavallos de corridas são phenomenos! São como o boi com duas cabeças... Então historias!... Em França até lhe dão Champagne, homem!... Então veja lá!...

E a cada phrase, sacudia os hombros, furiosamente. Depois, d’um trago, esvasiou o seu copo de Champagne, repetiu que tinha muito prazer em conhecer o sr. Clifford, rodou sobre os tacões, sahiu, bufando, entalando mais debaixo do braço o chicote — ­que tremia na ponta como avido de vergastar alguem.

Craft sorria, batia no hombro de Clifford.

— ­Veja você! cá nós, velhos portuguezes, não gostamos de novidades, e de sports... Somos pelo toiro...

— ­Com razão, dizia o outro, serio e aprumando-se sobre o collarinho. Ainda ha dias me contava na Granja, o Rei de Hespanha...

De repente, fóra, houve um reboliço, e vozes sobresaltadas gritando ordem! Uma senhora, que atravessava com um pequenito, fugiu para dentro do buffete, enfiada. Um policia passou, correndo.

Era uma desordem!

Carlos e os outros, sahindo á pressa, viram ao pé da tribuna real um magote de homens — ­onde bracejava o Vargas. Do largo da pesagem, os rapazes corriam com curiosidade, já excitados, apinhando-se, alçando-se em bicos de pés; do recinto das carruagens acudiam outros, saltando as cordas da pista, apesar dos repellões dos policias: — ­e agora era uma massa tumultuosa de chapéos altos, de fatos claros, empurrando-se contra as escadas da tribuna real, onde um ajudante d’el-rei, reluzente de agulhetas e em cabello, olhava tranquillamente.

E Carlos, furando, poude emfim avistar no meio do montão um dos sujeitos que correra no premio dos Productos, o que montava Jupiter, ainda de botas, com um paletot alvadio por cima da jaqueta de jockey, furioso, perdido, injuriando o juiz das corridas, o Mendonça, que arregalava os olhos, aturdido e sem uma palavra. Os amigos do jockey puxavam-n’o, queriam que elle fizesse um protesto. Mas elle batia o pé, tremulo, livido, gritando que não se importava nada com protestos! Perdera a corrida por uma pouca vergonha! O protesto alli era um arrocho! Porque o que havia n’aquelle hyppodromo era compadrice e ladroeira!

Individuos, mais serios, indignaram-se com esta brutalidade.

— ­Fóra! Fóra!

Alguns tomavam o partido do jockey; já aos lados outras questões surgiam, desabridas. Um sujeito vestido de cinzento berrava que o Mendonça decidira pelo Pinheiro, que montava Escossez, por ser intimo d’elle; outro cavalheiro, de binoculo a tiracollo, achava aquella insinuação infame; e os dois, frente a frente, com os punhos fechados, tratavam-se furiosamente de pulhas.

E, todo este tempo, um homem baixote, de grandes collarinhos de pintinhas, procurava romper, erguia os braços, exclamava, n’uma voz supplicante e rouca:

— ­Por quem são, meus senhores... Um momento... Eu tenho experiencia... Eu tenho experiencia!

De repente o vozeirão do Vargas dominou tudo, como um urro de toiro. Diante do jockey, sem chapéo, com a face a estoirar de sangue, gritava-lhe que era indigno de estar alli, entre gente decente! Quando um gentleman duvida do juiz da corrida, faz um protesto! Mas vir dizer que ha ladrões, era só d’um canalha e d’um fadista, como elle, que nunca devia ter pertencido ao Jockey-Club! — ­O outro, agarrado pelos amigos, esticando o pescoço magro como para lhe morder, atirou-lhe um nome sujo. Então o Vargas, com um encontrão para os lados, abriu espaço, repuxou as mangas, berrou:

— ­Repita lá isso! repita lá isso!

E immediatamente aquella massa de gente oscillou, embateu contra o taboado da tribuna real, remoinhou em tumulto, com vozes de ordem e morra, chapéos pelo ar, baques surdos de murros.

Por entre o alarido vibravam, furiosamente, os apitos da policia; senhoras, com as saias apanhadas, fugiam atravez da pista, procurando espavoridamente as carruagens; — ­e um sopro grosseiro de desordem relles passava sobre o hyppodromo, desmanchando a linha postiça de civilisação e a attitude forçada de decoro...

Carlos achou-se ao pé do marquez, que exclamava, pallido:

— ­Isto é incrivel, isto é incrivel!...

Carlos, pelo contrario, achava pittoresco.

— ­Qual pittoresco, homem! É uma vergonha, com todos esses estrangeiros!

No entanto a massa de gente dispersava, lentamente, obedecendo ao official de guarda, um moço pequenino mas decidido, que, em bicos de pés, aconselhava para os lados, n’uma voz de orador, «cavalheirismo» e «prudencia...» O jockey de paletot alvadio affastou-se, apoiado ao braço d’um amigo, cocheando, com o nariz a pingar sangue: e o commissario desceu para a pista, com um cortejo atraz, triumphante, sem collarinho, arranjando o chapéo achatado n’uma pasta. A musica tocava a marcha do Propheta; em quanto o desgraçado juiz das corridas, o Mendonça, encostado á tribuna real, com os braços cahidos, aparvalhado, balbuciava n’um resto d’assombro:

— ­Isto só a mim! Isto só a mim!

O marquez, n’um grupo a que se juntára o Clifford, Craft, e Taveira, continuava a vociferar:

— ­Então, estão convencidos? Que lhes tenho eu sempre dito? Isto é um paiz que só supporta hortas e arraiaes... Corridas, como muitas outras coisas civilisadas lá de fóra, necessitam primeiro gente educada. No fundo todos nós somos fadistas! Do que gostamos é de vinhaça, e viola, e bordoada, e viva lá seu compadre! Ahi está o que é!

Ao lado d’elle Clifford, que no meio d’aquelle desmancho todo esticava mais correctamente a sua linha de gentleman, mordia um sorriso, assegurando, com um ar de consolação, que conflictos eguaes succedem em toda a parte... Mas no fundo parecia achar tudo aquillo ignobil. Dizia-se mesmo que elle ia retirar a Mist. E alguns davam-lhe razão. Que diabo! Era aviltante para um bello animal de raça correr n’um hyppodromo sem ordem e sem decencia, onde a todo o momento podiam reluzir navalhas.

— ­Ouve cá, tu viste por acaso esse animal do Damaso? perguntou Carlos, chamando para o lado o Taveira. Ha uma hora que ando a farejal-o...

— ­Estava ainda ha pouco do outro lado, no recinto das carruagens, com a Josephina do Salazar... Anda extraordinario, de sobrecasaca branca, e de véo no chapéo!

Mas, quando d’ahi a pouco, Carlos quiz atravessar, a pista estava fechada. Ia-se correr o Grande premio nacional. Os numeros já tinham subido ao indicador, um tom de sineta morria no ar. Um cavallo do Darque, o Rabbino, com o seu jockey de encarnado e branco, descia, trazido á redea por um groom e acompanhado pelo Darque: alguns sujeitos paravam a examinar-lhe as pernas, com o olho serio, affectando entender. Carlos demorou-se um momento tambem, admirando-o: era d’um bonito castanho escuro, nervoso e ligeiro, mas com o peito estreito.

Depois, ao voltar-se, viu de repente a Gouvarinho, que acabava de certo de chegar, e conversava de pé com D. Maria da Cunha. Estava com uma toilette ingleza, justa e simples, toda de cazimira branca, d’um branco de creme, onde as grandes luvas negras á mosqueteira punham um contraste audaz: e o chapéo preto tambem desapparecia sob as pregas finas d’um véo branco, enrolado em volta da cabeça, cobrindo-lhe metade do rosto, com um ar oriental que não ía bem ao seu narizinho curto, ao seu cabello côr de braza. Mas em redor os homens olhavam para ella como para um quadro.

Ao avistar Carlos, a condessa não conteve um sorriso, um brilho de olhos que a illuminou. Instinctivamente deu um passo para elle: e ficaram um instante isolados, fallando baixo, em quanto D. Maria os observava, sorrindo, cheia já de benevolencia, prompta já a abençoal-os maternalmente.

— ­Estive para não vir, dizia a condessa, que parecia nervosa. O Gastão fez-se tão desagradavel hoje! E naturalmente tenho d’ir ámanhã para o Porto.

— ­Para o Porto?...

— ­O papá quer que eu lá vá, são os annos d’elle... Coitado, vae-se fazendo velho, escreveu-me uma carta tão triste... Ha dois annos que me não vê...

— ­O conde vae?

— ­Não.

E a condessa, depois de dar um sorriso ao ministro da Baviera, que a cumprimentava de passagem, aos pulinhos, acrescentou, mergulhando o olhar nos olhos de Carlos:

— ­E quero uma coisa.

— ­O que?

— ­Que venhas tambem.

Justamente n’esse instante, Telles da Gama, de programma e lapis na mão, parou junto d’elles:

— ­Você quer entrar n’uma poule monstro, Maia? Quinze bilhetes, dez tostões cada um... Lá em cima ao canto da tribuna está-se apostando ferozmente... A desordem fez bem, sacudiu os nervos, todo o mundo acordou... Quer v. ex.ª tambem, sr.ª condessa?

Sim, a condessa tambem entrava na poule. Telles da Gama inscreveu-a, e abalou atarefado. Depois foi Steinbroken que se acercou, todo florído, de chapéo branco, ferradura de rubis na gravata, mais esticado, mais loiro, mais inglez, n’este dia solemne de sport official.

— ­Ah, comme vous êtes belle, comtesse!... Voilá une toilette merveilleuse, n’est ce pas, Maia?... Est ce que nous n’allons pas parier quelque chose?

A condessa contrariada, querendo fallar a Carlos, risonha todavia, lamentou-se de ter já uma fortuna compromettida... Emfim sempre apostava cinco tostões com a Filandia. Que cavallo tomava elle?

— ­Ah, je ne sais pas, je ne connais pas les chevaux... D’abord, quand on parie...

Ella, impaciente, offereceu-lhe Vladimiro. E teve de estender a mão a outro filandez, o secretario de Steinbroken, um moço loiro, lento, languido, que se curvara em silencio diante d’ella, deixando escorregar do olho claro e vago o seu monoculo d’ouro. Quasi immediatamente Taveira excitado veiu dizer que Clifford retirara a Mist.

Vendo-a assim cercada, Carlos affastou-se. Justamente o olhar de D. Maria, que o não deixara, chamava-o agora, mais carinhoso e vivo. Quando elle se chegou, ella puxou-lhe pela manga, fel-o debruçar, para lhe murmurar ao ouvido, deliciada:

— ­Está hoje tão galante!

— ­Quem?

D. Maria encolheu os hombros, impaciente.

— ­Ora quem! Quem ha-de ser? O menino sabe perfeitamente. A condessa... Está de appetite.

— ­Muito galante, com effeito, disse Carlos friamente.

De pé, junto de D. Maria, tirando de vagar uma cigarrette, elle ruminava, quasi com indignação, as palavras da condessa. Ir com ella para o Porto!... E via alli outra exigencia audaz, a mesma tendencia impertinente a dispôr do seu tempo, dos seus passos, da sua vida! Tinha um desejo de voltar junto d’ella, dizer-lhe que não, seccamente, desabridamente, sem motivos, sem explicações, como um brutal.

Acompanhada em silencio pelo esguio secretario de Steinbroken, ella vinha agora caminhando lentamente para elle: e o olhar alegre com que o envolvia irritou-o mais, sentindo no seu brilho sereno, no sorrir calmo, quanto ella estava certa da sua submissão.

E estava. Apenas o filandez se affastou languidamente — ­ella, muito tranquilla, alli mesmo junto de D. Maria, fallando em inglez, e apontando para a pista como se commentasse os cavallos do Darque, explicou-lhe um plano que imaginara, encantador. Em logar de partir na terça feira para o Porto — ­ia na segunda á noite, só com a criada escocessa, sua confidente, n’um compartimento reservado. Carlos tomava o mesmo comboio. Em Santarem, desciam ambos, muito simplesmente, e iam passar a noite ao hotel. No dia seguinte ella seguia para o Porto, elle recolhia a Lisboa...

Carlos abria os olhos para ella, assombrado, emmudecido. Não esperava aquella extravagancia. Suppozera que ella o queria no Porto, escondido no Francfort, para passeios romanticos á Foz, ou visitas furtivas a algum casebre da Aguardente... Mas a idéa d’uma noite, n’um hotel, em Santarem!

Terminou por encolher os hombros, indignado. Como queria ella, n’uma linha de caminho de ferro em que se encontra constantemente gente conhecida, apear-se com elle na estação de Santarem, dar-lhe o braço, maritalmente, e enfiarem para uma estalagem? Ella, porém, pensára em todos os detalhes. Ninguem a conheceria, disfarçada n’um grande water-proof, e com uma cabelleira postiça.

— ­Com uma cabelleira!?

— ­O Gastão! murmurou ella de repente.

Era o conde, por traz d’elle, abraçando-o ternamente pela cintura. E quiz logo saber a opinião do amigo Maia sobre as corridas. Bastante animação, não é verdade? E bonitas toilettes, certo ar de luxo... Emfim, não envergonhavam. E ahi estava provado o que elle sempre dissera, que todos os requintes da civilisação se aclimatavam bem em Portugal...

— ­O nosso solo moral, Maia, como o nosso solo physico, é um solo abençoado!

A condessa voltara para o pé de D. Maria. E Telles da Gama, passando de novo, n’aquella faina ruidosa em que o trazia a formação da sua poule, chamou Carlos para a tribuna, para elle tirar o seu bilhete, e apostar com as senhoras...

— ­Oh Gouvarinho! venha tambem d’ahi, homem! exclamou elle. Que diabo! É necessario animar isto, é até patriotico.

E o conde condescendeu, por patriotismo.

— ­É bom, dizia elle, travando do braço de Carlos, fomentar os divertimentos elegantes. Já uma vez o disse na camara: o luxo é conservador.

Em cima, a um canto, n’um grupo de senhoras, foram com effeito encontrar uma animação — ­que quasi fazia escandalo n’aquella tribuna silenciosa e á espera do Senhor dos Passos. A viscondessa de Alvim dobrava atarefadamente os bilhetes da poule: uma secretariasinha da Russia, de bonitos olhos garços, apostava desesperadamente placas de cinco tostões, estonteada, já embrulhada, rabiscando com phrenesi o seu programma. A Pinheiro, a mais magra, com um vestido leve de raminhos Pompadour que lhe fazia covas nas claviculas, dava opiniões pretenciosas sobre os cavallos, em inglez: emquanto o Taveira, de olhos humidos no meio de todas aquellas saias, fallava de arruinar as senhoras, de viver á custa das senhoras... E todos os homens, acotovelando-se, queriam fazer uma aposta com a Joanninha Villar, que, de costas contra o rebordo da tribuna, gordinha e languida, sorrindo, com a cabeça deitada para traz, as pestanas mortas, parecia offerecer a todas aquellas mãos, que se estendiam gulosamente para ella, o seu appetitoso peito de rola.

Telles da Gama, no entanto, ia organisando a confusão alegre. Os bilhetes estavam dobrados, era necessario um chapéo... Então os cavalheiros affectaram um amor desordenado pelos seus chapéos, não os querendo confiar ás mãos nervosas das senhoras; um rapaz, todo de luto, excedeu-se mesmo, agarrando as abas do seu, com ambas as mãos, aos gritos.

A secretariasinha da Russia, impaciente, terminou por offerecer o barrete de marujo do seu pequeno — ­uma creança obesa, pousada alli para um lado como uma trouxa. Foi a Joanninha Villar que levou em roda os bilhetes, rindo e chocalhando-os preguiçosamente; emquanto o secretario de Steinbroken, grave, como exercendo uma funcção, recolhia no seu grande chapéo as placas cahindo uma a uma com um som argentino. E a tiragem foi o lindo divertimento da poule. Como estavam só quatro cavallos inscriptos, e as entradas eram quinze, havia onze bilhetes brancos que aterravam. Todos ambicionavam tirar o numero tres, o de Rabbino, o cavallo de Darque, favorito do Premio Nacional. Assim cada mãosinha soffrega que se demorava no fundo do barrete, remexendo, tenteando os papeis, causava uma indignação folgasã, n’um exagero de risos.

— ­A sr.ª viscondessa procura de mais!... E dobrou os numeros, conhece-os... É necessario probidade, sr.ª viscondessa!

— ­Oh, mon Dieu, j’ai Minhoto, cette rosse!

— ­Je vous l’achette, madame!

— ­Ó sr.ª D. Maria Pinheiro, v. ex.ª leva dous numeros!...

— ­Ah! je suis perdue... Blanc!

— ­E eu! É necessario fazer outra poule! Vamos fazer outra poule!

— ­Isso! Outra poule, outra poule!

No entanto a enorme baroneza de Craben, n’um degrau mais elevado, que ella occupava só, como um throno, erguera-se, com o seu bilhete na mão. Tinha tirado Rabbino: e affectava superiormente não comprehender esta fortuna, perguntava o que era Rabbino. Quando o conde de Gouvarinho lhe explicou muito serio a importancia de Rabbino, e que Rabbino era quasi uma gloria publica, ella mostrou a dentuça, condescendeu em rosnar do fundo do papo que c’etait charmant. Todo o mundo a invejava; e a vasta baleia alastrou-se de novo sobre o seu throno, abanando-se, com magestade.

E subitamente houve uma surpreza: em quanto elles tiravam os bilhetes, os cavallos tinham partido, passavam juntos diante da tribuna. Todos se ergueram, de binoculos na mão. O starter ainda estava na pista, com a bandeira vermelha inclinada ao chão: e as ancas de cavallos fugiam na curva, lustrosos á luz, sob as jaquetas enfunadas dos jockeys.

Então todo o rumor de vozes caiu; e no silencio a bella tarde pareceu alargar-se em redor, mais suave e mais calma. Atravez do ar sem poeira, sem a vibração dos raios fortes, tudo tomava uma nitidez delicada: defronte da tribuna, na collina, a relva era d’um louro quente; no grupo de carruagens scintillava por vezes o vidro de uma lanterna, o metal de um arreio, ou de pé, sobre uma almofada, destacava em escuro alguma figura de chapeo alto; e pela pista verde, os cavallos corriam, mais pequenos, finamente recortados na luz. Ao fundo, a cal das casas cobria-se de uma leve agoada côr de rosa: e o distante horisonte resplandecia, com dourados de sol, brilhos de rio vidrado, fundindo-se n’uma nevoa luminosa, onde as collinas, nos seus tons azulados, tinham quasi transparencia, como feitas d’uma substancia preciosa...

— ­É Rabbino! exclamou por traz de Carlos, um sugeito, de pé n’um degrau.

As côres encarnadas e brancas do Darque corriam com effeito na frente. Os dous outros cavallos iam juntos; e, o ultimo, n’um galope que adormecia, era Vladimiro, outro potro do Darque, baio-claro, quasi louro á luz.

Então, a secretaria da Russia bateu as palmas, interpellou Carlos, que justamente tirara na poule o numero de Vladimiro. A ella coubera Minhoto, uma pileca melancolica do Manoel Godinho; e tinham feito sobre os dous cavallos uma aposta complicada de luvas e de amendoas. Já umas poucas de vezes os seus lindos olhos garços tinham procurado os de Carlos; e agora tocava-lhe no braço com o leque, gracejava, triumphava...

— ­Ah, vous avez perdu, vous avez perdu! Mais c’est un vieux cheval de fiacre, vôtre Vladimir.

Como um cavallo de fiacre? Vladimiro era o melhor potro do Darque! Talvez ainda viesse a ser a unica gloria de Portugal, como outr’ora o Gladiador fôra a unica gloria da França! Talvez ainda substituisse Camões...

— ­Ah, vous plaisantez...

Não, Carlos não gracejava. Estava até prompto a apostar tudo por Vladimiro.

— ­Você aposta por Vladimiro? gritou Telles da Gama, voltando-se vivamente.

Carlos, por divertimento, sem mesmo saber por quê, declarou que tomava Vladimiro. Então, em roda, foi uma surpreza; e todo o mundo quiz apostar, aproveitar-se d’aquella phantasia de homem rico, que sustentava um potro verde, de tres quartos de sangue, a que o proprio Darque chamava pileca. Elle sorria, aceitava; terminou ate por erguer a voz, proclamar Vladimiro contra o campo. E de todos os lados o chamavam, n’uma sofreguidão de saque.

— ­Mr. de Maia, dix tostons.

— ­Parfaitement, madame.

— ­Oh Maia, você quer meia libra?

— ­Ás ordens.

— ­Maia, tambem eu! Ouça lá... Tambem eu!... Dous mil réis.

— ­Ó sr. Maia, eu vou dez tostões...

— ­Com o maior prazer, minha senhora...

Ao longe os cavallos davam a volta, na subida do terreno. Rabbino já desapparecera, — ­e Vladimiro n’um galope a que se sentia o cançasso, corria só na pista. Uma voz elevou-se, dizendo que elle manquejava. Então Carlos, que continuava a tomar Vladimiro contra o campo, sentiu que lhe puxavam de vagar pela manga; voltou-se; era o secretario de Steinbroken, chegando subtilmente a tomar tambem parte no saque á bolsa do Maia, propondo dous soberanos, em seu nome e em nome do seu chefe, como uma aposta collectiva da legação, a aposta do reino da Filandia.

— ­C’est fait, monsieur! exclamou Carlos, rindo.

Agora começava a divertir-se. Apenas vira de relance Vladimiro, e gostara da cabeça ligeira do potro, do seu peito largo e fundo; mas apostava sobre tudo para animar mais aquelle recanto da tribuna, ver brilhar gulosamente os olhos interesseiros das mulheres. Telles da Gama ao lado approvava-o, achava aquillo patriotico e chic.

— ­É Minhoto! gritou de repente Taveira.

Na volta, com effeito, fizera-se uma mudança. Subitamente Rabbino perdera terreno, resistindo á subida, com o folego curto. E agora era Minhoto, o cavallicoque obscuro de Manuel Godinho, que se arremessava para a frente, vinha devorando a pista, n’um esforço continuo, admiravelmente montado por um jockey hespanhol. E logo atraz vinham as côres escarlates e brancas de Darque: ao principio ainda pareceu que era Rabbino: mas, apanhado de repente n’um raio oblíquo de sol, o cavallo cobriu-se de tons lustrosos de baio claro, e foi uma surpreza ao reconhecer-se que era Vladimiro! A corrida travava-se entre elle e Minhoto.

Os amigos de Godinho, precipitando-se para a pista, bradavam, de chapéos no ar:

— ­Minhoto, Minhoto!

E, em redor de Carlos, os que tinham apostado pelo campo contra Vladimiro faziam tambem votos por Minhoto, em bicos de pés, junto do parapeito da tribuna, estendendo o braço para elle, animando-o:

— ­Anda Minhoto!... Isso, assim!... Aguenta, rapaz!... Bravo!... Minhoto! Minhoto!

A russa, toda nervosa, na esperança de ganhar a poule, batia as palmas. Até a enorme Craben se erguera, dominando a tribuna, enchendo-a com os seus gorgorões azues e brancos: — ­em quanto que, ao lado d’ella, o conde de Gouvarinho, tambem de pé, sorria, contente no seu peito de patriota, vendo n’aquelles jockeys á desfilada, nos chapéos que se agitavam, brilhar civilisação...

De repente, de baixo, d’ao pé da tribuna, d’entre os rapazes que cercavam o Darque, uma exclamação partiu.

— ­Vladimiro! Vladimiro!

Com um arranque desesperado o potro viera juntar-se a Minhoto: e agora chegavam furiosamente, com brilhos vivos de côres claras, os focinhos juntos, os olhos esbogalhados, sob uma chuva de vergastadas.

Telles da Gama, esquecido da sua aposta, todo pelo Darque, seu intimo, berrava por Vladimiro. A russa, de pé n’um degrau, apoiada sobre o hombro de Carlos, pallida, excitada, animava Minhoto com gritinhos, com pancadas de leque. A agitação d’aquelle canto da tribuna estendera-se em baixo ao recinto — ­onde se via uma linha de homens, contra a corda da pista, bracejando. Do outro lado, era uma fila de rostos pallidos, fixos n’uma curta anciedade. Algumas senhoras tinham-se posto de pé nas carruagens. E atravez da collina, para ver a chegada, dous cavalleiros, segurando com as mãos os chapéos baixos, corriam á desfilada.

— ­Vladimiro! Vladimiro! foram de novo os gritos isolados, aqui, além.

Os dous cavallos approximavam-se, com um som surdo das patas, trazendo um ar de rajada.

— ­Minhoto! Minhoto!

— ­Vladimiro! Vladimiro!

Chegavam... De repente o jockey inglez de Vladimiro, todo em fogo, levantando o potro que lhe parecia fugir d’entre as pernas, esticado e lustroso, fez silvar triumphantemente o chicote, e d’um arremesso directo lançou-o além da meta, duas cabeças adiante de Minhoto, todo coberto d’espuma.

Então em volta de Carlos foi uma desconsolação, um longo murmurio de lassidão. Todos perdiam; elle apanhava a poule, ganhava as apostas, empolgava tudo. Que sorte! Que chance! Um addido italiano, thesoureiro da poule, empallideceu ao separar-se do lenço cheio de prata: e de todos os lados mãosinhas calçadas de gris-perle, ou de castanho, atiravam-lhe com um ar amuado as apostas perdidas, chuva de placas que elle recolhia, rindo, no chapéo.

— ­Ah, monsieur, exclamou a vasta ministra da Baviera, furiosa, mefiez-vous... Vous connaissez le proverbe: heureux au jeu...

— ­Helas! madame! disse Carlos, resignado, estendendo-lhe o chapéo.

E outra vez um dedo subtil tocou-lhe no braço. Era o secretario de Steinbroken, lento e silencioso, que lhe trazia o seu dinheiro e o dinheiro do seu chefe, a aposta do reino da Filandia.

— ­Quanto ganha você? exclamou Telles da Gama, assombrado.

Carlos não sabia. No fundo do chapéo já reluzia ouro. Telles contou, com o olho brilhante.

— ­Você ganha doze libras! disse elle maravilhado, e olhando Carlos com respeito.

Doze libras! Esta somma espalhou-se em redor, n’um rumor de espanto. Doze libras! Em baixo os amigos de Darque, agitando os chapéos, davam ainda hurrahs. Mas uma indifferença, um tedio lento, ia pesando outra vez, desconsoladoramente. Os rapazes vinham-se deixar cahir nas cadeiras, bocejando, com um ar exhausto. A musica, desanimada tambem, tocava cousas plangentes da Norma.

Carlos, no entanto, n’um degrau da tribuna, com a idéa de descobrir o Damaso, sondava de binoculo o recinto das carruagens. A gente, agora, ia dispersando pela collina. As senhoras tinham retomado a immobilidade melancolica, no fundo das caleches, de mãos no regaço. Aqui e além um dog-cart, mal arranjado, dava um trote curto pela relva. N’uma vittoria estavam as duas hespanholas do Eusebiosinho, a Concha e a Carmen, de sombrinhas escarlates. E sujeitos, de mãos atrás das costas, pasmavam para um char-à-bancs a quatro attrelado á Daumont onde, entre uma familia triste, uma ama de lenço de lavradeira dava de mamar a uma creança cheia de rendas. Dous garotos esganiçados passeavam bilhas d’agua fresca.

Carlos descia da tribuna, sem ter descoberto o Damaso — ­quando deu justamente de frente com elle, dirigindo-se para a escada, affogueado, flamante, na sua famosa sobrecasaca branca.

— ­Onde diabo tens tu estado, creatura?

O Damaso agarrou-o pelo braço, alçou-se em bicos de pés, para lhe contar ao ouvido que tinha estado do outro lado com uma gaja divina, a Josephina do Zalazar... Chic a valer! lindamente vestida! parecia-lhe que tinha mulher!

— ­Ah, Sardanapalo!...

— ­Faz-se pela vida... Volta cá acima á tribuna, anda. Eu ainda hoje não pude cavaquear com o high-life!... Mas estou furioso, sabes? Implicaram com o meu veo azul. Isto é um paiz de bestas! Logo troça, e olhe não creste a pelle, e onde mora, ó catitinha? e chalaça... Uma canalha! Tive de tirar o veo ... Mas já resolvi. Para as outras corridas venho nú. Palavra, venho nú! Isto é a vergonha da civilisação, esta terra! Não vens d’ahi? Então até já.

Carlos deteve-o.

— ­Escuta lá homem, tenho que te dizer... Então, essa visita aos Olivaes?... Nunca mais appareceste... Tinhamos combinado que fosses convidar o Castro Gomes, que viesses dar a resposta... Não vens, não mandas... O Craft á espera... Emfim um procedimento de selvagem.

Damaso atirou os braços ao ar. Então Carlos não sabia? Havia grandes novidades! Elle não voltara ao Ramalhete, como estava combinado, porque o Carlos Gomes não podia ir aos Olivaes. Ia partir para o Brazil. Já partirá mesmo, na quarta feira. A coisa mais extraordinaria... Elle chega lá, para fazer o convite, e s. ex.ª declara-lhe que sente muito, mas que parte no dia seguinte para o Rio... E já de mala feita, já alugada uma casa para a mulher ficar aqui á espera tres mezes, já a passagem no bolso. Tudo de repente, feito de sabbado para segunda feira... Telhudo, aquelle Castro Gomes.

— ­E lá partiu, exclamou elle, voltando-se a cumprimentar a viscondessa d’Alvim e Joanninha Villar que desciam das tribunas. Lá partiu, e ella já está installada. Até já antes de hontem a fui visitar, mas não estava em casa... Sabes do que tenho medo? É que ella, n’estes primeiros tempos, por causa da visinhança, como está só, não queira que eu lá vá muito... Que te parece?

— ­Talvez... E onde mora ella?

Em quatro palavras, Damaso explicou a installação de madame. Era muito engraçado, morava no predio do Cruges! A mamã Cruges, havia já annos, alugava aquelle primeiro andar mobilado: o inverno passado estivera lá o Bertonni, o tenor, com a familia. Casa bem arranjada, o Castro Gomes tinha tido dedo...

— ­E para mim, muito commodo, ali ao pé do Gremio... Então não voltas cá acima, a cavaquear com o femeaço? Até logo... Está hoje chic a valer a Gouvarinho! E está a pedir homem! Good-bye.

Defronte de Carlos a condessa de Gouvarinho, no grupo de D. Maria a que se viera juntar a Alvim e Joanninha Villar, não cessava de o chamar com o olhar inquieto, turturando o seu grande leque negro. Mas elle não obedeceu logo, parado ao pé dos degraus da tribuna, accendendo vagamente uma cigarrette, perturbado por todas aquellas palavras do Damaso que lhe deixavam n’alma um sulco luminoso. Agora que a sabia só em Lisboa, vivendo na mesma casa do Cruges, parecia-lhe que já a conhecia, sentia-se muito perto d’ella — ­podendo assim a todo o momento entrar os hombraes da sua porta, pisar os degraus que ella pisava. Na sua imaginação transluziam já possibilidades d’um encontro, alguma palavra trocada, cousas pequeninas, subtis como fios, mas por onde os seus destinos se começariam a prender... E immediatamente veio-lhe a tentação pueril de ir lá, logo n’essa mesma tarde, n’esse instante, gosar como amigo do Cruges o direito de subir a escada d’ella, parar diante da porta d’ella — ­e surprehender uma voz, um som de piano, um rumor qualquer da sua vida.

O olhar da condessa não o deixava. Elle approximou-se, emfim, contrariado: ella ergueu-se logo, deixou o seu grupo, e dando alguns passos com elle pela relva, recomeçou a fallar na ida a Santarem. Carlos, então, muito seccamente, declarou toda essa invenção insensata.

— ­Porque?...

Ora porque! Por tudo. Pelo perigo, pelos desconfortos, pelo ridiculo... Emfim, a ella como mulher ficava-lhe bem ter phantasias pittorescas de romance; mas a elle competia-lhe ter bom senso.

Ella mordia o beiço, com todo o sangue na face. E não via alli bom senso. Via só frieza. Quando ella arriscava tanto, elle podia bem, por uma noite, affrontar os desconfortos da estalagem...

— ­Mas não é isso!...

Então que era? Tinha medo? Não havia mais perigo do que nas idas a casa da titi. Ninguem a podia conhecer, com outra côr de cabello, toda a sorte de véos, disfarçada n’um grande water-proof. Chegavam de noite, entravam para o quarto, d’onde não sahiam mais, servidos apenas pela escosseza. No dia seguinte, no comboio da noite, ella seguia para o Porto, tudo acabava... E n’aquella insistencia ella era o homem, o seductor, com a sua vehemencia de paixão activa, tentando-o, soprando-lhe o desejo; emquanto elle parecia a mulher, hesitante e assustada. E Carlos sentia isto. A sua resistencia a uma noite de amor, prolongando-se assim, ameaçava ser grotesca: ao mesmo tempo o calor de voluptuosidade que emanava d’aquelle seio, arfando junto d’elle e por elle, ia-o amollecendo lentamente. Terminou por a olhar de certo modo; e, como se o desejo se lhe accendesse emfim de repente á curta chamma que faiscava nas pupillas d’ella, negras, humidas, avidas, promettendo mil cousas, disse, um pouco pallido:

— ­Pois bem, perfeitamente... Ámanhã á noite, na estação.

N’esse momento, em redor, romperam exclamações de troça: era um cavallo solitario que chegava, n’um galope pacato, passara a meta sem se apressar, como se descesse uma avenida do Campo Grande n’uma tarde de domingo. E em redor perguntava-se que corrida era aquella d’um cavallo só — ­quando ao longe, como sahindo da claridade loura do sol que descia sobre o rio, appareceu uma pobre pileca branca, empurrando-se, arquejando, n’um esforço doloroso, sob as chicotadas atarantadas d’um jockey de roxo e preto. Quando ella chegou, emfim, já o outro gentleman-rider voltara da meta, a passo, pachorrentamente, — ­e estava conversando com os amigos, encostado á corda da pista.

Todo o mundo ria. E a corrida do Premio d’El-rei terminou assim, grotescamente.

Ainda havia o Premio de Consolação — ­mas agora desapparecera todo o interesse ficticio pelos cavallos. Perante a calma e radiante belleza da tarde, algumas senhoras, imitando a Alvim, tinham descido para a pesagem, cançadas da immobilidade da tribuna. Arranjaram-se mais cadeiras: aqui e além, sobre a relva pisada, formavam-se grupos alegrados por algum vestido claro ou por uma pluma viva de chapéo: e palrava-se, como n’uma sala de inverno, fumando-se familiarmente. Em redor de D. Maria e da Alvim projectava-se um grande pic-nic a Queluz. Alencar e o Gouvarinho discutiam a reforma de instrucção. A horrivel Craben, entre outros diplomatas e moços de binoculo a tiracolo, dava do fundo grosso do papo, opiniões sobre Daudet, que elle achava très agreable. E, quando Carlos emfim abalou, o recinto, esquecidas as corridas, tomava um tom de soirée, no ar claro e fresco da collina, com o murmurio de vozes, um mover de leques, e ao fundo a musica tocando uma valsa de Strauss.

Carlos, depois de procurar muito Craft, encontrou-o no buffete com o Darque, com outros, bebendo mais champagne.

— ­Eu tenho de ir ainda a Lisboa, disse-lhe elle, e vou no phaeton. Abandono torpemente. Você vá para o Ramalhete como poder...

— ­Eu o levo! gritou logo o Vargas, que tinha já a gravata toda desmanchada. Levo-o no dog-cart. Eu me encarrego d’elle... O Craft fica por minha conta... É necessario recibo? Á saude do Craft, inglez cá dos meus... Hurrah!

— ­Hurrah! Hip, hip, hurrah!

D’ahi a pouco, a trote largo no phaeton, Carlos descia o Chiado, dava a volta para a rua de S. Francisco. Ia n’uma perturbação deliciosa e singular, com aquella certeza de que ella estava só na casa do Cruges: o ultimo olhar que ella lhe déra parecia ir adiante d’elle, chamando-o: e um despertar tumultuoso de esperanças sem nome atirava-lhe a alma para o azul.

Quando parou diante do portão — ­alguem, por dentro das janellas d’ella, ía correndo lentamente os stores. Na rua silenciosa cahia já uma sombra de crepusculo. Atirou as redeas ao cocheiro, atravessou o pateo. Nunca viera visitar o Cruges, nunca subira esta escada; e pareceu-lhe horrorosa, com os seus frios degraus de pedra, sem tapete, as paredes nuas e enxovalhadas alvejando tristemente no começo de escuridão. No patamar do primeiro andar parou. Era alli que ella vivia. E ficou olhando, com uma devoção ingenua, para as tres portas pintadas d’azul: a do centro estava inutilisada por um banco comprido de palhinha, e na do lado direito pendia, com uma enorme bola, o cordão da campainha. De dentro não vinha um rumor: — ­e este pesado silencio, juntando-se ao movimento de stores que elle vira fechar-se, parecia cercar as pessoas que alli viviam de solidão e de impenetrabilidade. Uma desconsolação passou-lhe na alma. Se ella agora, só, sem o marido, começasse uma vida reclusa e solitaria? Se elle não tornasse mais a encontrar os seus olhos?

Foi subindo de vagar até ao andar do Cruges. E mal sabia o que havia de dizer ao maestro para explicar aquella visita extranha, deslocada... Foi um allivio quando a criadita lhe veiu dizer que o menino Victorino tinha sahido.

Em baixo, Carlos tomou as redeas, e foi levando lentamente o phaeton até ao largo da Bibliotheca. Depois retrocedeu, a passo. Agora, por traz do store branco, havia uma vaga claridade de luz. Elle olhou-a como se olha uma estrella.

Voltou ao Ramalhete. Craft, coberto de pó, estava-se justamente apeando de uma calecha de praça. Um momento ficaram alli á porta, em quanto Craft, procurando troco para o cocheiro, contava o final das corridas. No Premio de Consolação, um dos cavalleiros tinha cahido, quasi ao pé da meta, sem se magoar: e, por ultimo, já á partida, o Vargas, que ia na sua terceira garrafa de champagne, esmurrara um criado do buffete, com ferocidade.

— ­Assim, disse Craft completando o seu troco, estas corridas foram boas pelo velho principe Shakespereano de que tudo é bom quanto acaba bem.

— ­Um murro, disse Carlos rindo, é com effeito um bello ponto final.

No peristillo, o velho guarda-portão esperava, descoberto, com uma carta na mão para Carlos. Um criado tinha-a trazido, instantes antes de s. ex.ª chegar.

Era uma letra ingleza de mulher, n’um envelope largo, lacrado com um sinete d’armas. Carlos alli mesmo abriu-a: e, logo á primeira linha, teve um movimento tão vivo, de tão bella surpreza, illuminando-se-lhe tanto o rosto, que Craft do lado perguntou sorrindo:

— ­Aventura? Herança?...

Carlos, vermelho, metteu a carta no bolso, e murmurou:

— ­Um bilhete apenas, um doente...

Era apenas um doente, era apenas um bilhete, mas começava assim: — ­«Madame Castro Gomes apresenta os seus respeitos ao sr. Carlos da Maia, e roga-lhe o obsequio...» — ­depois, em duas breves palavras, pedia-lhe para ir ver na manhã seguinte, o mais cedo possivel, uma pessoa de familia, que se achava incommodada.

— ­Bem, eu vou-me vestir, disse Craft... Jantar ás sete e meia, hein?

— ­Sim, o jantar... — ­respondeu Carlos, sem saber o quê, banhado todo n’um sorriso, como em extase.

Correu aos seus aposentos: e junto da janella, sem mesmo tirar o chapéo, leu uma vez mais o bilhete, outra vez ainda, contemplando enlevadamente a forma da letra, procurando voluptuosamente o perfume do papel.

Era datada d’esse mesmo dia á tarde. Assim, quando elle passara defronte da sua porta, já ella a escrevera, já o seu pensamento se demorara n’elle — ­quando mais não fosse senão ao traçar as lettras simples do seu nome. Não era ella que estava doente. Se fosse Rosa, ella não diria tão friamente «uma pessoa de familia.» Era talvez o esplendido preto de carapinha grisalha. Talvez miss Sarah, abençoada fosse ella para sempre, que queria um medico que entendesse inglez... Emfim havia lá uma pessoa n’uma cama, junto da qual ella mesma o conduziria, atravez dos corredores interiores d’aquella casa — ­que havia apenas instantes sentira tão fechada, e como impenetravel para sempre!... E depois este adorado bilhete, este delicioso pedido para ir a sua casa, agora que ella o conhecia, que vira Rosa atirar-lhe um grande adeus — ­tomava uma significação profunda, perturbadora...

Se ella não quizesse comprehender, nem acceitar o distante amor que os seus olhos lhe tinham offerecido claramente, o mais luminosamente que tinham podido, n’esses fugitivos instantes que se tinham cruzado com os d’ella — ­então poderia ter mandado chamar outro medico, um clinico qualquer, um estranho. Mas não: o seu olhar respondera ao d’elle, e ella abria-lhe a sua porta... — ­E o que sentia a esta idéa era uma gratidão ineffavel, um impulso tumultuoso de todo o seu ser a cahir-lhe aos pés, ficar-lhe beijando a orla do vestido, devotamente, eternamente, sem querer mais nada, sem pedir mais nada...

Quando Craft d’alli a pouco desceu, de casaca, fresco, alvo, engommado, correcto — ­achou Carlos, ainda com toda a poeira da estrada, de chapéo na cabeça, passeando o quarto, n’esta agitação radiante.

— ­Você está a faiscar, homem! disse Craft, parando deante d’elle, com as mãos nos bolsos, e contemplando-o um instante do alto do seu resplandecente collarinho. Você flameja!... Você parece que tem uma auréola na nuca!... Você succedeu-lhe o quer que seja de muito bom!

Carlos espreguiçou-se, sorrindo. Depois olhou para Craft um momento, em silencio, encolheu os hombros, e murmurou:

— ­A gente, Craft, nunca sabe se o que lhe succede é, em definitivo, bom ou mau.

— ­Ordinariamente é mau, disse o outro friamente, aproximando-se do espelho a retocar com mais correcção o nó da gravata branca.


EÇA DE QUEIROZ




OS MAIAS



EPISODIOS DA VIDA ROMANTICA





VOLUME II


 


PORTO
Livraria Internacional de Ernesto Chardron
CASA EDITORA
LUGAN & GENELIOUX, Sucessores
1888

I

 

Na manhã seguinte, Carlos, que se erguera cedo, veio a pé do Ramalhete até á rua de S. Francisco, a casa de Madame Gomes. No patamar, onde morria em penumbra a luz distante da claraboia, uma velha de lenço na cabeça, encolhida n’um chalesinho preto, esperava, sentada melancolicamente ao canto do banco de palhinha. A porta aberta mostrava uma parede feia de corredor, forrada de papel amarello. Dentro um relogio ronceiro estava batendo dez horas.

— A senhora já tocou? perguntou Carlos, erguendo o chapéo.

A velha murmurou, d’entre a sombra do lenço que lhe cahia para os olhos, n’um tom cançado e doente:

— Já, sim, meu senhor. Já fizeram o favor de me fallar. O criado, o snr. Domingos, não tarda...

Carlos esperou, passeando lentamente no patamar. Do segundo andar vinha um barulho alegre de crianças brincando; por cima, o moço do Cruges esfregava a escada com estrondo, assobiando desesperadamente o fado. Um longo minuto arrastou-se, depois outro, infindavel. A velha, d’entre a negrura do lenço, deu um suspirosinho abatido. Lá ao fundo um canario rompera a cantar; e então Carlos, impaciente, puxou o cordão da campainha.

Um criado de suissas ruivas, correctamente abotoado n’um jaquetão de flanella, appareceu correndo, com uma travessa na mão, abafada n’um guardanapo; e ao vêr Carlos ficou tão atarantado, bambaleando á porta, que um pouco de molho de assado escorregou, cahiu sobre o soalho.

— Oh snr. D. Carlos Eduardo, faz favor d’entrar!... Ora esta! Tem a bondade d’esperar um instantinho, que eu abro já a sala... Tome lá, snr.ª Augusta, tome lá, olhe não entorne mais! A senhora diz que lá manda logo o vinho do Porto... Desculpe v. exc.ª, snr. D. Carlos... Por aqui, meu senhor...

Correu um reposteiro de reps vermelho, introduziu Carlos n’uma sala alta, espaçosa, com um papel de ramagens azues, e duas varandas para a rua de S. Francisco; e erguendo á pressa os dois transparentes de paninho branco, perguntava a Carlos se s. exc.ª não se lembrava já do Domingos. Quando elle se voltou, risonho, descendo precipitadamente os canhões das mangas, Carlos reconheceu-o pelas suissas ruivas. Era com effeito o Domingos, escudeiro excellente, que no começo do inverno estivera no Ramalhete, e se despedira por birras patrioticas, birras ciumentas, com o cozinheiro francez.

— Não o tinha visto bem, Domingos, disse Carlos. O patamar é um pouco escuro... Lembro-me perfeitamente... E então vossê agora aqui, hein? E está contente?

— Eu parece-me que estou muito contente, meu senhor... O snr. Cruges tambem mora cá por cima...

— Bem sei, bem sei...

— Tenha v. exc.ª a paciencia de esperar um instantinho que eu vou dar parte á snr.ª D. Maria Eduarda...

Maria Eduarda! Era a primeira vez que Carlos ouvia o nome d’ella; e pareceu-lhe perfeito, condizendo bem com a sua belleza serena. Maria Eduarda, Carlos Eduardo... Havia uma similitude nos seus nomes. Quem sabe se não presagiava a concordancia dos seus destinos!

Domingos, no entanto, já á porta da sala, com a mão no reposteiro, parou ainda, para dizer n’um tom de confidencia e sorrindo:

— É a governante ingleza que está doente...

— Ah! é a governante?

— Sim, meu senhor, tem uma febresita desde hontem, peso no peito...

— Ah!...

O Domingos deu outro movimento lento ao reposteiro, sem se apressar, contemplando Carlos com admiração:

— E o avôsinho de v. exc.ª passa bem?

— Obrigado, Domingos, passa bem.

— Aquillo é que é um grande senhor!... Não ha, não ha outro assim em Lisboa!

— Obrigado, Domingos, obrigado...

Quando elle finalmente sahiu, Carlos, tirando as luvas, deu uma volta curiosa e lenta pela sala. O soalho fôra esteirado de novo. Ao pé da porta havia um piano antigo de cauda, coberto com um pano alvadio; sobre uma estante ao lado, cheia de partituras, de musicas, de jornaes illustrados, pousava um vaso do Japão onde murchavam tres bellos lirios brancos; todas as cadeiras eram forradas de reps vermelho; e aos pés do sofá estirava-se uma velha pelle de tigre. Como no Hotel Central, esta intallação summaria de casa alugada recebera retoques de conforto e de gosto: cortinas novas de cretone, combinando com o papel azul da parede, tinham substituido as classicas bambinellas de cassa: um pequeno contador arabe, que Carlos se lembrava de ter visto havia dias no tio Abrahão, viera encher um lado mais desguarnecido da parede: o tapete de pellucia d’uma mesa oval, collocada ao centro, desapparecia sob lindas encadernações de livros, albuns, duas taças japonezas de bronze, um cesto para flôres de porcelana de Dresde, objectos delicados d’arte que não pertenciam decerto á mãi Cruges. E parecia errar alli, acariciando a ordem das coisas e marcando-as com um encanto particular, aquelle indefinido perfume que Carlos já sentira nos quartos do Hotel Central, e em que dominava o jasmim.

Mas o que attrahiu Carlos foi um bonito biombo de linho crú, com ramalhetes bordados, desdobrado ao pé da janella, fazendo um recanto mais resguardado e mais intimo. Havia lá uma cadeirinha baixa de setim escarlate, uma grande almofada para os pés, uma mesa de costura com todo um trabalho de mulher interrompido, numeros de jornaes de modas, um bordado enrolado, mólhos de lã de côres transbordando de um açafate. E, confortavelmente enroscada no macio da cadeira, achava-se ahi, n’esse momento, a famosa cadellinha escosseza, que tantas vezes passára nos sonhos de Carlos, trotando ligeiramente atraz de uma radiante figura pelo Aterro fóra, ou aninhada e adormecida n’um doce regaço...

— Bonjour, Mademoiselle, disse-lhe elle, baixinho, querendo captar-lhe as sympathias.

A cadellinha erguera-se logo bruscamente na cadeira, d’orelhas fitas, dardejando para aquelle estranho, por entre as repas esguedelhadas, dois bellos olhos de azeviche, desconfiados, d’uma penetração quasi humana. Um instante Carlos receou que ella rompesse a ladrar. Mas a cadellinha de repente namorára-se d’elle, deitada já na cadeira, de patas ao ar, descomposta, abandonando o ventresinho ás suas caricias. Carlos ia coçal-a e amimal-a, quando um passo leve pizou a esteira. Voltou-se, viu Maria Eduarda diante de si.

Foi como uma inesperada apparição — e vergou profundamente os hombros, menos a saudal-a, que a esconder a tumultuosa onda de sangue que sentia abrazar-lhe o rosto. Ella, com um vestido simples e justo de sarja preta, um collarinho direito de homem, um botão de rosa e duas folhas verdes no peito, alta e branca, sentou-se logo junto da mesa oval, acabando de desdobrar um pequeno lenço de renda. Obedecendo ao seu gesto risonho, Carlos pousou-se embaraçadamente á borda do sofá de reps. E depois d’um instante de silencio, que lhe pareceu profundo, quasi solemne, a voz de Maria Eduarda ergueu-se, uma voz rica e lenta, d’um tom d’ouro que acariciava.

Através do seu enleio, Carlos percebia vagamente que ella lhe agradecia os cuidados que elle tivera com Rosa: e, de cada vez que o seu olhar se demorava n’ella um instante mais, descobria logo um encanto novo e outra fórma da sua perfeição. Os cabellos não eram louros, como julgára de longe á claridade do sol, mas de dois tons, castanho-claro e castanho-escuro, espessos e ondeando ligeiramente sobre a testa. Na grande luz escura dos seus olhos havia ao mesmo tempo alguma coisa de muito grave e de muito dôce. Por um geito familiar cruzava ás vezes, ao fallar, as mãos sobre os joelhos. E através da manga justa de sarja, terminando n’um punho branco, elle sentia a belleza, a brancura, o macio, quasi o calor dos seus braços.

Ella calára-se. Carlos, ao levantar a voz, sentiu outra vez o sangue abrazar-lhe o rosto. E, apesar de saber já pelo Domingos que a doente era a governante, só achou, na sua perturbação, esta pergunta timida:

— Não é sua filha que está doente, minha senhora?

— Oh não! graças a Deus!

E Maria Eduarda contou-lhe, justamente como o Domingos, que a governante ingleza havia dois dias se achava incommodada, com difficuldade de respirar, tosse, uma ponta de febre...

— Imaginámos ao principio que era uma constipação passageira; mas hontem á tarde estava peor, e estou agora impaciente que a veja...

Ergueu-se, foi puxar um enorme cordão de campainha que pendia ao lado do piano. O seu cabello por traz, repuxado para o alto da cabeça, deixava uma pennugem d’ouro frisar-se delicadamente sobre a brancura lactea do pescoço. Entre aquelles moveis de reps, sob o tecto banal d’estuque enxovalhado, toda a sua pessoa parecia a Carlos mais radiante, d’uma belleza mais nobre, e quasi inaccessivel; e pensava que nunca alli ousaria olhal-a tão francamente, com uma tão clara adoração, como quando a encontrava na rua.

— Que linda cadellinha v. exc.ª tem, minha senhora! disse elle, quando Maria Eduarda se tornou a sentar, e pondo já n’estas palavras simples, ditas a sorrir, um accento de ternura.

Ella sorriu tambem com um lindo sorriso, que lhe fazia uma covinha no queixo, dava uma doçura mais mimosa ás suas feições sérias. E alegremente, batendo as palmas, chamando para dentro do biombo:

Niniche! estão-te a fazer elogios, vem agradecer!

Niniche appareceu a bocejar. Carlos achava lindo este nome de Niniche. E era curioso, tinha tido tambem uma galguinha italiana que se chamava Niniche...

N’esse instante a criada entrou — a rapariga magra e sardenta, d’olhar petulante, que Carlos vira já no Hotel Central.

— Melanie vai-lhe ensinar o quarto de miss Sarah, disse Maria Eduarda. Eu não o acompanho, porque ella é tão timida, tem tanto escrupulo em incommodar, que diante de mim é capaz de negar tudo, dizer que não tem nada...

— Perfeitamente, perfeitamente, murmurava Carlos, sorrindo, n’um encanto de tudo.

E pareceu-lhe então que no olhar d’ella alguma coisa brilhára, fugira para elle, de mais vivo, de mais dôce.

Com o seu chapéo na mão, pisando familiarmente aquelle corredor intimo, surprehendendo detalhes de vida domestica, Carlos sentia como a alegria d’uma posse. Por uma porta meio aberta pôde entrevêr uma banheira, e ao lado dependurados grandes roupões turcos de banho. Adiante, sobre uma mesa, estavam alinhadas, e como desencaixotadas recentemente, garrafas d’aguas mineraes de Saint-Galmier e de Vals. Elle deduzia logo d’estas coisas tão simples, tão banaes, evidencias de vida delicada.

Melanie correu um reposteiro de linho crú, fêl-o entrar n’um quarto claro e fresco: e ahi foi encontrar a pobre miss Sarah n’um leitosinho de ferro, sentada, com um laço de sêda azul ao pescoço, e os bandós tão lisos, tão acamados pela escova, como se fosse sahir n’um domingo para a capella presbyteriana. Na mesinha de cabeceira os seus jornaes inglezes estavam escrupulosamente dobrados, junto d’um copo com duas bellas rosas; e tudo no quarto resplandecia de severo arranjo, desde os retratos da familia real d’Inglaterra, expostos sobre a toalha de renda que cobria a commoda, até ás suas botinas bem engraxadas, classificadas, perfiladas n’uma prateleira de pinho.

Apenas Carlos se sentou, ella immediatamente, com duas rosetas de vergonha na face, entre frouxos de tosse, declarou que não tinha nada. Era a senhora, tão boa, tão cautelosa, que a forçára a metter-se na cama... E para ella era um desgosto vêr-se alli ociosa, inutil, agora que Madame estava tão só, n’uma casa sem jardim. Onde havia a menina de brincar? Quem havia de sahir com ella? Ah! Era uma prisão para Madame!...

Carlos consolava-a, tomando-lhe o pulso. Depois, quando elle se ergueu para a auscultar, a pobre miss cobriu-se toda d’um rubor afflicto, apertando mais a roupa contra o peito, querendo saber se era absolutamente necessario... Sim, decerto, era necessario... Achou-lhe o pulmão direito um pouco tomado; e, em quanto a agasalhava, fez-lhe algumas perguntas sobre a sua familia. Ella contou que era de York, filha de um clergyman, e tinha quatorze irmãos: os rapazes estavam na Nova Zelandia, e todos eram d’uma robustez de athletas. Ella sahira a mais fraca; tanto que o pai, vendo que ella aos dezesete annos pesava só oito arrobas, ensinou-lhe logo latim, destinando-a para governante.

Em todo o caso, dizia Carlos, nunca houvera na sua familia doenças de peito? Ella sorriu. Oh! nunca! A mamã ainda vivia. O papá, já muito velho, morrera do couce de uma egua.

Carlos, no entanto, já de pé, com o chapéo na mão, continuava a observal-a, reflectindo. Então, de repente, sem motivo, ella enterneceu-se, os seus olhos pequeninos ennevoaram-se de agua. E quando ouviu que eram precisos tantos agasalhos, que teria de estar alli no quarto ainda quinze dias, perturbou-se mais, duas lagrimasinhas timidas quasi lhe fugiram das pestanas. Carlos terminou por lhe afagar paternalmente a mão.

Oh! Thank you sir! murmurou ella, commovida de todo.

Na sala, Carlos veio encontrar Maria Eduarda sentada junto da mesa, arranjando ramos, com uma grande cesta de flôres pousada ao lado d’uma cadeira, e o regaço cheio de cravos. Uma bella restea de sol, estendida na esteira, vinha morrer-lhe aos pés; e Niniche, deitada alli, reluzia como se fosse feita de fios de prata. Na rua, sob as janellas, um realejo ia tocando, na alegria da linda manhã de sol, a walsa da Madame Angot. Pelo andar de cima tinham recomeçado as correrias de crianças brincando.

— Então? exclamou ella, voltando-se logo, com um mólho de cravos na mão.

Carlos tranquillisou-a. A pobre miss Sarah tinha uma bronchite ligeira, com pouca febre. Em todo o caso necessitava resguardo, toda a cautela...

— Certamente! E ha de tomar algum remedio, não é verdade?

Atirou logo o resto dos cravos do regaço para o cesto, foi abrir uma secretariasinha de pau preto collocada entre as janellas. Ella mesmo arranjou o papel para elle receitar, metteu um bico novo na penna. E estes cuidados perturbavam Carlos como caricias.

— Oh minha senhora!... murmurava elle, um lapis basta...

Quando se sentou, os seus olhos demoraram-se com uma curiosidade enternecida n’esses objectos familiares onde pousava a doçura das mãos d’ella — um sinete d’agatha sobre um velho livro de contas, uma faca de marfim com monogramma de prata ao lado d’uma taçasinha de Saxe cheia d’estampilhas; e em tudo havia a ordem clara que tão bem condizia com o seu puro perfil. Na rua o realejo calára-se, por cima do tecto já não cavallavam as crianças. E, em quanto escrevia devagar, Carlos sentia-a abafar sobre a esteira o som dos seus passos, mover os seus vasos mais de leve.

— Que bonitas flôres v. exc.ª tem, minha senhora! disse elle, voltando a cabeça, em quanto ia seccando distrahida e lentamente a receita.

De pé, junto do contador arabe, onde pousava um vaso amarello da India, ella arranjava folhas em volta de duas rosas.

— Dão frescura, disse ella. Mas imaginei que em Lisboa havia mais bonitas flôres. Não ha nada que se compare ás flôres de França... Pois não é verdade?

Elle não respondeu logo, esquecido a olhar para ella, pensando na doçura de ficar alli eternamente n’aquella sala de reps vermelho, cheia de claridade e cheia de silencio, a vêl-a pôr folhas verdes em torno de pés de rosa!

— Em Cintra ha lindas flôres, murmurou por fim.

— Oh, Cintra é um encanto! disse ella, sem erguer os olhos do seu ramo. Vale a pena vir a Portugal só por causa de Cintra.

N’esse momento, o reposteiro de reps esvoaçou, e Rosa entrou de dentro, correndo, vestida de branco, com meiasinhas de sêda preta, uma onda negra de cabello a bater-lhe as costas, e trazendo ao collo a sua grande boneca. Ao vêr Carlos parou bruscamente, com os bellos olhos muito abertos para elle, toda encantada, e apertando mais nos braços Cri-cri que vinha em camisa.

— Não conheces? perguntou-lhe a mãi, indo sentar-se outra vez diante do seu cesto de flôres.

Rosa começava já a sorrir, o seu rostosinho cobria-se d’uma linda côr. E assim, toda d’alvo e negro como uma andorinha, tinha um encanto raro, com o seu dôce mimo de fórma, a sua graça ligeira, os seus grandes olhos cheios d’azul, e um ruborzinho de mulher na face. Quando Carlos se adiantou com a mão estendida para renovar o antigo conhecimento — ella ergueu-se na ponta dos pés, estendeu-lhe vivamente a boquinha, fresca como um botão de rosa. Carlos ousou apenas tocar-lhe de leve na testa.

Depois quiz apertar a mão á sua velha amiga Cri-cri. E então, de repente, Rosa recordou-se do que a trouxera alli a correr.

— É o robe-de-chambre, mamã! Não posso achar o robe-de-chambre de Cri-cri... Ainda a não pude vestir... Dize, sabes onde é que está o robe-de-chambre?

— Vejam esta desarranjada! murmurava a mãi olhando-a com um sorriso lento e terno. Se Cri-cri tem uma commoda particular, o seu guarda-vestidos, não se lhe deviam perder as coisas... Pois não é verdade, snr. Carlos da Maia?

Elle, ainda com a sua receita na mão, sorria tambem, sem dizer nada, todo no enternecimento d’aquella intimidade em que se sentia penetrar dôcemente.

A pequena então veio encostar-se á mãi, roçando-se pelo seu braço, com uma vozinha languida, lenta, e de mimo:

— Anda, dize... Não sejas má... Anda... Onde está o robe-de-chambre? Dize...

Levemente, com a ponta dos dedos, Maria Eduarda arranjou-lhe o pequenino laço de sêda branca que lhe prendia no alto o cabello. Depois ficou mais séria:

— Está bem, está quieta... Tu sabes que não sou eu que trato dos arranjos da Cri-cri. Devias ter mais ordem... Vai perguntar a Melanie.

E Rosa obedeceu logo, séria tambem, comprimentando agora Carlos ao passar, com um arzinho senhoril:

— Bonjour, Monsieur...

— É encantadora! murmurou elle.

A mãi sorriu. Tinha acabado de compôr o seu ramo de cravos; — e immediatamente attendeu a Carlos, que pousára a receita sobre a mesa, e sem se apressar, installando-se n’uma poltrona, lhe foi fallando da dieta que devia ter miss Sarah, das colheres de xarope de codeina que se lhe deviam dar de tres em tres horas...

— Pobre Sarah! dizia ella. E é curioso, não é verdade? Veio com o presentimento, quasi com a certeza, que havia de adoecer em Portugal...

— Então vem a detestar Portugal!

— Oh! tem-lhe já horror! Acha muito calor, por toda a parte maus cheiros, a gente hedionda... Tem medo de ser insultada na rua... Emfim é infelicissima, está ardendo por se ir embora...

Carlos ria d’aquellas antipathias saxonias. De resto em muitas coisas a boa miss Sarah tinha talvez razão...

— E v. exc.ª tem-se dado bem em Portugal, minha senhora?

Ella encolheu os hombros, indecisa.

— Sim... Devo dar-me bem... É o meu paiz

O seu paiz!... E elle que a julgava brazileira!

— Não, sou portugueza.

E, durante um momento, houve um silencio. Ella tomára de sobre a mesa, abria lentamente um grande leque negro pintado de flôres vermelhas. E Carlos sentia, sem saber porque, uma doçura nova penetrar-lhe no coração. Depois ella fallou da sua viagem que fôra muito agradavel; adorava andar no mar; tinha sido um encanto a manhã da chegada a Lisboa, com um céo azul-ferrete, o mar todo azul tambem, e já um calorzinho do clima dôce... Mas depois, apenas desembarcados, tudo correra desagradavelmente. Tinham ficado mal alojados no Central. Niniche, uma noite, assustára-os muito com uma indigestão. Em seguida no Porto viera aquelle desastre...

— Sim, disse Carlos, o marido de v. exc.ª, na Praça Nova...

Ella pareceu surprehendida. Como sabia elle? Ah! sim, sabia de certo pelo Damaso...

— São muito amigos, creio eu.

Depois d’uma leve hesitação, que ella comprehendeu, Carlos murmurou:

— Sim... O Damaso vai bastante ao Ramalhete... É de resto um rapaz que eu conheço apenas ha mezes...

Ella abriu os olhos, pasmada.

— O Damaso? Mas elle disse-me que se conheciam desde pequeninos, que eram até parentes...

Carlos encolheu simplesmente os hombros, sorrindo.

— É uma bella illusão... E se isso o faz feliz!...

Ella sorriu tambem, encolhendo tambem ligeiramente os hombros.

— E v. exc.ª, minha senhora, continuou logo Carlos não querendo fallar mais do Damaso, como acha Lisboa?

Gostava bastante, achava muito bonito este tom azul e branco de cidade meridional... Mas, havia tão poucos confortos!... A vida tinha aqui um ar que ella não pudera perceber ainda — se era de simplicidade ou de pobreza.

— Simplicidade, minha senhora. Temos a simplicidade dos selvagens...

Ella riu.

— Não direi isso. Mas supponho que são como os gregos: contentam-se em comer uma azeitona, olhando o céo que é bonito...

Isto pareceu adoravel a Carlos, todo o seu coração fugiu para ella.

Maria Eduarda queixava-se sobretudo das casas, tão faltas de commodidade, tão despidas de gosto, tão desleixadas. Aquella em que vivia fazia a sua desgraça. A cozinha era atroz, as portas não fechavam. Na sala de jantar havia sobre a parede umas pinturas de barquinhos e collinas que lhe tiravam o appetite...

— Além d’isso, acrescentou, é um horror não ter um quintal, um jardim, onde a pequena possa correr, ir brincar...

— Não é facil encontrar assim uma casa nas condições d’esta e com jardim, disse Carlos.

Deu um olhar ás paredes, ao estuque enxovalhado do tecto — e lembrou-lhe de repente a quinta do Craft, com a sua vista de rio, o ar largo, as frescas ruas de acacias.

Felizmente, Maria Eduarda tomára a casa apenas ao mez, e estava pensando em ir passar á beira-mar o tempo que tivesse de ficar ainda em Portugal.

— De resto, disse ella, foi o que me aconselhou o meu medico em Paris, o dr. Chaplain.

O dr. Chaplain? Justamente, Carlos conhecia muito o dr. Chaplain. Ouvira-lhe as lições, visitára-o até intimamente na sua propriedade de Maisonnettes, ao pé de Saint-Germain. Era um grande mestre, era um espirito bem superior!

— E tão bom coração! disse ella com um claro sorriso, um olhar que brilhou.

E este sentimento commum pareceu de repente aproximal-os mais dôcemente: cada um n’esse instante adorou o dr. Chaplain: e continuaram ainda fallando d’elle prolongadamente, gozando, através d’essa trivial sympathia por um velho clinico, a nascente concordancia dos seus corações.

O bom dr. Chaplain! Que physionomia tão amavel, tão fina!... Sempre com o seu barretinho de sêda... E sempre com a sua grande flôr na casaca... De resto, o pratico maior que sahira da geração de Trousseau.

— E Madame Chaplain, acrescentou Carlos, é uma pessoa encantadora... Não é verdade?

Mas Maria Eduarda não conhecia Madame Chaplain.

Dentro o relogio ronceiro começára a bater onze horas. E Carlos então ergueu-se, findando a sua fugitiva, inolvidavel, deliciosa visita...

Quando ella lhe estendeu a mão, um pouco de sangue subiu-lhe de novo á face ao tocar aquella palma tão macia e tão fresca. Pediu os seus comprimentos para Mademoiselle Rosa. Depois, á porta, já com o reposteiro na mão, voltou-se ainda, uma vez mais, n’uma ultima saudação, a receber o olhar suave com que ella o seguia...

— Até ámanhã, está claro! exclamou ella de repente, com o seu lindo sorriso.

— Até ámanhã, decerto!

O Domingos estava já no patamar, de casaca, risonho e bem penteado.

— É coisa de cuidado, meu senhor?

— Não é nada, Domingos... Estimei vêl-o por aqui.

— E eu muito a v. exc.ª. Até ámanhã, meu senhor.

— Até ámanhã.

Niniche appareceu tambem no patamar. Elle abaixou-se ternamente a afagal-a, e disse-lhe tambem, radiante:

— Até ámanhã, Niniche!

Até ámanhã! Voltando para o Ramalhete, era esta a unica idéa que elle sentia distinctamente através da nevoa luminosa que lhe afogava a alma. Agora o seu dia estava findo: — mas, passadas as longas horas, terminada a longa noite, elle penetraria outra vez n’aquella sala de reps vermelho, onde ella o esperava, com o mesmo vestido de sarja, enrolando ainda folhas verdes em torno de pés de rosa...

Pelo Aterro, por entre a poeira de verão e o ruido das carroças, o que elle via era essa sala, esteirada de novo, fresca, silenciosa e clara: por vezes uma phrase que ella dissera cantava-lhe na memoria, com o tom d’ouro da sua voz; ou luziam-lhe diante dos olhos as pedras dos seus anneis entremettidos pelos pêllos de Niniche. Parecia-lhe mais linda, agora que conhecia o seu sorriso d’uma graça tão delicada; era cheia de inteligencia, era cheia de gosto; e a pobre velha á porta, esse doente a quem ella mandava vinho do Porto, revelavam a sua bondade... E o que o encantava é que não tornaria mais a farejar a cidade como um rafeiro perdido, á busca dos seus olhos negros; agora bastava-lhe subir alguns degraus, abria-se diante d’elle a porta da sua casa; e tudo de repente na vida parecia tornar-se facil, equilibrado, sem duvidas e sem impaciencias.

No seu quarto, no Ramalhete, Baptista entregou-lhe uma carta.

— Trouxe-a a escosseza, já v. exc.ª tinha sahido.

Era da Gouvarinho! Meia folha de papel, tendo simplesmente escripto a lapis — all rigth. Carlos amarrotou-a, furioso. A Gouvarinho!... Não se tornára quasi a lembrar d’ella, desde a vespera, no radiante tumulto em que andára o seu coração. E era no comboio d’essa noite, d’ahi a horas, que deviam ambos partir para Santarem, a amarem-se, escondidos n’uma estalagem! Elle promettera-lh’o, a sério; já ella se preparára decerto, com a atroz cabelleira postiça, com o water-proof de grande roda; tudo estava all rigth... Achou-a n’esse instante ridicula, reles, estupida... Oh, era claro como a luz que não ia, que nunca iria, jámais! Mas tinha d’apparecer na estação de Santa Apolonia, balbuciar uma desculpa tosca, assistir á sua desconsolação, vêr-lhe os olhos marejados de lagrimas. Que massada!... Teve-lhe odio.

Quando chegou á mesa do almoço Craft e Affonso, já sentados, fallavam justamente do Gouvarinho, e dos artigos que elle continuava gravemente a publicar no Jornal do Commercio.

— Que besta essa! exclamou Carlos n’uma voz que sibilava, desabafando sobre a litteratura politica do marido a colera que lhe davam as importunidades amorosas da mulher.

Affonso e Craft olharam-n’o, pasmados de tanta violencia. E Craft censurou-lhe a ingratidão. Porque, realmente, não havia em toda a terra um enthusiasmo como o que aquelle desventuroso homem d’estado tinha por Carlos...

— V. exc.ª não faz idéa, snr. Affonso da Maia. É um culto. É uma idolatria!

Carlos encolhia os hombros, impaciente. E Affonso, já bem disposto para com o homem que assim admirava tão prodigamente o seu neto, murmurou com bondade:

— Coitado, supponho que é inoffensivo...

Craft fez uma ovação ao velho:

Inoffensivo! Admiravel, snr. Affonso da Maia! Inoffensivo, applicado a um homem d’estado, a um par, a um ministro, a um legislador, é um achado! E é com effeito o que elle é, inoffensivo... E é o que elles são...

— Chablis? murmurou o escudeiro.

— Não, tomo chá.

E acrescentou:

— Aquelle champagne que hontem bebemos nas corridas, por patriotismo, arrasou-me... Tenho de me pôr uma semana a regimen de leite.

Então fallou-se ainda das corridas, dos ganhos de Carlos, do Clifford, e do véo azul do Damaso.

— Ora quem estava hontem muito bem vestida era a Gouvarinho, disse Craft remexendo o seu chá. Ficava-lhe admiravelmente aquelle branco creme, tocado de tons negros. Uma verdadeira toilette de corridas... C’était un œillet blanc panaché de noir... Vossê não achou, Carlos?

— Sim, rosnou Carlos, estava bem.

Outra vez a Gouvarinho! Parecia-lhe agora que não haveria na sua vida conversa em que não surgisse a Gouvarinho, e que não haveria caminho na sua vida que o não atravancasse a Gouvarinho! E alli mesmo, á mesa, decidiu comsigo não a tornar a vêr, escrever-lhe um bilhete curto, polido, recusando-se a ir a Santarem, sem razões...

Mas no seu quarto, diante da folha de papel, fumou uma longa cigarrette, sem achar phrase que não fosse pueril ou brutal. Nem tinha a sympathia precisa para lhe dar o banal tratamento de querida. Vinha-lhe até por ella uma indefinida repulsão physica: devia ser intoleravel toda uma noite o seu cheiro exagerado de verbena; — e lembrava-se que aquella pelle do seu pescoço, que se lhe afigurava outr’ora um setim, tinha um tom pegajoso, um tom amarellado, para além da linha de pós d’arroz. Decidiu não lhe escrever. Iria á noite a Santa Apolonia, e no momento do comboio partir correria á portinhola, a balbuciar fugitivamente uma desculpa; não lhe daria tempo de choramigar, nem de recriminar; um rapido aperto de mão, e adeus, para nunca mais...

Á noite, porém, á hora de ir á estação, que sacrificio em se arrancar aos confortos da sua poltrona, e do seu charuto!... Atirou-se para o coupé desesperado, maldizendo essa tarde no boudoir azul em que, por causa d’uma rosa e d’um certo vestido côr de folha morta que lhe ficava bem, elle se achára cahido com ella n’um sofá...

Ao chegar a Santa Apolonia faltavam, para a partida do expresso, dois minutos. Precipitou-se para a extremidade da sala, já quasi vazia áquella hora, a comprar uma admissão; e ainda ahi esperou uma eternidade, vendo dentro do postigo duas mãos lentas e molles arranjar laboriosamente os patacos d’um troco.

Penetrava emfim na sala d’espera — quando esbarrou com o Damaso, de chapéo desabado e saccola de viagem a tiracollo. Damaso agarrou-lhe as mãos, enternecido:

— Ó menino! pois tiveste o incommodo?... E como soubeste tu que eu partia?

Carlos não o desilludiu, balbuciando que lh’o dissera o Taveira, que encontrára o Taveira...

— Pois eu estava mais longe d’uma d’estas! exclamou o Damaso. Esta manhã, muito regalado na cama, quando me vem o telegramma... Fiquei furioso! Isto é, imagina tu como eu fiquei, um desgosto assim!...

Foi então que Carlos reparou que elle estava carregado de luto, com fumo no chapéo, luvas pretas, polainas pretas, barra preta no lenço... Murmurou, embaraçado:

— O Taveira disse-me que ias, mas não me disse mais nada... Morreu-te alguem?

— Meu tio Guimarães.

— O communista? o de Paris?

— Não, o irmão d’elle, o mais velho, o de Penafiel... Espera ahi que eu volto já, vou alli ao café encher o frasco de cognac. Com a afflicção esquecia-me o cognac...

Ainda estavam chegando passageiros, esbaforidos, de guarda-pó, com chapeleiras na mão. Os guardas rolavam pachorrentamente as bagagens. D’uma portinhola, onde se exhibia um cavalheiro barrigudo, com um bonet bordado a retroz, pendia todo um cacho d’amigos politicos, respeitosamente e em silencio. A um canto uma senhora soluçava por baixo do véo.

Carlos, vendo um wagon com a papeleta de reservado, imaginou lá a condessa. Um guarda precipitou-se, furioso, como se visse a profanação d’um santuario. Que queria elle, que queria elle d’alli? Não sabia que era o reservado do snr. Carneiro?

— Não sabia.

— Perguntasse, devia saber! ficou o outro a resmungar, ainda tremulo.

Carlos correu ainda outros wagons, onde a gente se apinhava, atabafadamente, na amontoação dos embrulhos; n’um, dois sujeitos, a proposito de lugares, tratavam-se de malcriados; adiante, uma criança esperneava no collo da ama, aos gritos.

— Ó menino, quem diabo andas tu a procurar? exclamou Damaso alegremente, surgindo por traz d’elle, e passando-lhe o braço pela cinta.

— Ninguem... Imaginei que tinha visto o marquez.

Immediatamente Damaso queixou-se d’aquella lúgubre massada de ter d’ir a Penafiel!

— E então agora que eu precisava tanto estar em Lisboa! Que tenho andado com uma sorte para mulheres, menino!... Uma sorte damnada!

Uma sineta badalou. Damaso deu logo um abraço terno a Carlos, saltou para o seu wagon, enterrou na cabeça um barretinho de sêda — e depois debruçado da portinhola continuou ainda as confidencias. O que mais o contrariava era deixar aquelle arranjinho da rua de S. Francisco. Que ferro! agora que aquillo ia tão bem, o gajo no Brazil, e ella alli, á mão, a dois passos do Gremio!...

Carlos mal o escutava, distrahido, olhando o grande relogio transparente. De repente Damaso, á portinhola, deu um salto de surpreza:

— Olha os Gouvarinhos!

Carlos deu um salto tambem. O conde, de côco de viagem, de paletot alvadio, sem se apressar, como competia a um director da Companhia, vinha conversando com um empregado superior da estação, agaloado de ouro, que se encarregára da chapeleira de papelão de s. exc.ª E a condessa, com um rico guarda-pó de foulard côr de castanho, um véo cinzento que lhe cobria a face e o chapéo, seguia atraz, com a criada escosseza, trazendo na mão um ramo de rosas.

Carlos correu para elles, foi todo um assombro.

— Por aqui, Maia?

— De viagem, conde?

É verdade. Decidira acompanhar a condessa ao Porto, aos annos do papá... Resolução da ultima hora, quasi iam perdendo o comboio.

— Então temol-o por companheiro, Maia? Teremos esse grande prazer, Maia?

Carlos contou rapidamente que viera apenas apertar a mão ao pobre Damaso, de jornada para Penafiel, por causa da morte do tio.

Debruçado da portinhola, com as mãos de fóra calçadas de negro, o pobre Damaso estava saudando a senhora condessa, gravemente, funebremente. E o bom Gouvarinho não quiz deixar de lhe ir dar logo o seu shake-hands e o seu pezame.

Sósinho n’esse curto instante com a condessa, Carlos murmurou apenas:

— Que ferro!

— Este maldito homem! exclamou ella, entre dentes, com um olhar que fuzilou através do véo. Tudo tão bem arranjado, e á ultima hora teima em vir!...

Carlos acompanhou-os até ao reservado, n’um outro wagon que se estivera mettendo de novo para s. exc.ª A condessa tomou o lugar do canto junto da portinhola. E como o conde, n’um tom de polidez acida, a aconselhava a que se sentasse antes com o rosto para a machina, ella teve um gesto de aborrecimento, atirou o ramo para o lado desabridamente, enterrou-se com mais força na almofada; e um duro olhar de colera passou entre ambos. Carlos, embaraçado, perguntava:

— Então vão com demora?

O conde respondeu, sorrindo, disfarçando o seu mau humor:

— Sim, talvez duas semanas, umas pequeninas ferias.

— Tres dias, o mais, replicou ella n’uma voz fria e afiada como uma navalha.

O conde não respondeu, livido.

Todas as portinholas agora estavam fechadas, um silencio cahira sobre a plataforma. O apito da machina varou o ar; e o comprido trem, n’um ruido secco de freios retesados, começou a rolar, com gente ás portinholas, que ainda se debruçava, estendendo a mão para um ultimo aperto. Aqui e além esvoaçava um lenço branco. O olhar da condessa para o lado de Carlos teve a doçura de um beijo, o Damaso gritou saudades para o Ramalhete. O compartimento do correio resvalou, alumiado; e com outro dilacerante silvo o comboio mergulhou na noite...

Carlos, só, dentro do coupé, voltando á Baixa, sentia uma alegria triumphante com aquella partida da condessa, e a inesperada jornada do Damaso. Era como uma dispersão providencial de todos os importunos: e assim se fazia em torno da rua de S. Francisco uma solidão — com todos os seus encantos, e todas as suas cumplicidades.

No caes do Sodré deixou a carruagem, subiu a pé pelo Ferregial, veio passar diante das janellas na rua de S. Francisco. Só pôde vêr uma vaga tira de claridade entre as portadas meio cerradas. Mas isto bastava-lhe. Podia agora imaginar com precisão o serão calmo que ella estava passando na larga sala de reps vermelho. Sabia o nome dos livros que ella lia, e as partituras que tinha sobre o piano; e as flôres que espalhavam alli o seu aroma vira-as elle arranjar n’essa manhã. Poria ella um instante o seu pensamento n’elle? Decerto; a doença em casa forçava-a a lembrar as horas do remedio, as explicações que elle dera, e o som da sua voz; e fallando com miss Sarah pronunciaria decerto o seu nome. Duas vezes percorreu a rua de S. Francisco; e recolheu para casa, sob a noite estrellada, devagar, ruminando a doçura d’aquelle grande amor.

Então todos os dias, durante semanas, teve essa hora deliciosa, esplendida, perfeita, «a visita á ingleza».

Saltava do leito, cantando como um canario, e penetrava no seu dia como n’uma acção triumphal. O correio chegava; e invariavelmente lhe trazia uma carta da Gouvarinho, tres folhas de papel d’onde cahia sempre alguma pequena flôr meio murcha. Elle deixava ficar a flôr no tapete: e mal podia dizer o que havia n’aquellas longas linhas cruzadas. Sabia apenas vagamente que, tres dias depois d’ella chegar ao Porto, o pai, o velho Thompson, tivera uma apoplexia. Ella lá estava, d’enfermeira. Depois, levando duas ou tres bellas flôres do jardim embrulhadas n’um papel de sêda, partia para a rua de S. Francisco, sempre no seu coupé — porque o tempo mudára, e os dias seguiam-se, tristonhos, cheios de sudoeste e de chuva.

Á porta o Domingos acolhia-o com um sorriso cada vez mais enternecido. Niniche corria de dentro, a pular d’amizade; elle erguia-a nos braços para a beijar. Esperava um instante na sala, de pé, saudando com o olhar os moveis, os ramos, a clara ordem das coisas; ia examinar no piano a musica que ella tocára essa manhã, ou o livro que deixára interrompido, com a faca de marfim entre as folhas.

Ella entrava. O seu sorriso ao dar-lhe os bons dias, a sua voz d’ouro tinham cada dia para Carlos um encanto novo e mais penetrante. Trazia ordinariamente um vestido escuro e simples: apenas ás vezes uma gravata de rica renda antiga, ou um cinto cuja fivella era cravejada de pedras, avivavam este traje sobrio, quasi severo, que parecia a Carlos o mais bello, e como uma expressão do seu espirito.

Começavam por fallar de miss Sarah, d’aquelle tempo agreste e humido que lhe era tão desfavoravel. Conversando, ainda de pé, ella dava aqui e além um arranjo melhor a um livro, ou ia mover uma cadeira que não estava no seu alinho; tinha o habito inquieto de recompôr constantemente a symetria das coisas; — e, machinalmente, ao passar, sacudia a superficie de moveis já perfeitamente espanejados com as magnificas rendas do seu lenço.

Agora acompanhava-o sempre ao quarto de miss Sarah. Pelo corredor amarello, caminhando ao seu lado, Carlos perturbava-se sentindo a caricia d’esse intimo perfume em que havia jasmim, e que parecia sahir do movimento das suas saias. Ella ás vezes abria familiarmente a porta de um quarto, apenas mobilado com um velho sofá: era alli que Rosa brincava, e que tinha os arranjos de Cri-cri, as carruagens de Cri-cri, a cozinha de Cri-cri. Encontravam-na vestindo e conversando profundamente com a boneca; ou então, ao canto do sofá, com os pésinhos cruzados, immovel, perdida na admiração d’algum livro d’estampas aberto sobre os joelhos. Ella corria, estendia a boquinha a Carlos; e toda a sua pessoa tinha a frescura de uma linda flôr.

No quarto da governante, Maria Eduarda sentava-se aos pés do leito branco; e logo a pobre miss Sarah, ainda cheia de tosse, confusa, verificando a cada instante se o lenço de sêda lhe cobria correctamente o pescoço, affirmava que estava boa. Carlos gracejava com ella, provando-lhe que n’esse feio tempo d’inverno, a felicidade era estar alli na cama, com bons cuidados em redor, alguns romances patheticos, e appetitosa dieta portugueza. Ella voltava os olhos gratos para Madame, com um suspiro. Depois murmurava:

Oh yes, I am very comfortable!

E enternecia-se.

Logo nos primeiros dias, ao voltar á sala, Maria Eduarda tinha-se sentado na sua cadeira escarlate, e, conversando com Carlos, retomára muito naturalmente o seu bordado como na presença familiar de um velho amigo. Com que felicidade profunda elle viu desdobrar-se essa talagarça! Devia ser um faisão de plumagens rutilantes: mas por ora só estava bordado o galho de macieira em que elle pousava, galho fresco de primavera, coberto de florzinhas brancas, como n’um pomar da Normandia.

Carlos, junto da linda secretariasinha de pau preto, occupava a mais velha, a mais commoda das poltronas de reps vermelho, cujas molas rangiam de leve. Entre elles ficava a mesa de costura com as Illustrações ou algum jornal de modas; ás vezes, um instante calado, elle folheava as gravuras, em quanto as lindas mãos de Maria, com brilhos de joias, iam puxando os fios de lã. Aos pés d’ella Niniche dormitava, espreitando-os a espaços, através das repas do focinho, com o seu bello olho grave e negro. E n’esses escuros dias de chuva, cheios de friagem lá fóra e do rumor das goteiras, aquelle canto da janella, com a paz do vagaroso trabalho na talagarça, as vozes lentas e amigas, e ás vezes um dôce silencio, tinha um ar intimo e carinhoso...

Mas no que diziam não havia intimidades. Fallavam de Paris e do seu encanto, de Londres onde ella estivera durante quatro lugubres mezes de inverno, da Italia que era o seu sonho vêr, de livros, de coisas d’arte. Os romances que preferia eram os de Dickens; e agradava-lhe menos Feuillet, por cobrir tudo de pó d’arroz, mesmo as feridas do coração. Apesar de educada n’um convento severo d’Orleans, lêra Michelet e lêra Renan. De resto não era catholica praticante; as igrejas apenas a attrahiam pelos lados graciosos e artisticos do culto, a musica, as luzes, ou os lindos mezes de Maria, em França, na doçura das flôres de maio. Tinha um pensar muito recto e muito são — com um fundo de ternura que a inclinava para tudo o que soffre e é fraco. Assim gostava da Republica por lhe parecer o regimen em que ha mais solicitude pelos humildes. Carlos provava-lhe rindo que ella era socialista.

— Socialista, legitimista, orleanista, dizia ella, qualquer coisa, comtanto que não haja gente que tenha fome!

Mas era isso possivel? Já Jesus, mesmo, que tinha tão dôces illusões, declarára que pobres sempre os haveria...

— Jesus viveu ha muito tempo, Jesus não sabia tudo... Hoje sabe-se mais, os senhores sabem muito mais... É necessario arranjar-se outra sociedade, e depressa, em que não haja miseria. Em Londres, ás vezes, por aquellas grandes neves, ha criancinhas pelos portaes a tiritar, a gemer de fome... É um horror! E em Paris então! É que se não vê senão o boulevard; mas quanta pobreza, quanta necessidade...

Os seus bellos olhos quasi se enchiam de lagrimas. E cada uma d’estas palavras trazia todas as complexas bondades da sua alma — como n’um só sopro podem vir todos os aromas esparsos de um jardim.

Foi um encanto para Carlos quando Maria o associou ás suas caridades, pedindo-lhe para ir vêr a irmã da sua engommadeira que tinha rheumatismo, e o filho da snr.ª Augusta, a velha do patamar, que estava tisico. Carlos cumpria esses encargos com o fervor de acções religiosas. E n’estas piedades achava-lhe semelhanças com o avô. Como Affonso, todo o soffrimento dos animaes a consternava. Um dia viera indignada da Praça da Figueira, quasi com idéas de vingança, por ter visto nas tendas dos gallinheiros aves e coelhos apinhados em cestos, soffrendo durante dias as torturas da immobilidade e a anciedade da fome. Carlos levava estas bellas coleras para o Ramalhete, increpava violentamente o marquez, que era membro da Sociedade protectora dos animaes. O marquez, indignado tambem, jurava justiça, fallava em cadêas, em costa d’Africa... E Carlos, commovido, ficava a pensar quanta larga e distante influencia póde ter, mesmo isolado de tudo, um coração que é justo.

Uma tarde fallaram do Damaso. Ella achava-o insupportavel, com a sua petulancia, os olhos bugalhudos, as perguntas nescias. V. exc.ª acha Nice elegante? V. exc.ª prefere a capella de S. João Baptista a Notre-Dame?...

— E então a insistencia de fallar de pessoas que eu não conheço! A snr.ª condessa de Gouvarinho, e os chás da snr.ª condessa de Gouvarinho, e a frisa da snr.ª condessa de Gouvarinho, e a preferencia que a snr.ª condessa de Gouvarinho tem por elle... E isto horas! Eu ás vezes tinha medo de adormecer...

Carlos fez-se escarlate. Porque trouxera ella, entre todos, o nome da Gouvarinho? Tranquillisou-se, vendo-a rir simples e limpidamente. Decerto não sabia quem era Gouvarinho. Mas, para sacudir logo d’entre elles esse nome, começou a fallar de Mr. Guimarães, o famoso tio do Damaso, o amigo de Gambetta, o influente da Republica...

— O Damaso tem-me dito que v. exc.ª o conhece muito...

Ella erguera os olhos, com um fugitivo rubor no rosto.

— Mr. Guimarães?... Sim, conheço muito... Ultimamente viamo-nos menos, mas elle era muito amigo da mamã.

E depois d’um silencio, d’um curto sorriso, recomeçando a puxar o seu longo fio de lã:

— Pobre Guimarães, coitado! A sua influencia na Republica é traduzir noticias dos jornaes hespanhoes e italianos para o Rappel, que d’isso é que vive... Se é amigo de Gambetta, não sei, Gambetta tem amigos tão extraordinarios... Mas o Guimarães, aliás bom homem e homem honrado, é um grutesco, uma especie de Calino republicano. E tão pobre, coitado! O Damaso, que é rico, se tivesse decencia, ou o menor sentimento, não o deixava viver assim tão miseravelmente.

— Mas então essas carruagens do tio, esse luxo do tio, de que falla o Damaso...?

Ella encolheu mudamente os hombros; e Carlos sentiu pelo Damaso um asco intoleravel.

Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais penetrante. Ella quiz saber a idade de Carlos, elle fallou-lhe do avô. E durante essas horas suaves em que ella, silenciosa, ia picando a talagarça, elle contou-lhe a sua vida passada, os planos de carreira, os amigos, e as viagens... Agora ella conhecia a paizagem de Santa Olavia, o reverendo Bonifacio, as excentricidades do Ega. Um dia quiz que Carlos lhe explicasse longamente a idéa do seu livro A medicina antiga e moderna. Approvou, com sympathia, que elle pintasse as figuras dos grandes medicos, bemfeitores da humanidade. Porque se glorificariam só guerreiros e fortes? A vida salva a uma criança parecia-lhe coisa bem mais bella que a batalha de Austerlitz. E estas palavras que dizia com simplicidade, sem mesmo erguer os olhos do seu bordado, cahiam no coração de Carlos e ficavam lá muito tempo, palpitando e brilhando...

Elle tinha-lhe feito assim largamente todas as confissões; — e ainda não sabia nada do seu passado, nem mesmo a terra em que nascera, nem sequer a rua que habitava em Paris. Não lhe ouvira murmurar jámais o nome do marido, nem fallar d’um amigo ou d’uma alegria da sua casa. Parecia não ter em França, onde vivia, nem interesses, nem lar; — e era realmente como a deusa que elle ideára, sem contactos anteriores com a terra, descida da sua nuvem d’oiro, para vir ter alli, n’aquelle andar alugado da rua de S. Francisco, o seu primeiro estremecimento humano.

Logo na primeira semana das visitas de Carlos tinham fallado d’affeições. Ella acreditava candidamente que podesse haver, entre uma mulher e um homem, uma amizade pura, immaterial, feita da concordancia amavel de dois espiritos delicados. Carlos jurou que tambem tinha fé n’essas bellas uniões, todas d’estima, todas de razão — comtanto que se lhes misturasse, ao de leve que fosse, uma ponta de ternura... Isso perfumava-as d’um grande encanto — e não lhes diminuia a sinceridade. E, sob estas palavras um pouco diffusas, murmuradas por entre as malhas do bordado e com lentos sorrisos, ficára subtilmente estabelecido que entre elles só deveria haver um sentimento assim, casto, legitimo, cheio de suavidade e sem tormentos.

Que importava a Carlos? Comtanto que podesse passar aquella hora na poltrona de cretone, contemplando-a a bordar, e conversando em coisas interessantes, ou tornadas interessantes pela graça da sua pessoa; comtanto que visse o seu rosto, ligeiramente córado, baixar-se, com a lenta attracção d’uma caricia, sobre as flôres que lhe trazia; comtanto que lhe afagasse a alma a certeza de que o pensamento d’ella o ficava seguindo sympathicamente através do seu dia, mal elle deixava aquella adorada sala de reps vermelho — o seu coração estava satisfeito, esplendidamente.

Não pensava mesmo que aquella ideal amizade, d’intenção casta, era o caminho mais seguro para a trazer, brandamente enganada, aos seus braços ardentes d’homem. No deslumbramento que o tomára ao vêr-se de repente admittido a uma intimidade que julgára impenetravel, — os seus desejos desappareciam: longe d’ella, ás vezes, ainda ousavam ir temerariamente até á esperança d’um beijo, ou d’uma fugitiva caricia com a ponta dos dedos; mas apenas transpunha a sua porta, e recebia o calmo raio do seu olhar negro, cahia em devoção, e julgaria um ultraje bestial roçar sequer as prégas do seu vestido.

Foi aquelle decerto o periodo mais delicado da sua vida. Sentia em si mil coisas finas, novas, d’uma tocante frescura. Nunca imaginára que houvesse tanta felicidade em olhar para as estrellas quando o céo está limpo; ou em descer de manhã ao jardim para escolher uma rosa mais aberta. Tinha na alma um constante sorriso — que os seus labios repetiam. O marquez achava-lhe o ar baboso e abençoador...

Ás vezes, passeando só no seu quarto, perguntava a si mesmo onde o levaria aquelle grande amor. Não sabia. Tinha diante de si os tres mezes em que ella estaria em Lisboa, e em que ninguem mais senão elle occuparia a velha cadeira ao lado do seu bordado. O marido andava longe, separado por legoas de mar incerto. Depois elle era rico, e o mundo era largo...

Conservava sempre as suas grandes idéas de trabalho, querendo que no seu dia só houvesse horas nobres, — e que aquellas que não pertenciam ás puras felicidades do amor, pertencessem ás alegrias fortes do estudo. Ia ao laboratorio, ajuntava algumas linhas ao seu manuscripto. Mas antes da visita á rua de S. Francisco não podia disciplinar o espirito, inquieto, n’um tumulto d’esperanças; e depois de voltar de lá, passava o dia a recapitular o que ella dissera, o que elle respondera, os seus gestos, a graça de certo sorriso... Fumava então cigarrettes, lia os poetas.

Todas as noites no escriptorio d’Affonso se formava a partida de whist. O marquez batia-se ao dominó com o Taveira, enfronhados ambos n’aquelle vicio, com um rancor crescente que os levava a injurias. Depois das corridas, o secretario de Steinbroken começára a vir ao Ramalhete; mas era um inutil, nem cantava sequer como o seu chefe as balladas da Filandia; cahido no fundo d’uma poltrona, de casaca, de vidro no olho, bamboleando a perna, cofiava silenciosamente os seus longos bigodes tristes.

O amigo que Carlos gostava de vêr entrar era o Cruges — que vinha da rua de S. Francisco, trazia alguma coisa do ar que Maria Eduarda respirava. O maestro sabia que Carlos ia todas as manhãs ao predio vêr a «miss ingleza»; e muitas vezes, innocentemente, ignorando o interesse de coração com que Carlos o escutava, dava-lhe as ultimas noticias da visinha...

— A visinha lá ficou agora a tocar Mendelhson... Tem execução, tem expressão, a visinha... Ha alli estofo... E entende o seu Choppin.

Se elle não apparecia no Ramalhete, Carlos ia a casa buscal-o: entravam no Gremio, fumavam um charuto n’alguma sala isolada, fallando da visinha; Cruges achava-lhe «um verdadeiro typo de grande dame».

Quasi sempre encontravam o conde de Gouvarinho, que vinha ver (como elle dizia a faiscar d’ironia) o que se passava «no paiz do snr. Gambetta». Parecera remoçar ultimamente, mais ligeiro nos modos, com uma claridade d’esperança nas lunetas, na fronte erguida. Carlos perguntava-lhe pela condessa. Lá estava no Porto, nos seus deveres de filha...

— E seu sogro?

O conde baixava a face radiante, para murmurar cava e resignadamente:

— Mal.

Uma tarde, Carlos conversava com Maria Eduarda, acariciando Niniche que se lhe viera sentar nos joelhos, quando Romão entreabriu discretamente o reposteiro, e baixando a voz, com um ar embaraçado, um ar de cumplicidade, murmurou:

— É o snr. Damaso!...

Ella olhou o Romão, surprehendida d’aquelles modos, e quasi escandalisada.

— Pois bem, mande entrar!

E Damaso rompeu pela sala, carregado de luto, de flôr ao peito, gorducho, risonho, familiar, com o chapeu na mão, trazendo dependurado por um barbante um grande embrulho de papel pardo... Mas ao vêr Carlos alli, intimamente, de cadellinha no collo, estacou assombrado, com o olho esbugalhado, como tonto. Emfim desembaraçou as mãos, veio comprimentar Maria Eduarda quasi de leve, — e voltando-se logo para Carlos, de braços abertos, todo o seu espanto trasbordou ruidosamente:

— Então tu aqui, homem? Isto é que é uma surpreza! Ora quem me diria!... Eu estava mais longe...

Maria Eduarda, incommodada com aquelle alarido, indicou-lhe vivamente uma cadeira, interrompeu um instante o bordado, quiz saber como elle tinha chegado.

— Perfeitamente, minha senhora... Um bocado cançado, como é natural... Venho direitinho de Penafiel... Como v. exc.ª vê — e mostrou o seu luto pesado — acabo de passar por um grande desgosto.

Maria Eduarda murmurou uma palavra de sentimento, vaga e fria. Damaso pousára os olhos no tapete. Vinha da provincia cheio de côr, cheio de sangue; e como cortára a barba (que havia mezes deixára crescer para imitar Carlos) parecia agora mais bochechudo e mais nedio. As côxas roliças estalavam-lhe de gordura dentro da calça de casimira preta.

— E então, perguntou Maria Eduarda, temol-o por cá algum tempo?

Elle deu um puxãosinho á cadeira, mais para junto d’ella, e outra vez risonho:

— Agora, minha senhora, ninguem me arranca de Lisboa! Podem-me morrer... Isto é, credo! teria grande ferro se me morresse alguem. O que quero dizer é que ha de custar a arrancar-me d’aqui!

Carlos continuava muito socegadamente a acariciar os pêllos da Niniche. E houve então um pequeno silencio. Maria Eduarda retomára o bordado. E Damaso, depois de sorrir, de tossir, de dar um geito ao bigode, estendeu a mão para acariciar tambem Niniche sobre os joelhos de Carlos. Mas a cadellinha, que havia momentos o espreitava com o olho desconfiado, ergueu-se, rompeu a ladrar furiosa.

C’est moi, Niniche! dizia Damaso, recuando a cadeira. C’est moi, ami... Alors, Niniche...

Foi necessario que Maria Eduarda reprehendesse severamente Niniche. E, aninhada de novo no collo de Carlos, ella continuou a espreitar Damaso, rosnando, e com rancor.

— Já me não conhece, dizia elle embaçado, é curioso...

— Conhece-o perfeitamente, acudiu Maria Eduarda muito séria. Mas não sei o que o snr. Damaso lhe fez, que ella tem-lhe odio. É sempre este escandalo.

Damaso balbuciava, escarlate:

— Ora essa, minha senhora! O que lhe fiz?... Caricias, sempre caricias...

E então não se conteve, fallou com ironia, amargamente, das amizades novas de Mademoiselle Niniche. Alli estava nos braços d’outro, emquanto que elle, o amigo velho, era deitado ao canto...

Carlos ria.

— Ó Damaso, não a accuses de ingratidão... Pois se a snr.ª D. Maria Eduarda está a dizer que ella sempre te teve odio...

— Sempre! exclamou Maria.

Damaso sorria tambem, lividamente. Depois, tirando um lenço de barra negra, limpando os beiços e mesmo o suor do pescoço, lembrou a Maria Eduarda como ella o tinha desapontado no dia das corridas... Elle toda a tarde á espera...

— Eram vesperas de partida, disse ella.

— Sim, bem sei, o marido de v. exc.ª... E como vai o snr. Castro Gomes? V. exc.ª já recebeu noticias?

— Não, respondeu ella com o rosto sobre o bordado.

Damaso cumpriu ainda outros deveres. Perguntou por Mademoiselle Rosa. Depois por Cri-cri. Era necessario não esquecer Cri-cri...

— Pois v. exc.ª — continuou elle, cheio subitamente de loquacidade — perdeu, que as corridas estiveram esplendidas... Nós ainda não nos vimos depois das corridas, Carlos. Ah, sim, vimo-nos na estação... Pois não é verdade que estiveram muito chics? Olhe, minha senhora, d’uma coisa póde v. exc.ª estar certa, é que hippodromo mais bonito não ha lá fóra. Uma vista até á barra, que é d’appetite... Até se vêem entrar os navios... Pois não é assim, Carlos?

— Sim, disse Carlos, sorrindo. Não é propriamente um campo de corridas... É verdade que não ha tambem propriamente cavallos de corridas... Verdade seja que não ha jockeys... Ora é verdade que não ha apostas... Mas é verdade tambem que não ha publico...

Maria Eduarda ria, alegremente.

— Mas então?

— Vêem-se entrar os navios, minha senhora...

Damaso protestava, com as orelhas vermelhas. Era realmente querer dizer mal á força... Não senhor, não senhor!... Eram muito boas corridas. Tal qual como lá fóra, as mesmas regras, tudo...

— Até na pesagem, acrescentou elle muito sério, fallamos sempre inglez!

Repetiu ainda que as corridas eram chics. Depois não achou mais nada: — e fallou de Penafiel, onde chovera sempre tanto que elle vira-se forçado a ficar em casa, estupidamente, a lêr...

— Uma massada! Ainda se houvesse alli umas mulheres para ir dar um bocado de cavaco... Mas qual! Uns monstros. E eu, lavradeiras, raparigas de pé descalço, não tolero... Ha gente que gosta... Mas eu, acredite v. exc.ª, não tolero...

Carlos corára: mas Maria Eduarda parecia não ter ouvido, occupada a contar attentamente as malhas do seu bordado.

De repente Damaso recordou-se que tinha alli um presentinho para a snr.ª D. Maria Eduarda. Mas não imaginasse que era alguma preciosidade... Verdadeiramente até o presente era para Mademoiselle Rosa.

— Olhe, para não estar com mysterios, sabe o que é? Tenho-o alli no embrulhosinho de papel pardo... São seis barrilinhos d’ovos molles d’Aveiro. É um dôce muito célebre, mesmo lá fóra. Só o de Aveiro é que tem chic... Pergunte v. exc.ª ao Carlos. Pois não é verdade, Carlos, que é uma delicia, até conhecido lá fóra?

— Ah, certamente, murmurou Carlos, certamente...

Pousára Niniche no chão, erguera-se, fôra buscar o seu chapéo.

— Já?... perguntou-lhe Maria Eduarda, com um sorriso que era só para elle. Até ámanhã, então!

E voltou-se logo para o Damaso, esperando vêl-o erguer-se tambem. Elle conservou-se installado, com um ar de demora, familiar, e bamboleando a perna. Carlos estendeu-lhe dois dedos.

Au revoir, disse o outro. Recados lá no Ramalhete; hei de apparecer!...

Carlos desceu as escadas, furioso.

Alli ficava pois aquelle imbecil impondo a sua pessoa, grosseiramente, tão obtuso que não percebia o enfado d’ella, a sua regelada seccura! E para que ficava? Que outras crassas banalidades tinha ainda a soltar, em calão, e de perna traçada? E de repente lembrou-lhe o que elle lhe dissera na noite do jantar do Ega, á porta do Hotel Central, a respeito da própria Maria Eduarda, e do seu systema com mulheres «que era o atracão». Se aquelle idiota, de repente, abrazado e bestial, ousasse um ultraje? A supposição era insensata, talvez — mas reteve-o no pateo, applicando o ouvido para cima, com idéas ferozes de esperar alli o Damaso, prohibir-lhe de tornar a subir aquella escada, e, á menor reflexão d’elle, esmagar-lhe o craneo nas lages...

Mas sentiu em cima a porta abrir-se, e sahiu vivamente, no receio de ser assim surprehendido á escuta. O coupé do Damaso estacionava na rua. Então veio-lhe uma curiosidade mordente de saber quanto tempo elle ficaria alli com Maria Eduarda. Correu ao Gremio; e apenas abrira uma vidraça — viu logo o Damaso sahir do portão, saltar para o coupé, bater com força a portinhola. Pareceu-lhe que trazia o ar escorraçado, e subitamente teve dó d’aquelle grutesco...

N’essa noite, depois de jantar, Carlos só no seu quarto fumava, enterrado n’uma poltrona, relendo uma carta do Ega recebida n’essa manhã, — quando appareceu o Damaso. E, sem pousar mesmo o chapéo, logo da porta, exclamou, com o mesmo espanto da manhã:

— Então dize-me cá! Como diabo te vou eu encontrar hoje com a brazileira?... Como a conheceste tu? Como foi isso?

Sem mover a cabeça do espaldar da poltrona, cruzando as mãos sobre os joelhos em cima da carta do Ega, Carlos, agora cheio de bom humor, disse, com uma dôce reprehensão paternal:

— Pois então tu vaes expôr a uma senhora as tuas opiniões lubricas sobre as lavradeiras de Penafiel!

— Não se trata d’isso, sei muito bem o que hei de expôr! exclamou o outro, vermelho. Conta lá, anda... Que diabo! Parece-me que tenho direito a saber... Como a conheceste tu?

Carlos, imperturbavel, cerrando os olhos como para se recordar, começou, n’um tom lento e solemne de recitativo:

— Por uma tepida tarde de primavera, quando o sol se afundava em nuvens d’oiro, um mensageiro esfalfado pendurava-se da campainha do Ramalhete. Via-se-lhe na mão uma carta, lacrada com sello heraldico; e a expressão do seu semblante...

Damaso, já zangado, atirou com o chapéo para cima da mesa.

— Parece-me que era mais decente deixar-te d’esses mysterios!

— Mysterios? Tu vens obtuso, Damaso. Pois tu entras n’uma casa onde existe ha quasi um mez uma pessoa gravemente doente, e ficas assombrado, petrificado, ao encontrar lá o medico! Quem esperavas tu vêr lá? Um photographo?

— Então quem está doente?

Carlos, em poucas palavras, disse-lhe a bronchite da ingleza — emquanto o Damaso, sentado á beira do sofá, mordendo o charuto sem lume, olhava para elle desconfiado.

— E como soube ella onde tu moravas?

— Como se sabe onde mora o rei; onde é a alfandega; de que lado luz a estrella da tarde; os campos onde foi Troia... Estas coisas que se aprendem nas aulas de instrucção primaria...

O pobre Damaso deu alguns passos pela sala, embezerrado, com as mãos nos bolsos.

— Ella tem agora lá o Romão, o que foi meu criado, murmurou depois d’um silencio. Eu tinha-lh’o recommendado... Ella leva-se muito pelo que eu lhe digo...

— Sim, tem, por uns dias, emquanto o Domingos foi á terra. Vai mandal-o embora, é um imbecil, e tu tinhas-lhe ensinado más maneiras...

Então Damaso atirou-se para o canto do sofá e confessou que ao entrar na sala, quando dera com os olhos em Carlos, de cadellinha no collo, ficára furioso... Emfim, agora que sabia que era por doença, bem, tudo se explicava... Mas primeiro parecera-lhe que andava alli tramoia... Só com ella, ainda pensou em lhe perguntar: depois receou que não fosse delicado; e além d’isso ella estava de mau humor...

E acrescentou logo, accendendo o charuto:

— Que apenas tu sahiste, pôz-se melhor, mais á vontade... Rimos muito... Eu fiquei ainda até tarde, quasi duas horas mais; era perto das cinco quando sahi. Outra coisa, ella fallou-te alguma vez de mim?

— Não. É uma pessoa de bom gosto; e sabendo que nos conhecemos, não se atreveria a dizer-me mal de ti.

Damaso olhou-o, esgazeado:

— Ora essa!... Mas podia ter dito bem!

— Não; é uma pessoa de bom senso, não se atreveria tambem.

E erguendo-se vivamente, Carlos abraçou Damaso pela cinta, acariciando-o, perguntando-lhe pela herança do titi, e em que amores, em que viagens, em que cavallos de luxo ia gastar os milhões...

Damaso, sob aquellas festas alegres, permanecia frio, amuado, olhando-o de revez.

— Olha que tu, disse elle, parece-me que me vaes sahindo tambem um traste... Não ha a gente fiar-se em ninguem!

— Tudo na terra, meu Damaso, é apparencia e engano!

Seguiram d’alli á sala do bilhar fazer «a partida de reconciliação». E pouco a pouco, sob a influencia que exercia sempre sobre elle o Ramalhete, Damaso foi socegando, risonho já, gozando de novo a sua intimidade com Carlos no meio d’aquelle luxo sério, e tratando-o outra vez por «menino». Perguntou pelo snr. Affonso da Maia. Quiz saber se o bello marquez tinha apparecido. E o Ega, o grande Ega?...

— Recebi carta d’elle, disse Carlos. Vem ahi, temol-o talvez cá no sabbado.

Foi um espanto para o Damaso.

— Homem! essa é curiosa! E eu encontrei os Cohens, hoje!... Vieram ha dois dias de Southampton... Jógo eu?

Jogou, falhou a carambola.

— Pois é verdade, encontrei-os hoje, fallei-lhes um instante... E a Rachel vem melhor, vem mais gorda... Trazia uma toilette ingleza com coisas brancas, coisas côr de rosa... Chic a valer, parecia um moranguinho! E então o Ega de volta?... Pois, menino, ainda temos escandalo!

II

 

No sabbado, com effeito, Carlos, recolhendo ao Ramalhete de volta da rua de S. Francisco, encontrou o Ega no seu quarto, mettido n’um fato de cheviotte claro, e com o cabello muito crescido.

— Não faças espalhafato, gritou-lhe elle, que eu estou em Lisboa incognito!

E em seguida aos primeiros abraços declarou que vinha a Lisboa, só por alguns dias, unicamente para comer bem e para conversar bem. E contava com Carlos para lhe fornecer esses requintes, alli, no Ramalhete...

— Ha cá um quarto para mim? Eu por ora estou no Hotel Hespanhol, mas ainda nem mesmo abri a mala... Basta-me uma alcova, com uma mesa de pinho, larga bastante para se escrever uma obra sublime.

Decerto! Havia o quarto em cima, onde elle estivera depois de deixar a Villa Balzac. E mais sumptuoso agora, com um bello leito da Renascença, e uma cópia dos Borrachos de Velasquez.

— Optimo covil para a arte! Velasquez é um dos Santos Padres do naturalismo... A proposito, sabes com quem eu vim? Com a Gouvarinho. O pai Tompson esteve á morte, arribou, depois o conde foi buscal-a. Achei-a magra; mas com um ar ardente; e fallou-me constantemente de ti.

— Ah! murmurou Carlos.

Ega, de monoculo no olho e mãos nos bolsos, contemplava Carlos.

— É verdade. Fallou de ti constantemente, irresistivelmente, immoderadamente! Não me tinhas mandado contar isso... Sempre seguiste o meu conselho, hein? Muito bem feita de corpo, não é verdade? E que tal, no acto d’amor?

Carlos córou, chamou-lhe grosseiro, jurou que nunca tivera com a Gouvarinho senão relações superficiaes. Ia lá ás vezes tomar uma chavena de chá; e á hora do Chiado acontecia-lhe, como a todo o mundo, conversar com o conde sobre as miserias publicas, á esquina do Loreto. Nada mais.

— Tu estás-me a mentir, devasso! dizia o Ega. Mas não importa. Eu hei de descobrir tudo isso com o meu olho de Balzac, na segunda-feira.... Porque nós vamos lá jantar na segunda-feira.

— Nós... Nós, quem?

— Nós. Eu e tu, tu e eu. A condessa convidou-me no comboio. E o Gouvarinho, como compete ao individuo d’aquella especie, acrescentou logo que haviamos de ter tambem «o nosso Maia». O Maia d’elle, e o Maia d’ella... Santo accordo! Suavissimo arranjo!

Carlos olhou-o com severidade.

— Tu vens obsceno de Celorico, Ega.

— É o que se aprende no seio da Santa Madre Igreja.

Mas tambem Carlos tinha uma novidade que o devia fazer estremecer. O Ega porém já sabia. A chegada dos Cohens, não é verdade? Lêra-o logo n’essa manhã, na Gazeta Illustrada, no high-life. Lá se dizia respeitosamente que s. exc.as tinham regressado do seu passeio pelo estrangeiro.

— E que impressão te fez? perguntou Carlos rindo.

O outro encolheu brutalmente os hombros:

— Fez-me o effeito de haver um cabrão mais na cidade.

E, como Carlos o accusava outra vez de trazer de Celorico uma lingua immunda, o Ega, um pouco córado, arrependido talvez, lançou-se em considerações criticas, clamando pela necessidade social de dar ás coisas o nome exacto. Para que servia então o grande movimento naturalista do seculo? Se o vicio se perpetuava, é porque a sociedade, indulgente e romanesca, lhe dava nomes que o embellezavam, que o idealisavam... Que escrupulo póde ter uma mulher em beijocar um terceiro entre os lençoes conjugaes, se o mundo chama a isso sentimentalmente um romance, e os poetas o cantam em estrophes d’ouro?

— E a proposito, a tua comedia, o Lodaçal? perguntou Carlos, que entrára um instante para a alcova de banho.

— Abandonei-a, disse o Ega. Era feroz de mais... E além d’isso fazia-me remexer na podridão lisboeta, mergulhar outra vez na sargeta humana... Affligia-me...

Parou diante do grande espelho, deu um olhar descontente ao seu jaquetão claro e ás botas com mau verniz.

— Preciso enfardelar-me de novo, Carlinhos... O Poole naturalmente mandou-te fato de verão, hei de querer examinar esses córtes da alta civilisação... Não ha negal-o, diabo, esta minha linha está chinfrim!

Passou uma escova pelo bigode, e continuou fallando para dentro, para a alcova de banho:

— Pois, menino, eu agora o que necessito é o regimen da Chimera. Vou-me atirar outra vez ás Memorias. Ha de se fazer ahi uma quantidade d’arte colossal n’esse quarto que me destinas, diante de Velasquez... E a proposito, é necessario ir comprimentar o velho Affonso, uma vez que elle me vai dar o pão, o tecto, e a enxerga...

Foram encontrar Affonso da Maia no escriptorio, na sua velha poltrona, com um antigo volume da Illustração franceza aberto sobre os joelhos, mostrando as estampas a um pequeno bonito, muito moreno, d’olho vivo, e cabello encarapinhado. O velho ficou contentissimo ao saber que o Ega vinha por algum tempo alegrar o Ramalhete com a sua bella phantasia.

— Já não tenho phantasia, snr. Affonso da Maia!

— Então esclarecêl-o com a tua clara razão, disse o velho rindo. Estamos cá precisando d’ambas as coisas, John.

Depois apresentou-lhe aquelle pequeno cavalheiro, o snr. Manoelinho, rapazinho amavel da visinhança, filho do Vicente, mestre d’obras; o Manoelinho vinha ás vezes animar a solidão d’Affonso — e alli folheavam ambos livros d’estampas e tinham conversas philosophicas. Agora, justamente, estava elle muito embaraçado por não lhe saber explicar como é que o general Canrobert (de quem estavam admirando o garbo sobre o seu cavallo empinado) tendo mandado matar gente, muita gente, em batalhas, não era mettido na cadêa...

— Está visto! exclamou o pequeno, esperto e desembaraçado, com as mãos cruzadas atraz das costas. Se mandou matar gente deviam-no ferrar na cadêa!

— Hein, amigo Ega! dizia Affonso rindo. Que se ha de responder a esta bella logica? Olha, filho, agora que estão aqui estes dois senhores que são formados em Coimbra, eu vou estudar esse caso... Vai tu vêr os bonecos alli para cima da mesa... E depois vão sendo horas d’ires lá dentro á Joanna, para merendares.

Carlos, ajudando o pequeno a accommodar-se á mesa com o seu grande volume d’estampas, pensava quanto o avô, com aquelle seu amor por crianças, gostaria de conhecer Rosa!

Affonso no emtanto perguntava tambem ao Ega pela comedia. O quê! Já abandonada? Quando acabaria então o bravo John de fazer bocados incompletos d’obras-primas?... — Ega queixou-se do paiz, da sua indifferença pela arte. Que espirito original não esmoreceria, vendo em torno de si esta espessa massa de burguezes, amodorrada e crassa, desdenhando a intelligencia, incapaz de se interessar por uma idéa nobre, por uma phrase bem feita?

— Não vale a pena, snr. Affonso da Maia. N’este paiz, no meio d’esta prodigiosa imbecilidade nacional, o homem de senso e de gosto deve limitar-se a plantar com cuidado os seus legumes. Olhe o Herculano...

— Pois então, acudiu o velho, planta os teus legumes. É um serviço á alimentação publica. Mas tu nem isso fazes!

Carlos, muito sério, apoiava o Ega.

— A unica coisa a fazer em Portugal, dizia elle, é plantar legumes, emquanto não ha uma revolução que faça subir á superficie alguns dos elementos originaes, fortes, vivos, que isto ainda encerre lá no fundo. E se se vir então que não encerra nada, demittamo-nos logo voluntariamente da nossa posição de paiz para que não temos elementos, passemos a ser uma fertil e estupida provincia hespanhola, e plantemos mais legumes!

O velho escutava com melancolia estas palavras do neto, em que sentia como uma decomposição da vontade, e que lhe pareciam ser apenas a glorificação da sua inercia. Terminou por dizer:

— Pois então façam vocês essa revolução. Mas pelo amor de Deus, façam alguma coisa!

— O Carlos já não faz pouco, exclamou Ega, rindo. Passeia a sua pessoa, a sua toilette e o seu phaeton, e por esse facto educa o gosto!

O relogio Luiz XV interrompeu-os — lembrando ao Ega que devia ainda, antes de jantar, ir buscar a sua mala ao Hotel Hespanhol. Depois no corredor confessou a Carlos que, antes d’ir ao Hespanhol, queria correr ao Fillon, ao photographo, vêr se podia tirar um bonito retrato.

— Um retrato?

— Uma surpreza que tem d’ir d’aqui a tres dias para Celorico, para o dia d’annos d’uma creaturinha que me adoçou o exilio.

— Oh Ega!

— É horroroso, mas então? É a filha do padre Corrêa, filha conhecida como tal; além d’isso casada com um proprietario rico da visinhança, reaccionario odioso... De modo que, bem vês, esta dupla peça a pregar á Religião e á Propriedade...

— Ah! n’esse caso...

— Ninguem se deve eximir, amigo, aos seus grandes deveres democraticos!


Na segunda-feira seguinte choviscava quando Carlos e Ega, no coupé fechado, partiram para o jantar dos Gouvarinhos. Desde a chegada da condessa Carlos vira-a só uma vez, em casa d’ella; e fôra uma meia hora desagradavel, cheia de mal-estar, com um ou outro beijo frio, e recriminações infindaveis. Ella queixára-se das cartas d’elle, tão raras, tão seccas. Não se puderam entender sobre os planos d’esse verão, ella devendo ir para Cintra onde já alugára casa, Carlos fallando no dever de acompanhar o avô a Santa Olavia. A condessa achava-o distrahido: elle achou-a exigente. Depois ella sentou-se um instante sobre os seus joelhos — e aquelle leve e delicado corpo pareceu a Carlos de um fastidioso peso de bronze.

Por fim a condessa arrancára-lhe a promessa de a ir encontrar, justamente n’essa segunda-feira de manhã, a casa da titi, que estava em Santarem; — porque tinha sempre o appetite perverso e requintado de o apertar nos braços nús, em dias que o devesse receber na sua sala, mais tarde, e com ceremonia. Mas Carlos faltára, — e agora, rodando para casa d’ella, impacientavam-n’o já as queixas que teria de ouvir nos vãos de janella, e as mentiras chôchas que teria de balbuciar...

De repente o Ega, que fumava em silencio, abotoado no seu paletot de verão, bateu no joelho de Carlos, e entre risonho e sério:

— Dize-me uma coisa, se não é um segredo sacrosanto... Quem é essa brazileira com quem tu agora passas todas as tuas manhãs?

Carlos ficou um instante aturdido, com os olhos no Ega.

— Quem te fallou n’isso?

— Foi o Damaso que m’o disse. Isto é, o Damaso que m’o rugiu... Porque foi de dentes rilhados, a dar murros surdos n’um sofá do Gremio, e com uma côr d’apoplexia, que elle me contou tudo...

— Tudo o quê?

— Tudo. Que te apresentára a uma brazileira a quem se atirava, e que tu, aproveitando a sua ausencia, te metteras lá, não sahias de lá...

— Tudo isso é mentira! exclamou o outro, já impaciente.

E Ega, sempre risonho:

— Então «que é a verdade», como perguntava o velho Pilatus ao chamado Jesus Christo?

— É que ha uma senhora a quem o Damaso suppunha ter inspirado uma paixão, como suppõe sempre, e que, tendo-lhe adoecido a governante ingleza com uma bronchite, me mandou chamar para eu a tratar. Ainda não está melhor, eu vou vêl-a todos os dias. E Madame Gomes, que é o nome da senhora, que nem brazileira é, não podendo tolerar o Damaso, como ninguem o tolera, tem-lhe fechado a sua porta. Esta é a verdade; mas talvez eu arranque as orelhas ao Damaso!

Ega contentou-se em murmurar:

— E ahi está como se escreve a historia... Vá-se lá a gente fiar em Guizot!

Em silencio, até casa da Gouvarinho, Carlos foi ruminando a sua cólera contra o Damaso. Ahi estava pois rasgada por aquelle imbecil a penumbra suave e favoravel em que se abrigára o seu amor! Agora já se pronunciava o nome de Maria Eduarda no Gremio: o que o Damaso dissera ao Ega, repetil-o-hia a outros, na Casa Havaneza, no restaurante Silva, talvez nos lupanares: e assim o interesse supremo da sua vida seria d’ahi por diante constantemente perturbado, estragado, sujo pela tagarellice reles do Damaso!

— Parece-me que temos cá mais gente, disse o Ega, ao penetrarem na ante-camara dos Gouvarinhos, vendo sobre o canapé um paletot cinzento e capas de senhora.

A condessa esperava-os na salinha ao fundo, chamada «do busto», vestida de preto, com uma tira de velludo em volta do pescoço picada de tres estrellas de diamantes. Uma cesta de esplendidas flôres quasi enchia a mesa, onde se accumulavam tambem romances inglezes, e uma Revista dos Dois Mundos em evidencia, com a faca de marfim entre as folhas. Além da boa D. Maria da Cunha e da baroneza d’Alvim, havia uma outra senhora, que nem Carlos nem Ega conheciam, gorda e vestida d’escarlate; e de pé, conversando baixo com o conde, de mãos atraz das costas, um cavalheiro alto, escaveirado, grave, com uma barba rala, e a commenda da Conceição.

A condessa, um pouco córada, estendeu a Carlos a mão amuada e frouxa: todos os seus sorrisos foram para o Ega. E o conde apoderou-se logo do querido Maia, para o apresentar ao seu amigo o snr. Sousa Netto. O snr. Sousa Netto já tinha o prazer de conhecer muito Carlos da Maia, como um medico distincto, uma honra da Universidade... E era esta a vantagem de Lisboa, disse logo o conde, o conhecerem-se todos de reputação, o poder-se ter assim uma apreciação mais justa dos caracteres. Em Paris, por exemplo, era impossivel; por isso havia tanta immoralidade, tanta relaxação...

— Nunca sabe a gente quem mette em casa.

O Ega, entre a condessa e D. Maria, enterrado no divan, mostrando as estrellinhas bordadas das meias, fazia-as rir com a historia do seu exilio em Celorico, onde se distrahia compondo sermões para o abbade: o abbade recitava-os; e os sermões, sob uma fórma mystica, eram de facto affirmações revolucionarias que o santo varão lançava com fervor, esmurrando o pulpito... A senhora de vermelho, sentada defronte, de mãos no regaço, escutava o Ega, com o olhar espantado.

— Imaginei que v. exc.ª tinha ido já para Cintra, veio dizer Carlos á senhora baroneza, sentando-se junto d’ella. V. exc.ª é sempre a primeira...

— Como quer o senhor que se vá para Cintra com um tempo d’estes?

— Com effeito, está infernal...

— E que conta de novo? perguntou ella, abrindo lentamente o seu grande leque preto.

— Creio que não ha nada de novo em Lisboa, minha senhora, desde a morte do snr. D. João VI.

— Agora ha o seu amigo Ega, por exemplo.

— É verdade, ha o Ega... Como o acha v. exc.ª, senhora baroneza?

Ella nem baixou a voz para dizer:

— Olhe, eu como o achei sempre um grande presumido e não gosto d’elle, não posso dizer nada...

— Oh senhora baroneza, que falta de caridade!

O escudeiro annunciára o jantar. A condessa tomou o braço de Carlos, — e, ao atravessar o salão, entre o frouxo murmurio de vozes e o rumor lento das caudas de sêda, pôde dizer-lhe asperamente:

— Esperei meia hora; mas comprehendi logo que estaria entretido com a brazileira...

Na sala de jantar, um pouco sombria, forrada de papel côr de vinho, escurecida ainda por dois antigos paineis de paizagem tristonha, a mesa oval, cercada de cadeiras de carvalho lavrado, resaltava alva e fresca, com um esplendido cesto de rosas entre duas serpentinas douradas. Carlos ficou á direita da condessa, tendo ao lado D. Maria da Cunha, que n’esse dia parecia um pouco mais velha, e sorria com um ar cansado.

— Que tem feito todo este tempo, que ninguem o tem visto? perguntou-lhe ella, desdobrando o guardanapo.

— Por esse mundo, minha senhora, vagamente...

Defronte de Carlos, o snr. Sousa Netto, que tinha tres enormes coraes no peitilho da camisa, estava já observando, emquanto remexia a sopa, que a senhora condessa, na sua viagem ao Porto, devia ter encontrado nas ruas e nos edificios grandes mudanças... A condessa, infelizmente, mal tinha sahido durante o tempo que estivera no Porto. O conde, esse, é que admirara os progressos da cidade. E especificou-os: elogiou a vista do Palacio de Crystal; lembrou o fecundo antagonismo que existe entre Lisboa e Porto; mais uma vez o comparou ao dualismo da Austria e da Hungria. E através d’estas coisas graves, lançadas d’alto, com superioridade e com peso, a baroneza e a senhora d’escarlate, aos dois lados d’elle, fallavam do convento das Selesias.

Carlos, no emtanto, comendo em silencio a sua sopa, ruminava as palavras da condessa. Tambem ella conhecia já a sua intimidade com a «brazileira». Era evidente pois que já andava alli, diffamante e torpe, a tagarellice do Damaso. E quando o criado lhe offereceu Sauterne, estava decidido a bater no Damaso.

De repente ouviu o seu nome. Do fim da mesa uma voz dizia, pachorrenta e cantada:

— O snr. Maia é que deve saber... O snr. Maia já lá esteve.

Carlos pousou vivamente o copo. Era a senhora d’escarlate que lhe fallava, sorrindo, mostrando uns bonitos dentes sob o buço forte de quarentona pallida. Ninguem lh’a apresentára, elle não sabia quem era. Sorriu tambem, perguntou:

— Onde, minha senhora?

— Na Russia.

— Na Russia?... Não, minha senhora, nunca estive na Russia.

Ella pareceu um pouco desapontada.

— Ah, é que me tinham dito... Não sei já quem me disse, mas era pessoa que sabia...

O conde ao fundo explicava-lhe amavelmente que o amigo Maia estivera apenas na Hollanda.

— Paiz de grande prosperidade, a Hollanda!... Em nada inferior ao nosso... Já conheci mesmo um hollandez que era excessivamente instruido...

A condessa baixára os olhos, partindo vagamente um bocadinho de pão, mais séria de repente, mais secca, como se a voz de Carlos, erguendo-se tão tranquilla ao seu lado, tivesse avivado os seus despeitos. Elle, então, depois de provar devagar o seu Sauterne, voltou-se para ella, muito naturalmente e risonho:

— Veja a senhora condessa! Eu nem tive mesmo idéa d’ir á Russia. Ha assim uma infinidade de coisas que se dizem e que não são exactas... E se se faz uma allusão ironica a ellas, ninguem comprehende a allusão nem a ironia...

A condessa não respondeu logo, dando com o olhar uma ordem muda ao escudeiro. Depois, com um sorriso pallido:

— No fundo de tudo que se diz ha sempre um facto, ou um bocado de facto que é verdadeiro. E isso basta... Pelo menos a mim basta-me...

— A senhora condessa tem então uma credulidade infantil. Estou vendo que acredita que era uma vez uma filha d’um rei que tinha uma estrella na testa...

Mas o conde interpellava-o, o conde queria a opinião do seu amigo Maia. Tratava-se do livro de um inglez, o major Bratt, que atravessára a Africa, e dizia coisas perfidamente desagradaveis para Portugal. O conde via alli só inveja — a inveja que nos têm todas as nações por causa da importancia das nossas colonias, e da nossa vasta influencia na Africa...

— Está claro, dizia o conde, que não temos nem os milhões, nem a marinha dos inglezes. Mas temos grandes glorias; o infante D. Henrique é de primeira ordem; e a tomada d’Ormuz é um primor... E eu que conheço alguma coisa de systemas coloniaes, posso affirmar que não ha hoje colonias nem mais susceptiveis de riqueza, nem mais crentes no progresso, nem mais liberaes que as nossas! Não lhe parece, Maia?

— Sim, talvez, é possivel... Ha muita verdade n’isso...

Mas Ega, que estivera um pouco silencioso, entalando de vez em quando o monoculo no olho e sorrindo para a baroneza, pronunciou-se alegremente contra todas essas explorações da Africa, e essas longas missões geographicas... Porque não se deixaria o preto socegado, na calma posse dos seus manipansos? Que mal fazia á ordem das coisas que houvesse selvagens? Pelo contrario, davam ao Universo uma deliciosa quantidade de pittoresco! Com a mania franceza e burgueza de reduzir todas as regiões e todas as raças ao mesmo typo de civilisação, o mundo ia tornar-se d’uma monotonia abominavel. Dentro em breve um touriste faria enormes sacrificios, despezas sem fim, para ir a Tombuctu — para quê? Para encontrar lá pretos de chapéo alto, a lêr o Jornal dos Debates!

O conde sorria com superioridade. E a boa D. Maria, sahindo do seu vago abatimento, movia o leque, dizia a Carlos, deleitada:

— Este Ega! Este Ega! Que graça! Que chic!

Então Sousa Netto, pousando gravemente o talher, fez ao Ega esta pergunta grave:

— V. exc.ª pois é em favor da escravatura?

Ega declarou muito decididamente ao snr. Sousa Netto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo elle, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser sériamente obedecido, quem era sériamente temido... Por isso ninguem agora lograva ter os seus sapatos bem envernizados, o seu arroz bem cozido, a sua escada bem lavada, desde que não tinha criados pretos em quem fosse licito dar vergastadas... Só houvera duas civilisações em que o homem conseguira viver com razoavel commodidade: a civilisação romana, e a civilisação especial dos plantadores da Nova Orleans. Porque? porque n’uma e n’outra existira a escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!...

Durante um momento o snr. Sousa Netto ficou como desorganisado. Depois passou o guardanapo sobre os beiços, preparou-se, encarou o Ega:

— Então v. exc.ª n’essa idade, com a sua intelligencia, não acredita no Progresso?

— Eu não senhor.

O conde interveio, affavel e risonho:

— O nosso Ega quer fazer simplesmente um paradoxo. E tem razão, tem realmente razão, porque os faz brilhantes...

Estava-se servindo Jambon aux épinards. Durante um momento fallou-se de paradoxos. Segundo o conde, quem os fazia tambem brilhantes e difficeis de sustentar, excessivamente difficeis, era o Barros, o ministro do reino...

— Talento robusto, murmurou respeitosamente Sousa Netto.

— Sim, pujante, disse o conde.

Mas elle agora não fallava tanto do talento do Barros como parlamentar, como homem d’estado. Fallava do seu espirito de sociedade, do seu esprit...

— Ainda este inverno nós lhe ouvimos um paradoxo brilhante! Até foi em casa da snr.ª D. Maria da Cunha... V. exc.ª não se lembra, snr.ª D. Maria? Esta minha desgraçada memoria! Ó Thereza, lembras-te d’aquelle paradoxo do Barros? Ora sobre que era, meu Deus?... Emfim, um paradoxo muito difficil de sustentar... Esta minha memoria!... Pois não te lembras, Thereza?

A condessa não se lembrava. E emquanto o conde ficava remexendo anciosamente, com a mão na testa, as suas recordações, — a senhora d’escarlate voltou a fallar de pretos, e de escudeiros pretos, e d’uma cozinheira preta que tivera uma tia d’ella, a tia Villar... Depois queixou-se amargamente dos criados modernos: desde que lhe morrera a Joanna, que estava em casa havia quinze annos, não sabia que fazer, andava como tonta, tinha só desgostos. Em seis mezes já vira quatro caras novas. E umas desleixadas, umas pretenciosas, uma immoralidade!... Quasi lhe fugiu um suspiro do peito, e trincando desconsoladamente uma migalhinha de pão:

— Ó baroneza, ainda tens a Vicenta?

— Pois então não havia de ter a Vicenta?... Sempre a Vicenta... A snr.ª D. Vicenta, se faz favor.

A outra contemplou-a um instante, com inveja d’aquella felicidade.

— E é a Vicenta que te penteia?

Sim, era a Vicenta que a penteava. Ia-se fazendo velha, coitada... Mas sempre caturra. Agora andava com a mania de aprender francez. Já sabia verbos. Era de morrer, a Vicenta a dizer j’aime, tu aimes...

— E a senhora baroneza, acudiu o Ega, começou por lhe mandar ensinar os verbos mais necessarios.

Está claro, dizia a baroneza, que aquelle era o mais necessario. Mas na idade da Vicenta já de pouco lhe poderia servir!

— Ah! gritou de repente o conde, deixando quasi cahir o talher. Agora me lembro!

Tinha-se lembrado emfim do soberbo paradoxo do Barros. Dizia o Barros que os cães, quanto mais ensinados... Pois, não, não era isto!

— Esta minha desgraçada memoria!... E era sobre cães. Uma coisa brilhante, philosophica até!

E, por se fallar de cães, a baroneza lembrou-se do Tommy, o galgo da condessa; perguntou por Tommy. Já o não via ha que tempos, esse bravo Tommy! A condessa nem queria que se fallasse no Tommy, coitado! Tinham-lhe nascido umas coisas nos ouvidos, um horror... Mandára-o para o Instituto, lá morrera.

— Está deliciosa esta galantine, disse D. Maria da Cunha, inclinando-se para Carlos.

— Deliciosa.

E a baroneza, do lado, declarou tambem a galantine uma perfeição. Com um olhar ao escudeiro, a condessa fez servir de novo a galantine: e apressou-se a responder ao snr. Sousa Netto, que, a proposito de cães, lhe estava fallando da Sociedade protectora dos animaes. O snr. Sousa Netto approvava-a, considerava-a como um progresso... E, segundo elle, não seria mesmo de mais que o governo lhe désse um subsidio.

— Que eu creio que ella vai prosperando... E merece-o, acredite a senhora condessa que o merece... Estudei essa questão, e de todas as sociedades que ultimamente se têm fundado entre nós, á imitação do que se faz lá fóra, como a Sociedade de Geographia e outras, a Protectora dos animaes parece-me decerto uma das mais uteis.

Voltou-se para o lado, para o Ega:

— V. exc.ª pertence?

— Á Sociedade protectora dos animaes?... Não senhor, pertenço a outra, á de Geographia. Sou dos protegidos.

A baroneza teve uma das suas alegres risadas. E o conde fez-se extremamente sério: pertencia á Sociedade de Geographia, considerava-a um pilar do Estado, acreditava na sua missão civilisadora, detestava aquellas irreverencias. Mas a condessa e Carlos tinham rido tambem: — e de repente a frialdade que até ahi os conservára ao lado um do outro reservados, n’uma ceremonia affectada, pareceu dissipar-se ao calor d’esse riso trocado, no brilho dos dois olhares encontrando-se irresistivelmente. Servira-se o Champagne, ella tinha uma côrzinha no rosto. O seu pé, sem ella saber como, roçou pelo pé de Carlos; sorriram ainda outra vez; — e, como no resto da mesa se conversava sobre uns concertos classicos que ia haver no Price, Carlos perguntou-lhe, baixo, com uma reprehensão amavel:

— Que tolice foi essa da brazileira?... Quem lhe disse isso?

Ella confessou-lhe logo que fôra o Damaso... O Damaso viera contar-lhe o enthusiasmo de Carlos por essa senhora, e as manhãs inteiras que lá passava, todos os dias, á mesma hora... Emfim o Damaso fizera-lhe claramente entrevêr uma liaison.

Carlos encolheu os hombros. Como podia ella acreditar no Damaso? Devia conhecer-lhe bem a tagarellice, a imbecilidade...

— É perfeitamente verdade que eu vou a casa d’essa senhora, que nem brazileira é, que é tão portugueza como eu; mas é porque ella tem a governante muito doente com uma bronchite, e eu sou o medico da casa. Foi até o Damaso, elle proprio, que lá me levou como medico!

No rosto da condessa espalhava-se um riso, uma claridade vinda do dôce allivio que se fazia no seu coração.

— Mas o Damaso disse-me que era tão linda!...

Sim, era muito linda. E então? Um medico, por fidelidade ás suas affeições, e para as não inquietar, não podia realmente, antes de penetrar na casa d’uma doente, exigir-lhe um certificado de hediondez!

— Mas que está ella cá a fazer?...

— Está á espera do marido que foi a negocios ao Brazil, e vem ahi... É uma gente muito distincta, e creio que muito rica... Vão-se brevemente embora, de resto, e eu pouco sei d’elles. As minhas visitas são de medico; tenho apenas conversado com ella sobre Paris, sobre Londres, sobre as suas impressões de Portugal...

A condessa bebia estas palavras, deliciosamente, dominada pelo bello olhar com que elle lh’as murmurava: e o seu pé apertava o de Carlos n’uma reconciliação apaixonada, com a força que desejaria pôr n’um abraço — se alli lh’o podesse dar.

A senhora d’escarlate, no emtanto, recomeçára a fallar da Russia. O que a assustava é que o paiz era tão caro, corriam-se tantos perigos por causa da dynamite, e uma constituição fraca devia soffrer muito com a neve nas ruas. E foi então que Carlos percebeu que ella era a esposa de Sousa Netto, e que se tratava d’um filho d’elles, filho unico, despachado segundo secretario para a legação de S. Petersburgo.

— O menino conhece-o? perguntou D. Maria ao ouvido de Carlos, por traz do leque. É um horror d’estupidez... Nem francez sabe! De resto não é peor que os outros... Que a quantidade de mônos, de semsaborões e de tolos que nos representam lá fóra até faz chorar... Pois o menino não acha? Isto é um paiz desgraçado.

— Peor, minha cara senhora, muito peor. Isto é um paiz cursi.

Tinha findado a sobremesa. D. Maria olhou para a condessa com o seu sorriso cansado; a senhora de escarlate calára-se, já preparada, tendo mesmo afastado um pouco a cadeira; e as senhoras ergueram-se, no momento em que o Ega, ainda ácerca da Russia, acabava de contar uma historia ouvida a um polaco, e em que se provava que o Czar era um estupido...

— Liberal todavia, gostando bastante do progresso! murmurou ainda o conde, já de pé.

Os homens, sós, accenderam os seus charutos; o escudeiro serviu o café. Então o snr. Sousa Netto, com a sua chavena na mão, aproximou-se de Carlos para lhe exprimir de novo o prazer que tivera em fazer o seu conhecimento...

— Eu tive tambem em tempos o prazer de conhecer o pai de v. exc.ª... Pedro, creio que era justamente o snr. Pedro da Maia. Começava eu então a minha carreira publica... E o avô de v. exc.ª, bom?

— Muito agradecido a v. exc.ª

— Pessoa muito respeitavel... O pai de v. exc.ª era... Emfim, era o que se chama «um elegante». Tive tambem o prazer de conhecer a mãi de v. exc.ª...

E de repente calou-se, embaraçado, levando a chavena aos labios. Depois, lentamente, voltou-se para escutar melhor o Ega, que ao lado discutia com o Gouvarinho sobre mulheres. Era a proposito da secretária da legação da Russia, com quem elle encontrára n’essa manhã o conde conversando ao Calhariz. O Ega achava-a deliciosa, com o seu corpinho nervoso e ondeado, os seus grandes olhos garços... E o conde, que a admirava tambem, gabava-lhe sobretudo o espirito, a instrucção. Isso, segundo o Ega, prejudicava-a: porque o dever da mulher era primeiro ser bella, e depois ser estupida... O conde affirmou logo com exuberancia que não gostava tambem de litteratas: sim, decerto o lugar da mulher era junto do berço, não na bibliotheca...

— No emtanto é agradavel que uma senhora possa conversar sobre coisas amenas, sobre o artigo d’uma Revista, sobre... Por exemplo, quando se publica um livro... Emfim, não direi quando se trata d’um Guizot, ou d’um Jules Simon... Mas, por exemplo, quando se trata d’um Feuillet, d’um... Emfim, uma senhora deve ser prendada. Não lhe parece, Netto?

Netto, grave, murmurou:

— Uma senhora, sobretudo quando ainda é nova, deve ter algumas prendas...

Ega protestou, com calor. Uma mulher com prendas, sobretudo com prendas litterarias, sabendo dizer coisas sobre o snr. Thiers, ou sobre o snr. Zola, é um monstro, um phenomeno que cumpria recolher a uma companhia de cavallinhos, como se soubesse trabalhar nas argolas. A mulher só devia ter duas prendas: cozinhar bem e amar bem.

— V. exc.ª decerto, snr. Sousa Netto, sabe o que diz Proudhon?

— Não me recordo textualmente, mas...

— Em todo o caso v. exc.ª conhece perfeitamente o seu Proudhon?

O outro, muito seccamente, não gostando decerto d’aquelle interrogatorio, murmurou que Proudhon era um author de muita nomeada.

Mas o Ega insistia, com uma impertinencia perfida:

— V. exc.ª leu evidentemente, como nós todos, as grandes paginas de Proudhon sobre o amor?

O snr. Netto, já vermelho, pousou a chavena sobre a mesa. E quiz ser sarcastico, esmagar aquelle moço, tão litterario, tão audaz.

— Não sabia, disse elle com um sorriso infinitamente superior, que esse philosopho tivesse escripto sobre assumptos escabrosos!

Ega atirou os braços ao ar, consternado:

— Oh snr. Sousa Netto! Então v. exc.ª, um chefe de familia, acha o amor um assumpto escabroso?!

O snr. Netto encordoou. E muito direito, muito digno, fallando do alto da sua consideravel posição burocratica:

— É meu costume, snr. Ega, não entrar nunca em discussões, e acatar todas as opiniões alheias, mesmo quando ellas sejam absurdas...

E quasi voltou as costas ao Ega, dirigindo-se outra vez a Carlos, desejando saber, n’uma voz ainda um pouco alterada, se elle agora se fixava algum tempo mais em Portugal. Então, durante um momento, acabando os charutos, os dois fallaram de viagens. O snr. Netto lamentava que os seus muitos deveres não lhe permitissem percorrer a Europa. Em pequeno fôra esse o seu ideal; mas agora, com tantas occupações publicas, via-se forçado a não deixar a carteira. E alli estava, sem ter visto sequer Badajoz...

— E v. exc.ª de que gostou mais, de Paris ou de Londres?

Carlos realmente não sabia, nem se podia comparar... Duas cidades tão differentes, duas civilisações tão originaes...

— Em Londres, observou o conselheiro, tudo carvão...

Sim, dizia Carlos sorrindo, bastante carvão, sobretudo nos fogões, quando havia frio...

O snr. Sousa Netto murmurou:

— E o frio alli deve ser sempre consideravel... Clima tão ao norte!...

Esteve um momento mamando o charuto, de palpebra cerrada. Depois, fez esta observação sagaz e profunda:

— Povo pratico, povo essencialmente pratico.

— Sim, bastante pratico, disse vagamente Carlos, dando um passo para a sala, onde se sentiam as risadas cantantes da baroneza.

— E diga-me outra coisa, proseguiu o snr. Sousa Netto, com interesse, cheio de curiosidade intelligente. Encontra-se por lá, em Inglaterra, d’esta litteratura amena, como entre nós, folhetinistas, poetas de pulso?...

Carlos deitou a ponta do charuto para o cinzeiro, e respondeu, com descaro:

— Não, não ha d’isso.

— Logo vi, murmurou Sousa Netto. Tudo gente de negocio.

E penetraram na sala. Era o Ega que assim fazia rir a baroneza, sentado defronte d’ella, fallando outra vez de Celorico, contando-lhe uma soirée de Celorico, com detalhes picarescos sobre as authoridades, e sobre um abbade que tinha morto um homem e cantava fados sentimentaes ao piano. A senhora d’escarlate, no sofá ao lado, com os braços cahidos no regaço, pasmava para aquella veia do Ega como para as destrezas d’um palhaço. D. Maria, junto da mesa, folheava com o seu ar cansado uma Illustração; e vendo que Carlos ao entrar procurára com o olhar a condessa, chamou-o, disse-lhe baixo que ella fôra dentro vêr Charlie, o pequeno...

— É verdade, perguntou Carlos, sentando-se ao lado d’ella, que é feito d’elle, d’esse lindo Charlie?

— Diz que tem estado hoje constipado, e um pouco murcho...

— A snr.ª D. Maria tambem me parece hoje um pouco murcha.

— É do tempo. Eu já estou na idade em que o bom humor ou o aborrecimento vêm só das influencias do tempo... Na sua idade vem d’outras coisas. E a proposito d’outras coisas: então a Cohen tambem chegou?

— Chegou, disse Carlos, mas não tambem. O tambem implica combinação... E a Cohen e o Ega chegaram realmente ambos por acaso... De resto isso é historia antiga, é como os amores de Helena e de Páris.

N’esse instante a condessa voltava de dentro, um pouco afogueada, e trazendo aberto um grande leque negro. Sem se sentar, fallando sobretudo para a mulher do snr. Sousa Netto, queixou-se logo de não ter achado Charlie bem... Estava tão quente, tão inquieto... Tinha quasi medo que fosse sarampo. — E voltando-se vivamente para Carlos, com um sorriso:

— Eu estou com vergonha... Mas se o snr. Carlos da Maia quizesse ter o incommodo de o vir vêr um instante... É odioso, realmente, pedir-lhe logo depois de jantar para examinar um doente...

— Oh senhora condessa! exclamou elle, já de pé.

Seguiu-a. N’uma saleta, ao lado, o conde e o snr. Sousa Netto, enterrados n’um sofá, conversavam fumando.

— Levo o snr. Carlos da Maia para vêr o pequeno...

O conde erguera-se um pouco do sofá, sem comprehender bem. Já ella passára. Carlos seguiu em silencio a sua longa cauda de sêda preta através do bilhar, deserto, com o gaz acceso, ornado de quatro retratos de damas, da familia dos Gouvarinhos, empoadas e sorumbaticas. Ao lado, por traz de um pesado reposteiro de fazenda verde, era um gabinete, com uma velha poltrona, alguns livros n’uma estante envidraçada, e uma escrevaninha onde pousava um candieiro sob o abat-jour de renda côr de rosa. E ahi, bruscamente, ella parou, atirou os braços ao pescoço de Carlos, os seus labios prenderam-se aos d’elle n’um beijo sôfrego, penetrante, completo, findando n’um soluço de desmaio... Elle sentia aquelle lindo corpo estremecer, escorregar-lhe entre os braços, sobre os joelhos sem força.

— Ámanhã, em casa da titi, ás onze, murmurou ella quando pôde fallar.

— Pois sim.

Desprendida d’elle, a condessa ficou um momento com as mãos sobre os olhos, deixando desvanecer aquella languida vertigem, que a fizera côr de cêra. Depois, cansada e sorrindo:

— Que doida que eu sou... Vamos vêr Charlie.

O quarto do pequeno era ao fundo do corredor. E ahi, n’uma caminha de ferro, junto do leito maior da criada, Charlie dormia, sereno, fresco, com um bracinho cahido para o lado, os seus lindos caracoes loiros espalhados no travesseiro como uma aureola d’anjo. Carlos tocou-lhe apenas no pulso; e a criada escosseza, que trouxera uma luz de sobre a commoda, disse, sorrindo tranquillamente:

— O menino n’estes ultimos dias tem andado muitissimo bem...

Voltaram. No gabinete, antes de penetrar no bilhar, a condessa, já com a mão no reposteiro, estendeu ainda a Carlos os seus labios insaciaveis. Elle colheu um rapido beijo. E, ao passar na antecamara, onde Sousa Netto e o conde continuavam enfronhados n’uma conversa grave, ella disse ao marido:

— O pequeno está a dormir... O snr. Carlos da Maia achou-o bem.

O conde de Gouvarinho bateu no hombro de Carlos, carinhosamente. E durante um momento a condessa ficou alli conversando, de pé, a deixar-se serenar, pouco a pouco, n’aquella penumbra favoravel, antes de affrontar a luz forte da sala. Depois, por se fallar em hygiene, convidou o snr. Sousa Netto para uma partida de bilhar; mas o snr. Netto, desde Coimbra, desde a Universidade, não pegára n’um taco. E ia-se chamar o Ega quando appareceu Telles da Gama, que chegava do Price. Logo atraz d’elle entrou o conde de Steinbroken. Então o resto da noite passou-se no salão, em redor do piano. O ministro cantou melodias da Filandia. Telles da Gama tocou fados.

Carlos e Ega foram os derradeiros a sahir, depois de um brandy and soda, de que a condessa partilhou, como ingleza forte. E em baixo, no pateo, acabando de abotoar o paletot, Carlos pôde emfim soltar a pergunta que lhe faiscára nos labios toda a noite:

— Ó Ega, quem é aquelle homem, aquelle Sousa Netto, que quiz saber se em Inglaterra havia tambem litteratura?

Ega olhou-o com espanto:

— Pois não adivinhaste? Não deduziste logo? Não viste immediatamente quem n’este paiz é capaz de fazer essa pergunta?

— Não sei... Ha tanta gente capaz...

E o Ega radiante:

— Official superior d’uma grande repartição do Estado!

— De qual?

— Ora de qual! De qual ha de ser?... Da Instrucção publica!

Na tarde seguinte, ás cinco horas, Carlos, que se demorára de mais em casa da titi com a condessa, retido pelos seus beijos interminaveis, fez voar o coupé até á rua de S. Francisco, olhando a cada momento o relogio, n’um receio de que Maria Eduarda tivesse sahido por aquelle lindo dia de verão, luminoso e sem calor. Com effeito á porta d’ella estava a carruagem da Companhia; e Carlos galgou as escadas, desesperado com a condessa, sobretudo comsigo mesmo, tão fraco, tão passivo, que assim se deixára retomar por aquelles braços exigentes, cada vez mais pesados, e já incapazes de o commover...

— A senhora chegou agora mesmo, disse-lhe o Domingos, que voltára da terra havia tres dias, e ainda não cessára de lhe sorrir.

Sentada no sofá, de chapéo, tirando as luvas, ella acolheu-o com uma dôce côr no rosto, e uma carinhosa reprehensão:

— Estive á espera mais de meia hora antes de sahir... É uma ingratidão! Imaginei que nos tinha abandonado!

— Porquê? Está peor, miss Sarah?

Ella olhou-o, risonhamente escandalisada. Ora, miss Sarah! Miss Sarah ia seguindo perfeitamente na sua convalescença... Mas agora já não eram as visitas de medico que se esperavam, eram as de amigo; e essa tinha-lhe faltado.

Carlos, sem responder, perturbado, voltou-se para Rosa, que folheava junto da mesa um livro novo d’estampas; e a ternura, a gratidão infinita do seu coração, que não ousava mostrar á mãe, pôl-a toda na longa caricia em que envolveu a filha.

— São historias que a mamã agora comprou, dizia Rosa, séria e presa ao seu livro. Hei de t’as contar depois... São historias de bichos.

Maria Eduarda erguera-se, desapertando lentamente as fitas do chapéo.

— Quer tomar uma chavena de chá comnosco, snr. Carlos da Maia? Eu vinha morrendo por uma chavena de chá... Que lindo dia, não é verdade? Rosa, fica tu a contar o nosso passeio emquanto eu vou tirar o chapéo...

Carlos, só com Rosa, sentou-se junto d’ella, desviando-a do livro, tomando-lhe ambas as mãos.

— Fomos ao Passeio da Estrella, dizia a pequena. Mas a mamã não se queria demorar, porque tu podias ter vindo!

Carlos beijou, uma depois da outra, as duas mãosinhas de Rosa.

— E então que fizeste no Passeio? perguntou elle, depois d’um leve suspiro de felicidade que lhe fugira do peito.

— Andei a correr, havia uns patinhos novos...

— Bonitos?...

A pequena encolheu os hombros:

— Chinfrinzitos.

Chinfrinzitos! Quem lhe tinha ensinado a dizer uma coisa tão feia?

Rosa sorriu. Fôra o Domingos. E o Domingos dizia ainda outras coisas assim, engraçadas... Dizia que a Melanie era uma gaja... O Domingos tinha muita graça.

Então Carlos advertiu-a que uma menina bonita, com tão bonitos vestidos, não devia dizer aquellas palavras... Assim fallava a gente rôta.

— O Domingos não anda rôto, disse Rosa muito séria.

E subitamente, com outra idéa, bateu as palmas, pulou-lhe entre os joelhos, radiante:

— E trouxe-me uns grillos da Praça! O Domingos trouxe-me uns grillos... Se tu soubesses! Niniche tem medo dos grillos! Parece incrivel, hein? Eu nunca vi ninguem mais medrosa...

Esteve um momento a olhar Carlos, e acrescentou, com um ar grave:

— É a mamã que lhe dá tanto mimo. É uma pena!

Maria Eduarda entrava, ageitando ainda de leve o ondeado do cabello: e, ouvindo assim fallar de mimo, quiz saber quem é que ella estragava com mimo... Niniche? Pobre Niniche, coitada, ainda essa manhã fôra castigada!

Então Rosa rompeu a rir, batendo outra vez as mãos:

— Sabes como a mamã a castiga? exclamava ella, puxando a manga de Carlos. Sabes?... Faz-lhe voz grossa... Diz-lhe em inglez: Bad dog! dreadful dog!

Era encantadora assim, imitando a voz severa da mamã, com o dedinho erguido, a ameaçar Niniche. A pobre Niniche, imaginando com effeito que a estavam a reprehender, arrastou-se, vexada, para debaixo do sofá. E foi necessario que Rosa a tranquillisasse, de joelhos sobre a pelle de tigre, jurando-lhe, por entre abraços, que ella nem era mau cão, nem feio cão; fôra só para contar como fazia a mamã...

— Vai-lhe dar agua, que ella deve estar com sêde, disse então Maria Eduarda, indo sentar-se na sua cadeira escarlate. E dize ao Domingos que nos traga o chá.

Rosa e Niniche partiram correndo. Carlos veio occupar, junto da janella, a costumada poltrona de reps. Mas pela primeira vez, desde a sua intimidade, houve entre elles um silencio difficil. Depois ella queixou-se de calor, desenrolando distrahidamente o bordado; e Carlos permanecia mudo, como se para elle, n’esse dia, apenas houvesse encanto, apenas houvesse significação n’uma certa palavra de que os seus labios estavam cheios e que não ousavam murmurar, que quasi receava que fosse adivinhada apesar d’ella suffocar o seu coração.

— Parece que nunca se acaba, esse bordado! disse elle por fim, impaciente de a vêr, tão serena, a occupar-se das suas lãs.

Com a talagarça desdobrada sobre os joelhos, ella respondeu, sem erguer os olhos:

— E para que se ha de acabar? O grande prazer é andal-o a fazer, pois não acha? Uma malha hoje, outra malha ámanhã, torna-se assim uma companhia... Para que se ha de querer chegar logo ao fim das coisas?

Uma sombra passou no rosto de Carlos. N’estas palavras, ditas de leve ácerca do bordado, elle sentia uma desanimadora allusão ao seu amor, — esse amor que lhe fôra enchendo o coração á maneira que a lã cobria aquella talagarça, e que era obra simultanea das mesmas brancas mãos. Queria ella pois conserval-o alli, arrastado como o bordado, sempre acrescentado e sempre incompleto, guardado tambem no cesto da costura, para ser o desafogo da sua solidão?

Disse-lhe então, commovido:

— Não é assim. Ha coisas que só existem quando se completam, e que só então dão a felicidade que se procurava n’ellas.

— É muito complicado isso, murmurou ella, córando. É muito subtil...

— Quer que lh’o diga mais claramente?

N’esse instante Domingos, erguendo o reposteiro, annunciou que estava alli o snr. Damaso...

Maria Eduarda teve um movimento brusco de impaciencia:

— Diga que não recebo!

Fóra, no silencio, sentiram bater a porta. E Carlos ficou inquieto, lembrando-se que o Damaso devia ter visto em baixo, passeando na rua, o seu coupé. Santo Deus! O que elle iria tagarellar agora, com os seus pequeninos rancores, assim humilhado! Quasi lhe pareceu n’esse instante a existencia do Damaso incompativel com a tranquillidade do seu amor.

— Ahi está outro inconveniente d’esta casa, dizia no emtanto Maria Eduarda. Aqui ao lado d’esse Gremio, a dois passos do Chiado, é demasiadamente accessivel aos importunos. Tenho agora de repellir quasi todos os dias este assalto á minha porta! É intoleravel.

E com uma subita idéa, atirando o bordado para o açafate, cruzando as mãos sobre os joelhos:

— Diga-me uma coisa que lhe tenho querido perguntar... Não me seria possivel arranjar por ahi uma casinhola, um cottage, onde eu fosse passar os mezes de verão?... Era tão bom para a pequena! Mas não conheço ninguem, não sei a quem me hei de dirigir...

Carlos lembrou-se logo da bonita casa do Craft, nos Olivaes — como já n’outra occasião em que ella mostrára desejos d’ir para o campo. Justamente, n’esses ultimos tempos, Craft voltára a fallar, e mais decidido, no antigo plano de vender a quinta, e desfazer-se das suas collecções. Que deliciosa vivenda para ella, artistica e campestre, condizendo tão bem com os seus gostos! Uma tentação atravessou-o, irresistivel.

— Eu sei com effeito d’uma casa... E tão bem situada, que lhe convinha tanto!...

— Que se aluga?

Carlos não hesitou:

— Sim, é possivel arranjar-se...

— Isso era um encanto!

Ella tinha dito — «era um encanto». E isto decidiu-o logo, parecendo-lhe desamoravel e mesquinho o ter-lhe suggerido uma esperança, e não lh’a realisar com fervor.

O Domingos entrára com o taboleiro do chá. E emquanto o collocava sobre uma pequena mesa, defronte de Maria Eduarda, ao pé da janella, Carlos, erguendo-se, dando alguns passos pela sala, pensava em começar immediatamente negociações com o Craft, comprar-lhe as collecções, alugar-lhe a casa por um anno, e offerecel-a a Maria Eduarda para os mezes de verão. E não considerava, n’esse instante, nem as difficuldades, nem o dinheiro. Via só a alegria d’ella passeando com a pequena, entre as bellas arvores do jardim. E como Maria Eduarda deveria ser mais grandemente formosa no meio d’esses moveis da Renascença, severos e nobres!

— Muito assucar? perguntou ella.

— Não... Perfeitamente, basta.

Viera sentar-se na sua velha poltrona; e, recebendo a chavena de porcelana ordinaria com um filetesinho azul, recordava o magnifico serviço que tinha o Craft, de velho Wedgewood, oiro e côr de fogo. Pobre senhora! tão delicada, e alli enterrada entre aquelles reps, maculando a graça das suas mãos nas coisas reles da mãi Cruges!

— E onde é essa casa? perguntou Maria Eduarda.

— Nos Olivaes, muito perto d’aqui, vai-se lá n’uma hora de carruagem...

Explicou-lhe detalhadamente o sitio, — acrescentando, com os olhos n’ella, e com um sorriso inquieto:

— Estou aqui a preparar lenha para me queimar!... Porque se fôr para lá installar-se, e depois vier o calor, quem é que a torna a vêr?

Ella pareceu surprehendida:

— Mas que lhe custa, a si, que tem cavallos, que tem carruagens, que não tem quasi nada que fazer?...

Assim ella achava natural que elle continuasse nos Olivaes as suas visitas de Lisboa! E pareceu-lhe logo impossivel renunciar ao encanto d’esta intimidade, tão largamente offerecida, e decerto mais dôce na solidão d’aldêa. Quando acabou a sua chavena de chá — era como se a casa, os moveis, as arvores fossem já seus, fossem já d’ella. E teve alli um momento delicioso, descrevendo-lhe a quietação da quinta, a entrada por uma rua d’acacias, e a belleza da sala de jantar com duas janellas abrindo sobre o rio...

Ella escutava-o, encantada:

— Oh! isso era o meu sonho! Vou ficar agora toda alterada, cheia d’esperanças... Quando poderei ter uma resposta?

Carlos olhou o relogio. Era já tarde para ir aos Olivaes. Mas logo na manhã seguinte cedo, ia fallar com o dono da casa, seu amigo...

— Quanto incommodo por minha causa! disse ella. Realmente! como lhe hei de eu agradecer?...

Calou-se; mas os seus bellos olhos ficaram um instante pousados nos de Carlos, como esquecidos, e deixando fugir irresistivelmente um pouco do segredo que ella retinha no seu coração.

Elle murmurou:

— Por mais que eu fizesse, ficaria bem pago de tudo se me olhasse outra vez assim.

Uma onda de sangue cobriu toda a face de Maria Eduarda.

— Não diga isso...

— E que necessidade ha que eu lh’o diga? Pois não sabe perfeitamente que a adoro, que a adoro, que a adoro!

Ella ergueu-se bruscamente, elle tambem: — e assim ficaram, mudos, cheios d’anciedade, trespassando-se com os olhos, como se se tivesse feito uma grande alteração no Universo, e elles esperassem, suspensos, o desfecho supremo dos seus destinos... E foi ella que fallou, a custo, quasi desfallecida, estendendo para elle, como se o quizesse afastar, as mãos inquietas e tremulas:

— Escute! Sabe bem o que eu sinto por si, mas escute... Antes que seja tarde ha uma coisa que lhe quero dizer...

Carlos via-a assim tremer, via-a toda pallida... E nem a escutára, nem a comprehendera. Sentia apenas, n’um deslumbramento, que o amor comprimido até ahi no seu coração irrompera por fim, triumphante, e embatendo no coração d’ella, através do apparente marmore do seu peito, fizera de lá resaltar uma chamma igual... Só via que ella tremia, só via que ella o amava... E, com a gravidade forte d’um acto de posse, tomou-lhe lentamente as mãos, que ella lhe abandonou, submissa de repente, já sem força, e vencida. E beijava-lh’as ora uma ora outra, e as palmas, e os dedos, devagar, murmurando apenas:

— Meu amor! meu amor! meu amor!

Maria Eduarda cahira pouco a pouco sobre a cadeira; e, sem retirar as mãos, erguendo para elle os olhos cheios de paixão, ennevoados de lagrimas, balbuciou ainda, debilmente, n’uma derradeira supplicação:

— Ha uma coisa que eu lhe queria dizer!...

Carlos estava já ajoelhado aos seus pés.

— Eu sei o que é! exclamou, ardentemente, junto do rosto d’ella, sem a deixar fallar mais, certo de que adivinhára o seu pensamento. Escusa de dizer, sei perfeitamente. É o que eu tenho pensado tantas vezes! É que um amor como o nosso não póde viver nas condições em que vivem outros amores vulgares... É que desde que eu lhe digo que a amo, é como se lhe pedisse para ser minha esposa diante de Deus...

Ella recuava o rosto, olhando-o angustiosamente, e como se não comprehendesse. E Carlos continuava mais baixo, com as mãos d’ella presas, penetrando-a toda da emoção que o fazia tremer:

— Sempre que pensava em si, era já com esta esperança d’uma existencia toda nossa, longe d’aqui, longe de todos, tendo quebrado todos os laços presentes, pondo a nossa paixão acima de todas as ficções humanas, indo ser felizes para algum canto do mundo, solitariamente e para sempre... Levamos Rosa, está claro, sei que não se póde separar d’ella... E assim viveriamos sós, todos tres, n’um encanto!

— Meu Deus! Fugirmos? murmurou ella, assombrada.

Carlos erguera-se.

— E que podemos fazer? Que outra coisa podemos nós fazer, digna do nosso amor?

Maria não respondeu, immovel, a face erguida para elle, branca de cera. E pouco a pouco uma idéa parecia surgir n’ella, inesperada e perturbadora, revolvendo todo o seu sêr. Os seus olhos alargavam-se, anciosos e refulgentes.

Carlos ia fallar-lhe... Um leve rumor de passos na esteira da sala deteve-o. Era o Domingos que vinha recolher a bandeja do chá: e durante um momento, quasi interminavel, houve entre aquelles dois sêres, sacudidos por um ardente vendaval de paixão, a caseira passagem d’um criado arrumando chavenas vazias. Maria Eduarda, bruscamente, refugiou-se detraz das bambinellas de cretone com o rosto contra a vidraça. Carlos foi sentar-se no sofá, a folhear ao acaso uma Illustração, que lhe tremia nas mãos. E não pensava em nada, nem sabia onde estava... Ainda na vespera, havia ainda instantes, conversando com ella, dizia ceremoniosamente «minha cara senhora»: depois houvera um olhar; e agora deviam fugir ambos, e ella tornára-se o cuidado supremo da sua vida, e a esposa secreta do seu coração.

— V. exc.ª quer mais alguma coisa? perguntou o Domingos.

Maria Eduarda respondeu sem se voltar:

— Não.

O Domingos sahiu, a porta ficou cerrada. Ella então atravessou a sala, veio para Carlos, que a esperava no sofá, com os braços estendidos. E era como se obedecesse só ao impulso da sua ternura, calmadas já todas as incertezas. Mas hesitou de novo diante d’aquella paixão, tão prompta a apoderar-se de todo o seu sêr, e murmurou, quasi triste:

— Mas conhece-me tão pouco!... Conhece-me tão pouco, para irmos assim ambos, quebrando por tudo, crear um destino que é irreparavel...

Carlos tomou-lhe as mãos, fazendo-a sentar ao seu lado, brandamente:

— O bastante para a adorar acima de tudo, e sem querer mais nada na vida!

Um instante Maria Eduarda ficou pensativa, como recolhida no fundo do seu coração, escutando-lhe as derradeiras agitações. Depois soltou um longo suspiro.

— Pois seja assim! Seja assim... Havia uma coisa que eu lhe queria dizer, mas não importa... É melhor assim!...

E que outra coisa podiam fazer? perguntava Carlos radiante. Era a unica solução digna, séria... E nada os podia embaraçar; amavam-se, confiavam absolutamente um no outro; elle era rico, o mundo era largo...

E ella repetia, mais firme agora, já decidida, e como se aquella resolução a cada momento se cravasse mais fundo na sua alma, penetrando-a toda e para sempre:

— Pois seja assim! É melhor assim!

Um momento ficaram calados, olhando-se arrebatadamente.

— Dize-me ao menos que és feliz, murmurou Carlos.

Ella lançou-lhe os braços ao pescoço: e os seus labios uniram-se n’um beijo profundo, infinito, quasi immaterial pelo seu extasi. Depois Maria Eduarda descerrou lentamente as palpebras, e disse-lhe, muito baixo:

— Adeus, deixa-me só, vai.

Elle tomou o chapéo, e sahiu.

No dia seguinte Craft, que havia uma semana não ia ao Ramalhete, passeava na quinta antes d’almoço — quando appareceu Carlos. Apertaram as mãos, fallaram um instante do Ega, da chegada dos Cohens. Depois, Carlos, fazendo um gesto largo que abrangia a quinta, a casa, todo o horisonte, perguntou rindo:

— Você quer-me vender tudo isto, Craft?

O outro respondeu, sem pestanejar, e com as mãos nas algibeiras:

— A la disposicion de ustêd...

E alli mesmo concluiram a negociação, passeando n’uma ruasinha de buxo por entre os geranios em flôr.

Craft cedia a Carlos todos os seus moveis antigos e modernos por duas mil e quinhentas libras, pagas em prestações: só reservava algumas raras peças do tempo de Luiz XV, que deviam fazer parte d’essa nova collecção que planeava, homogenea, e toda do seculo XVIII. E como Carlos não tinha no Ramalhete lugar para este vasto bric-à-brac, Craft alugava-lhe por um anno a casa dos Olivaes, com a quinta.

Depois foram almoçar. Carlos nem por um momento pensou na larga despeza que fazia, só para offerecer uma residencia de verão, por dois curtos mezes — a quem se contentaria com um simples cottage, entre arvores de quintal. Pelo contrario! quando repercorreu as salas do Craft, já com olhos de dono, achou tudo mesquinho, pensou em obras, em retoques de gosto.

Com que alegria, ao deixar os Olivaes, correu á rua de S. Francisco, a annunciar a Maria Eduarda que lhe arranjára emfim definitivamente uma linda casa no campo! Rosa, que da varanda o vira apear-se, veio ao seu encontro ao patamar: elle ergueu-a nos braços, entrou assim na sala, com ella ao collo, em triumpho. E não se conteve; foi á pequena que deu logo «a grande novidade», annunciando-lhe que ia ter duas vaccas, e uma cabra, e flôres, e arvores para se balouçar...

— Onde é? Dize, onde é? exclamava Rosa, com os lindos olhos resplandecentes, e a facesinha cheia de riso.

— D’aqui muito longe... Vai-se n’uma carruagem... Vêem-se passar os barcos no rio... E entra-se por um grande portão onde ha um cão de fila.

Maria Eduarda appareceu, com Niniche ao collo.

— Mamã, mamã! gritou Rosa correndo para ella, dependurando-se-lhe do vestido. Diz que vou ter duas cabrinhas, e um balouço... É verdade? Dize, deixa vêr, onde é? Dize... E vamos já para lá?

Maria e Carlos apertaram a mão, com um longo olhar, sem uma palavra. E logo junto da mesa, com Rosa encostada aos seus joelhos, Carlos contou a sua ida aos Olivaes... O dono da casa estava prompto a alugar, já, n’uma semana... E assim se achava ella de repente com uma vivenda pittoresca, mobilada n’um bello estylo, deliciosamente saudavel...

Maria Eduarda parecia surprehendida, quasi desconfiada.

— Ha de ser necessario levar roupas de cama, roupas de mesa...

— Mas ha tudo! exclamou Carlos alegremente, ha quasi tudo! É tal qual como n’um conto de fadas... As luzes estão accêsas, as jarras estão cheias de flôres... É só tomar uma carruagem e chegar.

— Sómente, é necessario saber o que esse paraiso me vae custar...

Carlos fez-se vermelho. Não previra que se fallasse em dinheiro — e que ella quereria decerto pagar a casa que habitasse... Então preferiu confessar-lhe tudo. Disse-lhe como o Craft, havia quasi um anno, andava desejando desfazer-se das suas collecções, e alugar a quinta: o avô e elle tinham repetidamente pensado em adquirir grande parte dos moveis e das faienças, para acabar de mobilar o Ramalhete, e ornamentar mais Santa Olavia; e elle emfim decidira-se a fazer essa compra desde que entrevira a felicidade de lhe poder offerecer, por alguns mezes de verão, uma residencia tão graciosa, e tão confortavel...

— Rosa, vai lá para dentro, disse Maria Eduarda, depois de um momento de silencio... Miss Sarah está á tua espera.

Depois, olhando para Carlos, muito séria:

— De sorte que, se eu não mostrasse desejos de ir para o campo, não tinha feito essa despeza...

— Tinha feito a mesma despeza... Tinha tambem alugado a casa por seis mezes ou por um anno... Onde possuia eu agora de repente um sitio para metter as coisas do Craft? O que não fazia talvez era comprar conjuntamente roupas de cama, roupas de mesa, mobilias dos quartos dos criados, etc....

E acrescentou, rindo:

— Ora se me quizer indemnisar d’isso podemos debater esse negocio...

Ella baixou os olhos, reflectindo, lentamente.

— Em todo o caso seu avô e os seus amigos devem saber d’aqui a dias que me vou installar n’essa casa... E devem comprehender que a comprou para que eu lá me installasse...

Carlos procurou o seu olhar que permanecia pensativo, desviado d’elle. E isto inquietou-o — o vêl-a assim retrahir-se áquella absoluta communhão d’interesses em que a queria envolver, como esposa do seu coração.

— Não approva então o que fiz? Seja franca...

— Decerto... Como não hei de eu approvar tudo quanto faz, tudo quanto vem de si? Mas...

Elle acudiu, apoderando-se das suas mãos, sentindo-se triumphar:

— Não ha mas! O avô e os meus amigos sabem que eu tenho uma casa no campo, inutil por algum tempo, e que a aluguei a uma senhora. De resto, se quizer, metteremos n’isto tudo o meu procurador... Minha cara amiga, se fosse possivel que a nossa affeição se passasse fóra do mundo, distante de todos os olhares, ao abrigo de todas as suspeitas, seria delicioso... Mas não póde ser!... Alguem tem de saber sempre alguma coisa; quando não seja senão o cocheiro que me leva todos os dias a sua casa, quando não seja senão o criado que me abre todos os dias a sua porta... Ha sempre alguem que surprehende o encontro de dois olhares; ha sempre alguem que adivinha d’onde se vem a certas horas... Os deuses antigamente arranjavam essas coisas melhor, tinham uma nuvem que os tornava invisiveis. Nós não somos deuses, felizmente...

Ella sorriu.

— Quantas palavras para converter uma convertida!

E tudo ficou harmonisado n’um grande beijo.

Affonso da Maia approvou plenamente a compra das collecções do Craft. «É um valor, disse elle ao Villaça, e acabamos d’encher com boa arte Santa-Olavia e o Ramalhete.»

Mas o Ega indignou-se, chegou a fallar em «desvario», — despeitado por essa transacção secreta para que não fôra consultado. O que o irritava sobretudo era vêr, n’esta acquisição inesperada de uma casa de campo, outro symptoma do grave e do fundo segredo que presentia na vida de Carlos: e havia já duas semanas que elle habitava o Ramalhete e Carlos ainda não lhe fizera uma confidencia!... Desde a sua ligação de rapazes em Coimbra, nos Paços de Cella, fôra elle o confessor secular de Carlos: mesmo em viagem, Carlos não tinha uma aventura banal d’hotel, de que não mandasse ao Ega «um relatorio». O romance com a Gouvarinho, de que Carlos ao principio tentára, frouxamente, guardar um mysterio delicado, já o conhecia todo, já lêra as cartas da Gouvarinho, já passára pela casa da titi...

Mas do outro segredo não sabia nada — e considerava-se ultrajado. Via todas as manhãs Carlos partir para a rua de S. Francisco, levando flôres; via-o chegar de lá, como elle dizia, «besuntado d’extasi»; via-lhe os silencios repassados de felicidade, e esse indefinido ar, ao mesmo tempo sério e ligeiro, risonho e superior, do homem profundamente amado... E não sabia nada.

Justamente alguns dias depois, estando ambos sós, a fallar de planos de verão, Carlos alludiu aos Olivaes, com enthusiasmo, relembrando algumas das preciosidades do Craft, o dôce socego da casa, a clara vista do Tejo... Aquillo realmente fôra obter por uma mão cheia de libras um pedaço do paraiso...

Era á noite, no quarto de Carlos, já tarde. E o Ega, que passeava com as mãos nas algibeiras do robe-de-chambre, encolheu os hombros, impaciente, farto d’aquelles louvores eternos á casinhola do Craft.

— Essa concepção do paraiso, exclamou elle, parece-me d’um estofador da rua Augusta! Como natureza, couves gallegas; como decoração, os velhos cretones do gabinete, desbotados já por tres barrelas... Um quarto de dormir lugubre como uma capella de santuario... Um salão confuso como o armazem d’um cara-de-pau, e onde não é possivel conversar... A não ser o armario hollandez, e um ou outro prato, tudo aquillo é um lixo archeologico... Jesus! o que eu odeio bric-à-brac!

Carlos, no fundo da sua poltrona, disse tranquillamente, e como reflectindo:

— Com effeito esses cretones são medonhos... Mas eu vou mandar remobilar, tornar aquillo mais habitavel.

Ega estacou no meio do quarto, com o monoculo a faiscar sobre Carlos.

— Habitavel? Vaes ter hospedes?

— Vou alugar.

— Vaes alugar! A quem?

E o silencio de Carlos, que soprava o fumo da cigarrette com os olhos no tecto, enfureceu Ega. Comprimentou quasi até ao chão, disse sarcasticamente:

— Peço perdão. A pergunta foi brutal. Tive agora o ar de querer arrombar uma gaveta fechada... O aluguel d’um predio é sempre um d’esses delicados segredos de sentimento e de honra em que não deve roçar nem a aza da imaginação... Fui rude... Irra! Fui bestialmente rude!

Carlos continuava calado. Comprehendia bem o Ega — e quasi sentia um remorso d’aquella sua rigida reserva. Mas era como um pudor que o enleava, lhe impedia de pronunciar sequer o nome de Maria Eduarda. Todas as suas outras aventuras as contára ao Ega; e essas confidencias constituiam talvez mesmo o prazer mais solido que ellas lhe davam. Isto, porém, não era «uma aventura». Ao seu amor misturava-se alguma coisa de religioso; e, como os verdadeiros devotos, repugnava-lhe conversar sobre a sua fé... Todavia, ao mesmo tempo, sentia uma tentação de fallar d’ella ao Ega, e de tornar vivas, e como visiveis aos seus proprios olhos, dando-lhes o contorno das palavras e o seu relevo, as coisas divinas e confusas que lhe enchiam o coração. Além d’isso, Ega não saberia tudo, mais tarde ou mais cedo, pela tagarellice alheia? Antes lh’o dissesse elle, fraternalmente. Mas hesitou ainda, accendeu outra cigarrette. Justamente o Ega tomára o seu castiçal, e começava a accendel-o a uma serpentina, devagar e com um ar amuado.

— Não sejas tolo, não te vás deitar, senta-te ahi, disse Carlos.

E contou-lhe tudo miudamente, diffusamente, desde o primeiro encontro, á entrada do Hotel Central, no dia do jantar ao Cohen.

Ega escutava-o, sem uma palavra, enterrado no fundo do sofá. Suppuzera um romancesinho, d’esses que nascem e morrem entre um beijo e um bocejo: e agora, só pelo modo como Carlos fallava d’aquelle grande amor, elle sentia-o profundo, absorvente, eterno, e para bem ou para mal tornando-se d’ahi por diante, e para sempre, o seu irreparavel destino. Imaginára uma brazileira polida por Paris, bonita e futil, que tendo o marido longe, no Brazil, e um formoso rapaz ao lado, no sofá, obedecia simplesmente e alegremente á disposição das coisas: e sahia-lhe uma creatura cheia de caracter, cheia de paixão, capaz de sacrificios, capaz de heroismos. Como sempre, diante d’estas coisas patheticas, murchava-lhe a veia, faltava-lhe a phrase; e quando Carlos se calou, o bom Ega teve esta pergunta chôcha:

— Então estás decidido a safar-te com ella?

— A safar-me, não; a ir viver com ella longe d’aqui, decididissimo!

Ega ficou um momento a olhar para Carlos como para um phenomeno prodigioso, e murmurou:

— É d’arromba!

Mas que outra coisa podiam elles fazer? D’ahi a tres mezes talvez, Castro Gomes chegava do Brazil. Ora nem Carlos, nem ella, aceitariam nunca uma d’essas situações atrozes e reles em que a mulher é do amante e do marido, a horas diversas... Só lhes restava uma solução digna, decente, séria — fugir.

Ega, depois de um silencio, disse pensativamente:

— Para o marido é que não é talvez divertido perder assim, de uma vez, a mulher, a filha, e a cadellinha...

Carlos ergueu-se, deu alguns passos pelo quarto. Sim, tambem elle já pensára n’isso... E não sentia remorsos — mesmo quando os podesse haver no absoluto egoismo da paixão... Elle não conhecia intimamente Castro Gomes: mas tinha podido adivinhar o typo, reconstruil-o, pelo que lhe dissera o Damaso, e por algumas conversas com miss Sarah. Castro Gomes não era um esposo a sério: era um dandy, um futil, um gommeux, um homem de sport e de cocottes... Casára com uma mulher bella, saciára a paixão, e recomeçára a sua vida de club e de bastidores... Bastava olhar para elle, para a sua toilette, para os seus modos — e comprehendia-se logo a trivialidade d’aquelle caracter...

— Que tal é, como homem? perguntou Ega.

— Um brazileirito trigueiro, com um ar espartilhado... Um rastaquouère, o verdadeiro typosinho do Café de la Paix... É possivel que sinta, quando isto vier a succeder, um certo ardor na vaidade ferida... Mas é um coração que se ha de consolar facilmente nas Folies Bergères.

Ega não dizia nada. Mas pensava que um homem de club, e mesmo consolavel nas Folies Bergères, póde não se importar muito com sua mulher, mas póde todavia amar muito sua filha... Depois, atravessado por uma outra idéa, acrescentou:

— E teu avô?

Carlos encolheu os hombros:

— O avô tem de se affligir um pouco para eu poder ser profundamente feliz; como eu teria de ser desgraçado toda a minha vida se quizesse poupar ao avô essa contrariedade... O mundo é assim, Ega... E eu, n’esse ponto, não estou decidido a fazer sacrificios.

Ega esfregou lentamente as mãos, com os olhos no chão, repetindo a mesma palavra, a unica que lhe suggeria todo o seu espirito perante aquellas coisas vehementes:

— É d’arromba!

III

 

Carlos, que almoçára cedo, estava para sahir no coupé, e já de chapéo — quando Baptista veio dizer que o snr. Ega, desejando fallar-lhe n’uma coisa grave, lhe pedia para esperar um instante. O snr. Ega ficára a fazer a barba.

Carlos pensou logo que se tratava da Cohen. Havia duas semanas que ella chegára a Lisboa, Ega ainda a não vira, e fallava d’ella raramente. Mas Carlos sentia-o nervoso e desassocegado. Todas as manhãs o pobre Ega mostrava um desapontamento ao receber o correio, que só lhe trazia algum jornal cintado, ou cartas de Celorico. Á noite percorria dois, tres theatros, já quasi vazios n’aquelle começo de verão; e ao recolher era outra desconsolação, quando os criados lhe affirmavam, com certeza, que não viera carta alguma para s. exc.ª Decerto Ega não se resignava a perder Rachel, anciava por a encontrar; e roía-o o despeito de que ella, de qualquer modo, lhe não tivesse mostrado que no seu coração permanecia ao menos a saudade das antigas felicidades... Justamente na vespera Ega apparecera á hora do jantar, transtornado: cruzára-se com o Cohen na rua do Ouro, e parecera-lhe que «esse canalha» lhe atirára de lado um olhar atrevido, sacudindo a bengala; o Ega jurava que se «esse canalha» ousasse outra vez fital-o, espedaçava-o, sem piedade, publicamente, a uma esquina da Baixa.

Na ante-camara o relogio bateu dez horas, Carlos impaciente ia a subir ao quarto do Ega. Mas n’esse instante o correio chegava, com a Revista dos Dois Mundos, e uma carta para Carlos. Era da Gouvarinho. Carlos acabava de a lêr — quando o Ega appareceu, de jaquetão, e em chinelas.

— Tenho a fallar-te n’uma coisa grave, menino.

— Lê isto primeiro, disse o outro, passando-lhe a carta da Gouvarinho.

A Gouvarinho, n’um tom amargo, queixava-se que, já por duas vezes, Carlos faltára ao rendez-vous em casa da titi, sem lhe ter sequer escripto uma palavra; ella vira n’isto uma offensa, uma brutalidade; e vinha agora intimal-o, «em nome de todos os sacrificios que por elle fizera», a que apparecesse na rua de S. Marçal, domingo ao meio dia, para terem uma explicação definitiva antes d’ella partir para Cintra.

— Excellente occasião d’acabar! exclamou Ega, entregando a carta a Carlos, depois de respirar o perfume do papel. Não vás, nem respondas... Ella parte para Cintra, tu para Santa Olavia, não vos vêdes mais, e assim finda o romance. Finda como todas as coisas grandes, como o Imperio Romano, e como o Rheno, por dispersão, insensivelmente...

— É o que eu vou fazer, disse Carlos, começando a calçar as luvas. Jesus! Que mulher massadora!

— E que desavergonhada! Chamar a essas coisas «sacrificios!...» Arrasta-te duas vezes por semana a casa da titi, regala-se lá de extravagancias, bebe champagne, fuma cigarrettes, sobe ao setimo céo, delira, e depois põe dolorosamente os olhos no chão, e chama a isso «sacrificios...» Só com um chicote!...

Carlos encolheu os hombros, com resignação, como se nas condessas de Gouvarinho, e no mundo, só houvesse incoherencia e dólo.

— E que é isso que tu me tinhas a dizer?

Ega então tomou um ar grave. Escolheu lentamente na caixa uma cigarrette, abotoou devagar o jaquetão.

— Tu não tens visto o Damaso?

— Nunca mais me appareceu, disse Carlos. Creio que está amuado... Eu sempre que o encontro, aceno-lhe de longe amigavelmente com dois dedos...

— Devia ser antes com a bengala. O Damaso anda ahi, por toda a parte, fallando de ti e d’essa senhora, tua amiga... A ti chama-te pulha, a ella peor ainda. É a velha historia; diz que te apresentou, que te metteste de dentro, e como para essa senhora é uma questão de dinheiro, e tu és o mais rico, ella lhe passou o pé... Vês d’ahi a infamiasinha. E isto tagarellado pelo Gremio, pela Casa Havaneza, com detalhes torpes, envolvendo sempre a questão de dinheiro. Tudo isto é atroz. Trata de lhe pôr cobro.

Carlos, muito pallido, disse simplesmente:

— Ha de se fazer justiça.

Desceu, indignado. Aquella torpe insinuação sobre «dinheiro» parecia-lhe poder ser castigada só com a morte. E um instante mesmo, com a mão no fecho da portinhola do coupé, pensou em correr a casa do Damaso, tomar um desforço brutal.

Mas eram quasi onze horas, e elle tinha d’ir aos Olivaes. No dia seguinte, sabbado, dia bello entre todos e solemne para o seu coração, Maria Eduarda devia emfim visitar a quinta do Craft: e ficára combinado, na vespera, que passariam lá as horas do calor, até tarde, sós, n’aquella casa solitaria e sem criados, escondida entre as arvores. Elle pedira-lh’o assim, hesitante e a tremer: ella consentira logo, sorrindo e naturalmente. N’essa manhã elle mandára aos Olivaes dois criados para arejar as salas, espanejar, encher tudo de flôres. Agora ia lá, como um devoto, vêr se estava bem enfeitado o sacrario da sua deusa... E era através d’estes deliciosos cuidados, em plena ventura, que lhe apparecia outra vez, suja e empanando o brilho do seu amor, a tagarellice do Damaso!

Até aos Olivaes, não cessou de ruminar coisas vagas e violentas que faria para aniquilar o Damaso. No seu amor não haveria paz, emquanto aquelle villão o andasse commentando sordidamente pelas esquinas das ruas. Era necessario enxovalhal-o de tal modo, com tal publicidade, que elle não ousasse mais mostrar em Lisboa a face bochechuda, a face vil... Quando o coupé parou á porta da quinta, Carlos decidira dar bengaladas no Damaso, uma tarde, no Chiado, com apparato...

Mas depois, ao regressar da quinta, vinha já mais calmo. Pisára a linda rua d’acacias que os pés d’ella pisariam na manhã seguinte: dera um longo olhar ao leito que seria o leito d’ella, rico, alçado sobre um estrado, envolto em cortinados de brocatel côr d’ouro, com um esplendor sério d’altar profano... D’ahi a poucas horas, encontrar-se-hiam sós n’aquella casa muda e ignorada do mundo; depois, todo o verão os seus amores viveriam escondidos n’esse fresco retiro d’aldêa; e d’ahi a tres mezes estariam longe, na Italia, á beira d’um claro lago, entre as flôres d’Isola Bella... No meio d’estas voluptuosidades magnificas, que lhe podia importar o Damaso, gorducho e reles, palrando em calão nos bilhares do Gremio! Quando chegou á rua de S. Francisco resolvera, se visse o Damaso, continuar a acenar-lhe, de leve, com a ponta dos dedos.

Maria Eduarda fôra passear a Belem com Rosa deixando-lhe um bilhete, em que lhe pedia para vir á noite faire un bout de causerie. Carlos desceu as escadas, devagar, guardando esse bocadinho de papel na carteira como uma dôce reliquia; e sahia o portão, no momento em que o Alencar desembocava defronte, da travessa da Parreirinha, todo de preto, moroso e pensativo. Ao avistar Carlos, parou de braços abertos; depois vivamente, como recordando-se, ergueu os olhos para o primeiro andar.

Não se tinham visto desde as corridas, o poeta abraçou com effusão o seu Carlos. E fallou logo de si, copiosamente. Estivera outra vez em Cintra, em Collares com o seu velho Carvalhosa: e o que se lembrára do rico dia passado com Carlos e com o maestro em Sitiaes!... Cintra uma belleza. Elle, um pouco constipado. E apesar da companhia do Carvalhosa, tão erudito e tão profundo, apesar da excellente musica da mulher, da Julinha (que para elle era como uma irmã), tinha-se aborrecido. Questão de velhice...

— Com effeito, disse Carlos, pareces-me um pouco murcho... Falta-te o teu ar aureolado.

O poeta encolheu os hombros.

— O Evangelho lá o diz bem claro... Ou é a Biblia que o diz...? Não; é S. Paulo... S. Paulo ou Santo Agostinho?... Emfim a authoridade não faz ao caso. N’um d’esses santos livros se affirma que este mundo é um valle de lagrimas...

— Em que a gente se ri bastante, disse Carlos alegremente.

O poeta tornou a encolher os hombros. Lagrimas ou risos, que importava?... Tudo era sentir, tudo era viver! Ainda na vespera elle dissera isso mesmo em casa dos Cohens...

E de repente, estacando no meio da rua, tocando no braço de Carlos:

— E agora por fallar nos Cohens, dize-me uma coisa com franqueza, meu rapaz. Eu sei que tu és intimo do Ega, e, que diabo, ninguem lhe admira mais o talento do que eu!... Mas, realmente, tu approvas que elle, apenas soube da chegada dos Cohens, se viesse metter em Lisboa? Depois do que houve!...

Carlos afiançou ao poeta que o Ega só no dia mesmo da chegada, horas depois, soubera pela Gazeta Illustrada a vinda dos Cohens... E de resto se não podessem habitar, conjuntas na mesma cidade, as pessoas entre as quaes tivesse havido attritos desagradaveis, as sociedades humanas tinham de se desfazer...

Alencar não respondeu, caminhando ao lado de Carlos, com a cabeça baixa. Depois parou de novo, franzindo a testa:

— Outra coisa em que te quero fallar. Houve entre ti e o Damaso alguma péga? Eu pergunto-te isto porque n’outro dia, lá em casa dos Cohens, elle veio com uns ditos, umas insinuações... Eu declarei-lhe logo: «Damaso, Carlos da Maia, filho de Pedro da Maia, é como se fosse meu irmão.» E o Damaso calou-se... Calou-se, porque me conhece, e sabe que eu n’estas coisas de lealdade e de coração sou uma fera!

Carlos disse simplesmente:

— Não, não ha nada, não sei nada... Nem sequer tenho visto o Damaso.

— Pois é verdade, continuou Alencar tomando o braço de Carlos, lembrei-me muito de ti em Cintra. Até fiz lá um coisita que me não sahiu má, e que te dediquei... Um simples soneto, uma paizagem, um quadrosinho de Cintra ao pôr do sol. Quiz provar ahi a esses da Idéa Nova, que, sendo necessario, tambem por cá se sabe cinzelar o verso moderno e dar o traço realista. Ora espera ahi, eu te digo, se me lembrar. A coisa chama-se — Na estrada dos Capuchos...

Tinham parado á esquina do Seixas; e o poeta tossira já de leve, antes de recitar, — quando justamente lhes appareceu o Ega, vindo de baixo, vestido de campo, com uma bella rosa branca no jaquetão de flanella azul.

Alencar e elle não se encontravam desde a fatal soirée dos Cohens. E ao passo que o Ega conservava um resentimento feroz contra o poeta vendo n’elle o inventor d’essa perfida lenda da «carta obscena» — Alencar odiava-o pela certeza secreta de que elle fôra o amante amado da sua divina Rachel. Ambos se fizeram pallidos; o aperto de mão que deram foi incerto e regelado; e ficaram calados, todos tres, emquanto Ega nervoso levava uma eternidade a accender o charuto no lume de Carlos. Mas foi elle que fallou, por entre uma fumaça, affectando uma superioridade amavel:

— Acho-te com boa côr, Alencar!

O poeta foi amavel tambem, um pouco d’alto, passando os dedos no bigode:

— Vai-se andando. E tu que fazes? Quando nos dás essas Memorias, homem?

— Estou á espera que o paiz aprenda a lêr.

— Tens que esperar! Pede ao teu amigo Gouvarinho que apresse isso, elle occupa-se da Instrucção publica... Olha, alli o tens tu, grave e ôco como uma columna do Diario do Governo...

O poeta apontava com a bengala para o outro lado da rua, por onde o Gouvarinho descia, muito devagar, a conversar com o Cohen; e ao lado d’elles, de chapéo branco, de collete branco, o Damaso deitava olhares pelo Chiado, risonho, ovante, barrigudo, como um conquistador nos seus dominios. Já aquelle arzinho gordo de tranquillo triumpho irritou Carlos. Mas quando o Damaso parou defronte, no outro passeio, todo de costas para elle, ostentando rir alto com o Gouvarinho, não se conteve, atravessou a rua.

Foi breve, e foi cruel: sacudiu a mão do Gouvarinho, saudou de leve o Cohen: e sem baixar a voz, disse ao Damaso friamente:

— Ouve lá. Se continúas a fallar de mim e de pessoas das minhas relações, do modo como tens fallado, e que não me convém, arranco-te as orelhas.

O conde acudiu, mettendo-se entre elles:

— Maia, por quem é! Aqui no Chiado...

— Não é nada, Gouvarinho, disse Carlos detendo-o, muito sério e muito sereno. É apenas um aviso a este imbecil.

— Eu não quero questões, eu não quero questões!... balbuciou o Damaso, livido, enfiando para dentro d’uma tabacaria.

E Carlos voltou, com socego, para junto dos seus amigos, depois de ter saudado o Cohen e sacudir a mão ao Gouvarinho.

Vinha apenas um pouco pallido: mais perturbado estava o Ega, que julgára vêr de novo, n’um olhar do Cohen, uma provocação intoleravel. Só o Alencar não reparára em nada: continuava a discursar sobre coisas litterarias, explicando ao Ega as concessões que se podiam fazer ao naturalismo...

— Fiquei aqui a dizer ao Ega... É evidente que quando se trata de paizagem é necessario copiar a realidade... Não se pode descrever um castanheiro a priori, como se descreveria uma alma... E lá isso faço eu... Ahi está esse soneto de Cintra que eu te dediquei, Carlos. É realista, está claro que é realista... Pudéra, se é paizagem! Ora eu vol-o digo... Ia justamente dizel-o, quando tu appareceste, Ega... Mas vejam lá vocês se isto os massa...

Qual massava! E até, para o escutarem melhor, penetraram na rua de S. Francisco, mais silenciosa. Ahi, dando um passo lento, depois outro, o poeta murmurou a sua ecloga. Era em Cintra, ao pôr do sol: uma ingleza, de cabellos soltos, toda de branco, desce n’um burrinho por uma vereda que domina um valle; as aves cantam de leve, ha borboletas em torno das madresilvas; então a ingleza pára, deixa o burrinho, olha enlevada o céo, os arvoredos, a paz das casas; — e ahi, no ultimo terceto, vinha «a nota realista» de que se ufanava o Alencar:

Ella olha a flôr dormente, a nuvem casta,

Emquanto o fumo dos casaes se eleva

E ao lado o burro, pensativo, pasta.

— Ahi têm vocês o traço, a nota naturalista... Ao lado o burro, pensativo, pasta... Eis ahi a realidade, está-se a vêr o burro pensativo... Não ha nada mais pensativo que um burro... E são estas pequeninas coisas da natureza que é necessario observar... Já vêem vocês que se póde fazer realismo, e do bom, sem vir logo com obscenidades... Vocês que lhes parece o sonetito?

Ambos o elogiaram profundamente — Carlos arrependido de não ter completado a humilhação do Damaso, dando-lhe bengaladas; Ega pensando que decerto, n’uma d’essas tardes, no Chiado, teria de esbofetear o Cohen. Como elles recolhiam ao Ramalhete, Alencar, já desanuviado, foi acompanhal-os pelo Aterro. E fallou sempre, contando o plano de um romance historico, em que elle queria pintar a grande figura d’Affonso d’Albuquerque, mas por um lado mais humano, mais intimo: Affonso d’Albuquerque namorado: Affonso d’Albuquerque, só, de noite, na pôpa do seu galeão, diante d’Ormuz incendiada, beijando uma flôr secca, entre soluços. Alencar achava isto sublime.

Depois de jantar, Carlos vestia-se para ir á rua de S. Francisco — quando o Baptista veio dizer que o snr. Telles da Gama lhe desejava fallar com urgencia. Não o querendo receber, alli, em mangas de camisa, mandou-o entrar para o gabinete escarlate e preto. E veio d’ahi a um instante encontrar Telles da Gama admirando as bellas faianças hollandezas.

— Você, Maia, tem isto lindissimo, exclamou elle logo. Eu pello-me por porcelanas... Hei de voltar um dia d’estes, com mais vagar, vêr tudo isto, de dia... Mas hoje venho com pressa, venho com uma missão... Você não adivinha?

Carlos não adivinhava.

E o outro, recuando um passo, com uma gravidade em que transparecia um sorriso:

— Eu venho aqui perguntar-lhe da parte do Damaso, se você hoje, n’aquillo que lhe disse, tinha tenção de o offender. É só isto... A minha missão é apenas esta: perguntar-lhe se você tinha intenção de o offender.

Carlos olhou-o, muito sério:

— O quê!? Se tinha intenção de offender o Damaso quando o ameacei de lhe arrancar as orelhas? De modo nenhum: tinha só intenção de lhe arrancar as orelhas!

Telles da Gama saudou, rasgadamente:

— Foi isso mesmo o que eu respondi ao Damaso: que você não tinha senão essa intenção. Em todo o caso, desde este momento, a minha missão está finda... Como você tem isto bonito!... O que é aquelle prato grande, majolica?

— Não, um velho Nevers. Veja você ao pé... É Thetis conduzindo as armas d’Achilles... É esplendido; e é muito raro... Veja você esse Deft, com as duas tulipas amarellas... É um encanto!

Telles da Gama dava um olhar lento a todas estas preciosidades, tomando o chapéo de sobre o sofá.

— Lindissimo tudo isto!... Então só intenção de lhe arrancar as orelhas? nenhuma de o offender?...

— Nenhuma de o offender, toda de lhe arrancar as orelhas... Fume você um charuto.

— Não, obrigado...

— Calice de cognac?

— Não! abstenção total de bebidas e aguas ardentes... Pois adeus, meu bom Maia!

— Adeus, meu bom Telles...

Ao outro dia, por uma radiante manhã de julho, Carlos saltava do coupé, com um mólho de chaves, diante do portão da quinta do Craft. Maria Eduarda devia chegar ás dez horas, só, na sua carruagem da Companhia. O hortelão, dispensado por dois dias, fôra a Villa Franca; não havia ainda criados na casa; as janellas estavam fechadas. E pesava alli, envolvendo a estrada e a vivenda, um d’esses altos e graves silencios d’aldêa, em que se sente, dormente no ar, o zumbir dos moscardos.

Logo depois do portão, penetrava-se n’uma fresca rua d’acacias, onde cheirava bem. A um lado, por entre a ramagem, apparecia o kiosque, com tecto de madeira, pintado de vermelho, que fôra o capricho de Craft, e que elle mobilára á japoneza. E ao fundo era a casa, caiada de novo, com janellas de peitoril, persianas verdes, e a portinha ao centro sobre tres degraus, flanqueados por vasos de louça azul cheios de cravos.

Só o metter a chave devagar e com uma inutil cautela na fechadura d’aquella morada discreta foi para Carlos um prazer. Abriu as janellas: e a larga luz que entrava pareceu-lhe trazer uma doçura rara, e uma alegria maior que a dos outros dias, como preparada especialmente pelo bom Deus para alumiar a festa do seu coração. Correu logo á sala de jantar, a verificar se, na mesa posta para o lunch, se conservavam ainda viçosas as flôres que lá deixára na vespera. Depois voltou ao coupé a tirar o caixote de gelo, que trouxera de Lisboa, embrulhado em flanella, entre serradura. Na estrada, silenciosa por ora, ia só passando uma saloia montada na sua egua.

Mas apenas accommodára o gelo — sentiu fóra o ruido lento da carruagem. Veio para o gabinete forrado de cretones, que abria sobre o corredor; e ficou alli, espreitando da porta, mas escondido, por causa do cocheiro da Companhia. D’ahi a um instante viu-a emfim chegar, pela rua de acacias, alta e bella, vestida de preto, e com um meio-véo espesso como uma mascara. Os seus pésinhos subiram os tres degraus de pedra. Elle sentiu a sua voz inquieta perguntar de leve:

Êtes-vous là?

Appareceu — e ficaram um instante, á porta do gabinete, apertando sofregamente as mãos, sem fallar, commovidos, deslumbrados.

— Que linda manhã! disse ella por fim, rindo e toda vermelha.

— Linda manhã, linda! repetia Carlos, contemplando-a, enlevado.

Maria Eduarda resvalára sobre uma cadeira, junto da porta, n’um cansaço delicioso, deixando calmar o alvoroço do seu coração.

— É muito confortavel, é encantador tudo isto, dizia ella olhando lentamente em redor os cretones do gabinete, o divan turco coberto com um tapete de Brousse, a estante envidraçada cheia de livros. Vou ficar aqui adoravelmente...

— Mas ainda nem lhe agradeci o ter vindo, murmurou Carlos, esquecido, a olhar para ella. Ainda nem lhe beijei a mão...

Maria Eduarda começou a tirar o véo, depois as luvas, fallando da estrada. Achára-a longa, fatigante. Mas que lhe importava? Apenas se accommodasse n’aquelle fresco ninho nunca mais voltava a Lisboa!

Atirou o chapéo para cima do divan — ergueu-se, toda alegre e luminosa.

— Vamos vêr a casa, estou morta por vêr essas maravilhas do seu amigo Craft!... É Craft que se chama? Craft quer dizer industria!

— Mas ainda nem sequer lhe beijei a mão! tornou Carlos, sorrindo e supplicante.

Ella estendeu-lhe os labios, e ficou presa nos seus braços.

E Carlos, beijando-lhe devagar os olhos, o cabello, dizia-lhe quanto era feliz e quanto a sentia agora mais sua entre estes velhos muros de quinta que a separavam do resto do mundo...

Ella deixava-se beijar, séria e grave:

— E é verdade isso? É realmente verdade?...

Se era verdade! Carlos teve um suspiro quasi triste:

— Que lhe hei de eu responder? Tenho de lhe repetir essa coisa antiga que já Hamlet disse: que duvide de tudo, que duvide do sol, mas que não duvide de mim...

Maria Eduarda desprendeu-se, lentamente e perturbada.

— Vamos vêr a casa, disse ella.

Começaram pelo segundo andar. A escada era escura e feia: mas os quartos em cima, alegres, esteirados de novo, forrados de papeis claros, abriam sobre o rio e sobre os campos.

— Os seus aposentos, disse Carlos, hão de ser em baixo, está visto, entre as coisas ricas... Mas Rosa e miss Sarah ficam aqui esplendidamente. Não lhe parece?

E ella percorria os quartos, devagar, examinando a accommodação dos armarios, palpando a elasticidade dos colxões, attenta, cuidadosa, toda no desvelo de alojar bem a sua gente. Por vezes mesmo exigia uma alteração. E era realmente como se aquelle homem que a seguia, enternecido e radiante, fosse apenas um velho senhorio.

— O quarto com as duas janellas, ao fundo do corredor, seria o melhor para Rosa. Mas a pequena não póde dormir n’aquelle enorme leito de pau preto...

— Muda-se!

— Sim, póde mudar-se... E falta uma sala larga para ella brincar, ás horas do calor... Se não houvesse o tabique entre os dois quartos pequenos...

— Deita-se abaixo!

Elle esfregava as mãos, encantado, prompto a refundir toda a casa; e ella não recusava nada, para conforto mais perfeito dos seus.

Desceram á sala de jantar. E ahi, diante da famosa chaminé de carvalho lavrado, flanqueada á maneira de cariatides pelas duas negras figuras de Nubios, com olhos rutilantes de crystal, Maria Eduarda começou a achar o gosto do Craft excentrico, quasi exotico... Tambem Carlos não lhe dizia que Craft tivesse o gosto correcto d’um atheniense. Era um saxonio batido d’um raio de sol meridional: mas havia muito talento na sua excentricidade...

— Oh, a vista é que é deliciosa! exclamou ella chegando-se á janella.

Junto do peitoril crescia um pé de margaridas, e ao lado outro de baunilha que perfumava o ar. Adiante estendia-se um tapete de relva, mal aparada, um pouco amarellada já pelo calor de julho; e entre duas grandes arvores que lhe faziam sombra, havia alli, para os vagares da sésta, um largo banco de cortiça. Um renque de arbustos cerrados parecia fechar a quinta d’aquelle lado como uma sebe. Depois a collina descia, com outras quintarolas, casas que se não viam, e uma chaminé de fabrica; e lá no fundo o rio rebrilhava, vidrado de azul, mudo e cheio de sol, até ás montanhas d’além-Tejo, azuladas tambem na faiscação clara do céo de verão.

— Isto é encantador! repetia ella.

— É um paraiso! Pois não lhe dizia eu? É necessario pôr um nome a esta casa... Como se ha de chamar? Villa-Marie? Não. Château-Rose... Tambem não, crédo! Parece o nome d’um vinho. O melhor é baptisal-a definitivamente com o nome que nós lhe davamos. Nós chamavamos-lhe a Tóca.

Maria Eduarda achou originalissimo o nome de Tóca. Devia-se até pintar em letras vermelhas sobre o portão.

— Justamente, e com uma divisa de bicho, disse Carlos rindo. Uma divisa de bicho egoista na sua felicidade e no seu buraco: Não me mexam!

Mas ella parára, com um lindo riso de surpreza, diante da mesa posta, cheia de fruta, com as duas cadeiras já chegadas, e os crystaes brilhando entre as flôres.

— São as bodas de Canná!

Os olhos de Carlos resplandeceram.

— São as nossas!

Maria Eduarda fez-se muito vermelha; e baixou o rosto a escolher um morango, depois a escolher uma rosa.

— Quer uma gota de champagne? exclamou Carlos. Com um pouco de gelo? Nós temos gelo, temos tudo! Não nos falta nada, nem a benção de Deus... Uma gotinha de champagne, vá!

Ella aceitou: beberam pelo mesmo copo; outra vez os seus labios se encontraram, apaixonadamente.

Carlos accendeu uma cigarrette, continuaram a percorrer a casa. A cozinha agradou-lhe muito, arranjada á ingleza, toda em azulejos. No corredor Maria Eduarda demorou-se diante de uma panoplia de tourada, com uma cabeça negra de touro, espadas e garrochas, mantos de sêda vermelha, conservando nas suas pregas uma graça ligeira, e ao lado o cartaz amarello de la corrida, com o nome de Lagartijo. Isto encantou-a como um quente lampejo de festa e de sol peninsular...

Mas depois o quarto que devia ser o seu, quando Carlos lh’o foi mostrar, desagradou-lhe com o seu luxo estridente e sensual. Era uma alcova, recebendo a claridade d’uma sala forrada de tapeçarias, onde desmaiavam na trama de lã os amores de Venus e Marte: da porta de communicação, arredondada em arco de capella, pendia uma pesada lampada da Renascença, de ferro forjado: e, áquella hora, batida por uma larga facha de sol, a alcova resplandecia como o interior de um tabernaculo profanado, convertido em retiro lascivo de serralho... Era toda forrada, paredes e tectos, de um brocado amarello, côr de botão d’ouro; um tapete de velludo do mesmo tom rico fazia um pavimento d’ouro vivo sobre que poderiam correr nús os pés ardentes d’uma deusa amorosa — e o leito de docel, alçado sobre um estrado, coberto com uma colcha de setim amarello bordada a flôres d’ouro, envolto em solemnes cortinas tambem amarellas de velho brocatel, — enchia a alcova, esplendido e severo, e como erguido para as voluptuosidades grandiosas de uma paixão tragica do tempo de Lucrecia ou de Romeu. E era alli que o bom Craft, com um lenço de sêda da India amarrado na cabeça, resonava as suas sete horas, pacata e solitariamente.

Mas Maria Eduarda não gostou d’estes amarellos excessivos. Depois impressionou-se, ao reparar n’um painel antigo, defumado, resaltando em negro do fundo de todo aquelle ouro — onde apenas se distinguia uma cabeça degolada, livida, gelada no seu sangue, dentro d’um prato de cobre. E para maior excentricidade, a um canto, de cima de uma columna de carvalho, uma enorme coruja empalhada fixava no leito d’amor, com um ar de meditação sinistra, os seus dois olhos redondos e agourentos... Maria Eduarda achava impossivel ter alli sonhos suaves.

Carlos agarrou logo na columna e no mocho, atirou-os para um canto do corredor; e propoz-lhe mudar aquelles brocados, forrar a alcova de um setim côr de rosa e risonho.

— Não, venho-me a acostumar a todos esses ouros... Sómente aquelle quadro, com a cabeça, e com o sangue... Jesus, que horror!

— Reparando bem, disse Carlos, creio que é o nosso velho amigo S. João Baptista.

Para desfazer essa impressão desconsolada levou-a ao salão nobre, onde Craft concentrára as suas preciosidades. Maria Eduarda, porém, ainda descontente, achou-lhe um ar atulhado e frio de museu.

— É para vêr de pé, e de passagem... Não se póde ficar aqui sentado, a conversar.

— Mas esta é materia-prima! exclamou Carlos. Com isto depois faz-se uma sala adoravel... Para que serve o nosso genio decorativo?... Olhe o armario, veja que centro! Que belleza!

Enchendo quasi a parede do fundo, o famoso armario, o «movel divino» do Craft, obra de talha do tempo da Liga Hanseatica, luxuoso e sombrio, tinha uma magestade architectural: na base quatro guerreiros, armados como Marte, flanqueavam as portas, mostrando cada uma em baixo-relevo o assalto de uma cidade ou as tendas de um acampamento; a peça superior era guardada aos quatro cantos pelos quatro evangelistas, João, Marcos, Lucas e Matheus, imagens rigidas, envolvidas n’essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar: depois na cornija erguia-se um trophéo agricola com mólhos d’espigas, fouces, cachos d’uvas e rabiças d’arados; e, á sombra d’estas coisas de labor e fartura, dois Faunos, recostados em symetria, indifferentes aos heroes e aos santos, tocavam n’um desafio bucolico a frauta de quatro tubos.

— Então, hein? dizia Carlos. Que movel! É todo um poema da Renascença, Faunos e Apostolos, guerras e georgicas... Que se póde metter dentro d’este armario? Eu se tivesse cartas suas era aqui que as depositava, como n’um altar-mór.

Ella não respondeu, sorrindo, caminhando devagar entre essas coisas do passado, d’uma belleza fria, e exhalando a indefinida tristeza de um luxo morto: finos moveis da Renascença italiana, exilados dos seus palacios de marmore, com embutidos de cornalina e agatha que punham um brilho suave de joia sobre a negrura dos ebanos ou setim das madeiras côr de rosa; cofres nupciaes, longos como bahús, onde se guardavam os presentes dos Papas e dos Principes, pintados a purpura e ouro, com graças de miniatura; contadores hespanhoes impertigados, revestidos de ferro brunido e de velludo vermelho, e com interiores mysteriosos, em fórma de capella, cheios de nichos, de claustros de tartaruga... Aqui e além, sobre a pintura verde-escura das paredes, resplandecia uma colcha de setim toda recamada de flôres e d’aves d’ouro; ou sobre um bocado de tapete do Oriente de tons severos, com versiculos do Alcorão, desdobrava-se a pastoral gentil d’um minuete em Cythera sobre a sêda de um leque aberto...

Maria Eduarda terminou por se sentar, cansada, n’uma poltrona Luiz XV, ampla e nobre, feita para a magestade das anquinhas, recoberta de tapeçaria de Beauvais, d’onde parecia exhalar-se ainda um vago aroma d’empoado.

Carlos triumphava, vendo a admiração de Maria. Então, ainda considerava uma extravagancia aquella compra, feita n’um rasgo de enthusiasmo?

— Não, ha aqui coisas adoraveis... Nem eu sei se me atreverei a viver uma vida pacata de aldêa no meio de todas estas raridades...

— Não diga isso, exclamava Carlos rindo, que eu pégo fogo a tudo!

Mas o que lhe agradou mais foram as bellas faianças, toda uma arte immortal e fragil espalhada por sobre o marmore das consolas. Uma sobretudo attrahiu-a, uma esplendida taça persa, d’um desenho raro, com um renque de negros cyprestes, cada um abrigando uma flôr de côr viva: e aquillo fazia lembrar breves sorrisos reapparecendo entre longas tristezas. Depois eram as apparatosas majolicas, de tons estridentes e desencontrados, cheias de grandes personagens, Carlos V passando o Elba, Alexandre coroando Roxane; os lindos Nevers, ingenuos e sérios; os Marselhas, onde se abre voluptuosamente, como uma nudez que se mostra, uma grossa rosa vermelha; os Derby, com as suas rendas de ouro sobre o azul-ferrete de céo tropical; os Wedgewood, côr de leite e côr de rosa, com transparencias fugitivas de concha na agua...

— Só um instante mais, exclamou Carlos vendo-a outra vez sentar-se, é necessario saudar o genio tutelar da casa!

Era ao centro, sobre uma larga peanha, um idolo japonez de bronze, um deus bestial, nú, pelado, obeso, de papeira, faceto e banhado de riso, com o ventre óvante, distendido na indigestão de todo um universo — e as duas perninhas bambas, molles e flaccidas como as pelles mortas d’um feto. E este monstro triumphava, encanchado sobre um animal fabuloso, de pés humanos, que dobrava para a terra o pescoço submisso, mostrando no focinho e no olho obliquo todo o surdo resentimento da sua humilhação...

— E pensarmos, dizia Carlos, que gerações inteiras vieram ajoelhar-se diante d’este ratão, rezar-lhe, beijar-lhe o embigo, offerecer-lhe riquezas, morrer por elle...

— O amor que se tem por um monstro, disse Maria, é mais meritorio, não é verdade?

— Por isso não acha talvez meritorio o amor que se tem por si...

Sentaram-se ao pé da janella, n’um divan baixo e largo, cheio de almofadas, cercado por um biombo de sêda branca, que fazia entre aquelle luxo do passado um fôfo recanto de conforto moderno: e como ella se queixava um pouco de calor, Carlos abriu a janella. Junto do peitoril crescia tambem um grande pé de margaridas; adiante, n’um velho vaso de pedra, pousado sobre a relva, vermelhejava a flôr d’um cacto; e dos ramos de uma nogueira cahia uma fina frescura.

Maria Eduarda veio encostar-se á janella, Carlos seguiu-a; e ficaram alli juntos, calados, profundamente felizes, penetrados pela doçura d’aquella solidão. Um passaro cantou de leve no ramo da arvore; depois calou-se. Ella quiz saber o nome de uma povoação que branquejava ao longe ao sol na collina azulada. Carlos não se lembrava. Depois brincando, colheu uma margarida, para a interrogar: Elle m’aime, un peu, beaucoup... Ella arrancou-lh’a das mãos.

— Para que precisa perguntar ás flôres?

— Porque ainda m’o não disse claramente, absolutamente, como eu quero que m’o diga...

Abraçou-a pela cinta, sorriam um ao outro. Então Carlos, com os olhos mergulhados nos d’ella, disse-lhe baixínho e implorando:

— Ainda não vimos a saleta de banho...

Maria Eduarda deixou-se levar assim enlaçada pelo salão, depois através da sala de tapeçarias onde Marte e Venus se amavam entre os bosques. Os banhos eram ao lado, com um pavimento de azulejo, avivado por um velho tapete vermelho da Caramania. Elle, tendo-a sempre abraçada, pousou-lhe no pescoço um beijo longo e lento. Ella abandonou-se mais, os seus olhos cerraram-se, pesados e vencidos. Penetraram na alcova quente e côr d’ouro: Carlos ao passar desprendeu as cortinas do arco de capella, feitas de uma sêda leve que coava para dentro uma claridade loura: e um instante ficaram immoveis, sós emfim, desatado o abraço, sem se tocarem, como suspensos e suffocados pela abundancia da sua felicidade.

— Aquella horrivel cabeça! murmurou ella.

Carlos arrancou a coberta do leito, escondeu a tela sinistra. E então todo o rumor se extinguiu, a solitaria casa ficou adormecida entre as arvores, n’uma demorada sésta, sob a calma de julho...

Os annos de Affonso da Maia foram justamente no dia seguinte, domingo. Quasi todos os amigos da casa tinham jantado no Ramalhete; e tomára-se o café no escriptorio d’Affonso, onde as janellas se conservavam abertas. A noite estava tepida, estrellada e serenissima. Craft, Sequeira e o Taveira passeavam fumando no terraço. Ao canto d’um sofá Cruges escutava religiosamente Steinbroken que lhe contava, com gravidade, os progressos da musica na Filandia. E em redor de Affonso, estendido na sua velha poltrona, de cachimbo na mão, fallava-se do campo.

Ao jantar Affonso annunciára a intenção de ir visitar, para o meado do mez, as velhas arvores de Santa Olavia; e combinára-se logo uma grande romaria de amizade ás margens do Douro. Craft e Sequeira acompanhavam Affonso. O marquez promettera uma visita para agosto «na companhia melodiosa», dizia elle, do amigo Steinbroken. D. Diogo hesitava, com receio da longa jornada, da humidade da aldêa. E agora tratava-se de persuadir Ega a ir tambem, com Carlos — quando Carlos acabasse emfim de reunir esses materiaes do seu livro que o retinham em Lisboa «á banca do labor...» Mas o Ega resistia. O campo, dizia elle, era bom para os selvagens. O homem, á maneira que se civilisa, afasta-se da natureza; e a realisação do progresso, o paraiso na Terra, que presagiam os Idealistas, concebia-o elle como uma vasta cidade occupando totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e além um bosquesinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes para perfumar o altar da Justiça...

— E o milho? A bella fruta? A hortaliçasinha? perguntava Villaça, rindo com malicia.

Imaginava então Villaça, replicava o outro, que d’aqui a seculos ainda se comeriam hortaliças? O habito dos vegetaes era um resto da rude animalidade do homem. Com os tempos o sêr civilisado e completo vinha a alimentar-se unicamente de productos artificiaes, em frasquinhos e em pilulas, feitos nos laboratorios do Estado...

— O campo, disse então D. Diogo, passando gravemente os dedos pelos bigodes, tem certa vantagem para a sociedade, para se fazer um bonito pic-nic, para uma burricada, para uma partida de croquet... Sem campo não ha sociedade.

— Sim, rosnou o Ega, como uma sala em que tambem ha arvores ainda se admitte...

Enterrado n’uma poltrona, fumando languidamente, Carlos sorria em silencio. Todo o jantar estivera assim calado, sorrindo esparsamente a tudo, com um ar luminoso e de deliciosa lassidão. E então o marquez, que já duas vezes, dirigindo-se a elle, encontrára a mesma abstracção radiosa, impacientou-se:

— Homem, falle, diga alguma coisa!... Você está hoje com um ar extraordinario, um arzinho de beato que se regalou de papar o Santissimo!

Todos em redor, com sympathia, se affirmaram em Carlos: Villaça achava-lhe agora melhor cara, côr d’alegria: D. Diogo, com um ar entendido, sentindo mulher, invejou-lhe os annos, invejou-lhe o vigor. E Affonso reenchendo o cachimbo olhava o neto, enternecido.

Carlos ergueu-se immediatamente, fugindo áquelle exame affectuoso.

— Com effeito, disse elle, espreguiçando-se de leve, tenho estado hoje languido e mono... É o começo do verão... Mas é necessario sacudir-me... Quer você fazer uma partida de bilhar, ó marquez?

— Vá lá, homem. Se isso o resuscita...

Foram, Ega seguiu-os. E apenas no corredor o marquez parando, e como recordando-se, perguntou sem rebuço ao Ega noticias dos Cohens. Tinham-se encontrado? Estava tudo acabado? Para o marquez, uma flôr de lealdade, não havia segredos: Ega contou-lhe que o romance findára, e agora o Cohen, quando o cruzava, baixava prudentemente os olhos...

— Eu perguntei isto, disse o marquez, porque já vi a Cohen duas vezes...

— Onde? foi a exclamação sôfrega do Ega.

— No Price, e sempre com o Damaso. A ultima vez foi já esta semana. E lá estava o Damaso, muito chegadinho, palrando muito... Depois veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e sempre d’olho n’ella... E ella de lá, com aquelle ar de lambisgoia, de luneta n’elle... Não havia que duvidar, era um namoro... Aquelle Cohen é um predestinado.

Ega fez-se livido, torceu nervosamente o bigode, terminou por dizer:

— O Damaso é muito intimo d’elles... Mas talvez se atire, não duvido... São dignos um do outro.

No bilhar, emquanto os dois carambolavam preguiçosamente, elle não cessou de passear, n’uma agitação, trincando o charuto apagado. De repente estacou em frente do marquez, com os olhos chammejantes:

— Quando é que você a viu ultimamente no Price, essa torpe filha d’Israel?

— Terça-feira, creio eu.

O Ega recomeçou a passear, sombrio.

N’esse instante Baptista, apparecendo á porta do bilhar, chamou Carlos em silencio, com um leve olhar. Carlos veio, surprehendido.

— É um cocheiro de praça, murmurou Baptista. Diz que está alli uma senhora dentro d’uma carruagem que lhe quer fallar.

— Que senhora?

Baptista encolheu os hombros. Carlos, de taco na mão, olhava para elle, aterrado. Uma senhora! Era decerto Maria... Que teria succedido, santo Deus, para ella vir n’uma tipoia, ás nove da noite, ao Ramalhete!

Mandou Baptista, a correr, buscar-lhe um chapéo baixo; e assim mesmo, de casaca, sem paletot, desceu n’uma grande anciedade. No peristyllo topou com Eusebiosinho que chegava, e sacudia cuidadosamente com o lenço a poeira dos botins. Nem fallou ao Eusebiosinho. Correu ao coupé, parado á porta particular dos seus quartos, mudo, fechado, mysterioso, aterrador...

Abriu a portinhola. Do canto da velha traquitana, um vulto negro, abafado n’uma mantilha de renda, debruçou-se, perturbado, balbuciou:

— É só um instante! Quero-lhe fallar!

Que allivio! Era a Gouvarinho! Então, na sua indignação, Carlos foi brutal.

— Que diabo de tolice é esta? Que quer?

Ia bater com a portinhola; ella empurrou-a para fóra, desesperada; e não se conteve, desabafou logo alli, diante do cocheiro, que mexia tranquillamente na fivela d’um tirante.

— De quem é a culpa? Para que me trata d’este modo?... É só um instante, entre, tenho de lhe fallar!...

Carlos saltou para dentro, furioso:

— Dá uma volta pelo Aterro, gritou ao cocheiro. Devagar!

O velho calhambeque desceu a calçada; e durante um momento, na escuridão, recuando um do outro no assento estreito, tiveram as mesmas palavras, bruscas e colericas, através do barulho das vidraças.

— Que imprudencia! que tolice!...

— E de quem é a culpa? De quem é a culpa?

Depois, na rampa de Santos, o coupé rolou mais silenciosamente no macadam. Carlos então, arrependido da sua dureza, voltou-se para ella, e com brandura, quasi no tom carinhoso d’outr’ora, reprehendeu-a por aquella imprudencia... Pois não era melhor ter-lhe escripto?

— Para quê? exclamou ella. Para não me responder? Para não fazer caso das minhas cartas, como se fossem as de um importuno a pedir-lhe uma esmola!...

Suffocava, arrancou a mantilha da cabeça. No vagaroso rolar do coupé, sem ruido, ao longo do rio, Carlos sentia a respiração d’ella, tumultuosa e cheia d’angustia. E não dizia nada, immovel, n’um infinito mal-estar, entrevendo confusamente, através do vidro embaciado, na sombra triste do rio adormecido, as mastreações vagas de falúas. A parelha parecia ir adormecendo; e as queixas d’ella desenrolavam-se, profundas, mordentes, repassadas d’amargura.

— Peço-lhe que venha a Santa Isabel, não vem... Escrevo-lhe, não me responde... Quero ter uma explicação franca comsigo, não apparece... Nada, nem um bilhete, nem uma palavra, nem um aceno... Um desprezo brutal, um desprezo grosseiro... Eu nem devia ter vindo... Mas não pude, não pude!... Quiz saber o que lhe tinha feito. O que é isto? Que lhe fiz eu?

Carlos percebia os olhos d’ella, faiscantes sob a nevoa de lagrimas retidas, supplicando e procurando os seus. E sem coragem sequer de a fitar, murmurou, torturado:

— Realmente, minha amiga... As coisas fallam bem por si, não são necessarias explicações.

— São! É necessario saber se isto é uma coisa passageira, um amuo, ou se é uma coisa definitiva, um rompimento!

Elle agitava-se no seu canto, sem achar uma maneira suave, affectuosa ainda, de lhe dizer que todo o seu desejo d’ella findára. Terminou por affirmar que não era um amuo. Os seus sentimentos tinham sido sempre elevados, não cahiria agora na pieguice de ter um amuo...

— Então é um rompimento?...

— Não, tambem não... Um rompimento absoluto, para sempre, não...

— Então é um amuo? Porquê?

Carlos não respondeu. Ella, perdida, sacudiu-o pelo braço.

— Mas falle! Diga alguma coisa, santo Deus! Não seja cobarde, tenha a coragem de dizer o que é!

Sim, ella tinha razão... Era uma cobardia, era uma indignidade, continuar alli, gôchemente, dissimulado na sombra, a balbuciar coisas mesquinhas. Quiz ser claro, quiz ser forte.

— Pois bem, ahi está. Eu entendi que as nossas relações deviam ser alteradas...

E outra vez hesitou, a verdade amolleceu-lhe nos labios, sentindo aquella mulher ao seu lado a tremer d’agonia.

— Alteradas, quero dizer... Podiamos transformar um capricho apaixonado, que não podia durar, n’uma amizade agradavel, e mais nobre...

E pouco a pouco as palavras voltavam-lhe faceis, habeis, persuasivas, através do rumor lento das rodas. Onde os podia levar aquella ligação? Ao resultado costumado. A que a um dia se descobrisse tudo, e o seu bello romance acabasse no escandalo e na vergonha; ou a que, envolvendo-os por muito tempo o segredo, elle viesse a descahir na banalidade d’uma união quasi conjugal, sem interesse e sem requinte. De resto era certo que, continuando a encontrarem-se, aqui, em Cintra, n’outros sitios, a sociedadesinha curiosa e mexeriqueira viria a perceber a sua affeição. E havia por acaso nada mais horroroso, para quem tem orgulho e delicadeza d’alma, do que uns amores que todo o publico conhece, até os cocheiros de praça? Não... O bom senso, o bom gosto mesmo, tudo indicava a necessidade d’uma separação. Ella mesmo mais tarde lhe seria grata... Decerto, esta primeira interrupção d’um habito dôce era desagradavel, e elle estava bem longe de se sentir feliz. Fôra por isso que não tivera a coragem de lhe escrever... Emfim deviam ser fortes, e não se vêrem pelo menos durante alguns mezes... Depois, pouco a pouco, o que era capricho fragil, cheio de inquietação, tornar-se-hia uma boa amizade, bem segura e bem duradoura.

Calou-se; e então, no silencio, sentiu que ella, cahida para o canto do coupé, como uma coisa miseravel e meio morta, encolhida no seu véo, estava chorando baixo.

Foi um momento intoleravel. Ella chorava sem violencia, mansamente, com um chôro lento, que parecia não dever findar. E Carlos só achava esta palavra banal e desenxabida:

— Que tolice, que tolice!

Vinham rodando ao comprido das casas, por diante da fabrica do gaz. Um americano passou alumiado, com senhoras vestidas de claro. N’aquella noite de verão e d’estrellas, havia gente vagueando tranquillamente entre as arvores. Ella continuava a chorar.

Aquelle pranto triste, lento, correndo a seu lado, começou a commovel-o; e ao mesmo tempo quasi lhe queria mal por ella não reter essas lagrimas infindaveis que laceravam o seu coração... E elle que estava tão tranquillo, no Ramalhete, na sua poltrona, sorrindo a tudo, n’uma deliciosa lassidão!

Tomou-lhe a mão, querendo calmal-a, apiedado, e já impaciente.

— Realmente não tem razão. É absurdo... Tudo isto é para seu bem...

Ella teve emfim um movimento, enxugou os olhos, assoou-se doloridamente por entre os seus longos soluços... E de repente, n’um arranque de paixão, atirou-lhe os braços ao pescoço, prendendo-se a elle com desespero, esmagando-o contra o seu seio.

— Oh meu amor, não me deixes, não me deixes! Se tu soubesses! És a unica felicidade que eu tenho na vida... Eu morro, eu mato-me!... Que te fiz eu? Ninguem sabe do nosso amor... E que soubesse! Por ti sacrifico tudo, vida, honra, tudo! tudo!...

Molhava-lhe a face com o resto das suas lagrimas; e elle abandonava-se, sentindo aquelle corpo sem collete, quente e como nú, subir-lhe para os joelhos, collar-se ao seu, n’um furor de o repossuir, com beijos sôfregos, furiosos, que o suffocavam... Subitamente a tipoia parou. E um momento ficaram assim — Carlos immovel, ella cahida sobre elle e arquejando.

Mas a tipoia não continuava. Então Carlos desprendeu um braço, desceu o vidro; e viu que estavam defronte do Ramalhete. O homem, obedecendo á ordem, dera a volta pelo Aterro, devagar, subira a rampa, retrocedera á porta da casa. Durante um instante Carlos teve a tentação de descer, acabar alli bruscamente aquelle longo tormento. Mas pareceu-lhe uma brutalidade. E desesperado, detestando-a, berrou ao cocheiro:

— Outra vez ao Aterro, anda sempre!...

A tipoia deu na rua estreita uma volta resignada, tornou a rolar; de novo as pedras da calçada fizeram tilintir os vidros; de novo, mais suavemente, desceram a rampa de Santos.

Ella recomeçára os seus beijos. Mas tinham perdido a chamma que um instante os fizera quasi irresistiveis. Agora Carlos sentia só uma fadiga, um desejo infinito de voltar ao seu quarto, ao repouso de que ella o arrancára para o torturar com estas recriminações, estes ardores entre lagrimas... E de repente, emquanto a condessa balbuciava, como tonta, pendurada do seu pescoço, — elle viu surgir n’alma, viva e resplandecente, a imagem de Maria Eduarda, tranquilla áquella hora na sua sala de reps vermelho, fazendo serão, confiando n’elle, pensando n’elle, relembrando as felicidades da vespera, quando a Toca, cheia de seus amores, dormia, branca entre as arvores... Teve então horror á Gouvarinho; brutalmente, sem piedade, repelliu-a para o canto do coupé.

— Basta! Tudo isto é absurdo... As nossas relações estão acabadas, não temos mais nada que nos dizer!

Ella ficou um instante como atordoada. Depois estremeceu, teve um riso nervoso, reppelliu-o tambem, phreneticamente, pisando-lhe o braço.

— Pois bem! Vai, deixa-me! Vai para a outra, para a brazileira! Eu conheço-a, é uma aventureira que tem o marido arruinado, e precisa quem lhe pague as modistas!...

Elle voltou-se, com os punhos fechados, como para a espancar; e na tipoia escura, onde já havia um vago cheiro de verbena, os olhos d’ambos, sem se vêrem, dardejavam o odio que os enchia... Carlos bateu raivosamente no vidro. A tipoia não parou. E a Gouvarinho, do outro lado, furiosa, magoando os dedos, procurava descer a vidraça.

— É melhor que sáia! dizia ella suffocada. Tenho horror de me achar aqui, ao seu lado! Tenho horror! Cocheiro! cocheiro!

O calhambeque parou. Carlos pulou para fóra, fechou d’estalo a portinhola; e sem uma palavra, sem erguer o chapéo, virou costas, abalou a grandes passadas para o Ramalhete, tremulo ainda, cheio d’idéas de rancor, sob a paz da noite estrellada.

IV

 

Foi n’um sabbado que Affonso da Maia partiu para Santa Olavia. Cedo n’esse mesmo dia, Maria Eduarda, que o escolhera por ser de boa estreia, installára-se nos Olivaes. E Carlos, voltando de Santa Apolonia, onde fôra acompanhar o avô, com o Ega, dizia-lhe alegremente:

— Então aqui ficamos nós sós a torrar, na cidade de marmore e de lixo...

— Antes isso, respondeu o Ega, que andar de sapatos brancos, a scismar, por entre a poeirada de Cintra!

Mas no domingo, quando Carlos recolheu ao Ramalhete ao anoitecer — Baptista annunciou que o snr. Ega tinha partido n’esse momento para Cintra, levando apenas livros e umas escovas embrulhadas n’um jornal... O snr. Ega tinha deixado uma carta. E tinha dito: «Baptista, vou pastar.»

A carta, a lapis, n’uma larga folha d’almasso, dizia: «Assaltou-me de repente, amigo, juntamente com um horror á caliça de Lisboa, uma saudade infinita da natureza e do verde. A porção d’animalidade que ainda resta no meu sêr civilisado e recivilisado precisa urgentemente d’espolinhar-se na relva, beber no fio dos regatos, e dormir balançada n’um ramo de castanheiro. O solícito Baptista que me remetta ámanhã pelo omnibus a mala com que eu não quiz sobrecarregar a tipoia do Mulato. Eu demoro-me apenas tres ou quatro dias. O tempo de cavaquear um bocado com o Absoluto no alto dos Capuchos, e vêr o que estão fazendo os myosotis junto á meiga fonte dos Amores...»

— Pedante! rosnou Carlos, indignado com o abandono ingrato em que o deixava o Ega.

E atirando a carta:

— Baptista! O snr. Ega diz ahi que lhe mandem uma caixa de charutos, dos Imperiales. Manda-lhe antes dos Flôr de Cuba. Os Imperiales são um veneno. Esse animal nem fumar sabe!

Depois de jantar Carlos percorreu o Figaro, folheou um volume de Byron, bateu carambolas solitarias no bilhar, assobiou malagueñas no terrasso — e terminou por sahir, sem destino, para os lados do Aterro. O Ramalhete entristecia-o, assim mudo, apagado, todo aberto ao calor da noite. Mas insensivelmente, fumando, achou-se na rua de S. Francisco. As janellas de Maria Eduarda estavam tambem abertas e negras. Subiu ao andar do Cruges. O menino Victorino não estava em casa...

Amaldiçoando o Ega, entrou no Gremio. Encontrou o Taveira, de paletot ao hombro, lendo os telegrammas. Não havia nada novo por essa velha Europa; apenas mais uns Nihilistas enforcados; e elle Taveira ia ao Price...

— Vem tu tambem d’ahi, Carlinhos! Tens lá uma mulher bonita que se mette na agua com cobras e crocodilos... Eu pello-me por estas mulheres de bichos!... Que esta é difficil, traz um chulo... Mas eu já lhe escrevi: e ella faz-me um bocado d’olho de dentro da tina.

Arrastou Carlos: e pelo Chiado abaixo fallou-lhe logo do Damaso. Não tornára a ver essa flôr? Pois essa flôr andava apregoando por toda a parte que o Maia, depois do caso do Chiado, lhe dera por um amigo explicações humildes, covardes... Terrivel, aquelle Damaso! Tinha figura, interior, e natureza de pélla! Com quanto mais força se atirava ao chão, mais elle resaltava para o ar, triumphante!...

— Em todo o caso é uma rez traiçoeira, e deves ter cautela com elle...

Carlos encolheu os hombros, rindo.

Não, não, dizia o Taveira muito sério, eu conheço o meu Damaso. Quando foi da nossa péga, em casa da Lola Gorda, elle portou-se como um poltrão, mas depois ia-me atrapalhando a vida... É capaz de tudo... Antes d’hontem estava eu a cear no Silva, elle veio sentar-se um bocado ao pé de mim, e começou logo com umas coisas a teu respeito, umas ameaças...

— Ameaças! Que disse elle?

— Diz que te dás ares de espadachim e de valentão, mas has de encontrar dentro em pouco quem te ensine... Que se está ahi preparando um escandalo monumental... Que se não admirará de te vêr brevemente com uma boa bala na cabeça...

— Uma bala?

— Assim o disse. Tu ris, mas eu é que sei... Eu, se fosse a ti, ia-me ao Damaso e dizia-lhe: «Damasosinho, flôr, fique avisado que, d’ora em diante, cada vez que me succeder uma coisa desagradavel, venho aqui e parto-lhe uma costella; tome as suas medidas...»

Tinham chegado ao Price. Uma multidão de domingo, alegre e pasmada, apinhava-se até ás ultimas bancadas onde havia rapazes, em mangas de camisa, com litros de vinho; e eram grossas, fartas risadas, com os requebros do palhaço, rebocado de cáio e vermelhão, que tocava nos pésinhos d’uma voltigeuse e lambia os dedos, d’olhos em alvo, n’um gosto de mel... Descançando na sella larga de xairel dourado, a creatura, magrinha e séria, com flôres nas tranças, dava a volta devagar, ao passo d’um cavallo branco, que mordia o freio, levado á mão por um estribeiro; e pela arena o palhaço lambão e nescio acompanhava-a, com as mãos ambas apertadas ao coração, n’uma supplica babosa, rebolando languidamente os quadris dentro das vastas pantalonas, picadas de lantejoulas. Um dos escudeiros, de calça listrada d’ouro, empurrava-o, n’um arremedo de ciumes; e o palhaço cahia, estatelado, com um estoiro de nadegas, entre os risos das crianças e os rantantans da charanga. O calor suffocava; e as fumaraças de charuto, subindo sem cessar, faziam uma neva onde tremiam as chammas largas do gaz. Carlos, incommodado, abalou.

— Espera ao menos para vêr a mulher dos crocodilos! gritou ainda o Taveira.

— Não posso, cheira mal, morro!

Mas á porta, de repente, foi detido pelos braços abertos do Alencar, que chegava — com outro sujeito, velho e alto, de barbas brancas, todo vestido de luto. O poeta ficou pasmado de vêr alli o seu Carlos. Fazia-o no seu solar de Santa Olavia! Vira até nos papeis publicos...

— Não, disse Carlos, o avô é que foi hontem... Eu não me sinto ainda em disposição de ir communicar com a natureza...

Alencar riu, levemente afogueado, com um brilho de genebra no olho cavo. Ao lado, grave, o ancião de barbas calçava as suas luvas pretas.

— Pois eu é o contrario! exclamava o poeta. Estou precisado d’um banho de pantheismo! A bella natureza! O prado! O bosque!... De modo que talvez me mimoseie com Cintra, para a semana. Estão lá os Cohens, alugaram uma casita muito bonita, logo adiante do Victor...

Os Cohens! Carlos comprehendeu então a fuga do Ega e a «sua saudade do verde.»

— Ouve lá, dizia-lhe o poeta baixo, e puxando-o pela manga, para o lado. Tu não conheces este meu amigo? Pois foi muito de teu pai, fizemos muita troça juntos... Não era nenhum personagem, era apenas um alquilador de cavallos... Mas tu sabes, cá em Portugal, sobretudo n’esses tempos, havia muita bonhomia, o fidalgo dava-se com o arrieiro... Mas, que diabo, tu deves conhecel-o! É o tio do Damaso!

Carlos não se recordava.

— O Guimarães, o que está em Paris!

— Ah, o communista!

— Sim, muito republicano, homem de idéas humanitarias, amigo do Gambetta, escreve no Rappel... Homem interessante!... Veio ahi por causa d’umas terras que herdou do irmão, d’esse outro tio do Damaso que morreu ha mezes... E demora-se, creio eu... Pois jantamos hoje juntos, beberam-se uns liquidos, e até estivemos a fallar de teu pai... Queres tu que eu t’o apresente?

Carlos hesitou. Seria melhor n’outra occasião mais intima, quando podessem fumar um charuto tranquillo, e conversar do passado...

— Valeu! Has de gostar d’elle. Conhece muito Victor Hugo, detesta a padraria... Espirito largo, espirito muito largo!

O poeta sacudiu ardentemente as duas mãos de Carlos. O snr. Guimarães ergueu de leve o seu chapéo, carregado de crepe.

Todo o caminho, até ao Ramalhete, Carlos foi pensando em seu pai e n’esse passado, assim rememorado e estranhamente resurgido pela presença d’aquelle patriarcha, antigo alquilador, que fizera com elle tantas troças! E isto trazia conjuntamente outra idéa, que n’esses ultimos dias já o atravessára, pertinaz e torturante, dando-lhe, no meio da sua radiante felicidade, um sombrio arripio de dôr... Carlos pensava no avô.

Estava agora decidido que Maria Eduarda e elle partiriam para Italia, nos fins de outubro. Castro Gomes, na sua ultima carta do Brazil, sêcca e pretenciosa, fallava «em apparecer por Lisboa, com as elegancias do frio, lá para meado de novembro»; — e era necessario antes d’isso que estivessem já longe, entre as verduras d’Isola Bella, escondidos no seu amor e separados por elle do mundo como pelos muros d’um claustro. Tudo isto era facil, considerado quasi legítimo pelo seu coração, e enchia a sua vida d’esplendor... Sómente havia n’isto um espinho — o avô!

Sim, o avô! Elle partia com Maria, elle entrava na ventura absoluta; mas ia destruir de uma vez e para sempre a alegria d’Affonso, e a nobre paz que lhe tornava tão bella a velhice. Homem de outras eras, austero e puro, como uma d’essas fortes almas que nunca desfalleceram — o avô, n’esta franca, viril, rasgada solução d’um amor indominavel, só veria libertinagem! Para elle nada significava o esponsal natural das almas, acima e fóra das ficções civis; e nunca comprehenderia essa subtil ideologia sentimental, com que elles, como todos os transviados, procuravam azular o seu erro. Para Affonso haveria apenas um homem que leva a mulher d’outro, leva a filha d’outro, dispersa uma familia, apaga um lar, e se atola para sempre na concubinagem: todas as subtilezas da paixão, por mais finas, por mais fortes, quebrar-se-hiam, como bolas de sabão, contra as tres ou quatro idéas fundamentaes de Dever, de Justiça, de Sociedade, de Familia, duras como blocos de marmore, sobre que assentára a sua vida quasi durante um seculo... E seria para elle como o horror d’uma fatalidade! Já a mulher de seu filho fugira com um homem, deixando atraz de si um cadaver; seu neto agora fugia tambem, arrebatando a familia d’outro: — e a historia da sua casa tornava-se assim uma repetição d’adulterios, de fugas, de dispersões, sob o bruto aguilhão da carne!... Depois as esperanças que Affonso fundára n’elle — consideral-as-hia tombadas, mortas no lodo! Elle passava a ser para sempre, na imaginação angustiada do avô, um foragido, um inutilisado, tendo partido todas as raizes que o prendiam ao seu sólo, tendo abdicado toda a acção que o elevaria no seu paiz, vivendo por hoteis de refugio, fallando linguas estranhas, entre uma familia equivoca crescida em torno d’elle como as plantas de uma ruina... Sombrio tormento, implacavel e sempre presente, que consumiria os derradeiros annos do pobre avô!... Mas, que podia elle fazer? Já o dissera ao Ega. A vida é assim! Elle não tinha o heroismo nem a santidade que tornam facil o sacrificio... E depois os dissabores do avô, de que provinham? De preconceitos. E a sua felicidade, justo Deus, tinha direitos mais largos, fundados na natureza!...

Chegára ao fim do Aterro. O rio silencioso fundia-se na escuridão. Por alli entraria em breve do Brazil, o outro — que nas suas cartas se esquecia de mandar um beijo a sua filha! Ah, se elle não voltasse! Uma onda providencial podia leval-o... Tudo se tornaria tão facil, perfeito e limpido! De que servia na vida esse resequido? Era como um sacco vazio que cahisse ao mar! Ah, se elle morresse!... E esquecia-se, enlevado n’uma visão em que a imagem de Maria o chamava, o esperava, livre, serena, sorrindo e coberta de luto...

No seu quarto, Baptista, vendo-o atirar-se para uma poltrona com um suspiro de fadiga, de desconsolação, — disse, depois de tossir risonhamente, e dando mais luz ao candieiro:

— Isto agora, sem o snr. Ega, parece um bocadinho mais só...

— Está só, está triste, murmurou Carlos. É necessario sacudirmo-nos... Eu já te disse que talvez fossemos viajar este inverno...

O menino não lhe tinha dito nada.

— Pois talvez vamos a Italia... Appetece-te voltar a Italia?

Baptista reflectiu.

— Eu, da outra vez não vi o Papa... E antes de morrer não se me dava de vêr o Papa...

— Pois sim, ha de se arranjar isso, has de vêr o Papa.

Baptista, depois d’um silencio, perguntou, lançando um olhar ao espelho:

— Para vêr o Papa vai-se de casaca, creio eu?

— Sim, recommendo-te a casaca... O que tu devias ter, para esses casos, era um habito de Christo... Hei de vêr se te arranjo um habito de Christo.

Baptista ficou um instante assombrado. Depois fez-se escarlate, d’emoção:

— Muito agradecido a v. exc.ª Ha por ahi gente que o tem, ainda talvez com menos merecimentos que eu... Dizem que até ha barbeiros...

— Tens razão, replicou Carlos muito sério. Era uma vergonha. O que hei de vêr se te arranjo com effeito é a commenda da Conceição.

Todas as manhãs, agora, Carlos percorria o poeirento caminho dos Olivaes. Para poupar aos seus cavallos a soalheira ia na tipoia do Mulato, o batedor favorito do Ega — que recolhia a parelha na velha cavalhariça da Toca, e, até á hora em que Carlos voltava ao Ramalhete, vadiava pelas tabernas.

Ordinariamente ao meio dia, ao acabar de almoçar, Maria Eduarda, ouvindo rodar o trem na estrada silenciosa, vinha esperar Carlos á porta da casa, no topo dos degraus ornados de vasos e resguardados por um fresco toldo de fazenda côr de rosa. Na quinta usava sempre vestidos claros; ás vezes trazia, á antiga moda hespanhola, uma flôr entre os cabellos; o forte e fresco ar do campo avivava com um brilho mais quente o mate eburneo do seu rosto; — e assim, simples e radiante, entre sol e verdura, ella deslumbrava Carlos cada dia com um encanto inesperado e maior. Cerrando o portão d’entrada, que rangia nos gonzos, Carlos sentia-se logo envolvido n’um «extraordinario conforto moral», como elle dizia, em que todo o seu sêr se movia mais facilmente, fluidamente, n’uma permanente impressão de harmonia e doçura... Mas o seu primeiro beijo era para Rosa, que corria pela rua de acacias ao seu encontro, com uma onda de cabello negro a bater-lhe os hombros, e Niniche ao lado, pulando e ladrando de alegria. Elle erguia Rosa ao collo. Maria de longe sorria-lhes, sob o toldo côr de rosa. Em redor tudo era luminoso, familiar e cheio de paz.

A casa dentro resplandecia com um arranjo mais delicado. Já se podia usar o salão nobre, que perdera o seu ar rigido de museu, exhalando a tristeza d’um luxo morto: as flôres que Maria punha nos vasos, um jornal esquecido, as lãs de um bordado, o simples roçar dos seus frescos vestidos, tinham communicado já um subtil calor de vida e de conchego aos mais impertigados contadores do tempo de Carlos V, revestidos de ferro brunido: — e era alli que elles ficavam conversando emquanto não chegava a hora das lições de Rosa.

A essa hora apparecia miss Sarah, séria e recolhida — sempre de preto, com uma ferradura de prata em broche sobre o collarinho direito de homem. Recuperára as suas côres fortes de boneca, e as pestanas baixas tinham uma timidez mais virginal sob o liso dos bandós puritanos. Gordinha, com o peito de pomba farta estalando dentro do corpete severo, mostrava-se toda contente da vida calma e lenta de aldêa. Mas aquellas terras trigueiras d’olivedo não lhe pareciam campo: «é muito sêcco, é muito duro,» dizia ella, com uma indefinida saudade dos verdes molhados da sua Inglaterra, e dos céos de nevoa, cinzentos e vagos.

Davam duas horas; e começavam logo nos quartos de cima as longas lições de Rosa. Carlos e Maria iam então refugiar-se n’uma intimidade mais livre, no kiosque japonez, que uma phantasia de Craft, o seu amor do Japão, construira ao pé da rua d’acacias, aproveitando a sombra e o retiro bucolico de dois velhos castanheiros. Maria affeiçoara-se áquelle recanto, chamava-lhe o seu pensadoiro. Era todo de madeira, com uma só janellinha redonda, e um telhado agudo á japoneza, onde roçavam os ramos — tão leve que através d’elle nos momentos de silencio se sentiam piar as aves. Craft forrára-o todo de esteiras finas da India; uma mesa de xarão, algumas faianças do Japão, ornavam-no sobriamente; o tecto não se via, occulto por uma colcha de sêda amarella, suspensa pelos quatro cantos, em laços, como o rico docel de uma tenda; — e todo o ligeiro kiosque parecia ter sido armado só com o fim d’abrigar um divan baixo e fôfo, d’uma languidez de serralho, profundo para todos os sonhos, amplo para todas as preguiças...

Elles entravam, Carlos com algum livro que escolhera na presença de miss Sarah, Maria Eduarda com um bordado ou uma costura. Mas bordado e livro cahiam logo no chão — e os seus labios, os seus braços uniam-se arrebatadamente. Ella escorregava sobre o divan: Carlos ajoelhava n’uma almofada, tremulo, impaciente depois da forçada reserva diante de Rosa e diante de Sarah — e alli ficava, abraçado á sua cintura, balbuciando mil coisas pueris e ardentes, por entre longos beijos que os deixavam frouxos, com os olhos cerrados, n’uma doçura de desmaio. Ella queria saber o que elle tinha feito durante a longa, longa noite de separação. E Carlos nada tinha a contar senão que pensára n’ella, que sonhára com ella... Depois era um silencio: os pardaes piavam, as pombas arrulhavam por cima do leve telhado: e Niniche, que os acompanhava sempre, seguia os seus murmurios, os seus silencios, enroscada a um canto, com um olho negro, reluzindo desconfiadamente por entre as repas prateadas.

Fóra, por aquelles dias de calma, sem aragem, a quinta sêcca, d’um verde empoeirado, dormia com as folhagens immoveis, sob o peso do sol. Da casa branca, através das persianas fechadas, vinha apenas o som amodorrado das escalas que Rosa fazia no piano. E no kiosque havia tambem um silencio satisfeito e pleno — sómente quebrado por algum dôce suspiro de lassidão que sahia do divan, d’entre as almofadas de sêda, ou algum beijo mais longo e d’um remate mais profundo... Era Niniche que os tirava d’aquelle suave entorpecimento, farta de estar alli quieta, encerrada entre as madeiras quentes, n’um ar molle já repassado d’esse aroma indefinido em que havia jasmim.

Lenta, e passando as mãos no rosto Maria erguia-se — mas para cahir logo aos pés de Carlos, no seu reconhecimento infinito... Meu Deus, o que lhe custava então esse momento de separação! Para que havia de ser assim? Parecia tão pouco natural, esposos como eram, que ella ficasse alli toda a noite, sósinha, com o seu desejo d’elle, e elle fosse, sem as suas carícias, dormir solitariamente ao Ramalhete!... E ainda se demoravam muito tempo, n’uma mudez d’extasi, em que os olhos humidos, trespassando-se, continuavam o beijo insaciado que morrera nos seus labios cançados. Era Niniche que os fazia sahir por fim trotando impacientemente da porta para o divan, rosnando, ameaçando ladrar.

Muitas vezes ao recolherem Maria tinha uma inquietação. Que pensaria miss Sarah d’esta sésta assim enclausurada, sem um rumor, com a janella do pavilhão cerrada? Melanie, desde pequena ao serviço de Maria, era uma confidente: o bom Domingos, um imbecil, não contava: mas miss Sarah?... Maria confessava sorrindo que se sentia um pouco humilhada, ao encontrar depois á mesa os candidos olhos da ingleza sob os seus bandós virginaes... Está claro! se a boa miss tivesse a ousadia de resmungar ou franzir de leve a testa, recebia logo seccamente a sua passagem no Royal Mail para Southampton! Rosa não a lamentaria, Rosa não lhe tinha affeição. Mas, emfim, era tão séria, admirava tanto a senhora! Ella não gostava de perder a admiração d’uma rapariga tão séria. E assim decidiram despedir miss Sarah, régiamente paga, e substituil-a, mais tarde, em Italia, por uma governante allemã, para quem elles fossem como casados, «Monsieur et Madame...»

Mas pouco a pouco o desejo d’uma felicidade mais intima, mais completa, foi crescendo n’elles. Não lhes bastava já essa curta manhã no divan com os passaros cantando por cima, a quinta cheia de sol, tudo acordado em redor: appeteciam o longo contentamento d’uma longa noite, quando os seus braços se podessem enlaçar sem encontrar o estofo dos vestidos, e tudo dormisse em torno, os campos, a gente e a luz... De resto era bem facil! A sala de tapeçarias, communicando com a alcova de Maria, abria sobre o jardim por uma porta envidraçada; a governante, os criados, subiam ás dez horas para os seus quartos no andar alto; a casa adormecia profundamente; Carlos tinha uma chave do portão; e o unico cão, Niniche, era o confidente fiel dos seus beijos...

Maria desejava essa noite tão ardentemente como elle. Uma tarde ao escurecer, voltando d’um fresco passeio nos campos, experimentaram ambos essa dupla chave — que Carlos já promettia mandar dourar: e elle ficou surprehendido ao vêr que o velho portão, que ouvira sempre ranger abominavelmente, rolava agora nos gonzos com um silencio oleoso.

Veio n’essa mesma noite — tendo deixado na villa para o levar ao amanhecer a caleche do Mulato, um batedor discreto, que elle cevava de gorgetas. O céo, molle e abafado, não tinha uma estrella; e sobre o mar lampejava a espaços, mudamente, a lividez d’um relampago. Caminhando com inuteis cautelas rente do muro Carlos sentia, n’esta proximidade d’uma posse tão desejada, uma melancolia, cortada de anciedade, que vagamente o acobardava. Abriu quasi a tremer o portão: e mal déra alguns passos estacou, ouvindo ao fundo Niniche ladrar furiosamente. Mas tudo emmudeceu; e da janella do canto, sobre o jardim, surgiu uma claridade que o socegou. Foi encontrar Maria, com um roupão de rendas, junto da porta envidraçada, suffocando quasi entre os braços Niniche que ainda rosnava. Estava toda medrosa, n’uma impaciencia de o sentir ao seu lado: e não quiz recolher logo: um momento ficaram alli, sentados nos degraus, com Niniche que aquietára e lambia Carlos. Tudo em redor era como uma infinita mancha de tinta; só lá em baixo, perdida e mortiça, surdia da treva alguma luzinha vacillando no alto d’um mastro. Maria, conchegada a Carlos, refugiada n’elle, deu um longo suspiro: e os seus olhos mergulhavam inquietos n’aquella mudez negra, onde os arbustos familiares do jardim, toda a quinta, parecia perder a realidade, sumida, diluida na sombra.

— Porque não havemos de partir já para a Italia? perguntou ella de repente, procurando a mão de Carlos. Se tem de ser, porque não ha de ser já?... Escusavamos de ter estes segredos, estes sustos!

— Sustos de que, meu amor? Estamos aqui tão seguros como na Italia, como na China... De resto podemos partir mais depressa, se quizeres... Dize tu um dia, marca um dia!

Ella não respondeu, deixando cahir dôcemente a cabeça sobre o hombro de Carlos. Elle acrescentou, devagar:

— Em todo o caso, comprehendes bem, preciso primeiro ir a Santa Olavia, vêr o avô...

Os olhos de Maria perdiam-se outra vez na escuridão — como recebendo d’ella o presagio d’um futuro, onde tudo seria confuso e escuro tambem.

— Tu tens Santa Olavia, tens teu avô, tens os teus amigos... Eu não tenho ninguem!

Carlos estreitou-a a si, enternecido.

— Não tens ninguem! Isso dito a mim! Nem chega a ser injustiça, nem chega a ser ingratidão! É nervoso; e é tambem o que os inglezes chamam a «impudente adulteração d’um facto.»

Ella ficára aninhada no peito de Carlos, como desfallecida.

— Não sei porque, queria morrer...

Um largo brilho de relampago alumiou o rio. Maria teve medo, entraram na alcova. Os mólhos de velas de duas serpentinas, batendo os damascos e os setins amarellos, embebiam o ar tepido, onde errava um perfume, n’uma refulgencia ardente de sacrario: e as bretanhas, as rendas do leito já aberto punham uma casta alvura de neve fresca n’esse luxo amoroso e côr de chamma. Fóra, para os lados do mar, um trovão rolou lento e surdo. Mas Maria já o não ouviu, cahida nos braços de Carlos. Nunca o desejára, nunca o adorára tanto! Os seus beijos anciosos pareciam tender mais longe que a carne, trespassal-o, querer sorver-lhe a vontade e a alma: — e toda a noite, entre esses brocados radiantes, com os cabellos soltos, divina na sua nudez, ella lhe appareceu realmente como a Deusa que elle sempre imaginára, que o arrebatava emfim, apertado ao seu seio immortal, e com elle pairava n’uma celebração d’amor, muito alto, sobre nuvens de ouro...

Quando sahiu, ao amanhecer, chovia. Foi encontrar o Mulato a dormir n’uma taberna, bebedo. Teve de o metter dentro do carro; e foi elle que governou até ao Ramalhete, embrulhado n’uma manta do taberneiro, encharcado, cantarolando, esplendidamente feliz.

Passados dias, passeando com Maria nos arredores da Toca, Carlos reparou n’uma casita, á beira da estrada, com escriptos: e veio-lhe logo a idéa de a alugar, para evitar aquella desagradavel partida de madrugada com o Mulato estremunhado, borracho, despedaçando o trem pelas calçadas. Visitaram-na: havia um quarto largo, que com tapete e cortinas podia dar um refugio confortavel. Tomou-a logo — e Baptista veio ao outro dia, com moveis n’uma carroça, arranjar este novo ninho. Maria disse, quasi triste:

— Mais outra casa!

— Esta, exclamou Carlos rindo, é a ultima! Não, é a penultima... Temos ainda a outra, a nossa, a verdadeira, lá longe, não sei onde...

Começaram a encontrar-se todas as noites. Ás nove e meia, pontualmente, Carlos deixava a Toca, com o seu charuto accêso: e Domingos, adiante, de lanterna, vinha fechar o portão, tirar a chave. Elle recolhia devagar á sua «choupana» onde o servia um criadito, filho do jardineiro do Ramalhete. Sobre um tapete solto, deitado no velho soalho, havia apenas, além do leito, uma mesa, um sofá de riscadinho, duas cadeiras de palha; e Carlos entretinha as horas que o separavam ainda de Maria, escrevendo para Santa Olavia e sobretudo ao Ega, que se eternisava em Cintra.

Recebera duas cartas d’elle, fallando quasi sómente do Damaso. O Damaso apparecia em toda a parte com a Cohen; o Damaso tornára-se grutesco em Cintra, n’uma corrida de burros; o Damaso arvorára capacete e véo em Sitiaes; o Damaso era uma besta immunda; o Damaso, no pateo do Victor, de perna traçada, dizia familiarmente «a Rachel»; era um dever de moralidade publica dar bengaladas no Damaso!... Carlos encolhia os hombros, achando estes ciumes indignos do coração do Ega. E então por quem! Por aquella lambisgoia d’Israel, melada e mollenga, sovada a bengala! «Se com effeito, escrevera elle ao Ega, ella desceu de ti até ao Damaso, tens só a fazer como se fosse um charuto que te cahisse á lama: não o pódes naturalmente levantar: deves deixar fumal-o em paz ao garoto que o apanhou: enfurecer-te com o garoto ou com o charuto, é d’imbecil.» Mas ordinariamente, quando respondia, fallava só ao Ega dos Olivaes, dos seus passeios com Maria, das conversas d’ella, do encanto d’ella, da superioridade d’ella... Ao avô não achava que dizer; nas dez linhas que lhe destinava, descrevia o calor, recommendava-lhe que não se fatigasse, mandava saudades para os hospedes, e dava-lhe recados do Manoelzinho — que elle nunca via.

Quando não tinha que escrever, estirava-se no sofá, com um livro aberto, os olhos no ponteiro do relogio. Á meia noite sahia, encafuado n’um gabão d’Aveiro, e de varapau. Os seus passos resoavam, solitarios na mudez dos campos, com uma indefinida melancolia de segredo e de culpa...

N’uma d’essas noites, de grande calor, Carlos cançado adormeceu no sofá: e só despertou, em sobresalto, quando o relogio na parede dava tristemente duas horas. Que desespero! Ahi ficava perdida a sua noite de amor! E Maria decerto á espera, angustiada, imaginando desastres!... Agarrou o cajado, abalou, correndo pela estrada. Depois, ao abrir subtilmente o portão da quinta, pensou que Maria teria adormecido: Niniche podia ladrar: os seus passos, entre as acacias, abafaram-se, mais cautelosos. E de repente sentiu ao lado, sob as ramagens, vindo do chão, d’entre a herva, um resfolgar ardente d’homem, a que se misturavam beijos. Parou, varado: e o seu impeto logo foi esmagar a cacete aquelles dois animaes, enroscados na relva, sujando brutamente o poetico retiro dos seus amores. Uma alvura de saia moveu-se no escuro: uma voz soluçava, desfallecida — oh yes, oh yes... Era a ingleza!

Oh santo Deus, era a ingleza, era miss Sarah! Apagando os passos, atordoado, Carlos escoou-se pelo portão, cerrou-o mansamente, foi esperar adiante, n’um recanto do muro, sob as ramarias d’uma faia, sumido na sombra. E tremia de indignação. Era preciso contar immediatamente a Maria aquelle grande horror! Não queria que ella consentisse um momento mais essa impura fêmea, junto de Rosa, roçando a candidez do seu anjo... Oh, era pavorosa uma tal hypocrisia, assim astuta e methodica, sem se desconcertar jámais! Havia dias apenas, vira a creatura desviar os olhos d’uma gravura d’Illustração, onde dois castos pastores se beijavam n’um arvoredo bucolico! E agora rugia, estirada na herva!

Na estrada escura, do lado do portão, brilhou um lume de cigarro. Um homem passou, forte e pesado, com uma manta aos hombros. Parecia um jornaleiro. A boa miss Sarah não escolhera! Bem lavada, toda correcta, com os seus bandós puritanos, aceitava um qualquer, rude e sujo, desde que era um macho! E assim os embaíra, mezes, com aquellas suas duas existencias, tão separadas, tão completas! De dia virginal, severa, córando sempre, com a Biblia no cesto da costura: á noite a pequena adormecia, todos os seus deveres sérios acabavam, a santa transformava-se em cabra, chale aos hombros, e lá ia para a relva, com qualquer!... Que bello romance para o Ega!

Voltou; tornou a abrir devagarinho o portão: de novo subiu, amollecendo os passos, a sombria rua d’acacias. Mas agora ia sentindo uma hesitação em contar a Maria aquelle horror. A seu pezar pensava que tambem Maria o esperava, com o leito aberto, no silencio da casa adormecida; e que tambem elle penetrava alli, ás escondidas, como o homem da manta... De certo era bem differente! Toda a immensuravel differença que vai do divino ao bestial... E todavia receava despertar os melindrosos escrupulos de Maria, mostrando-lhe, parallelo ao seu amor cheio de requintes e passado entre brocados côr d’ouro, aquelle outro rude amor, secreto e illegitimo como o d’ella, e arrastado brutamente na relva... Era como mostrar-lhe um reflexo da sua propria culpa, um pouco esfumada, mais grosseira, mas parecida nos seus contornos, lamentavelmente parecida... Não, não diria nada. E a pequena?... Oh, nas suas relações com Rosa a creatura continuaria a ser, como sempre, a puritana laboriosa, grave e cheia d’ordem.

A porta envidraçada sobre o jardim tinha ainda luz: elle atirou aos vidros uma pouca de terra solta, depois bateu de leve. Maria appareceu, mal embrulhada n’um roupão, juntando os cabellos que se tinham desenrolado, e meia adormecida.

— Porque vieste tão tarde?

Carlos beijou longamente os seus bellos olhos pesados, quasi cerrados.

— Adormeci estupidamente, a lêr... Depois, quando entrei pareceu-me ouvir passos na quinta, andei a rebuscar... Era imaginação, tudo deserto.

— Precisavamos ter um cão de fila, murmurou ella, espreguiçando-se.

Sentada á beira do leito, com os braços cahidos e adormentados, sorria da sua preguiça.

— Estás tão fatigada, filha! queres tu que me vá embora ?...

Ella puxou-o para o seu seio perfumado e quente.

— Je veux que tu m’aimes beaucoup, beaucoup, et longtemps...

Ao outro dia Carlos não fôra a Lisboa, e appareceu cedo na Toca. Melanie, que andava espanejando o kiosque, disse-lhe que Madame, um pouco cançada, tinha justamente tomado o seu chocolate na cama. Elle entrou no salão: defronte da janella aberta, sentada no banco de cortiça, miss Sarah costurava, á sombra das arvores.

Good morning, disse-lhe Carlos, chegando-se ao peitoril, todo curioso de a observar.

Good morning, sir, respondeu ella com o seu ar modesto e tímido.

Carlos fallou do calor. Miss Sarah já áquella hora o achava intoleravel. Felizmente a vista do rio, lá em baixo, refrescava...

Sobretudo a noite passada, insistiu Carlos accendendo a cigarrette, fôra tão abafada! Elle mal pudera dormir. E ella?

Oh, ella dormira d’um somno só. Carlos quiz saber se tivera bonitos sonhos.

Oh yes, sir.

Oh yes! mas agora um yes pudico, sem gemidos, com os olhos baixos. E tão correcta, tão pregada, fresca como se nunca tivesse servido!... Positivamente era extraordinaria! E Carlos, torcendo o bigode, pensava que ella devia ter um seiosinho bem alvo e bem redondinho!

Assim ia passando o verão nos Olivaes. No começo de setembro, Carlos soube por uma carta do avô que Craft devia chegar a Lisboa, n’um sabbado, ao Hotel Central: e correu lá cedo, logo n’essa manhã, a ouvir as novidades de Santa Olavia. Achou Craft já a pé, diante do espelho, fazendo a barba. A um canto do sofá, Eusebiosinho, que viera na vespera á noite de Cintra e estava tambem no Hotel, limpava as unhas com um canivete, em silencio, coberto de negro.

Craft vinha encantado com Santa Olavia. Nem comprehendia como Affonso, beirão forte, tolerava a rua de S. Francisco, e o quintalejo abafado do Ramalhete. Tinha-se passado régiamente! O avô, cheio de saude, d’uma hospitalidade que lembrava Abrahão e a Biblia. O Sequeira optimo, comendo tanto que ficava inutil depois de jantar, a estoirar e a gemer no fundo d’uma poltrona. Lá conhecera o velho Travassos, que fallava sempre com os olhos cheios de lagrimas do «talento do seu caro collega Carlos.» E o marquez esplendido, com abraços de primo a todos os fidalgotes de Lamego, e apaixonado por uma barqueira... De resto soberbos jantares, alguns tiros aos coelhos, uma romaria, danças de raparigas no adro, guitarradas, esfolhadas, todo o dôce idyllio portuguez...

— Mas a respeito de Santa Olavia temos a fallar mais sériamente, disse por fim Craft, entrando na alcova, a ensaboar a cabeça.

— E tu, perguntou então Carlos, voltando-se para o Eusebiosinho. Tens estado em Cintra, hein? Que se faz lá?... O Ega?

O outro ergueu-se guardando o canivete, ageitando as lunetas.

— Lá está no Victor, muito engraçado, comprou um burro... Lá está o Damaso tambem... Mas esse pouco se vê, não larga os Cohens... Emfim tem-se passado menos mal, com bastante calor...

— Tu estavas outra vez com a mesma prostituta, a Lola?

Eusebiosinho fez-se escarlate. Credo! estava no Victor, muito sério! O Palma é que lá tinha apparecido com uma rapariga portugueza... Tinha agora um jornal, A Corneta do Diabo.

A Corneta...?

— Sim, do Diabo, disse o Eusebiosinho. É um jornal de pilherias, de picuinhas... Elle já existia, chamava-se o Apito; mas agora passou para o Palma; elle vae-lhe augmentar o formato, e metter-lhe mais chalaça...

— Emfim, disse Carlos, qualquer coisa sebacea e immunda como elle...

Craft reappareceu, enxugando a cabeça. E emquanto se vestia, fallou de uma viagem que agora o tentava, que estivera planeando em Santa Olavia. Como já não tinha a Toca, e a sua casa ao pé do Porto necessitava longas obras, ia passar o inverno ao Egypto, subindo o Nilo, em communicação espiritual com a antiguidade Pharaonica. Depois talvez se adiantasse até Bagdad, a vêr o Euphrates, e os sitios de Babylonia...

— Por isso eu lhe vi alli, na mesa, exclamou Carlos, um livro, Ninive e Babylonia... Que diabo, você gosta d’isso? Eu tenho horror a raças e a civilisações defuntas... Não me interessa senão a Vida.

— É que você é um sensual, disse Craft. E a proposito de sensualidade e de Babylonia, quer vir você almoçar ao Bragança? Eu tenho de lá encontrar um inglez, o meu homem das minas... Mas havemos d’ir pela rua do Ouro, que quero trepar um instante á caverna do meu procurador... E a caminho, que é meio dia!

Deixaram o Eusebiosinho, em baixo na sala, ageitando as suas lugubres lunetas negras diante dos telegrammas. E apenas sahira o pateo, Craft travou do braço de Carlos, e disse-lhe que as coisas sérias a respeito de Santa Olavia — era o visivel, profundo desgosto do avô por elle não ter lá apparecido.

— Seu avô não me disse nada, mas eu sei que elle está muitissimo magoado com você. Não ha desculpa, são umas horas de viagem... Você sabe como elle o adora... Que diabo! Est modus in rebus.

— Com effeito, murmurou Carlos. Eu devia ter lá ido... Que quer você, amigo?... Emfim acabou-se, é necessario fazer um esforço!... Talvez parta para a semana com o Ega.

— Sim, homem, dê-lhe esse alegrão... Esteja lá umas semanas...

Est modus in rebus. Hei de vêr se lá estou uns dias.

A caverna do procurador era defronte do Monte-Pio. Carlos esperava, havia momentos, dando por diante das lojas uma volta lenta — quando de repente avistou Melanie, a sahir o portão do Monte-Pio, com uma matrona gorda, de chapéo rôxo. Surprehendido, atravessou a rua. Ella estacou como apanhada, fazendo-se toda vermelha; e nem deixou vir a pergunta; balbuciou logo que Madame lhe déra licença para vir a Lisboa, e ella andava acompanhando aquella amiga... Uma velha caleche, de parelha branca, estava encalhada alli, contra o passeio. Melanie saltou para dentro, á pressa. A traquitana rodou aos solavancos para o Terreiro do Paço.

Carlos via-a desapparecer, pasmado. E Craft, que voltára, olhando tambem, reconheceu no lamentavel calhambeque a caleche do Torto, dos Olivaes, onde elle ás vezes costumava vir «janotar a Lisboa».

— Era alguem lá da Toca? perguntou.

— Uma criada, disse Carlos, ainda espantado d’aquelle estranho embaraço de Melanie.

E mal tinham dado alguns passos, Carlos, parando, baixando a voz no rumor da rua:

— Ouça lá! O Eusebiosinho disse-lhe alguma coisa a meu respeito, Craft?

O outro confessou que Eusebiosinho, apenas lhe apparecera no quarto, rompera logo, mascando as palavras, a informal-o da mysteriosa vida de Carlos nos Olivaes...

— Mas eu fil-o calar, acrescentou Craft, declarando-lhe que era tão pouco curioso que nem mesmo quizera lêr nunca a Historia Romana... Em todo o caso você deve ir a Santa Olavia.

Carlos, com effeito, logo n’essa noite fallou a Maria da visita que devia ao avô. Ella, muito séria, aconselhou-lh’a tambem, arrependida de o ter retido assim, egoisticamente e tanto tempo, longe dos outros que o amavam.

— Mas ouve, querido, não é por muito tempo, não?

— Por dois ou tres dias, quando muito. E naturalmente, trago até o avô. Não está lá a fazer nada, e eu não estou para a massada de voltar lá...

Maria então lançou-lhe os braços ao pescoço, e baixo, timidamente, confessou-lhe um grande desejo que tinha... Era vêr o Ramalhete! Queria visitar os quartos d’elle, o jardim, todos esses recantos, onde tantas vezes elle pensára n’ella, e se desesperára, sentindo-a distante e inaccessivel...

— Dize, queres? Mas é necessario que seja antes de vir teu avô. Queres?

— Acho um encanto! Ha só um perigo. É eu não te deixar sahir mais e ficar a devorar-te na minha caverna.

— Prouvera a Deus!

Combinaram então que ella fosse jantar ao Ramalhete, no dia da partida de Carlos para Santa Olavia. Á noitinha levava-o no coupé a Santa Apolonia; depois seguia para os Olivaes.

Foi no sabbado. Carlos veio muito cedo para o Ramalhete: e o seu coração batia com a deliciosa perturbação d’um primeiro encontro, quando sentiu parar a carruagem de Maria e os seus vestidos escuros roçarem o velludo côr de cereja que forrava a escada discreta dos seus quartos. O beijo que trocaram, na ante-camara, teve a profunda doçura d’um primeiro beijo.

Ella foi logo ao toucador tirar o chapéo, dar um geito ao cabello. Elle não cessava de a beijar; abraçava-a pela cinta; e com os rostos juntos sorriam para o espelho, enlevados no brilho da sua mocidade. Depois, impaciente, curiosa, ella percorreu os quartos, miudamente, até á alcova de banho; leu os titulos dos livros, respirou o perfume dos frascos, abriu os cortinados de sêda do leito... Sobre uma commoda Luiz XV havia uma salva de prata, transbordando de retratos que Carlos se esquecera de esconder, a coronella d’hussards d’amazona, madame Rughel decotada, outras ainda. Ella mergulhou as mãos, com um sorriso triste, na profusão d’aquellas recordações... Carlos, rindo, pediu-lhe que não olhasse «esses enganos do seu coração».

Porque não? dizia Maria, séria. Sabia bem que elle não descera das nuvens, puro como um seraphim. Havia sempre photographias no passado d’um homem. De resto tinha a certeza que nunca amára as outras como a sabia amar a ella.

— Até é uma profanação fallar em amor quando se trata d’essas coisas d’acaso, murmurou Carlos. São quartos de estalagem onde se dorme uma vez...

No emtanto Maria considerava longamente a photographia da coronella d’hussards. Parecia-lhe bem linda! Quem era? Uma franceza?

— Não, de Vienna. Mulher d’um correspondente meu, homem de negocios... Gente tranquilla, que vivia no campo...

— Ah, viennense... Dizem que tem um grande encanto as mulheres de Vienna!

Carlos tirou-lhe a photographia da mão. Para que haviam de fallar d’outras mulheres? Existia em todo o vasto mundo uma mulher unica, e elle tinha-a alli abraçada sobre o seu coração.

Foram então percorrer todo o Ramalhete, até ao terraço. Ella gostou sobretudo do escriptorio d’Affonso, com os seus damascos de camara de prelado, a sua feição severa de paz estudiosa.

— Não sei porque, murmurou dando um olhar lento ás estantes pesadas e ao Christo na cruz, não sei porque, mas teu avô faz-me medo!

Carlos riu. Que tonteria! O avô se a conhecesse fazia-lhe logo a côrte rasgadamente... O avô era um santo! E um lindo velho!

— Teve paixões?

— Não sei, talvez... Mas creio que o avô foi sempre um puritano.

Desceram ao jardim, que lhe agradou tambem, quieto e burguez, com a sua cascatasinha chorando n’um rythmo dôce. Sentaram-se um instante sob o velho cedro, junto a uma mesa rustica de pedra, onde estavam entalhadas letras mal distinctas e uma data antiga; o chalrar das aves nos ramos pareceu a Maria mais dôce que o de todas as outras aves que ouvira; depois arranjou um ramo para levar como reliquia.

Mesmo em cabello foram vêr defronte as cocheiras: o guarda-portão ficou de boné na mão, embasbacado para aquella senhora tão linda, tão loira, a primeira que via entrar no Ramalhete! Maria acariciou os cavallos, e fez uma festa grata e mais longa á Tunante, que tantas vezes levára Carlos á rua de S. Francisco. Elle via n’estas simples coisas as graças incomparaveis d’uma esposa perfeita.

Recolheram pela escada particular de Carlos — que Maria achava «mysteriosa» com aquelles velludos grossos côr de cereja, forrando-a como um cofre, e abafando todo o rumor de saias. Carlos jurou que nunca alli passára outro vestido — a não ser o do Ega, uma vez, mascarado de varina.

Depois deixou-a no quarto, um momento para ir dar ordens ao Baptista: mas quando voltou encontrou-a a um canto do sofá, tão descahida, tão desanimada, que lhe arrebatou as mãos, cheio d’inquietação.

— Que tens, amor? Estás doente?

Ella ergueu lentamente os olhos que brilhavam n’uma nevoa de lagrimas.

— Pensar que tu vaes deixar por mim esta linda casa, o teu conforto, a tua paz, os teus amigos... É uma tristeza, tenho remorsos!

Carlos ajoelhára ao seu lado, sorrindo dos seus escrupulos, chamando-lhe tonta, seccando-lhe n’um beijo as lagrimas que rolavam... Considerava-se ella então valendo menos que a cascata do jardim e alguns tapetes usados?...

— O que eu tenho pena é de te sacrificar tão pouco, minha querida Maria, quando tu sacrificas tanto!

Ella encolheu os hombros, amargamente.

— Eu!

Passou-lhe as mãos entre os cabellos, puxou-o brandamente para o seu seio — e dizia, baixo, como fallando ao seu proprio coração, calmando-lhe as incertezas e as duvidas:

— Não, com effeito, nada vale no mundo senão o nosso amor! Nada mais vale! Se elle é verdadeiro, se é profundo, tudo mais é vão, nada mais importa...

A sua voz morreu entre os beijos de Carlos, que a levava abraçada para o leito — onde tantas vezes desesperava d’ella como d’uma deusa intangivel.

Ás cinco horas pensaram em jantar. A mesa fôra posta n’uma saleta que Carlos quizera em tempo revestir de colxas de setim côr de perola e botão d’ouro. Mas não estava ainda arranjada; as paredes conservavam o seu papel verde-escuro; e Carlos puzera alli ultimamente o retrato de seu pai — uma tela banal, representando um moço pallido, de grandes olhos, com luvas de camurça amarella e um chicote na mão.

Era Baptista que os servia, já com um fato claro de viagem. A mesa, redonda e pequena, parecia uma cesta de flôres; o champagne gelava dentro dos baldes de prata; no aparador a travessa d’arroz dôce tinha as iniciaes de Maria.

Aquelles lindos cuidados fizeram-na sorrir, enternecida. Depois reparou no retrato de Pedro da Maia: e interressou-se, ficou a contemplar aquella face descórada, que o tempo fizera livida, e onde pareciam mais tristes os grandes olhos d’arabe, negros e languidos.

— Quem é? perguntou.

— É meu pai.

Ella examinou-o mais de perto, erguendo uma vela. Não achava que Carlos se parecesse com elle. E voltando-se muito séria, emquanto Carlos desarrolhava com veneração uma garrafa de velho Chambertin:

— Sabes tu com quem te pareces ás vezes?... É extraordinario, mas é verdade. Pareces-te com minha mãi!

Carlos riu, encantado d’uma parecença que os aproximava mais, e que o lisonjeava.

— Tens razão, disse ella, que a mamã era formosa... Pois é verdade, ha um não sei quê na testa, no nariz... Mas sobretudo certos geitos, uma maneira de sorrir... Outra maneira que tu tens de ficar assim um pouco vago, esquecido... Tenho pensado n’isto muitas vezes...

Baptista entrava com uma terrina de louça do Japão. E Carlos, alegremente, annunciou um jantar á portugueza. Mr. Antoine, o chef francez, fôra com o avô. Ficára a Michaela, outra cozinheira de casa, que elle achava magnifica, e que conservava a tradição da antiga cozinha freiratica do tempo do snr. D. João V.

— Assim, para começar, minha querida Maria, ahi tens tu um caldo de gallinha, como só se comia em Odivellas, na cella da madre Paula, em noites de noivado mystico...

E o jantar foi encantador. Quando Baptista se retirava, elles apertavam-se rapidamente a mão por cima das flôres. Nunca Carlos a achára tão linda, tão perfeita: os seus olhos pareciam-lhe irradiar uma ternura maior: na singela rosa que lhe ornava o peito via a superioridade do seu gosto. E o mesmo desejo invadiu-os a ambos, de ficarem alli eternamente, n’aquelle quarto de rapaz, com jantarinhos portuguezes á moda de D. João V, servidos pelo Baptista de jaquetão.

— Estou com uma vontade de perder o comboio! disse Carlos como implorando a sua approvação.

— Não, deves ir... É necessario não sermos egoistas... Sómente não te descuides, manda-me todos os dias um grande telegramma... Que os telegraphos foram unicamente inventados para quem se ama e está longe, como dizia a mamã.

Então Carlos gracejou de novo sobre a sua parecença com a mãi d’ella. E baixando-se a remexer a garrafa de champagne dentro do gelo:

— É curioso não m’o teres dito antes... Tambem tu nunca me fallaste de tua mãi...

Um pouco de sangue roseou a face de Maria Eduarda. Oh, nunca fallára da mamã, porque nunca viera a proposito...

— De resto não havia coisas muito interessantes a contar, acrescentou. A mamã era uma senhora da ilha da Madeira, não tinha fortuna, casou...

— Casou em Paris?

— Não, casou na Madeira com um austriaco que fôra lá acompanhar um irmão tisico... Era um homem muito distincto, viu a mamã, que era lindíssima, gostaram um do outro, et voilà...

Dissera isto sem erguer os olhos do prato, lentamente, cortando uma aza de frango.

— Mas então, exclamou Carlos, se teu pai era austriaco, meu amor, tu és tambem austriaca... És talvez uma d’essas viennenses que tu dizes que tem um tão grande encanto...

Sim, talvez, segundo essas coisas dos codigos, era austriaca. Mas nunca conhecera o pai, vivera sempre com a mamã, fallára sempre portuguez, considerava-se portugueza. Nunca estivera na Austria, nem sabia mesmo allemão...

— Não tiveste irmãos?

— Sim, tive, uma irmãsinha que morreu em pequena... Mas não me lembra. Tenho em Paris o retrato d’ella... Bem linda!

N’esse momento em baixo, na calçada, uma carruagem, a trote largo, estacou. Carlos, surprehendido, correu á janella com o guardanapo na mão.

— É o Ega! exclamou. É aquelle velhaco que chega de Cintra!

Maria erguera-se, inquieta. E um momento, de pé, ambos se olharam, hesitando... Mas o Ega era como um irmão de Carlos. Elle esperava só que o Ega recolhesse de Cintra para o levar á Toca. Melhor seria que o encontro se désse alli, natural, franco e simples...

— Baptista! gritou Carlos, sem vacillar mais. Dize ao snr. Ega que estou a jantar, que entre para aqui.

Maria sentára-se, vermelha, dando um geito rapido aos ganchos do cabello, arranjado á pressa, um pouco desmanchado.

A porta abriu-se, — e o Ega parou, assombrado, intimidado, de chapéo branco, de guarda-sol branco, e com um embrulho de papel pardo na mão.

— Maria, disse Carlos, aqui tens emfim o meu grande amigo Ega.

E ao Ega disse simplesmente:

— Maria Eduarda.

Ega ia largar atarantadamente o embrulho para apertar a mão que Maria Eduarda lhe estendia, córada e sorrindo. Mas o papel pardo, mal atado, desfez-se; e uma provisão fresca de queijadas de Cintra rolou, esmagando-se, sobre as flôres do tapete. Então todo o embaraço findou através d’uma risada alegre — emquanto o Ega, desolado, abria os braços sobre as ruinas do seu dôce.

— Tu já jantaste? perguntou Carlos.

Não, não tinha jantado. E via já alli uns ovos molles nacionaes, que o encantavam, enfastiado como vinha da horrivel cozinha do Victor. Oh, que cozinha! Pratos lugubres, traduzidos do francez em calão, como as comedias do Gymnasio!

— Então avança! exclamou Carlos. Depressa, Baptista!... Traze o caldo de gallinha! Oh, ainda temos tempo!... Tu sabes que vou hoje para Santa Olavia?

Está claro que sabia, recebera a carta d’elle, e por isso viera... Mas não podia jantar ainda, assim coberto do pó da estrada, e com um jaquetão de bucolica...

— Dize que me guardem o caldo, Baptista! Olha, dize que me guardem tudo, que eu trago uma fome de pastor da Arcadia!...

O Baptista servira o café. E a carruagem da senhora, que os devia levar a Santa Apolonia, esperava já á porta com a maleta. Mas Ega agora queria conversar, affirmou que tinham tempo, tirou o relogio. Estava parado. E elle declarou logo que no campo se regulava pelo sol, como as flôres e como as aves...

— Fica agora em Lisboa? perguntou-lhe Maria Eduarda.

— Não, minha senhora, só o tempo de cumprir o meu dever de cidadão, subindo duas ou tres vezes o Chiado... Depois volto para a relva. Cintra começa a ser interessante para mim, agora que não está ninguem... Cintra, de verão, com burguezes, parece-me um idyllio com nodoas de sebo.

Mas Baptista offerecia a Carlos a chartreuse — dizendo que s. exc.ª não se devia demorar se não tencionava perder o comboio, de proposito. Maria ergueu-se logo para ir dentro pôr o chapéo. E os dois amigos, sós, ficaram um momento calados, emquanto Carlos accendia devagar o charuto.

— Tu quanto tempo te demoras? perguntou por fim o Ega.

— Tres ou quatro dias. E tu não voltes para Cintra antes que eu chegue, precisamos communicar... Que diabo tens tu feito lá?

O outro encolheu os hombros.

— Tenho sorvido ar puro, colhido florinhas, murmurado de vez em quando «que lindo que isto é!» etc.

Depois, debruçado sobre a mesa, picando com um palito uma azeitona:

— De resto, nada... O Damaso lá está! Sempre com a Cohen, como te mandei dizer... Está claro que não ha nada entre elles, aquillo é só para mim, para me irritar... É um canalha aquelle Damaso! Eu só quero um pretexto. Esgano-o!

Deu um puxão forte aos punhos, com uma côr de cólera no rosto queimado:

— Eu, está claro, fallo-lhe, aperto-lhe a mão, chamo-lhe «amigo Damaso», etc. Mas só quero um pretexto! É necessario aniquilar aquelle animal. É um dever de moralidade, d’aceio publico, de gosto varrer aquella bola de lama humana!

— Quem esteve por lá mais? perguntou Carlos.

— Que te interesse?... A Gouvarinho. Mas vi-a uma só vez. Apparecia pouco, coitada, agora que andava de luto.

— De luto?

— Por ti.

Calou-se. Maria entrava, com o véo descido, acabando de apertar as luvas. Então Carlos, suspirando, resignado, estendeu os braços ao Baptista para elle lhe vestir um casaco leve de jornada. Ega ajudava, pedindo um abraço filial para Affonso, e recados para o gordo Sequeira.

Foi acompanhal-os a baixo, em cabello: e fechou elle a portinhola, promettendo a Maria Eduarda uma visita á Toca, apenas Carlos voltasse d’esses penhascos do Douro...

— Não vás para Cintra antes de eu voltar! gritou-lhe ainda Carlos. E a Michaela que tome conta em ti!

All right, all right, dizia o Ega. Boa jornada! Criado de v. exc.ª, minha senhora... Até á Toca!

O coupé partiu. Ega subiu ao seu quarto, onde outro criado lhe estava preparando o banho. Na saleta deserta, entre as flôres e os restos do jantar, as velas continuavam a arder solitarias, fazendo resaltar no painel escuro a pallidez de Pedro da Maia, e a melancolia dos seus olhos.

No sabbado seguinte, perto das duas horas, Carlos e Ega, ainda á mesa do almoço, acabavam os seus charutos, fallando de Santa Olavia. Carlos chegára de lá essa madrugada, só. O avô decidira ficar entre as suas velhas arvores até ao fim do outono que ia tão luminoso e tão macio...

Carlos fôra-o encontrar muito alegre, muito forte — apesar de ter sido obrigado, por causa d’um toque de rheumatismo, a abandonar emfim o seu culto da agua fria. E esta macissa, resplandecente saude do velho fôra um allivio para o coração de Carlos: parecia-lhe assim mais facil, menos ingrata, a sua partida com Maria para Italia, em outubro. Além d’isso achára um truc, como elle dizia ao Ega, para realisar o supremo desejo da sua vida sem magoar o avô, sem lhe turbar a paz da velhice. Era um truc simples. Consistia em partir elle só para Madrid, no começo d’uma certa «viagem d’estudo», para que já preparára o avô em Santa Olavia. Maria ficava na Toca, durante um mez. Depois tomava o paquete para Bordeus: e era ahi que Carlos se reunia com ella, a começarem essa existencia de felicidade e romance que as flôres da Italia deviam perfumar... Na primavera elle voltava a Lisboa, deixando Maria installada no seu ninho: e então, pouco a pouco, ia revelando ao avô aquella ligação, a que o prendia a honra, e que o forçaria agora a viver regularmente longos mezes n’uma outra terra que se tornára a patria do seu coração. E que havia de dizer o avô? Aceitar esse romance, a que não veria os lados desagradaveis, esbatido assim pela distancia e pela nevoa da paixão. Seria para Affonso uma vaga e mal sabida coisa d’amor que se passava em Italia... Poderia lamental-a apenas por lhe levar pontualmente todos os annos o neto para longe; e cada anno se consolaria pensando na curta duração dos idyllios humanos. De resto Carlos contava com essa larga benevolencia que amollece as almas mais rigidas quando apenas alguns passos as separam do tumulo... Emfim o seu truc parecia-lhe bom. Ega, em resumo, approvou o truc.

Depois, mais alegremente, fallaram da installação d’esse amor. Carlos permanecia na sua idéa romantica — um cottage á beira d’um lago. Mas Ega não approvava o lago. Ter todos os dias diante dos olhos uma agua sempre mansa e sempre azul, parecia-lhe perigoso para a durabilidade da paixão. Na quietação continua d’uma paizagem igual, dois amantes solitarios, dizia elle, não sendo botanicos nem pescando á linha, vêem-se forçados a viver exclusivamente do desejo um do outro, e a tirar d’ahi todas as suas idéas, sensações, occupações, gracejos e silencios... E, que diabo, o mais forte sentimento não póde dar para tanto! Dois amantes, cuja unica profissão é amarem-se, deviam procurar uma cidade, uma vasta cidade, tumultuosa e creadora, onde o homem tenha durante o dia os clubs, o cavaco, os museus, as idéas, o sorriso d’outras mulheres — e a mulher tenha as ruas, as compras, os theatros, a attenção d’outros homens; de sorte que á noite, quando se reunam, não tendo passado o infindavel dia a observarem-se um no outro e a si proprios, trazendo cada um a vibração da vida forte que atravessaram — achem um encanto novo e verdadeiro no conchego da sua solidão, e um sabor sempre renovado na repetição dos seus beijos...

— Eu, continuava Ega, erguendo-se, se levasse para longe uma mulher, não era para um lago, nem para a Suissa, nem para os montes da Sicilia; era para Paris, para o boulevard dos Italianos, alli á esquina do Vaudeville, com janellas deitando para a grande vida, a um passo do Figaro, do Louvre, da Philosophia e da blague... Aqui tens tu a minha doutrina!... E ahi temos nós o amigo Baptista com o correio.

Não era o correio. Era apenas um bilhete que o Baptista trazia n’uma salva: e vinha tão perturbado que annunciou «um sujeito, alli fóra, na antecamara, n’uma carruagem, á espera...»

Carlos olhou o bilhete, empallideceu terrivelmente. E ficou a reviral-o, lento e como atordoado, entre os dedos que tremiam... Depois, em silencio, atirou-o ao Ega por cima da mesa.

— Caramba! murmurou Ega, assombrado.

Era Castro Gomes!

Bruscamente Carlos erguera-se, decidido.

— Manda entrar... Para o salão grande!

Baptista apontou para o jaquetão de flanella com que Carlos tinha almoçado, e perguntou baixo se s. exc.ª queria uma sobrecasaca.

— Traze.

Sós, Ega e Carlos olharam-se um instante, anciosamente.

— Não é um desafio, está claro, balbuciou Ega.

Carlos não respondeu. Examinava outra vez o bilhete: o homem chamava-se Joaquim Alvares de Castro Gomes: por baixo tinha escripto a lapis «Hotel Bragança»... Baptista voltára com a sobrecasaca: e Carlos, abotoando-a devagar, sahiu sem outra mais palavra ao Ega, que ficára de pé junto da mesa, limpando estupidamente as mãos ao guardanapo.

No salão nobre, forrado de brocados côr de musgo d’outono, Castro Gomes examinava curiosamente, com um joelho apoiado á borda do sofá, a esplendida tela de Constable, o retrato da condessa de Runa, bella e forte no seu vestido de velludo escarlate de caçadora ingleza. Ao rumor dos passos de Carlos sobre o tapete, voltou-se, de chapéo branco na mão, sorrindo, pedindo perdão de estar assim a pasmar familiarmente para aquelle soberbo Constable... Com um gesto rigido, Carlos, muito pallido, indicou-lhe o sofá. Saudando e risonho Castro Gomes sentou-se vagarosamente. No peito da sobrecasaca muito justa trazia um botão de rosa; os seus sapatos de verniz resplandeciam sob as polainas de linho; no rosto chupado, queimado, a barba negra, terminava em bico; os cabellos rareavam-lhe na risca; e mesmo a sorrir tinha um ar de seccura, de fadiga.

— Eu possuo tambem em Paris um Constable muito chic, disse elle, sem embaraço, n’um tom arrastado, cheio de rr, que o sutaque brazileiro adocicava. Mas é apenas uma pequena paizagem, com duas figurinhas. É um pintor que não me diverte, a dizer a verdade... Todavia dá muito tom a uma galeria. É necessario tel-o.

Carlos, defronte n’uma cadeira, com os punhos fortemente fechados sobre os joelhos, conservava a immobilidade d’um marmore. E, perante aquelle modo affavel, uma idéa ia-o atravessando, lacerante, angustiosa, pondo-lhe já nos olhos largos que não tirava de sobre o outro, uma irreprimivel chamma de cólera. Castro Gomes decerto não sabia nada! Chegára, desembarcára, correra aos Olivaes, dormira nos Olivaes! Era o marido, era novo, tivera-a já nos braços — a ella! E agora alli estava, tranquillo, de flôr ao peito, fallando de Constable! O unico desejo de Carlos, n’esse instante, era que aquelle homem o insultasse.

No emtanto Castro Gomes, amavelmente, desculpava-se de se apresentar assim, sem o conhecer, sem ao menos ter pedido por um bilhete uma entrevista...

— O motivo porém que me traz é tão urgente, que cheguei esta manhã ás dez horas do Rio de Janeiro, ou antes do Lazareto, e estou aqui!... E esta mesma noite, se puder, parto para Madrid.

Fez-se um allivio infinito no coração de Carlos. Ainda não vira então Maria Eduarda, aquelles seccos labios não a tinham tocado! E sahiu emfim da sua rigidez de marmore, teve um movimento attento, aproximando de leve a cadeira.

Castro Gomes no emtanto, tendo pousado o chapéo, tirára do bolso interior da sobrecasaca uma carteira com um largo monogramma de ouro; e, vagaroso, procurava entre os papeis uma carta... Depois, com ella na mão, muito tranquillamente:

— Eu recebi no Rio de Janeiro, antes de partir, este escripto anonymo... Mas não creia v. exc.ª que foi elle que me levou a atravessar á pressa o Atlantico. Seria o maior dos ridiculos... E desejo tambem affirmar-lhe que todo o conteudo d’elle me deixou perfeitamente indifferente... Aqui o tem. Quer v. exc.ª lêl-o, ou quer que eu leia?

Carlos murmurou com um esforço:

— Leia v. exc.ª

Castro Gomes desdobrou o papel, e revirou-o um instante entre os dedos.

— Como v. exc.ª vê, é a carta anonyma em todo o seu horror: papel de mercearia, pautadinho de azul; calligraphia reles; tinta reles; cheiro reles. Um documento odioso. E aqui está como elle se exprime: «Um homem que teve a honra de apertar a mão de v. exc.ª» Eu dispensava a honra... «que teve a hora de apertar a mão de v. exc.ª e d’apreciar o seu cavalheirismo, julga dever prevenil-o que sua mulher é, á vista de toda a Lisboa, a amante d’um rapaz muito conhecido aqui, Carlos Eduardo da Maia, que vive n’uma casa ás Janellas Verdes, chamada o Ramalhete. Este heroe, que é muito rico, comprou expressamente uma quinta nos Olivaes, onde installou a mulher de v. exc.ª, e onde a vai vêr todos os dias, ficando ás vezes, com escandalo da visinhança, até de madrugada. Assim o nome honrado de v. exc.ª anda pelas lamas da capital.» É tudo o que diz a carta; e eu só devo acrescentar, porque o sei, que tudo quanto ella diz é incontestavelmente exacto... O snr. Carlos da Maia é pois publicamente, com conhecimento de toda a Lisboa, o amante d’essa senhora.

Carlos ergueu-se, muito sereno. E abrindo de leve os braços, n’uma aceitação inteira de todas as responsabilidades:

— Não tenho então nada a dizer a v. exc.ª senão que estou ás suas ordens!...

Uma fugitiva onda de sangue avivou a pallidez morena de Castro Gomes. Dobrou a carta, guardou-a com todo o vagar na carteira. Depois, sorrindo friamente:

— Perdão... O snr. Carlos da Maia sabe, tão bem como eu, que se isto tivesse de ter uma solução violenta, eu não viria aqui pessoalmente, a sua casa, lêr-lhe este papel... A coisa é inteiramente outra.

Carlos recahira na cadeira, assombrado. E agora a lentidão adocicada d’aquella voz ia-se-lhe tornando intoleravel. Um confuso terror do que viria d’esses labios, que sorriam com uma pallidez impertinente, quasi fazia estalar o seu pobre coração. E era um desejo brutal de lhe gritar que acabasse, que o matasse, ou que sahisse d’aquella sala, onde a sua presença era uma inutilidade ou uma torpeza!...

O outro passou os dedos no bigode, e proseguiu, devagar, arranjando as suas palavras com cuidado e com precisão:

— O meu caso é este, snr. Carlos da Maia. Ha pessoas em Lisboa que me não conhecem decerto, mas que sabem a esta hora que existe algures, em Paris, no Brazil ou no inferno, um certo Castro Gomes, que tem uma mulher bonita, e que a mulher d’esse Castro Gomes tem em Lisboa um amante. Isto é desagradavel, sobretudo por ser falso. E v. exc.ª comprehende que eu não devo continuar a arrastar por mais tempo a fama de marido infeliz, visto que a não mereço, e que a não posso legalmente ter... É por isso que aqui venho, muito francamente, de gentleman para gentleman, dizer-lhe, como tenho tenção de dizer a outros, que aquella senhora não é minha mulher.

Durante um momento Castro Gomes esperou a voz de Carlos da Maia. Mas elle conservava uma face muda, impenetravel, onde apenas os olhos brilhavam angustiosamente na lividez que a cobrira. Por fim, com um esforço, baixou de leve a cabeça, como acolhendo placidamente aquella revelação, que tornava outra qualquer palavra entre elles desnecessaria e vã.

Mas Castro Gomes encolhera de leve os hombros, com uma languida resignação, como quem attribue tudo á malicia dos Destinos.

— São as ridiculas scenas da vida... O snr. Carlos da Maia está d’ahi a vêr as coisas. É a velha, a classica historia... Ha tres annos que eu vivo com essa senhora; quando tive o inverno passado d’ir ao Brazil, trouxe-a a Lisboa para não vir sósinho. Fômos para o hotel Central. V. exc.ª comprehende perfeitamente que eu não fui fazer confidencias ao gerente do estabelecimento. Aquella senhora vinha commigo, dormia commigo, portanto, para todos os effeitos do hotel, era minha mulher. Como mulher de Castro Gomes ficou no Central; como mulher de Castro Gomes alugou depois uma casa na rua de S. Francisco; como mulher de Castro Gomes tomou emfim um amante... Deu-se sempre como mulher de Castro Gomes, mesmo nas circumstancias mais particularmente desagradaveis para Castro Gomes... E, meu Deus! não podemos realmente condemnal-a muito... Achava-se por acaso revestida d’uma excellente posição social e d’um nome puro, seria mais que humano que o seu amor da verdade a levasse, apenas conhecia alguem, a declarar que posição e nome eram de emprestimo e ella era apenas «Fulana de tal, amigada...» De resto, sejamos justos, ella não era moralmente obrigada a dar semelhantes explicações ao tendeiro que lhe vendia a manteiga, ou á matrona que lhe alugava a casa: nem mesmo, penso eu, a ninguem, a não ser a um pai que lhe quizesse apresentar sua filha, sahida do convento... Demais a mais sou eu que tenho um pouco a culpa; muitas vezes, em coisas relativamente delicadas lhe deixei usar o meu nome. Foi, por exemplo, com o nome de Castro Gomes que ella tomou a governante ingleza. As inglezas são tão exigentes!... Aquella, sobretudo, uma rapariga tão séria... Emfim tudo isso passou... O que importa agora é que eu lhe retiro solemnemente o nome que lhe emprestára; e ella fica apenas com o seu, que é Madame Mac-Gren.

Carlos ergueu-se, livido. E com as mãos fincadas nas costas da cadeira tão fortemente, que quasi lhe esgaçava o estofo:

— Mais nada, creio eu?

Castro Gomes mordeu de leve os beiços perante este remate brutal que o despedia.

— Mais nada, disse elle tomando o chapéo e levantando-se muito vagarosamente. Devo apenas acrescentar, para evitar a v. exc.ª suspeitas injustas, que aquella senhora não é uma menina que eu tivesse seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que alli anda não é minha filha... Eu conheço a mãi sómente ha tres annos... Vinha dos braços d’um qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injuria, que era uma mulher que eu pagava.

Completára com esta palavra a humilhação do outro. Estava deliciosamente desforrado. Carlos, mudo, abrira o reposteiro da sala, n’uma sacudidella brusca. E, diante d’esta nova rudeza que revelava só mortificação, Castro Gomes foi perfeito: saudou, sorriu, murmurou:

— Parto esta noite mesmo para Madrid, e levo o pezar de ter feito o conhecimento de v. exc.ª por um motivo tão desagradavel... Tão desagradavel para mim.

Os seus passos desafogados e leves perderam-se na ante-camara, entre as tapeçarias. Depois em baixo uma portinhola bateu, uma carruagem rodou na calçada...

Carlos ficára cahido n’uma cadeira, junto da porta, com a cabeça entre as mãos. E de todas aquellas palavras de Castro Gomes, que ainda lhe resoavam em redor, adocicadas e lentas, só lhe restava o sentimento atordoado de uma coisa muito bella, resplandecendo muito alto, e que cahia de repente, se fazia em pedaços na lama, salpicando-o todo de nodoas intoleraveis... Não soffria: era simplesmente um assombro de todo o seu sêr perante este fim immundo d’um sonho divino... Unira a sua alma arrebatadamente a outra alma nobre e perfeita, longe nas alturas, entre nuvens d’ouro; de repente uma voz passava, cheia de rr; as duas almas rolavam, batiam n’um charco; e elle achava-se tendo nos braços uma mulher que não conhecia, e que se chamava Mac-Gren.

Mac-Gren! era a Mac-Gren!

Ergueu-se, com os punhos fechados; e veio-lhe uma revolta furiosa de todo o seu orgulho contra essa ingenuidade que o trouxera mezes timido, tremulo, ancioso, seguindo á maneira d’uma estrella aquella mulher, que qualquer em Paris, com mil francos no bolso, poderia ter sobre um sofá, facil e núa! Era horrivel! E recordava agora, afogueado de vergonha, a emoção religiosa com que entrava na sala de reps vermelho da rua de S. Francisco: o encanto enternecido com que via aquellas mãos, que elle julgava as mais castas da terra, puxarem os fios de lã no bordado, n’um constante trabalho de mãi laboriosa e recolhida; a veneração espiritual com que se afastava da orla do seu vestido, igual para elle á tunica d’uma Virgem cujas pregas rigidas nem a mais rude bestialidade ousaria desmanchar de leve! Oh imbecil, imbecil!... E todo esse tempo ella sorria comsigo d’aquella simpleza de provinciano do Douro! Oh! tinha vergonha agora das flôres apaixonadas que lhe trouxera! Tinha vergonha das «excellencias» que lhe déra!

E seria tão facil, desde o primeiro dia no Aterro, ter percebido que aquella deusa, descida das nuvens, estava amigada com um brazileiro! Mas quê! a sua paixão absurda de romantico puzera-lhe logo, entre os olhos e as coisas flagrantes e reveladoras, uma d’essas nevoas douradas que dão ás montanhas mais rugosas e negras um brilho polido de pedra preciosa! Porque escolhera ella precisamente para seu medico, na sua casa e na sua intimidade, o homem que na rua a fitára com um fulgor de desejo na face? Porque é que nas suas longas conversas, nas manhãs da rua de S. Francisco, não fallára jámais de Paris, dos seus amigos e das coisas da sua casa? Porque é que ao fim de dois mezes, sem preparação, sem todas essas progressivas evidencias do amor que cresce e desabrocha como uma flôr, se lhe abandonára de chofre, toda prompta, apenas elle lhe disse o primeiro «amo-te»?... Porque lhe aceitára uma casa já mobilada, com a facilidade com que lhe aceitava os ramos? E outras coisas ainda, pequeninas, mas que não teriam escapado ao mais simples: joias brutaes, d’um luxo grosseiro de cocotte: o livro da Explicação de sonhos, á cabeceira da cama; a sua familiaridade com Melanie... E agora até o ardor dos seus beijos lhe parecia vir menos da sinceridade da paixão — que da sciencia da voluptuosidade!... Mas tudo acabára, providencialmente! A mulher que elle amára e as suas seducções esvaíam-se de repente no ar como um sonho, radiante e impuro, de que aquelle brazileiro o viera acordar por caridade! Esta mulher era apenas a Mac-Gren... O seu amor fôra, desde que a vira, como o proprio sangue das suas veias; e escoava-se agora todo através da ferida incuravel e que nunca mais fecharia, feita no seu orgulho!

Ega appareceu á porta do salão, ainda pallido:

— Então?

Toda a cólera de Carlos fez explosão:

— Extraordinario, Ega, extraordinario! A coisa mais abjecta, a coisa mais immunda!

— O homem pediu-te dinheiro?

— Peor!

E, passeando arrebatadamente, Carlos desabafou, contou tudo, sem reticencias, com as mesmas palavras cruas do outro, — que assim repetidas e avivadas pelos seus labios, lhe descobriam motivos novos de humilhação e de nojo.

— Já por acaso sucedeu a alguem coisa mais horrivel? exclamou por fim, cruzando violentamente os braços diante do Ega, que se abatera no sofá, assombrado. Pódes tu conceber um caso mais sordido? E tambem mais burlesco? É para estalar o coração. E é para rebentar a rir. Estupendo! Ahi, n’esse sofá, ahi onde tu estás, o homemzinho, muito amavel, de flôr ao peito, a dizer: «Olhe que aquella creatura não é minha mulher, é uma creatura que eu pago...» Comprehendes isto bem! Aquelle sujeito paga-a... Quanto é o beijo? Cem francos. Ahi estão cem francos... É de morrer!

E recomeçou no seu passeio, desvairado, desabafando mais, recontando tudo, sempre com as palavras do Castro Gomes, que elle deformava ainda n’uma brutalidade maior...

— Que te parece, Ega? Dize lá. Que fazias tu? É horrivel, heim?

Ega, que limpava pensativamente o vidro do monoculo, hesitou, terminou por dizer que, considerando as coisas com superioridade, como homens do seu tempo e «do seu mundo», ellas não offereciam nem motivos de cólera, nem motivos de dôr...

— Então não comprehendes nada! gritou Carlos, não percebes o meu caso!

Sim, sim, Ega comprehendia claramente que era horrivel para um homem, no momento em que ia ligar com adoração o seu destino ao d’uma mulher, saber que outros a tinham tido a tanto por noite... Mas isso mesmo simplificava e amenisava as coisas. O que fôra um drama complicado tornava-se uma distracção bonançosa. Ficava Carlos, desde logo, alliviado do remorso de ter desorganisado uma familia: já não tinha de se exilar, a esconder o seu erro, n’um buraco florido da Italia; já o não prendia a honra para sempre a uma mulher a quem talvez não o prenderia para sempre o amor. Tudo isto, que diabo! eram vantagens.

— E a dignidade d’ella! exclamou Carlos.

Sim, mas a diminuição de dignidade e pureza não era na verdade grande, porque antes da visita de Castro Gomes já ella era uma mulher que foge do seu marido — o que, sem mesmo usar termos austeros, nem é muito puro nem muito digno... Decerto, tudo isso era uma humilhação irritante — não superior todavia á d’um homem que tem uma Madona que contempla com religião, suppondo-a de Raphael, e que descobre um dia que a tela divina foi fabricada na Bahia por um sujeito chamado Castro Gomes! Mas o resultado intimo e social parecia-lhe ser este: Carlos até ahi tivera uma bella amante com inconvenientes, e agora tinha sem inconvenientes uma bella amante...

— O que tu deves fazer, meu caro Carlos...

— O que eu vou fazer é escrever-lhe uma carta, remettendo-lhe o preço de dois mezes que dormi com ella...

— Brutalidade romantica!... Isso já vem na Dama das Camelias... Sobretudo é não vêr com boa philosophia as nuances.

O outro atalhou, impaciente:

— Bem, Ega, não fallemos mais n’isso... Eu estou horrivelmente nervoso!... Até logo. Tu jantas em casa, não é verdade? Bem, até logo.

Sahia atirando a porta, quando Ega, agora tranquillo, disse, erguendo-se muito lentamente do sofá:

— O homemzinho foi para lá.

Carlos voltou-se, com os olhos chammejantes:

— Foi para os Olivaes? Foi ter com ella?

Sim, pelo menos mandára a tipoia á quinta do Craft. Ega, para conhecer esse snr. Castro Gomes, fôra metter-se no cubiculo do guarda-portão. E vira-o descer, accender um charuto... Era com effeito um d’esses rastaquouèros que, n’esse infeliz Paris que tudo tolera, veem ao Café de la Paix ás duas horas para tomar a sua groseille, tesos e embrutecidos... E fôra o guarda-portão que lhe dissera que o sujeito parecia muito alegre e mandára o cocheiro bater para os Olivaes...

Carlos parecia aniquilado:

— Tudo isso é nojento!... No fim talvez até se entendam ambos... Estou como tu dizias aqui há tempos: «Cahiu-me a alma a uma latrina, preciso um banho por dentro!»

Ega murmurou melancolicamente:

— Essa necessidade de banhos moraes está-se tornando com effeito tão frequente!... Devia haver na cidade um estabelecimento para elles.

Carlos, no seu quarto, passeava diante da mesa onde a folha branca de papel, em que ia escrever a Maria Eduarda, já tinha a data d’esse dia, depois — Minha senhora, n’uma letra que elle se esforçára por traçar firme e serena: — e não achava outra palavra. Estava bem decidido a mandar-lhe um cheque de duzentas libras, paga esplendidamente ultrajante das semanas que passára no seu leito. Mas queria juntar duas linhas regeladas, impassiveis, que a ferissem mais que o dinheiro: e não encontrava senão phrases de grande cólera, revelando um grande amor.

Olhava a folha branca: e a banal expressão Minha senhora dava-lhe uma saudade dilacerante por aquella a quem na vespera ainda dizia «minha adorada», pela mulher que se não chamava ainda Mac-Gren, que era perfeita, e que uma paixão indomavel, superior á razão, entontecera e vencera. E o seu amor por essa Maria Eduarda, nobre e amante, que se transformára na Mac-Gren, amigada e falsa, era agora maior infinitamente, desesperado por ser irrealisavel — como o que se tem por uma morta e que palpita mais ardente junto da frialdade da cova. Oh! se ella pudesse resurgir outra vez, limpa, clara, do lodo em que afundára, outra vez Maria Eduarda, com o seu casto bordado!... De que amor mais delicado a cercaria, para a compensar das affeições domesticas que ella deixasse de merecer! Que veneração maior lhe consagraria — para supprir o respeito que o mundo superficial e affectado lhe retirasse! E ella tinha tudo para reter amor e respeito — tinha a belleza, a graça, a intelligencia, a alegria, a maternidade, a bondade, um incomparavel gosto... E com todas estas qualidades dôces e fortes — era apenas uma intrujona!

Mas porque? porque? Porque entrára ella n’esta longa fraude, tramada dia a dia, mentindo em tudo, desde o pudor que fingia até ao nome que usava!

Apertava a cabeça entre as mãos, achava a vida intoleravel. Se ella mentia — onde havia então a verdade? Se ella o trahia assim, com aquelles olhos claros, o universo podia bem ser todo uma immensa traição muda. Punha-se um mólho de rosas n’um vaso, exhalava-se d’elle a peste! Caminhava-se para uma relva fresca, ella escondia um lamaçal! E para que, para que mentira ella? Se, desde o primeiro dia em que o vira, tremulo e rendido, a contemplar o seu bordado como se contempla uma acção de santidade — lhe tivesse dito que não era esposa do snr. Castro Gomes, mas só amante do snr. Castro Gomes — teria a sua paixão sido menos viva, menos profunda? Não era a estola do padre que dava belleza ao seu corpo e valor ás suas caricias... Para que fôra então essa mentira tenebrosa e descarada — que lhe fazia suppôr agora que eram imposturas os seus mesmos beijos, imposturas os seus mesmos suspiros!... E com este longo embuste o levava a expatriar-se, dando a sua vida inteira por um corpo por que outros davam apenas um punhado de libras! E por esta mulher, tarifada ás horas como as caleches da Companhia, elle ia amargurar a velhice do avô, estragar irreparavelmente o seu destino, cortar a sua livre acção de homem!

Mas porque? Porque fôra esta farça banal, arrastada por todos os palcos de opera comica, da cocotte que se finge senhora? Porque o fizera ella, com aquelle fallar honesto, o puro perfil e a doçura de mãi? Por interesse? Não. Castro Gomes era mais rico do que elle, mais largamente lhe podia satisfazer o appetite mundano de toilettes, de carruagens... Sentia ella que Castro Gomes a ia abandonar, e queria ter ao lado aberta e prompta outra bolsa rica? Então mais simples teria sido dizer-lhe: «eu sou livre, gósto de ti, toma-me livremente, como eu me dou.» Não! Havia alli alguma coisa secreta, tortuosa, impenetravel... O que daria por a conhecer!

E então pouco a pouco foi surgindo n’elle o desejo de ir aos Olivaes... Sim, não lhe bastaria desforrar-se arrogantemente, atirando-lhe ao regaço um cheque embrulhado n’uma insolencia! O que precisava, para sua plena tranquillidade, era arrancar do fundo d’aquella turva alma o segredo d’aquella torpe farça... Só isso amansaria o seu incomparavel tormento. Queria entrar outra vez na Tóca, vêr como era aquella outra mulher que se chamava Mac-Gren, e ouvir as suas palavras. Oh! iria sem violencias, sem recriminações, muito calmo, sorrindo! Só para que ella lhe dissesse qual fôra a razão d’aquella mentira tão laboriosa, tão vã... Só para lhe perguntar serenamente: «Minha rica senhora, para que foi toda esta intrujice?» E depois vêl-a chorar... Sim, tinha esta anciedade cheia d’amor de a vêr chorar. A agonia que elle sentira no salão côr de musgo do outono, emquanto o outro arrastava os rr, queria vêl-a repetida n’esse seio, onde elle até ahi dormira tão dôcemente, esquecido de tudo, e que era bello, tão divinamente bello!...

Bruscamente, decidido, deu um puxão á campainha. Baptista appareceu, todo abotoado na sua sobrecasaca, com um ar resoluto, como armado e prompto a ser util n’aquella crise que adivinhava...

— Baptista, corre ao hotel Central e pergunta se já entrou o snr. Castro Gomes!... Não, escuta... Põe-te á porta do Central, e espera até que entre aquelle sujeito que aqui esteve... Não, é melhor perguntar!... Emfim, certifica-te de que o sujeito ou voltou ou está no hotel. E apenas estejas bem certo d’isso, volta aqui, á desfilada, n’uma tipoia... Um batedor seguro, que é para me levar depois aos Olivaes!...

Immediatamente, dada esta ordem, serenou. Era já um allivio immenso não ter de escrever a carta, e achar palavras acerbas que a deviam dilacerar. Rasgou o papel devagar. Depois fez o cheque de duzentas libras, ao portador. Elle mesmo lh’o levaria... Oh, decerto, não lh’o atirava romanticamente ao regaço... Deixal-o-hia sobre uma mesa, sobrescriptado a Madame Mac-Gren... E de repente sentiu uma compaixão por ella. Via-a já, abrindo o enveloppe com duas grandes lagrimas, lentas, caladas, a rolarem-lhe na face... E os seus proprios olhos se humedeceram.

N’esse momento Ega, de fóra, perguntou se era importuno.

— Entra! gritou.

E continuou passeando, calado, com as mãos nos bolsos: o outro, em silencio tambem, foi encostar-se á janella sobre o jardim.

— Preciso escrever ao avô a dizer-lhe que cheguei, murmurou Carlos por fim, parando junto da mesa.

— Dá-lhe recados meus.

Carlos sentára-se, tomára languidamente a penna: mas bem depressa a arremessou: cruzou as mãos por detraz da cabeça no espaldar da cadeira, cerrou os olhos, como exhausto.

— Sabes uma coisa que me parece certa? disse de repente o Ega da janella. Quem escreveu a carta anonyma ao Castro Gomes foi o Damaso!

Carlos olhou para elle:

— Achas?... Sim, talvez... Com effeito quem havia de ser?

— Não foi mais ninguem, menino. foi o Damaso!

Carlos então recordou o que lhe contára o Taveira — as allusões mysteriosas do Damaso a um escandalo que se estava armando, uma bala que elle devia receber na cabeça... O Damaso, portanto, tinha como certa a vinda do brazileiro, depois um duello...

— É necessario esmagar esse infame! exclamou Ega, subitamente furioso. Não ha segurança, não ha paz na nossa vida emquanto esse bandido viver!...

Carlos não respondeu. E o outro proseguia, transtornado, já todo pallido, deixando transbordar odios cada dia accumulados:

— Eu não o mato porque não tenho um pretexto!... Se tivesse um pretexto, uma insolencia d’elle, um olhar atrevido, era meu, esborrachava-o!... Mas tu precisas fazer alguma coisa, isto não póde ficar assim! Não póde! É necessario sangue... Vê tu que infamia, uma carta anonyma!... Temos a nossa paz, a nossa felicidade, tudo exposto constantemente aos ataques do snr. Damaso. Não póde ser. Eu o que tenho pena é de não ter um pretexto! Mas tenl-o tu, aproveita, e esmaga-o!

Carlos encolheu vagamente os hombros:

— Merecia chicotadas, com effeito... Mas elle realmente só tem sido velhaco commigo por causa das minhas relações com essa senhora; e como isso é um caso acabado, tudo o que se prende com elle finda tambem. Parce sepultis... E no fim era elle que tinha razão, quando dizia que ella era uma intrujona...

Atirou uma punhada á mesa, ergueu-se, e com um sorriso amargo, n’um tedio infinito de tudo:

— Era elle, era o snr. Damaso Salcede que tinha razão!...

Toda a sua cólera revivera, mais aspera, a esta idéa. Olhou o relogio. Tinha pressa de a vêr, tinha pressa de a injuriar!...

— Escreveste-lhe? perguntou o Ega.

— Não, vou lá eu mesmo.

Ega pareceu espantado. Depois recomeçou a passear, calado, com os olhos no tapete.

Ia escurecendo quando Baptista voltou. Vira o snr. Castro Gomes apear-se no hotel e mandar descer as suas bagagens: — e a tipoia, para levar o menino aos Olivaes, esperava em baixo.

— Bem, adeus! disse Carlos procurando atarantadamente um par de luvas.

— Não jantas?

— Não.

D’ahi a pouco rodava pela estrada dos Olivaes. Já se accendera o gaz. E inquieto, no estreito assento, accendendo nervosamente cigarettes que não fumava, soffria já a perturbação d’aquelle encontro difficil e doloroso... Nem sabia mesmo como a havia de tratar, se por «minha senhora», se por «minha boa amiga», com uma superior indifferença. E ao mesmo tempo sentia por ella uma compaixão indefinida, que o amollecia. Diante d’estes seus modos regelados, via-a já toda pallida, a tremer, com os olhos cheios d’agua. E estas lagrimas que appetecera, agora que estava tão perto de as vêr correr, enchiam-no só de commoção e de dó... Durante um momento mesmo pensou em retroceder. Por fim seria muito mais digno escrever-lhe duas linhas altivas, sacudindo-a de si para sempre e seccamente! Poderia não lhe mandar o cheque, — affronta brutal d’homem rico. Apesar d’embusteira era mulher, cheia de nervos, cheia de phantasia, e amára-o talvez com desinteresse... Mas uma carta era mais digno. E agora acudiam-lhe as palavras que lhe deveria ter dirigido, incisivas e precisas. Sim, devia-lhe ter dito — que se estava prompto a dar a sua vida a uma mulher que se lhe abandonára por paixão, estava decidido a não sacrificar nem os seus vagares a uma mulher que lhe cedera por profissão. Era mais simples, era terminante... E depois não a via, não teria de supportar a tortura das explicações e das lagrimas.

Então veio-lhe uma fraqueza. Bateu nos vidros para fazer parar, reflectir um instante, mais calmamente, no silencio das rodas. O cocheiro não ouviu: o trote largo da parelha continuou batendo a estrada escura. E Carlos deixou seguir, outra vez hesitante. Depois, á maneira que reconhecia, esbatidos na sombra, aquelles sitios onde tantas vezes passára com o coração em festa, quando a sua paixão estava em flôr, uma cólera nova voltava — menos contra a pessoa de Maria Eduarda, que contra essa mentira que fôra obra d’ella, e que vinha estragar irremediavelmente o encanto divino da sua vida. Era essa mentira que agora odiava — vendo-a como uma coisa material e tangivel, de um peso enorme, feia e côr de ferro, esmagando-lhe o coração. Oh! Se não fosse essa coisa pequenina e inolvidavel que estava entre elles, como um indestructivel bloco de granito, poderia abrir-lhe novamente os seus braços, senão com a mesma crença pelo menos com o mesmo ardor! Esposa do outro ou amante do outro — no fim que importava? Não era por faltar aos beijos que lhe dera esse a consagração d’um padre, rosnada em latim — que a sua pelle estava mais polluida por elles, ou tinha a menos frescura? Mas havia a mentira, a mentira inicial, dita no primeiro dia em que fôra á rua de S. Francisco, e que como um fermento podre ficava estragando tudo d’ahi por diante, dôces conversas, silencios, passeios, sestas no calor da quinta, murmurios de beijos morrendo entre os cortinados côr d’ouro... Tudo manchado, tudo contaminado por aquella mentira primeira que ella dissera sorrindo, com os seus tranquillos olhos limpidos...

Abafava. Ia a descer a vidraça que faltava a correia — quando a tipoia parou de repente, na estrada solitaria... Abriu a portinhola. Uma mulher com um chale pela cabeça fallava ao cocheiro.

— Melanie!

— Ah, monsieur!

Carlos saltou precipitadamente. Era já proximo da quinta, na volta d’estrada, onde o muro fazia um recanto sob uma faia, defronte de sebes de piteiras resguardando campos d’olivedo. Carlos gritou ao cocheiro que seguisse e esperasse no portão da quinta. E ficou alli, no escuro, com Melanie encolhida no seu chale.

Que estava ella alli a fazer? Melanie parecia transtornada: contou que vinha procurar á villa uma carruagem, porque a senhora queria ir a Lisboa, ao Ramalhete... Ella julgára a tipoia vazia.

E apertava as mãos, dando as graças, com um immenso allivio. Ah! que felicidade, que felicidade ter elle vindo!... A senhora estava afflicta, nem jantára, perdida de chôro. O snr. Castro Gomes apparecera lá inesperadamente... A senhora, coitadinha, queria morrer!

Então Carlos, caminhando rente ao muro, interrogou Melanie. Como viera o outro? que dissera? como se despedira?... Melanie não ouvira nada. O Snr. Castro Gomes e a senhora tinham conversado sós no pavilhão japonez. Á sahida é que vira o snr. Castro Gomes dizer adeus a madame, muito socegado, muito amavel, rindo, fallando de Niniche... A senhora, essa, parecia como morta, tão pallida! Quando o outro partiu, ia tendo um desmaio.

Estavam proximo do portão da Toca. Carlos retrocedeu, respirando fortemente, com o chapéo na mão. E agora todo o seu orgulho se ia sumindo sob a violencia da sua anciedade. Queria saber! E perguntava, deixava entrar Melanie nas coisas dolorosas da sua paixão... Dites toujours, Melanie, dites! Sabia a senhora que Castro Gomes estivera com elle no Ramalhete, lhe confessára tudo?...

Claramente que sabia, por isso chorava — dizia Melanie. Ah, ella bem repetira á senhora que era melhor contar a verdade! Era muito amiga d’ella, servia-a desde pequena, vira nascer a menina... E tinha-lh’o dito, até já nos Olivaes!

Carlos curvava a cabeça na escuridão do muro. Melanie tinha-lh’o dito! Assim ella e a criada discutiam ambas, acamaradadas, o embuste em que andava presa a sua vida! E aquellas revelações de Melanie, que suspirava com o chale sobre o rosto, abatiam os ultimos pedaços d’esse sonho, que elle erguera tão alto, entre nuvens d’ouro. Nada restava. Tudo jazia em estilhaços, no lodo immundo.

Um momento, com o coração cheio de fadiga, pensou em voltar a Lisboa. Mas para além d’aquelle negro muro estava ella, perdida de chôro, querendo morrer... E lentamente recomeçou a caminhar para o portão.

E agora, sem resistencia nenhuma do orgulho, fazia perguntas mais intimas a Melanie. Porque é que Maria Eduarda não lhe dissera a verdade?

Melanie encolheu os hombros. Não sabia: nem a senhora sabia! Estivera no Central como madame Gomes; alugára a casa da rua de S. Francisco como madame Gomes; recebera-o como madame Gomes... E assim se deixára ir, insensivelmente, conversando com elle, gostando d’elle, vindo para os Olivaes... E depois era tarde, já não se atrevera a confessar, toda enterrada assim na mentira, com medo de um desgosto...

Mas, exclamava Carlos, nunca imaginára ella que fatalmente tudo se descobriria um dia?

— Je ne sais pas, monsieur, je ne sais pas, murmurou Melanie quasi a chorar.

Depois eram outras curiosidades. Ella não esperava Castro Gomes? não suppunha que elle voltasse? não costumava fallar d’elle?...

— Oh non, monsieur, oh non!

Madame, desde que o senhor começára a ir todos os dias á rua de S. Francisco, considerára-se para sempre desligada do snr. Castro Gomes, nem fallava n’elle, nem queria que se fallasse... Antes d’isso a menina chamava sempre ao snr. Castro Gomes petit ami. Agora não lhe chamava nada. Tinham-lhe dito que já não havia petit ami...

— Ella escrevia-lhe ainda, dizia Carlos, eu sei que ella lhe escrevia...

Sim, Melanie julgava que sim... Mas cartas indifferentes. A senhora levára o seu escrupulo a ponto de que, desde que viera para os Olivaes, nunca mais gastára um ceitil das quantias que lhe mandava o snr. Castro Gomes. As letras para receber dinheiro conservava-as intactas, entregára-lh’as n’essa tarde... Não se lembrava elle de a ter encontrado uma manhã á porta do Monte-Pio? Pois bem! Fôra lá, com uma amiga franceza, empenhar uma pulseira de brilhantes da senhora. A senhora vivia agora das suas joias; tinha já outras no prégo.

Carlos parára, commovido. Mas então para que tinha ella mentido?

— Je ne sais pas, dizia Melanie, je ne sais pas... Mais elle vous aime bien, allez!

Estavam defronte do portão. A tipoia esperava. E, ao fundo da rua d’acacias, a porta da casa aberta deixava passar a luz do corredor, frouxa e triste. Carlos julgou vêr mesmo a figura de Maria Eduarda, embrulhada n’uma capa escura, de chapéo, atravessar n’essa claridade... Ouvira decerto rodar a carruagem. Que afflicta impaciencia seria a sua!

— Vai-lhe dizer que vim, Melanie, vai! murmurou Carlos.

A rapariga correu. E elle, caminhando devagar sob as acacias, sentia no sombrio silencio as pancadas desordenandas do seu coração. Subiu os tres degraus de pedra — que lhe pareciam já d’uma casa estranha. Dentro o corredor estava deserto, com a sua lampada mourisca alumiando as panoplias de touros... Alli ficou. Melanie, com o chale na mão, veio dizer-lhe que a senhora estava na sala das tapeçarias...

Carlos entrou.

Lá estava, ainda de capa, esperando de pé, palida, com toda a alma concentrada nos olhos que refulgiam entre as lagrimas. E correu para elle, arrebatou-lhe as mãos, sem poder fallar, soluçando, tremendo toda.

Na sua terrivel perturbação, Carlos achava só esta palavra, melancolicamente estupida:

— Não sei porque chora, não sei, não há razão para chorar...

Ella pôde emfim balbuciar:

— Escuta-me, pelo amor de Deus! não digas nada, deixa contar-te... Eu ia lá, tinha mandado Melanie por uma carruagem. Ia vêr-te... Nunca tive a coragem de te dizer! Fiz mal, foi horrivel... Mas escuta, não digas nada ainda, perdôa, que eu não tenho culpa!

De novo os soluços a suffocaram. E cahiu ao canto do sofá, n’um chôro brusco e nervoso, que a sacudia toda, lhe fazia rolar sobre os hombros os cabellos mal atados.

Carlos ficára diante d’ella, immovel. O seu coração parecia parado de surpreza e de duvida, sem força para desafogar. Apenas agora sentia quanto seria baixo e brutal deixar-lhe o cheque — que tinha alli na carteira e que o enchia de vergonha... Ella ergueu o rosto, todo molhado, murmurou com um grande esforço:

— Escuta-me!... Nem sei como hei de dizer... Oh, são tantas coisas, são tantas coisas!... Tu não te vaes já embora, senta-te, escuta...

Carlos puxou uma cadeira, lentamente.

— Não, aqui ao pé de mim... Para eu ter mais coragem... Por quem és, tem pena, faze-me isso!

Elle cedeu á supplicação humilde e enternecedora dos seus olhos arrazados d’agua: e sentou-se ao outro canto do sofá, afastado d’ella, n’uma desconsolação infinita. Então, muito baixo, enrouquecida pelo chôro, sem o olhar, e como n’um confessionario — Maria começou a fallar do seu passado, desmanchadamente, hesitando, balbuciando, entre grandes soluços que a afogavam, e pudores amargos que lhe faziam enterrar nas mãos a face afflicta.

A culpa não fôra d’ella! não fôra d’ella! Elle devia ter perguntado áquelle homem que sabia toda a sua vida... Fôra sua mãi... Era horroroso dizel-o, mas fôra por causa d’ella que conhecera e que fugira com o primeiro homem, o outro, um irlandez... E tinha vivido com elle quatro annos, como sua esposa, tão fiel, tão retirada de tudo e só occupada da sua casa, que elle ia casar com ella! Mas morrera na guerra com os allemães, na batalha de Saint-Privat. E ella ficára com Rosa, com a mãi já doente, sem recursos, depois de vender tudo... Ao principio trabalhára... Em Londres tinha procurado dar lições de piano... Tudo falhára, dois dias vivera sem lume, de peixe salgado, vendo Rosa com fome! A pobre criança com fome! com fome! Ah, elle não podia perceber o que isto era!... Quasi fôra por caridade que as tinham repatriado para Paris... E ahi conhecera Castro Gomes. Era horrivel, mas que havia d’ella fazer! Estava perdida...

Lentamente escorregára do sofá, cahira aos pés de Carlos. E elle permanecia immovel, mudo, com o coração rasgado por angustias differentes: era uma compaixão tremula por todas aquellas miserias soffridas, dôr de mãi, trabalho procurado, fome, que lh’a tornavam confusamente mais querida; e era o horror d’esse outro homem, o irlandez, que surgia agora, e que lh’a tornava de repente mais maculada...

Ella continuava fallando de Castro Gomes. Vivera tres annos com elle, honestamente, sem um desvio, sem um pensamento mau. O seu desejo era estar quieta em sua casa. Elle é que a forçava a andar em ceias, em noitadas...

E Carlos não podia ouvir mais, torturado. Repelliu-lhe as mãos, que procuravam as suas. Queria fugir, queria findar!...

— Oh não, não me mandes embora! gritou ella prendendo-se a elle anciosamente. Eu sei que não mereço nada! Sou uma desgraçada... Mas não tive coragem, meu amor! Tu és homem, não comprehendes estas coisas... Olha para mim! porque não olhas para mim? Um instante só, não voltes o rosto, tem pena de mim...

Não! elle não queria olhar. Temia aquellas lagrimas, o rosto cheio d’agonia. Ao calor do seio que arquejava sobre os seus joelhos, já tudo n’elle começava a oscillar, orgulhos, despeitos, dignidade, ciume... E então, sem saber, a seu pezar, as suas mãos apertaram as d’ella. Ella cobriu-lhe logo de beijos os dedos, as mangas, arrebatadamente: e anciosa implorava do fundo da sua miseria um instante de misericordia.

— Oh, dize que me perdôas! Tu és tão bom! Uma palavra só... Dize só que não me odeias, e depois deixo-te ir... Mas dize primeiro... Olha ao menos para mim como d’antes, uma só vez!...

E eram agora os seus labios que procuravam os d’elle. Então a fraqueza em que sentia afundar-se todo o seu sêr encheu Carlos de cólera, contra si e contra ella. Sacudiu-a brutalmente, gritou:

— Mas porque não me disseste, porque não me disseste? Para que foi essa longa mentira? Eu tinha-te amado do mesmo modo! Para que mentiste, tu?

Largára-a, prostrada no chão. E de pé, deixava cahir sobre ella a sua queixa desesperada:

— É a tua mentira que nos separa, a tua horrivel mentira, a tua mentira sómente!

Ella ergueu-se pouco a pouco, mal se sustendo, e com uma pallidez de desmaio.

— Mas eu queria dizer-t’o, murmurou muito baixo, muito quebrada diante d’elle, deixando cahir os braços. Eu queria dizer-t’o... Não te lembras, n’aquelle dia em que tu vieste tarde, quando eu fallei da casa de campo, e que tu pela primeira vez declaraste que gostavas de mim? Eu disse-te logo: «ha uma coisa que te quero contar...» Tu nem me deixaste acabar. Imaginavas o que era, que eu queria ser só tua, longe de tudo... E disseste então que haviamos d’ir, com Rosa, ser felizes para algum canto do mundo... Não te lembras?... Foi então que me veio uma tentação! Era não dizer nada, deixar-me levar, e depois, mais tarde, annos depois, quando te tivesse provado bem que boa mulher eu era, digna da tua estima, confessar-te tudo e dizer-te: «agora, se queres, manda-me embora.» Oh! foi mal feito, bem sei... Mas foi uma tentação, não resisti... Se tu não fallasses em fugirmos, tinha-te dito tudo... Mas mal fallaste em fugirmos, vi uma outra vida, uma grande esperança, nem sei que! E além d’isso adiava aquella horrivel confissão! Emfim, nem posso explicar, era como o céo que se abria, via-me comtigo n’uma casa nossa... Foi uma tentação!... E depois era horrivel, no momento em que tu me querias tanto, ir dizer-te «não faças tudo isso por mim, olha que eu sou uma desgraçada, nem marido tenho...» Que te hei de explicar mais? Não me resignava a perder o teu respeito. Era tão bom ser assim estimada... Emfim foi um mal, foi um grande mal... E agora ahi está, vejo-me perdida, tudo acabou!

Atirou-se para o chão, como uma creatura vencida e finda, escondendo a face no sofá. E Carlos, indo lentamente ao fundo da sala, voltando bruscamente até junto d’ella, tinha só a mesma recriminação, a mentira, a mentira, pertinaz e de cada dia... Só os soluços d’ella lhe respondiam.

— Porque não me disseste ao menos depois, aqui nos Olivaes, quando sabias que tu eras tudo para mim?...

Ella ergueu a cabeça, fatigada:

— Que queres tu? Tive medo que o teu amor mudasse, que fosse d’outro modo... Via-te já a tratar-me sem respeito. Via-te a entrar por ahi dentro de chapéo na cabeça, a perder a affeição á pequena, a querer pagar as despezas da casa... Depois tinha remorsos, ia adiando. Dizia «hoje não, um dia só mais de felicidade, ámanhã será...» E assim ia indo! Emfim, nem eu sei, um horror!

Houve um silencio. E então Carlos sentiu á porta Niniche que queria entrar e que gania baixinho e doloridamente. Abriu. A cadellinha correu, pulou para o sofá, onde Maria permanecia soluçando, enrodilhada a um canto: procurava lamber-lhe as mãos, inquieta: depois ficou plantada junto d’ella, como a guardal-a, desconfiada, seguindo, com os seus vivos olhos d’azeviche, Carlos que recomeçára a passear sombriamente.

Um ai mais longo e mais triste de Maria fel-o parar. Esteve um momento olhando para aquella dôr humilhada... Todo abalado, com os labios a tremer, murmurou:

— Mesmo que te pudesse perdoar, como te poderia acreditar agora nunca mais? Ha esta mentira horrivel sempre entre nós a separar-nos! Não teria um unico dia de confiança e de paz...

— Nunca te menti senão n’uma coisa, e por amor de ti! disse ella gravemente do fundo da sua prostração.

— Não, mentiste em tudo! Tudo era falso, falso o teu casamento, falso o teu nome, falsa a tua vida toda... Nunca mais te poderia acreditar... Como havia de ser, se agora mesmo quasi que nem acredito no motivo das tuas lagrimas?

Uma indignação ergueu-a, direita e soberba. Os seus olhos de repente seccos rebrilharam, revoltados e largos, no marmore da sua pallidez.

— Que queres tu dizer? Que estas lagrimas tem outro motivo, estas supplicas são fingidas? Que finjo tudo para te reter, para não te perder, ter outro homem, agora que estou abandonada?...

Elle balbuciou:

— Não, não! Não é isso!

— E eu? exclamou ella, caminhando para elle, dominando-o, magnifica e com um esplendor de verdade na face. E eu? porque hei de eu acreditar n’essa grande paixão que me juravas? O que é que tu amavas então em mim? Dize lá! Era a mulher d’outro, o nome, o requinte do adulterio, as toilettes?... Ou era eu propria, o meu corpo, a minha alma e o meu amor por ti?... Eu sou a mesma, olha bem para mim!... Estes braços são os mesmos, este peito é o mesmo... Só uma coisa é differente: a minha paixão! Essa é maior, desgraçadamente, infinitamente maior.

— Oh! se isso fosse verdade! gritou Carlos, apertando as mãos.

N’um instante Maria estava cahida a seus pés, com os braços abertos para elle.

— Juro-t’o por alma de minha filha, por alma de Rosa! Amo-te, adoro-te doidamente, absurdamente, até á morte!

Carlos tremia. Todo o seu sêr pendia para ella; e era um impulso irresistivel de se deixar cahir sobre aquelle seio que arfava a seus pés, ainda que elle fosse o abysmo da sua vida inteira... Mas outra vez a idéa da mentira passou, regeladora. E afastou-se d’ella, levando os punhos á cabeça, n’um desespero, revoltado contra aquella coisa pequenina e indestructivel que não queria sumir-se, e que se interpunha como uma barra de ferro entre elle e a sua felicidade divina!

Ella ficára ajoelhada, immovel, com os olhos esgazeados para o tapete. Depois, no silencio estofado da sala, a sua voz ergueu-se dolente e tremula:

— Tens razão, acabou-se! Tu não me acreditas, tudo se acabou!... É melhor que te vás embora... Ninguem mais me torna a acreditar... Acabou tudo para mim, não tenho ninguem mais no mundo... Ámanhã sáio d’aqui, deixo-te tudo... Has de me dar tempo para arranjar... Depois, que hei de fazer, vou-me embora!

E não pôde mais, tombou para o chão, com os braços estirados, perdida de chôro.

Carlos voltou-se, ferido no coração. Com o seu vestido escuro, para alli cahida e abandonada, parecia já uma pobre creatura, arremessada para fóra de todo o lar, sósinha a um canto, entre a inclemencia do mundo... Então respeitos humanos, orgulho, dignidade domestica, tudo n’elle foi levado como por um grande vento de piedade. Viu só, offuscando todas as fragilidades, a sua belleza, a sua dôr, a sua alma sublimemente amante. Um delirio generoso, de grandiosa bondade, misturou-se á sua paixão. E, debruçando-se, disse-lhe baixo, com os braços abertos:

— Maria, queres casar commigo?

Ella ergueu a cabeça, sem comprehender, com os olhos desvairados. Mas Carlos tinha os braços abertos; e estava esperando para a fechar dentro d’elles outra vez, como sua e para sempre... Então levantou-se, tropeçando nos vestidos, veio cahir sobre o peito d’elle, cobrindo-o de beijos, entre soluços e risos, tonta, n’um deslumbramento:

— Casar comtigo, comtigo? Oh Carlos... E viver sempre, sempre comtigo?... Oh meu amor, meu amor! E tratar de ti, e servir-te, e adorar-te, e ser só tua? E a pobre Rosa tambem... Não, não cases commigo, não é possivel, não valho nada! Mas se tu queres, porque não?... Vamos para longe, juntos, e Rosa e eu sobre o teu coração! E has de ser nosso amigo, meu e d’ella, que não temos ninguem no mundo... Oh! meu Deus, meu Deus!...

Empallideceu, escorregando pesadamente entre os braços d’elle, desmaiada: e os seus longos cabellos desprendidos rojavam o chão, tocados pela luz de tons d’ouro.

V

 

Maria Eduarda e Carlos, que ficára essa noite nos Olivaes na sua casinhola, acabavam de almoçar. O Domingos servira o café, e antes de sahir deixára ao lado de Carlos a caixa de cigarettes e o Figaro. As duas janellas estavam abertas. Nem uma folha se movia no ar pesado da manhã encoberta, entristecida ainda por um dobre lento de sinos que morria ao longe nos campos. No banco de cortiça, sob as arvores, miss Sarah costurava preguiçosamente; Rosa ao lado brincava na relva. E Carlos, que viera n’uma intimidade conjugal, com uma simples camisa de sêda e um jaquetão de flanella, chegou então a cadeira para junto de Maria, tomou-lhe a mão, brincando-lhe com os anneis, n’uma lenta caricia:

— Vamos a saber, meu amor... Decidiste, por fim? Quando queres partir?

N’essa noite, entre os seus primeiros beijos de noiva, ella mostrára o desejo enternecido de não alterar o plano da Italia e d’um ninho romantico entre as flôres d’Isola-bella: sómente agora não iam esconder a inquietação d’uma felicidade culpada, mas gozar o repouso d’uma felicidade legitima. E, depois de todas as incertezas e tormentos que o tinham agitado desde o dia em que cruzára Maria Eduarda no Aterro, Carlos anhelava tambem pelo momento de se installar emfim no conforto d’um amor sem duvidas e sem sobresaltos:

— Eu por mim abalava ámanhã. Estou sôfrego de paz. Estou até sôfrego de preguiça... Mas tu, dize, quando queres?

Maria não respondeu; apenas o seu olhar sorriu, reconhecido e apaixonado. Depois, sem retirar a mão que a longa caricia de Carlos ainda prendia, chamou Rosa através da janella.

— Mamã, espera, já vou! Passa-me umas migalhas... Andam aqui uns pardaes que ainda não almoçaram...

— Não, vem cá.

Quando ella appareceu á porta, toda de branco, córada, com uma das ultimas rosas de verão mettida no cinto — Maria quil-a mais perto, entre elles, encostada aos seus joelhos. E, arranjando-lhe a fita solta do cabello, perguntou, muito séria, muito commovida, se ella gostaria que Carlos viesse viver com ellas de todo e ficar alli na Toca... Os olhos da pequena encheram-se de surpreza e de riso:

— O quê! estar sempre, sempre aqui, mesmo de noite, toda a noite?... E ter aqui as suas malas, as suas coisas?...

Ambos murmuraram — «sim».

Rosa então pulou, bateu as palmas, radiante, querendo que Carlos fosse já, já, buscar as suas malas e as suas coisas...

— Escuta, disse-lhe ainda Maria gravemente, retendo-a sobre os joelhos. E gostavas que elle fosse como o papá, e que andasse sempre comnosco, e que lhe obedecessemos ambas, e que gostassemos muito d’elle?

Rosa ergueu para a mãe uma facesinha compenetrada, onde todo o sorriso se apagára.

— Mas eu não posso gostar mais d’elle do que gósto!...

Ambos a beijaram, n’um enternecimento que lhes humedecia os olhos. E Maria Eduarda, pela primeira vez diante de Rosa, debruçando-se sobre ella, beijou de leve a testa de Carlos. A pequena ficou pasmada para o seu amigo, depois para a mãi. E pareceu comprehender tudo; escorregou dos joelhos de Maria, veio encostar-se a Carlos com uma meiguice humilde:

— Queres que te chame papá, só a ti?

— Só a mim, disse elle, fechando-a toda nos braços.

E assim obtiveram o consentimento de Rosa — que fugiu, atirando a porta, com as mãos cheias de bolos para os pardaes.

Carlos levantou-se, tomou a cabeça de Maria entre as mãos, e contemplando-a profundamente, até á alma, murmurou n’um enlevo:

— És perfeita!

Ella desprendeu-se, com melancolia, d’aquella adoração que a perturbava.

— Escuta... Tenho ainda muito, muito que te dizer, infelizmente. Vamos para o nosso kiosque... Tu não tens nada que fazer, não? E que tenhas, hoje és meu... Vou já ter comtigo. Leva as tuas cigarettes.

Nos degraus do jardim, Carlos parou a olhar, a sentir a doçura velada do céo cinzento... E a vida pareceu-lhe adoravel, d’uma poesia fina e triste,assim envolta n’aquella nevoa macia onde nada resplandecia e nada cantava, e que tão favoravel era para que dois corações, desinteressados do mundo e em desharmonia com elle, se abandonassem juntos ao contínuo encanto de estremecerem juntos na mudez e na sombra.

— Vamos ter chuva, tio André, disse elle, passando junto do velho jardineiro que aparava o buxo.

O tio André, atarantado, arrancou o chapéo. Ah! uma gota d’agua era bem necessaria, depois da estiagem! O torrãosinho já estava com sêde! E em casa todos bons? A senhora? A menina?

— Tudo bom, tio André, obrigado.

E no seu desejo de vêr todos em torno de si felizes como elle e como a terra sequiosa que ia ser consolada — Carlos metteu uma libra na mão do tio André, que ficou deslumbrado, sem ousar fechar os dedos sobre aquelle ouro extraordinario que reluzia.

Quando Maria entrou no kiosque trazia um cofre de sandalo. Atirou-o para o divan: fez sentar Carlos ao lado, bem confortavel, entre almofadas: accendeu-lhe uma cigarrete. Depois agachou-se aos seus pés, sobre o tapete, como na humildade de uma confissão.

— Estás bem assim? Queres que o Domingos te traga agua e cognac?... Não? Então ouve agora, quero-te contar tudo...

Era toda a sua existencia que ella desejava contar. Pensára mesmo em lh’a escrever n’uma carta interminavel, como nos romances. Mas decidira antes tagarellar alli uma manhã inteira, aninhada aos seus pés.

— Estás bem, não estás?

Carlos esperava, commovido. Sabia que aquelles labios amados iam fazer revelações pungentes para o seu coração — e amargas para o seu orgulho. Mas a confidencia da sua vida completava a posse da sua pessoa: quando a conhecesse toda no seu passado sentil-a-hia mais sua inteiramente. E no fundo tinha uma curiosidade insaciavel d’essas coisas que o deviam pungir e que o deviam humilhar.

— Sim, conta... Depois esquecemos tudo e para sempre. Mas agora dize, conta... Onde nasceste tu por fim?

Nascera em Vienna: mas pouco se recordava dos tempos de criança, quasi nada sabia do papá, a não ser a sua grande nobreza e a sua grande belleza. Tivera uma irmãsinha que morrera de dois annos e que se chamava Heloisa. A mamã, mais tarde, quando ella era já rapariga, não tolerava que lhe perguntassem pelo passado; e dizia sempre que remexer a memoria das coisas antigas prejudicava tanto como sacudir uma garrafa de vinho velho... De Vienna apenas recordava confusamente largos passeios d’arvores, militares vestidos de branco, e uma casa espelhada e dourada onde se dançava: ás vezes durante tempos ella ficava lá só com o avô, um velhinho triste e timido, mettido pelos cantos, que lhe contara historias de navios. Depois tinham ido a Inglaterra: mas lembrava-se sómente de ter atravessado um grande rumor de ruas, n’um dia de chuva, embrulhada em pelles, sobre os joelhos d’um escudeiro. As suas primeiras memorias mais nitidas datavam de Paris; a mamã, já viuva, andava de luto pelo avô; e ella tinha uma aia italiana que a levava todas as manhãs, com um arco e com uma pélla, brincar aos Campos Elyseos. Á noite costumava vêr a mamã decotada, n’um quarto cheio de setins e de luzes; e um homem louro, um pouco brusco, que fumava sempre estirado pelos sofás, trazia-lhe de vez em quando uma boneca, e chamava-lhe mademoiselle Triste-cœur por causa do seu arzinho sisudo. Emfim a mamã mettera-a n’um convento ao pé de Tours — porque n’essa idade, apesar de cantar já ao piano as walsas da Belle Helène, ainda não sabia soletrar. Fôra nos jardins do convento, onde havia lindos lilazes, que a mamã se separára d’ella n’uma paixão de lagrimas; e ao lado esperava, para a consolar decerto, um sujeito muito grave, de bigodes encerados, a quem a Madre Superiora fallara com veneração.

A mamã ao principio vinha vêl-a todos os mezes, demorando-se em Tours dois, tres dias; trazia-lhe uma profusão de presentes, bonecas, bonbons, lenços bordados, vestidos ricos, que lhe não permittia usar a regra severa do convento. Davam então passeios de carruagem pelos arredores de Tours: e havia sempre officiaes a cavallo, que escoltavam a caleche — e tratavam a mamã por tu. No convento as mestras, a Madre Superiora não gostavam d’estas sahidas — nem mesmo que a mamã viesse acordar os corredores devotos com as suas risadas e o ruido das suas sêdas; ao mesmo tempo pareciam temel-a; chamavam-lhe Madame la Comtesse. A mamã era muito amiga do general que commandava em Tours, e visitava o bispo. Monsenhor, quando vinha ao convento, fazia-lhe uma festinha especial na face e alludia risonhamente a son excellente mère. Depois a mamã começou a apparecer menos em Tours. Esteve um anno longe, quasi sem escrever, viajando na Allemanha; voltou um dia, magra e coberta de luto, e ficou toda a manhã abraçada a ella a chorar.

Mas na visita seguinte vinha mais moça, mais brilhante, mais ligeira, com dois grandes galgos brancos, annunciando uma romagem poetica á Terra Santa e a todo o remoto Oriente. Ella tinha então quasi dezeseis annos: pela sua applicação, os seus modos dôces e graves, ganhára a affeição da Madre Superiora — que ás vezes, olhando-a com tristeza, acariciando-lhe o cabello cahido em duas tranças segundo a regra, lhe mostrava o desejo de a conservar sempre ao seu lado. Le monde, dizia ella, ne vous sera bon à rien, mon enfant!... Um dia, porém, appareceu para a levar para Paris, para a mamã, uma Madame de Chavigny, fidalga pobre, de caracoes brancos, que era como uma estampa de severidade e de virtude.

O que ella chorára ao deixar o convento! Mais choraria se soubesse o que ia encontrar em Paris!

A casa da mamã, no Parc Monceaux, era na realidade uma casa de jogo — mas recoberta de um luxo sério e fino. Os escudeiros tinham meias de sêda; os convidados, com grandes nomes no Nobiliario de França, conversavam de corridas, das Tulherias, dos discursos do Senado; e as mesas de jogo armavam-se depois como uma distracção mais picante. Ella recolhia sempre ao seu quarto ás dez horas: Madame de Chavigny, que ficára como sua dama de companhia, ia com ella cedo ao Bois n’um coupé estufo de douairière. Pouco a pouco, porém, este grande verniz começou a estalar. A pobre mamã cahira sob o jugo d’um Mr. de Trevernnes, homem perigoso pela sua seducção pessoal e por uma desoladora falta de honra e de senso. A casa descahiu rapidamente n’uma bohemia mal dourada e ruidosa. Quando ella madrugava, com os seus habitos saudaveis do convento, encontrava paletots d’homens por cima dos sofás: no marmore das consoles restavam pontas de charuto entre nodoas de champagne; e n’algum quarto mais retirado ainda tinia o dinheiro d’um baccarat talhado á claridade do sol. Depois uma noite, estando deitada, sentira de repente gritos, uma debandada brusca na escada; veio encontrar a mamã estirada no tapete, desmaiada; ella dissera-lhe apenas mais tarde, alagada em lagrimas, «que tinha havido uma desgraça»...

Mudaram então para um terceiro andar da Chaussée-d’Antin. Ahi começou a apparecer uma gente desconhecida e suspeita. Eram Valachos de grandes bigodes, Peruanos com diamantes falsos, e condes romanos que escondiam para dentro das mangas os punhos enxovalhados... Por vezes entre esta malta vinha algum gentleman — que não tirava o paletot, como n’um café-concerto. Um d’esses foi um irlandez, muito moço, Mac-Gren... Madame de Champigny deixára-as desde que faltára o coupé severo, acolchoado de setim; e ella, só com a mãi, insensivelmente, fatalmente, fôra-se misturando a essa vida tresnoitada de grogs e de baccarat.

A mamã chamava a Mac-Gren o «bébé». Era com effeito uma criança estouvada e feliz. Namorára-se d’ella logo com o ardor, a effusão, o impeto d’um irlandez; e prometteu-lhe fazel-a sua esposa apenas se emancipasse — porque Mac-Gren, menor ainda, vivia sobretudo das liberalidades de uma avó excentrica e rica que o adorava, e que habitava a Provença n’uma vasta quinta onde tinha feras em jaulas... E no entanto induzia-a sem cessar a fugir com elle, desesperado de a vêr entre aquelles Valachos que cheiravam a genebra. O seu desejo era leval-a para Fontainebleau, para um cottage com trepadeiras de que fallava sempre, e esperar ahi tranquillamente a maioridade que lhe traria duas mil libras de renda. Decerto, era uma situação falsa: mas preferivel a permanecer n’aquelle meio depravado e brutal onde ella a cada instante córava... A esse tempo a mamã parecia ir perdendo todo o senso, desarranjada de nervos, quasi irresponsavel. As difficuldades crescentes estonteavam-n’a; brigava com as criadas; bebia champagne «pour s’étourdir». Para satisfazer as exigencias de Mr. de Trevernnes empenhára as suas joias, e quasi todos os dias chorava com ciumes d’elle. Por fim houve uma penhora: uma noite tiveram d’enfardelar á pressa roupa n’um sacco, e ir dormir a um hotel. E, peor, peor que tudo! Mr. de Trevernnes começava a olhar para ella d’um modo que a assustava...

— Minha pobre Maria! murmurou Carlos, pallido, agarrando-lhe as mãos.

Ella permaneceu um momento suffocada, com o rosto cahido nos joelhos d’elle. Depois limpando as lagrimas que a ennevoavam:

— Ahi estão as cartas de Mac-Gren, n’esse cofre... Tenho-as guardado sempre para me justificar a mim mesma, se me é possivel... Pede-me em todas que vá para Fontainebleau; chama-me sua esposa; jura que apenas juntos iremos ajoelhar-nos diante da avó, obter a sua indulgencia... Mil promessas! E era sincero... Que queres que te diga? A mamã uma manhã partiu com uma sucia para Baden. Fiquei em Paris só, n’um hotel... Tinha um palpite, um terror que Trevernnes apparecia... E eu só! Estava tão transtornada que pensei em comprar um rewolver... Mas quem veio foi Mac-Gren.

E partira com elle, sem precipitação, como sua esposa, levando todas as suas malas. A mamã de volta de Baden correu a Fontainebleau, desvairada e tragica, amaldiçoando Mac-Gren, ameaçando-o com a prisão de Mazas, querendo esbofeteal-o; depois rompeu a chorar. Mac-Gren, como um bébé, agarrou-se a ella aos beijos, chorando tambem. A mamã terminou por os apertar a ambos contra o coração, já rendida, perdoando tudo, chamando-lhes «filhos da sua alma». Passou o dia em Fontainebleau, radiante, contando «a patuscada de Baden», já com o plano de vir installar-se no cottage, viver junto d’elles n’uma felicidade calma e nobre de avósinha... Era em maio; Mac-Gren, á noite, deitou um «fogo preso» no jardim.

Começou um anno quieto e facil. O seu unico desejo era que a mamã vivesse com elles socegadamente. Diante das suas supplicas ella ficava pensativa, dizia: «Tens razão, veremos!» Depois remergulhava no torvelinho de Paris, d’onde resurgia uma manhã, n’um fiacre, estremunhada e afflicta, com uma rica pelliça sobre uma velha saia, a pedir-lhe cem francos... Por fim nascera Rosa. Toda a sua anciedade desde então fôra legitimar a sua união. Mas Mac-Gren adiava, levianamente, com um medo pueril da avó. Era um perfeito bébé! Entretinha as manhãs a caçar passaros com visco! E ao mesmo tempo terrivelmente teimoso: ella pouco a pouco perdera-lhe todo o respeito. No começo da primavera a mamã um dia appareceu em Fontainebleau com as suas malas, succumbida, enojada da vida. Rompera emfim com Trevernnes. Mas quasi immediatamente se consolou: e começou d’ahi a adorar Mac-Gren com uma tão larga effusão de caricias, e achando-o tão lindo, que era ás vezes embaraçadora. Os dois passavam o dia, com copinhos de cognac, jogando o bezigue.

De repente rebentou a guerra com a Prussia. Mac-Gren enthusiasmado, e apesar das supplicas d’ellas, corrêra a alistar-se no batalhão de Zuavos de Charette; a avó de resto approvára este rasgo d’amor pela França, e fizera-lhe n’uma carta em verso, em que celebrava Jeanne d’Arc, uma larga remessa de dinheiro. Por esse tempo Rosa teve o garrotilho. Ella, sem lhe largar o leito, mal attendia ás noticias da guerra. Sabia apenas confusamente das primeiras batalhas perdidas na fronteira. Uma manhã a mamã rompeu-lhe no quarto, estonteada, em camisa: o exercito capitulára em Sédan, o imperador estava prisioneiro! «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» dizia a mamã espavorida. Ella veio a Paris procurar noticias de Mac-Gren: na rua Royale teve de se refugiar n’um portão, diante do tumulto d’um povo em delirio, acclamando, cantando a Marselheza, em torno de uma caleche onde ia um homem, pallido como cera, com um cache-nez escarlate ao pescoço. E um sujeito ao lado, aterrado, disse-lhe que o povo fôra buscar Rochefort á prisão e que estava, proclamada a Republica.

Nada soubera de Mac-Gren. Começaram então dias d’infinito sobresalto. Felizmente Rosa convalescia. Mas a pobre mamã causava dó, envelhecida de repente, sombria, prostrada n’uma cadeira, murmurando apenas: «É o fim de tudo, é o fim de tudo!» E parecia na verdade o fim da França. Cada dia uma batalha perdida; regimentos presos, apinhados em wagons de gado, internados a todo o vapor para os presidios d’Allemanha; os prussianos marchando sobre Paris... Não podiam permanecer em Fontainebleau; o duro inverno começava; e com o que venderam á pressa, com o dinheiro que Mac-Gren deixára, partiram para Londres.

Fôra uma exigencia da mamã. E em Londres ella, desorientada na enorme e estranha cidade, doente tambem, deixára-se levar pelas tontas idéas da mãe. Tomaram uma casa mobilada, muito cara, nos bairros de luxo, ao pé de Mayfair. A mamã fallava em organisar alli o centro de resistencia dos bonapartistas refugiados; no fundo, a desgraçada pensava em crear uma casa de jogo em Londres. Mas ai! eram outros tempos... Os imperialistas, sem imperio, não jogavam já o baccarat. E ellas em breve, sem rendimentos, gastando sempre, tinham-se achado com aquella dispendiosa casa, tres criados, contas colossaes e uma nota de cinco libras no fundo d’uma gaveta. E Mac-Gren mettido dentro de Paris, com meio milhão de prussianos em redor. Foi necessario vender todas as joias, vestidos, até as pelliças. Alugaram então, no bairro pobre de Soho, tres quartos mal mobilados. Era o lodging de Londres em toda a sua suja, solitaria tristeza; uma criadita unica, enfarruscada como um trapo; alguns carvões humidos fumegando mal na chaminé; e para jantar um pouco de carneiro frio e cerveja da esquina. Por fim faltára mesmo o escasso shilling para pagar o lodging. A mamã não sahia do catre, doente, succumbida, chorando. Ella ás vezes ao anoitecer, escondida n’um water-proof, levava ao prégo embrulhos de roupa (até roupa branca, até camisas!) para que ao menos não faltasse a Rosa a sua chicara de leite. As cartas que a mamã escrevia a alguns antigos companheiros de ceias na Maison d’Or ficavam sem resposta: outras traziam, embrulhada n’um bocado de papel, alguma meia-libra que tinha o pavoroso sabor d’uma esmola. Uma noite, um sabbado de grande nevoeiro, indo empenhar um chambre de rendas da mamã, perdera-se, errára na vasta Londres n’uma treva amarellada, a tiritar de frio, quasi com fome, perseguida por dois brutos que empestavam a alcool. Para lhes fugir atirou-se para dentro d’um cab que a levou a casa. Mas não tinha um penny para pagar ao cocheiro; e a patrôa roncava no seu cacifro, bebeda. O homem resmungou; ella, succumbida, alli mesmo na porta rompeu a chorar. Então o cocheiro desceu da almofada, commovido, offereceu-se para a levar de graça ao prégo, onde ajustariam as suas contas. Foi; o pobre homem só aceitou um schilling; até mesmo suppondo-a franceza grunhiu blasphemias contra os prussianos, e teimou em lhe offerecer uma bebida.

Ella no emtanto procurava uma occupação qualquer — costura, bordados, traducções, cópias de manuscriptos... Não achava nada. N’aquelle duro inverno o trabalho escasseava em Londres; surgira uma multidão de francezes, pobres como ella, luctando pelo pão... A mamã não cessava de chorar; e havia alguma coisa mais terrivel que as suas lagrimas — eram as suas allusões constantes á facilidade de se ter em Londres dinheiro, conforto e luxo, quando se é nova e se é bonita...

— Que te parece esta vida, meu amor? exclamou ella, apertando as mãos amargamente.

Carlos beijou-a em silencio, com os olhos humedecidos.

— Emfim tudo passou, continuou Maria Eduarda. Fez-se a paz, o cêrco acabou. Paris estava de novo aberto... Sómente a difficuldade era voltar.

— Como voltaste?

Um dia por acaso, em Regent-Street, encontrára um amigo de Mac-Gren, outro irlandez, que muitas vezes jantára com elles em Fontainebleau. Veio vêl-as a Soho; diante d’aquella miseria, do bule de chá aguado, dos ossos de carneiro requentando sobre tres brazas mortas, começou, como bom irlandez, por accusar o governo d’Inglaterra e jurar uma desforra de sangue. Depois offereceu, com os beiços já a tremer, toda a sua dedicação. O pobre rapaz batia tambem o lagedo n’uma lucta tormentosa pela vida. Mas era irlandez; e partiu logo generosamente, armado de todos os seus ardis, a conquistar através de Londres o pouco que ellas necessitavam para recolher a França. Com effeito appareceu n’essa mesma noite, derreado e triumphante, brandindo tres notas de banco e uma garrafa de champagne. A mamã ao vêr, depois de tantos mezes de chá preto, a garrafa de Clicquot encarapuçada de ouro — quasi desmaiou, de enternecimento. Enfardelaram os trapos. Ao partirem, na estação de Charing-Cross, o irlandez levou-a para um canto, e engasgado, torcendo os bigodes, disse-lhe que Mac-Gren tinha morrido na batalha de Saint-Privat...

— Para que te hei de eu contar o resto? Em Paris recomecei a procurar trabalho. Mas tudo estava ainda em confusão... Quasi immediatamente veio a Communa... Pódes acreditar que muitas vezes tivemos fome. Mas emfim já não era Londres, nem o inverno, nem o exilio. Estavamos em Paris, soffriamos de companhia com amigos d’outros tempos. Já não parecia tão terrivel... Com todas estas privações a pobre Rosa começava a definhar... Era um supplicio vêl-a perder as côres, tristinha, mal vestida, mettida n’uma trapeira... A mamã já se queixava da doença de coração que a matou... O trabalho que eu encontrava, mal pago, dava-nos apenas para a renda da casa, e para não morrer absolutamente de necessidade... Principiei a adoecer de anciedade, de desespero. Luctei ainda. A mamã fazia dó. E Rosa morria se não tivesse outro regimen, bom ar, algum conforto... Conheci então Castro Gomes em casa d’uma antiga amiga da mamã, que não perdera nada com a guerra, nem com os prussianos, e que me dava trabalhos de costura... E o resto sábel-o... Nem eu me lembro... Fui levada... Via ás vezes Rosa, coitadinha, embrulhada n’um chale, muito quietinha ao seu canto, depois de rapada a sua magra tigela de sopas, e ainda com fome...

Não pôde continuar; rompeu a chorar, cahida sobre os joelhos de Carlos. E elle na sua emoção só lhe podia dizer, passando-lhe as mãos tremulas pelos cabellos, que a havia de desforrar bem de todas as miserias passadas...

— Escuta ainda, murmurou ella, limpando as lagrimas. Ha só uma coisa mais que te quero dizer. E é a santa verdade, juro-te pela alma de Rosa! É que n’estas duas relações que tive o meu coração conservou-se adormecido... Dormiu sempre, sempre, sem sentir nada, sem desejar nada, até que te vi... E ainda te quero dizer outra coisa...

Um momento hesitou, coberta de rubor. Passára os braços em torno de Carlos, pendurada toda d’elle, com os olhos mergulhados nos seus. E foi mais baixo que balbuciou na derradeira, na absoluta confissão de todo o seu sêr:

— Além de ter o coração adormecido, o meu corpo permaneceu sempre frio, frio como um marmore...

Elle estreitou-a a si arrebatadamente: e os seus labios ficaram collados muito tempo, em silencio, completando, n’uma emoção nova e quasi virginal, a communhão perfeita das suas almas.

D’ahi a dias Carlos e Ega vinham n’uma victoria, pela estrada dos Olivaes, em caminho da Toca.

Toda essa manhã, no Ramalhete, Carlos estivera emfim contando ao Ega o impulso de paixão que o lançára de novo e para sempre, como esposo, nos braços de Maria; e, na confiança absoluta que o prendia ao Ega, revelára-lhe mesmo miudamente a historia d’ella, dolorosa e justificadora. Depois, ao acalmar o calor, propoz que fossem comer as sopas á Toca. Ega deu uma volta pelo quarto, hesitando. Por fim começou a passar devagar a escova pelo paletot, murmurando, como durante as longas confidencias de Carlos: «É prodigioso!... Que estranha coisa, a vida!»

E agora pela estrada, na aragem dôce do rio, Carlos fallava ainda de Maria, da vida na Toca, deixando escapar do coração muito cheio o interminavel cantico da sua felicidade.

— É facto, Egasinho, conheço quasi a felicidade perfeita!

— E cá na Toca ainda ninguem sabe nada?

Ninguem — a não ser Melanie, a confidente — suspeitava a profunda alteração que se fizera nas suas relações: e tinham assentado que miss Sarah e o Domingos, primeiras testemunhas da sua amizade, seriam régiamente recompensados e despedidos quando em fins de outubro elles partissem para Italia.

— E ides então casar a Roma?...

— Sim... Em qualquer logar onde haja um altar e uma estola. Isso não falta em Italia... E é então, Ega, que reapparece o espinho de toda esta felicidade. É por isso que eu disse «quasi.» O terrivel espinho, o avô!

— É verdade, o velho Affonso. Tu não tens idéa como lhe has de fazer conhecer esse caso?...

Carlos não tinha idéa nenhuma. Sentia só que lhe faltava absolutamente a coragem de dizer ao avô: «esta mulher, com quem vou casar, teve na sua vida estes erros»... E além d’isso, já reflectira, era inutil. O avô nunca comprehenderia os motivos complicados, fataes, inilludiveis que tinham arrastado Maria. Se lh’os contasse miudamente — o avô veria alli um romance confuso e fragil, antipathico á sua natureza forte e candida. A fealdade das culpas feril-o-hia, exclusivamente; e não lhe deixaria apreciar, com serenidade, a irresistibilidade das causas. Para perceber este caso d’um caracter nobre apanhado dentro d’uma implacavel rede de fatalidades, seria necessario um espirito mais ductil, mais mundano que o do avô... O velho Affonso era um bloco de granito: não se podiam esperar d’elle as subtis discriminações d’um casuista moderno. Da existencia de Maria só veria o facto tangivel: — cahira successivamente nos braços de dois homens. E d’ahi decorreria toda a sua attitude de chefe de familia. Para que havia elle pois de fazer ao velho uma confissão, que necessariamente originaria um conflicto de sentimentos e uma irreparavel separação domestica?...

— Pois não te parece, Ega?

— Falla mais baixo, olha o cocheiro.

— Não percebe bem o portuguez, sobretudo o nosso estylo... Pois não te parece?

Ega raspava phosphoros na sola para accender o charuto. E resmungava:

— Sim, o velho Affonso é granitico...

Por isso Carlos concebera outro plano, mais sagaz: consistia em esconder ao avô o passado de Maria — e fazer-lhe conhecer a pessoa de Maria. Casavam secretamente em Italia. Regressavam: ella para a rua de S. Francisco, elle filialmente para o Ramalhete. Depois Carlos levava o avô a casa da sua boa amiga, que conhecera em Italia, M.me de Mac-Gren. Para o prender logo lá estavam os encantos de Maria, todas as graças d’um interior delicado e sério, jantarinhos perfeitos, idéas justas, Chopin, Beethoven, etc. E, para completar a conquista de quem tão enternecidamente adorava crianças, lá estava Rosa... Emfim, quando o avô estivesse namorado de Maria, da pequena, de tudo — elle, uma manhã, dizia-lhe francamente: «Esta creatura superior e adoravel teve uma quéda no seu passado; mas eu casei com ella; e, sendo tal como é, não fiz bem, apesar de tudo, em a escolher para minha esposa?» E o avô, perante esta terrivel irremediabilidade do facto consummado, com toda a sua indulgencia de velho enternecido a defender Maria — seria o primeiro a pensar que, se esse casamento não era o melhor segundo as regras do mundo, era decerto o melhor segundo os interesses do coração...

— Pois não te parece, Ega?

Ega, absorvido, sacudia a cinza do charuto. E pensava que Carlos, em resumo, adoptára para com o avô a complicada combinação que Maria Eduarda tentára para com elle — e imitava sem o sentir os subtis raciocinios d’ella.

— E acabou-se, continuava Carlos. Se elle na sua indulgencia aceitar tudo, bravo! dá-se uma grande festa no Ramalhete... Senão, foi-se! passaremos a viver cada um para seu lado, fazendo ambos prevalecer a superioridade de duas coisas excellentes: o avô as tradições do sangue, eu os direitos do coração.

E, vendo o Ega ainda silencioso:

— Que te parece? Dize lá. Tu andas tão falto de idéas, homem!

O outro sacudiu a cabeça, como despertando.

— Queres que te diga o que me parece, com franqueza? Que diabo, nós somos dois homens fallando como homens!... Então aqui está: teu avô tem quasi oitenta annos, tu tens vinte e sete ou o quer que seja... É doloroso dizel-o, ninguem o diz com mais dôr que eu, mas teu avô ha de morrer... Pois bem, espera até lá. Não cases. Suppõe que ella tem um pae muito velho, teimoso e caturra, que detesta o snr. Carlos da Maia e a sua barba em bico. Espera; continúa a vir á Toca, na tipoia do Mulato; e deixa teu avô acabar a sua velhice calma, sem desillusões e sem desgostos...

Carlos torcia o bigode, mudo, enterrado no fundo da victoria. Nunca, n’esses dias de inquietação, lhe acudira idéa tão sensata, tão facil! Sim, era isso, esperar! Que melhor dever do que poupar ao pobre avô toda a dôr?... Maria de certo, como mulher, estava desejando anciosamente a conversão do amante no marido pelo laço d’estola que tudo purifica e nenhuma força desata. Mas ella mesma preferiria uma consagração legal — que não fosse assim precipitada, dissimulada... Depois, tão recta e generosa, comprehenderia bem a obrigação suprema de não mortificar aquelle santo velho. De resto, não conhecia ella a sua lealdade solida e pura como um diamante? Recebera a sua palavra: desde esse momento estavam casados, não diante do sacrario e nos registos da sacristia — mas diante da honra e na inabalavel communhão dos seus corações...

— Tens razão! gritou por fim, batendo no joelho do Ega. Tens immensamente razão! Essa idéa é genial! Devo esperar... E emquanto espero?...

— Como, emquanto esperas? acudiu Ega, rindo. Que diabo! Isso não é commigo!

E mais sério:

— Emquanto esperas tens esse metal vil que faz a existencia nobre. Installas tua mulher, porque desde hoje é tua mulher, aqui nos Olivaes ou n’outro sitio, com o gosto, o conforto e a dignidade que competem a tua mulher... E deixas-te ir! Nada impede que façaes essa viagem nupcial á Italia... Voltas, continúas a fumar a tua cigarette e a deixar-te ir. Este é o bom senso: é assim que pensaria o grande Sancho Pansa... Que diabo tens tu n’aquelle embrulho que cheira tão bem?

— Um ananaz... Pois é isso, querido: esperar, deixar-me ir. É uma idéa!

Uma idéa! e a mais grata ao temperamento de Carlos. Para que iria com effeito enredar-se n’uma meada de amarguras domesticas, por um excesso de cavalheirismo romantico? Maria confiava n’elle; era rico, era moço; o mundo abria-se ante elles facil e cheio de indulgencias. Não tinha senão a deixar-se ir.

— Tens razão, Ega! E Maria é a primeira a achar isto cheio de senso e d’opportunismo. Eu tenho uma certa pena em adiar a installação da minha vida e do meu home. Mas, acabou-se! Antes de tudo que o avô seja feliz... E para celebrar o advento d’esta idéa, Deus queira que Maria nos tenha um bom jantar!

Agora, ao aproximar-se da Toca, Ega ia receando o primeiro encontro com Maria Eduarda. Incommodava-o esse enleio, esse rubor que ella não poderia occultar — certa que, como confidente de Carlos, elle conhecia a sua vida, as suas miserias, as suas relações com Castro Gomes. Por isso hesitára em vir á Toca. Mas tambem, não apparecer mais a Maria Eduarda seria marcar com um relevo quasi offensivo o desejo caridoso de não molestar o seu pudor... Por isso decidira «dar o mergulho d’uma vez». Quem, senão elle, deveria ser o mais apressado em estender a mão á noiva de Carlos?... Além d’isso tinha uma infinita curiosidade de vêr no seu interior, á sua mesa, essa creatura tão bella, com a sua graça nobre de Deusa moderna! Mas saltou da victoria muito embaraçado.

Por fim tudo se passou com uma facilidade risonha. Maria bordava, sentada nos degraus do jardim. Teve um sobresalto, córou toda, com effeito, ao avistar o Ega que procurava atarantadamente o monoculo: o aperto de mão que trocaram foi mudo e timido: mas Carlos, alegremente, desembrulhára o ananaz — e na admiração d’elle todo o constrangimento se dissipou.

— Oh! é magnifico!

— Que côr, que luxo de tons!

— E que aroma! Veio perfumando toda a estrada.

Ega não voltára á Toca desde a noite fatal da soirée dos Cohens em que elle alli tanto bebera e delirára tanto. E lembrou logo a Carlos a jornada na velha traquitana, debaixo d’um temporal, o grog do Craft, a ceia de perú...

— Já aqui soffri muito, minha senhora, vestido de Mephistopheles!...

— Por causa de Margarida?

— Por quem se ha de soffrer n’este apaixonado mundo, minha senhora, senão por Margarida ou por Fausto?

Mas Carlos quiz que elle admirasse os esplendores novos da Toca. E foi já com familiaridade que Maria o levou pelas salas, lamentando que só viesse assim á Toca no fim do verão e no fim das flôres. Ega extasiou-se ruidosamente. Emfim, perdera a Toca o seu ar regelado e triste de museu! Já alli se podia palrar livremente!

— Isto é um barbaro, Maria! exclamava Carlos radiante. Tem horror á arte! É um Ibero, é um Semita...

Semita? Ega prezava-se de ser um luminoso Aryano! E por isso mesmo não podia viver n’uma casa, em que cada cadeira tinha a solemnidade sorumbatica de antepassados com cabelleira...

— Mas, dizia Maria rindo, rodas estas lindas coisas do seculo dezoito lembram antes a ligeireza, o espirito, a graça de maneiras...

— V. exc.ª acha? acudiu Ega. A mim todos esses dourados, esses enramalhetados, esses rococós lembram-me uma vivacidade estouvada e sirigaita... Nada! nós vivemos n’uma Democracia! E não ha para exprimir a alegria simples, sólida e bonacheirona da Democracia, como largas poltronas de marroquim, e o mogno envernizado!...

Assim n’uma risonha, ligeira discussão sobre bric-à-brac, desceram ao jardim.

Miss Sarah passeava entre o buxo, de olhos baixos, com um livro fechado na mão. Ega, que conhecia já os seus ardores nocturnos, cravou-lhe sôfregamente o monoculo; e emquanto Maria se abaixára a cortar um geranio, exprimiu a Carlos n’um gesto mudo a sua admiração por aquelle beicinho escarlate, aquelle seiosinho redondo de rola farta... Depois, ao fundo, junto do caramanchão, encontraram Rosa que se balouçava. Ega pareceu deslumbrado com a sua belleza, a sua frescura mate de camelia branca. Pediu-lhe um beijo. Ella exigiu primeiro, muito séria, que elle tirasse o vidro do olho.

— Mas é para te vêr melhor! é para te vêr melhor!...

— Então porque não trazes um em cada olho? Assim só me vês metade...

Encantadora! encantadora! murmurava Ega. No fundo achava a pequena espevitada e impudente. Maria resplandecia.

E o jantar alargou mais esta intimidade risonha. Carlos, logo á sopa, fallando-se de campo e d’um chalet que elle desejava construir em Cintra, nos Capuchos, dissera — «quando nos casarmos». E Ega alludiu a esse futuro do modo mais grato ao coração de Maria. Agora que Carlos se installava para sempre n’uma felicidade estavel (dizia elle) era necessario trabalhar! E relembrou então a sua velha idéa do Cenaculo, representado por uma Revista que dirigisse a litteratura, educasse o gosto, elevasse a politica, fizesse a civilisação, remoçasse o carunchoso Portugal... Carlos, pelo seu espirito, pela sua fortuna (até pela sua figura, ajuntava o Ega rindo) devia tomar a direcção d’este movimento. E que profunda alegria para o velho Affonso da Maia!

Maria escutava, presa e séria. Sentia bem quanto Carlos, com uma vida toda de intelligencia e de actividade, rehabilitaria supremamente aquella união mostrando-lhe a influencia fecunda e purificadora.

— Tem razão, tem bem razão! exclamava ella com ardor.

— Sem contar, acrescentava o Ega, que o paiz precisa de nós! Como muito bem diz o nosso querido e imbecilissimo Gouvarinho, o paiz não tem pessoal... Como ha de tel-o, se nós, que possuimos as aptidões, nos contentamos em governar os nossos dog-carts e escrever a vida intima dos atomos? Sou eu, minha senhora, sou eu que ando a escrever essa biographia d’um atomo!... No fim, este dilettantismo é absurdo. Clamamos por ahi, em botequins e livros, «que o paiz é uma choldra». Mas que diabo! Porque é que não trabalhamos para o refundir, o refazer ao nosso gosto e pelo molde perfeito das nossas idéas?... V. exc.ª não conhece este paiz, minha senhora. É admiravel! É uma pouca de cera inerte de primeira qualidade. A questão toda está em quem a trabalha. Até aqui a cera tem estado em mãos brutas, banaes, toscas, reles, rotineiras... É necessario pôl-a em mãos d’artistas, nas nossas. Vamos fazer d’isto um bijou!...

Carlos ria, preparando n’uma travessa o ananaz com sumo de laranja e vinho da Madeira. Mas Maria não queria que elle risse. A idéa do Ega parecia-lhe superior, inspirada n’um alto dever. Quasi tinha remorsos, dizia ella, d’aquella preguiça de Carlos. E agora, que ia ser cercado de affeição serena, queria-o vêr trabalhar, mostrar-se, dominar...

— Com effeito, disse o Ega recostado e sorrindo, a era do romance findou. E agora...

Mas o Domingos servia o ananaz. E o Ega provou e rompeu em clamores de enthusiasmo. Oh que maravilha! Oh que delicia!

— Como fazes tu isto? Com Madeira...

— E genio! exclamou Carlos. Delicioso, não é verdade? Ora digam-me se tudo o que eu pudesse fazer pela civilisação valeria este prato de ananaz! É para estas coisas que eu vivo! Eu não nasci para fazer civilisação...

— Nasceste, acudiu o Ega, para colher as flôres d’essa planta da civilisação que a multidão rega com o seu suor! No fundo tambem eu, menino!

Não, não! Maria não queria que fallassem assim!

— Esses ditos estragam tudo. E o snr. Ega, em logar de corromper Carlos, devia inspiral-o...

Ega protestou requebrando o olho, já languido. Se Carlos necessitava uma musa inspiradora e benefica — não podia ser elle, bicho com barbas e bacharel em leis... A musa estava toute trouvée!

— Ah, com effeito!... Quantas paginas bellas, quantas nobres idéas se não podem produzir n’um paraiso d’estes!...

E o seu gesto molle e acariciador indicava a Toca, a quietação dos arvoredos, a belleza de Maria. Depois na sala, emquanto Maria tocava um nocturno de Chopin e Carlos e elle acabavam os charutos á porta do jardim vendo nascer a lua — Ega declarou que, desde o começo do jantar, estava com idéas de casar!... Realmente não havia nada como o casamento, o interior, o ninho...

— Quando penso, menino, murmurou elle mordendo sombriamente o charuto, que quasi todo um anno da minha vida foi dado áquella israelita devassa que gosta de levar bordoada...

— Que faz ella em Cintra? perguntou Carlos.

— Ensopa-se na crapula. Não ha a menor duvida que dá todo o seu coração ao Damaso... Tu sabes o que n’estes casos significa o termo coração... Viste já immundicie igual? É simplesmente obscena!

— E tu adóral-a, disse Carlos.

O outro não respondeu. Depois, dentro, n’um odio repentino da bohemia e do romantismo, entoou louvores sonoros á familia, ao trabalho, aos altos deveres humanos — bebendo copinhos de cognac. Á meia noite, ao sahir, tropeçou duas vezes na rua d’acacias, já vago, citando Proudhon. E quando Carlos o ajudou a subir para a victoria, que elle quiz descoberta para ir communicando com a lua, Ega ainda lhe agarrou o braço para lhe fallar da Revista, d’um forte vento de espiritualidade e de virtude viril que se devia fazer soprar sobre o paiz... Por fim, já estirado no assento, tirando o chapéo á aragem da noite:

— E outra coisa, Carlinhos. Vê se me arranjas ingleza... Ha vicios deliciosos n’aquellas pestanas baixas... Vê se m’a arranjas... Vá lá, bate lá, cocheiro! Caramba, que belleza de noite!

Carlos ficára encantado com este primeiro jantar d’amizade na Toca. Elle tencionava não apresentar Maria aos seus intimos senão depois de casado e á volta de Italia. Mas agora a «união legal» estava já no seu pensamento adiada, remota, quasi dispersa no vago. Como dizia o Ega, devia esperar, deixar-se ir... E no emtanto, Maria e elle não poderiam isolar-se alli todo um longo inverno, sem o calor sociavel d’alguns amigos em redor. Por isso uma manhã, encontrando o Cruges, que fôra o visinho de Maria e outr’ora lhe dava noticias da «lady ingleza», pediu-lhe para vir jantar á Toca no domingo.

O maestro appareceu n’uma tipoia, á tardinha, de laço branco e de casaca: e os fatos claros de campo com que encontrou Carlos e Ega começaram logo a enchel-o de mal-estar. Toda a mulher, além das Lolas e Conchas, o atarantava, o emmudecia: Maria, «com o seu porte de grande-dame», como elle dizia, intimidou-o a tal ponto que ficou diante d’ella, sem uma palavra, escarlate, torcendo o forro das algibeiras. Antes de jantar, por lembrança de Carlos, foram-lhe mostrar a quinta. O pobre maestro, roçando a casaca mal feita pela folhagem dos arbustos, fazia esforços anciosos por murmurar algum elogio «á belleza do sitio»; mas escapavam-lhe então inexplicavelmente coisas reles, em calão: «vista catita»! «é pitada»! Depois ficava furioso, coberto de suor, sem comprehender como se lhe babavam dos labios esses ditos abominaveis, tão contrarios ao seu gosto fino d’artista. Quando se sentou á mesa soffria um negrissimo accesso de spleen e mudez! Nem uma controversia que Maria arranjára caridosamente para elle sobre Wagner e Verdi pôde descerrar-lhe os labios empedernidos. Carlos ainda tentou envolvel-o na alegria da mesa — contando a ida a Cintra, quando elle procurava Maria na Lawrence, e em vez d’ella achára uma matrona obesa, de bigode, de cãosinho ao collo, ralhando com o homem em hespanhol. Mas a cada exclamação de Carlos — «Lembras-te, Cruges?», «Não é verdade, Cruges?» — o maestro, rubro, grunhia apenas um sim avaro. Terminou por estar alli, ao lado de Maria, como um trambolho funebre. Estragou o jantar.

Combinára-se para depois do café um passeio pelos arredores, n’um break. E Carlos já tomára as guias, Maria na almofada acabava de abotoar as luvas — quando Ega, que receava a friagem da tarde, saltou do break, correu a buscar o paletot. N’esse mesmo momento sentiram um trote de cavallo na estrada — e appareceu o marquez.

Foi uma surpreza para Carlos, que o não vira durante esse verão. O marquez parou logo, tirando profundamente, ao vêr Maria, o seu largo chapéo desabado.

— Imaginava-o pela Gollegã! exclamou Carlos. Foi até o Cruges que me disse... Quando chegou vossê?

Chegára na vespera. Lá fôra ao Ramalhete; tudo deserto. Agora vinha aos Olivaes vêr um dos Vargas que tinha casado, se installára alli perto, a passar o noivado...

— Quem, o gordo, o das corridas?

— Não, o magro, o das regatas.

Carlos, debruçado da almofada, examinava a egoasita do marquez, pequena, bem estampada, d’um baio escuro e bonito.

— Isso é novo?

— Uma facasita do Darque... Quer-m’a vossê comprar? Sou já um pouco pesado para ella, e isto mette-se a um dog-cart...

— Dê lá uma volta.

O marquez deu a volta, bem posto na sella, avantajando a egoa. Carlos achou-lhe «boas acções». Maria murmurou — «Muito bonita, uma cabeça fina...» Então Carlos apresentou o marquez de Souzella a madame Mac-Gren. Elle chegou a egoa á roda, descoberto, para apertar a mão a Maria: e á espera do Ega que se eternisava lá dentro, ficaram fallando do verão, de Santa Olavia, dos Olivaes, da Toca... Ha que tempos o marquez alli não passava! A ultima vez fôra victima da excentricidade do Craft...

— Imagine v. exc.ª, disse elle a Maria Eduarda, que esse Craft me convida a almoçar. Venho, e o hortelão diz-me que o snr. Craft, criado e cozinheiro, tudo partira para o Porto; mas que o snr. Craft deixára um cartaz na sala... Vou á sala, e vejo dependurado ao pescoço d’um idolo japonez uma folha de papel com estas palavras pouco mais ou menos: «O deus Tchi tem a honra de convidar o snr. marquez, em nome de seu amo ausente, a passar á sala de jantar onde encontrará, n’um aparador, queijo e vinho, que é o almoço que basta ao homem forte.» E foi com effeito o meu almoço... Para não estar só, partilhei-o com o hortelão.

— Espero que se tivesse vingado! exclamou Maria rindo.

— Póde crêr, minha senhora... Convidei-o a jantar, e quando elle appareceu, vindo d’aqui da Toca, o meu guarda-portão disse-lhe que o snr. marquez fôra para longe, e que não havia nem pão nem queijo... Resultado: o Craft mandou-me uma duzia de magnificas garrafas de Chambertin. Esse deus Tchi nunca mais o tornei a vêr...

O deus Tchi lá estava, obeso e medonho. E, muito naturalmente, Carlos convidou o marquez a revisitar n’essa noite, á volta da casa do Vargas, o seu velho amigo Tchi.

O marquez veio, ás dez horas — e foi um serão encantador. Conseguiu sacudir logo a melancolia do Cruges, arrastando-o com mão de ferro para o piano; Maria cantou; palrou-se com graça; e aquelle escondrijo d’amor ficou alumiado até tarde, na sua primeira festa de amizade.

Estas reuniões alegres foram ao principio, como dizia o Ega, dominicaes: mas o outono arrefecia, bem depressa se despiriam as arvores da Toca, e Carlos accumulou-as duas vezes por semana, nos velhos dias feriados da Universidade, domingos e quintas. Tinha descoberto uma admiravel cozinheira alsaciana, educada nas grandes tradições, que servira o bispo de Strasburgo, e a quem as extravagancias d’um filho e outras desgraças tinham arrojado a Lisboa. Maria, de resto, punha na composição dos seus jantares uma sciencia delicada: o dia de vir á Toca era considerado pelo marquez «dia de civilisação».

A mesa resplandecia; e as tapeçarias representando massas d’arvoredos punham em redor como a sombra escura d’um retiro silvestre onde por um capricho se tivessem accendido candelabros de prata. Os vinhos sahiam da frasqueira preciosa do Ramalhete. De todas as coisas da terra e do céo se grulhava com phantasia — menos de «politica portugueza», considerada conversa indecorosa entre pessoas de gosto.

Rosa apparecia ao café, exhalando do seu sorriso, dos bracinhos nús, dos vestidos brancos tufados sobre as meias de sêda preta, um bom aroma de flôr. O marquez adorava-a, disputando-a ao Ega, que a pedira a Maria em casamento e lhe andava compondo havia tempo um soneto. Ella preferia o marquez: achava o Ega «muito...» — e completava o seu pensamento com um gestosinho do dedo ondeado no ar, como a exprimir que o Ega «era muito retorcido».

— Ahi está! exclamava elle. Porque eu sou mais civilisado que o outro! É a simplicidade não comprehendendo o requinte.

— Não, desgraçado! exclamavam do lado. É porque és impresso!... É a natureza repellindo a convenção!...

Bebia-se á saude de Maria: ella sorria, feliz entre os seus novos amigos, divinamente bella, quasi sempre de escuro, com um curto decote onde resplandecia o incomparavel esplendor do seu collo.

Depois organisaram-se solemnidades. N’um domingo, em que os sinos repicavam e a distancia foguetes esfuziavam no ar — Ega lamentou que os seus austeros principios philosophicos o impedissem de festejar tambem aquelle santo d’aldeia, que fôra decerto em vida um caturra encantador, cheio d’illusões e doçura... Mas de resto, acrescentou, não teria sido n’um dia assim, fino e secco, sob um grande céo cheio de sol, que se feriu a batalha das Thermopylas? Porque não se atiraria uma girandola de foguetes em honra de Leonidas e dos trezentos? E atirou-se a girandola pela eterna gloria de Sparta.

Depois celebraram-se outras datas historicas. O anniversario da descoberta da Venus de Milo foi commemorado com um balão que ardeu. N’outra occasião o marquez trouxe de Lisboa, apinhados n’uma tipoia, fadistas famosos, o Pintado, o Vira-vira e o Gago: e depois de jantar, até tarde, com o luar sobre o rio, cinco guitarras choraram os ais mais tristes dos fados de Portugal.

Quando estavam sós, Carlos e Maria passavam as suas manhãs no kiosque japonez — affeiçoados áquelle primeiro retiro dos seus amores, pequeno e apertado, onde os seus corações batiam mais perto um do outro. Em logar das esteiras de palha Carlos revestira-o com as suas formosas colchas da India, côr de palha e côr de perola. Um dos maiores cuidados d’elle, agora, era embellezar a Toca: nunca voltava de Lisboa sem trazer alguma figurinha de Saxe, um marfim, uma faiança, como noivo feliz que aperfeiçôa o seu ninho.

Maria no emtanto não cessava de lembrar os planos intellectuaes do Ega: queria que elle trabalhasse, ganhasse um nome: seria isso o orgulho intimo d’ella, e sobretudo a alegria suprema do avô. Para a contentar (mais que para satisfazer as suas necessidades de espirito) Carlos recomeçára a compôr alguns dos seus artigos de medicina litteraria para a Gazeta Medica. Trabalhava no kiosque, de manhã. Trouxera para lá rascunhos, livros, o seu famoso manuscripto da Medicina antiga e moderna. E por fim achára um grande encanto em estar alli, com um leve casaco de sêda, as suas cigarettes ao lado, um fresco murmurio de arvoredo em redor — cinzelando as suas phrases, emquanto ella ao lado bordava silenciosa. As suas idéas surgiam com mais originalidade, a sua fórma ganhava em colorido, n’aquelle estreito kiosque assetinado que ella perfumava com a sua presença. Maria respeitava este trabalho como coisa nobre e sagrada. De manhã, ella mesma espanejava os livros do leve pó que a aragem soprava pela janella; dispunha o papel branco, punha cuidadosamente pennas novas; e andava bordando uma almofada de pennas e setim para que o trabalhador estivesse mais confortavel na sua vasta cadeira de couro lavrado.

Um dia offerecera-se a passar a limpo um artigo. Carlos, enthusiasmado com a letra d’ella, quasi comparavel á lendaria letra do Damaso, occupava-a agora incessantemente como copista, sentindo mais amor por um trabalho a que ella se associava. Quantos cuidados se dava a dôce creatura! Tinha para isso um papel especial, d’um tom macio de marfim: e, com o dedinho no ar, ia desenrolando as pesadas considerações de Carlos sobre o Vitalismo e o Transformismo na graça delicada d’uma renda... Um beijo pagava-a de tudo.

Ás vezes Carlos dava lições a Rosa — ora de historia, contando-lh’a familiarmente como um conto de fadas; ora de geographia, interessando-a pelas terras onde vivem gentes negras, e pelos velhos rios que correm entre as ruinas dos santuarios. Isto era o prazer mais alto de Maria. Séria, muda, cheia de religião, escutava aquelle sêr bem-amado ensinando sua filha. Deixava escapar das mãos o trabalho — e o interesse de Carlos, a enlevada attenção de Rosa sentada aos pés d’elle, bebendo aquellas bellas historias de Joanna d’Arc ou das caravellas que foram á India, fazia resplandecer nos seus olhos uma nevoa de lagrimas felizes...

Desde o meado d’outubro Affonso da Maia fallava da sua partida de Santa Olavia, retardada apenas por algumas obras que começára na parte velha da casa e nas cocheiras: porque ultimamente invadira-o a paixão de edificar — sentindo-se remoçar, como elle dizia, no contacto das madeiras novas e no cheiro vivo das tintas. Carlos e Maria pensavam tambem em abandonar os Olivaes. Carlos não poderia por dever domestico permanecer alli installado desde que o avô recolhesse ao Ramalhete. Além d’isso aquelle fim d’outono ia escuro e agreste; e a Toca era agora pouco bucolica, com a quinta desfolhada e alagada, uma nevoa sobre o rio, e um fogão unico no gabinete de cretones — além da sumptuosa chaminé da sala de jantar, que, por entre os seus Nubios d’olhos de crystal, soltava uma fumaraça odiosa quando o Domingos a tentava accender.

N’uma d’essas manhãs, Carlos, que ficára até tarde com Maria, e depois no seu delgado casebre mal pudera dormir com um temporal de vento e agua desencadeado de madrugada — ergueu-se ás nove horas, veio á Toca. As janellas do quarto de Maria conservavam-se ainda cerradas; a manhã clareára; a quinta lavada, meio despida, no ar fino e azul, tinha uma linda e silenciosa graça d’inverno. Carlos passeava, olhando os vasos onde os chrysanthemos floriam, quando retiniu a sineta do portão. Era o toque do carteiro. Justamente elle escrevera dias antes ao Cruges, perguntando se estaria desoccupado para os primeiros frios de dezembro o andar da rua de S. Francisco: e, esperando carta do maestro, foi abrir, acompanhado por Niniche. Mas o correio, n’essa manhã, consistia apenas n’uma carta do Ega e dois numeros de jornal cintados — um para elle, outro para «Madame Castro Gomes, na quinta do snr. Craft, aos Olivaes».

Caminhando sob as acacias, Carlos abriu a carta do Ega. Era da vespera, com a data «á noite, á pressa». E dizia: « — Lê, n’esse trapo que te mando, esse superior pedaço de prosa que lembra Tacito. Mas não te assustes; eu supprimi, mediante pecunia, toda a tiragem, com excepção de dois numeros mais que foram, um para a Toca, outro (oh logica suprema dos habitos constitucionaes!) para o Paço, para o chefe do Estado!... Mas esse mesmo não chegará ao seu destino. Em todo o caso desconfio de que esgôto sahiu esse enxurro e precisamos providenciar! Vem já! Espero-te até ás duas. E, como Iago dizia a Cassio — mette dinheiro na bolsa

Inquieto, Carlos descintou o jornal. Chamava-se a Corneta do Diabo: e na impressão, no papel, na abundancia dos italicos, no typo gasto, todo elle revelava immundicie e malandrice. Logo na primeira pagina duas cruzes a lapis marcavam um artigo que Carlos, n’um relance, viu salpicado com o seu nome. E leu isto: « — Ora viva, Maia! Então já se não vai ao consultorio, nem se vêem os doentes do bairro, janota? — Esta piada era botada no Chiado, á porta da Havaneza, ao Maia, ao Maia dos cavallos inglezes, um tal Maia do Ramalhete, que abarrota por ahi de catita; e o pai Paulino que tem olho e que passava n’essa occasião ouviu a seguinte cornetada: — É que o Maia acha que é mais quente viver nas fraldas d’uma brazileira casada, que nem é brazileira nem é casada, e a quem o papalvo poz casa, ahi para o lado dos Olivaes, para estar ao fresco! Sempre os ha n’este mundo!... Pensa o homem que botou conquista; e cá a rapaziada de gosto ri-se, porque o que a gaja lhe quer não são os lindos olhos, são as lindas louras... O simplorio, que bate ahi pilecas bifes, que nem que fosse o marquez, o verdadeiro Marquez, imaginava que se estava abiscoitando com uma senhora do chic, e do boulevard de Paris, e casada, e titular!... E no fim (não, esta é para a gente deixar estoirar o bandulho a rir!) no fim descobre-se que a typa era uma cocotte safada, que trouxe para ahi um brazileiro já farto d’ella para a passar cá aos bellos lusitanos... E cahiu a espiga ao Maia! Pobre palerma! Ainda assim o Maia só apanhou os restos d’outro, porque a typa, já antes d’elle se enfeitar, tinha pandegado á larga, ahi para a rua de S. Francisco, com um rapaz da fina, que se safou tambem, porque cá como nós só aprecia a bella hespanhola. Mas não obsta a que o Maia seja traste! — Pois se assim é, dissemos nós, cautelinha, porque o diabo cá tem a sua Corneta preparada para cornetear por esse mundo as façanhas do Maia das conquistas. Ora viva, Maia!»

Carlos ficou immovel entre as acacias, com o jornal na mão, no espanto furioso e mudo d’um homem que subitamente recebe na face uma grossa chapada de lôdo! Não era a cólera de vêr o seu amor assim aviltado na publicidade chula d’um jornal sordido: era o horror de sentir aquellas phrases em calão, pandilhas, afadistadas, como só Lisboa as póde crear, pingando fetidamente, á maneira de sebo, sobre si, sobre Maria, sobre o esplendor da sua paixão... Sentia-se todo emporcalhado. E uma unica idéa surgia através da sua confusão — matar o bruto que escrevera aquillo.

Matal-o! Ega sustára a tiragem da folha, Ega pois conhecia o folliculario. Nada importava que aquelles numeros, que tinha na mão, fossem os unicos impressos. Recebera lama na face. Que a injuria fosse espalhada nas praças n’uma profusa publicidade ou lhe fosse atirada só a elle escondidamente n’um papel unico, era igual... Quem tanto ousára tinha de cahir, esmagado!

Decidiu ir logo ao Ramalhete. O Domingos á janella da cozinha areava pratas, assobiando. Mas quando Carlos lhe fallou de ir buscar um calhambeque aos Olivaes, o bom Domingos consultou o relogio:

— V. exc.ª tem ás onze horas a caleche do Torto que a senhora mandou cá estar para ir a Lisboa...

Carlos, com effeito, recordou-se que Maria na vespera planeára ir á Aline e aos livreiros. Uma contrariedade, justamente n’esse dia em que elle precisava ficar livre — elle e a sua bengala! Mas Melanie, passando então com um jarro d’agua quente, disse que a senhora ainda se não vestira, que talvez nem fosse a Lisboa... E Carlos recomeçou a passear, no tapete de relva, entre as nogueiras.

Sentou-se por fim no banco de cortiça, descintou a Corneta sobrescriptada para Maria, releu lentamente a prosa immunda: e, n’esse numero que lhe fôra destinado a ella, todo aquelle calão lhe pareceu mais ultrajante, intoleravel, punivel só com sangue. Era monstruoso, na verdade, que sobre uma mulher, quieta, innoffensiva no silencio da sua casa, alguem ousasse tão brutalmente arremessar esse lôdo ás mãos cheias! E a sua indignação alargava-se do folliculario que babára aquillo — até á sociedade que, na sua decomposição, produzira o folliculario. Decerto toda a cidade soffria a sua vermina... Mas só Lisboa, só a horrivel Lisboa, com o seu apodrecimento moral, o seu rebaixamento social, a perda inteira do bom-senso, o desvio profundo do bom gosto, a sua pulhice e o seu calão, podia produzir uma Corneta do Diabo.

E, no meio d’esta alta cólera de moralista, uma dôr perpassava, precisa e dilacerante. Sim, toda a sociedade de Lisboa fazia um monturo sordido n’este canto do mundo — mas, em summa, havia no artigo da Corneta uma calumnia? Não. Era o passado de Maria, que ella arrancára de si como um vestido rôto e sujo, que elle mesmo enterrára muito fundo, deitando-lhe por cima o seu amor e o seu nome — e que alguem desenterrava para o mostrar bem alto ao sol, com as suas manchas e os seus rasgões... E isto agora ameaçava para sempre a sua vida como um terror sobre ella suspenso. Debalde elle perdoára, debalde elle esquecera. O mundo em redor sabia. E a todo o tempo o interesse ou a perversidade poderiam refazer o artigo da Corneta.

Ergueu-se, abalado. E então alli, sob essas arvores desfolhadas, onde durante o verão, quando ellas se enchiam de sombra e de murmurio, elle passeára com Maria, esposa eleita da sua vida — Carlos perguntou pela vez primeira a si mesmo se a honra domestica, a honra social, a pureza dos homens de quem descendia, a dignidade dos homens que d’elle descendessem lhe permittiam em verdade casar com ella...

Dedicar-lhe toda a sua affeição, toda a sua fortuna, certamente! Mas casar... E se tivesse um filho? O seu filho, já homem, altivo e puro, poderia um dia lêr n’uma Corneta do Diabo que sua mãi fôra amante d’um brazileiro, depois de ser amante d’um irlandez. E se seu filho lhe viesse gritar, n’uma bella indignação, «é uma calumnia?» — elle teria de baixar a cabeça, murmurar — «é uma verdade!» E seu filho veria para sempre collada a si aquella mãi de quem o mundo ignorava os martyrios e os encantos — mas de quem conhecia cruelmente os erros.

E ella mesma! Se elle appellasse para a sua razão, alta e tão recta, mostrando-lhe as zombarias e as affrontas de que uma vil Corneta do Diabo poderia um dia trespassar o filho que d’elles nascesse — ella mesma o desligaria alegremente do seu voto, contente em entrar no Ramalhete pela escadinha secreta forrada de velludo côr de cereja, comtanto que em cima a esperasse um amor constante e forte... Nunca ella tornára, em todo o verão, a alludir a uma união differente d’essa em que os seus corações viviam tão lealmente, tão confortavelmente. Não, Maria não era uma devota, preoccupada «do peccado mortal»! Que lhe podia importar a estola banal do padre?...

Sim; mas elle que lhe pedira essa consagração na hora mais commovida do seu longo amor, iria dizer-lhe agora — «foi uma criancice, não pensemos mais n’isso, desculpa?» Não; nem o seu coração o desejava! Antes pendia todo para ella... Pendia todo para ella, n’um enternecimento mais generoso e mais quente — emquanto a sua razão assim arengava, cautelosa e austera. Elle tinha n’aquella alma o seu culto perfeito, n’aquelles braços a sua voluptuosidade magnifica; fóra d’alli não havia felicidade; a unica sabedoria era prender-se a ella pelo derradeiro elo, o mais forte, o seu nome, embora as Cornetas do Diabo atroassem todo o ar. E assim affrontaria o mundo n’uma soberba revolta, affirmando a omnipotencia, o reino unico da Paixão... Mas primeiro mataria o folliculario! — Passeava, esmagava a relva. E todos os seus pensamentos se resolviam por fim em furia contra o infame que babára sobre o seu amor, e durante um instante introduzia na sua vida tanta incerteza e tanto tormento!

Maria ao lado abriu a janella. Estava vestida d’escuro para sahir; e bastou o brilho terno do seu sorriso, aquelles hombros a que o estofo justo modelava a belleza cheia e quente — para que Carlos detestasse logo as duvidas desleaes e covardes, a que se abandonára um momento sob as arvores desfolhadas... Correu para ella. O beijo que lhe deu, lento e mudo, teve a humildade d’um perdão que se implora.

— Que tens tu, que estás tão sério?

Elle sorriu. Sério, no sentido de solemne, não estava. Talvez seccado. Recebera uma carta do Ega, uma das eternas complicações do Ega. E precisava ir a Lisboa, ficar lá naturalmente toda a noite...

— Toda a noite? exclamou ella com um desapontamento, pousando-lhe as mãos sobre os hombros.

— Sim, é bem possivel, um horror! Nos negocios do Ega ha fatalmente o inesperado... Tu com effeito vaes a Lisboa?

— Agora, com mais razão... Se me queres.

— O dia está bonito... Mas ha de fazer frio na estrada.

Maria justamente gostava d’esses dias d’inverno, cheios de sol, com um arzinho vivo e arripiado. Tornavam-n’a mais leve, mais esperta.

— Bem, bem, disse Carlos atirando o cigarro. Vamos ao almoço, minha filha... O pobre Ega deve estar a uivar de impaciencia.

Emquanto Maria correra a apressar o Domingos — Carlos, através da relva humida, foi ainda lentamente até ao renque baixo d’arbustos que d’aquelle lado fechava a Toca como uma sebe. Ahi a collina descia, com quintarolas, muros brancos, olivedos, uma grande chaminé de fabrica que fumegava: para além era o azul fino e frio do rio: depois os montes, d’um azul mais carregado, com a casaria branca da povoação aninhada á beira da agua, nitida e suave na transparencia do ar macio. Parou um momento, olhando. E aquella aldeia de que nunca soubera o nome, tão quieta e feliz na luz, deu a Carlos um desejo repentino de socego e de obscuridade, n’um canto assim do mundo, á beira d’agua, onde ninguem o conhecesse nem houvesse Cornetas do Diabo, e elle pudesse ter a paz d’um simples e d’um pobre debaixo de quatro telhas, no seio de quem amava...

Maria gritou por elle da janella da sala de jantar, onde se debruçára a apanhar uma das ultimas rosas trepadeiras que ainda floriam.

— Que lindo tempo para viajar, Maria! — disse Carlos chegando, através da relva.

— Lisboa é tambem muito linda, agora, havendo sol...

— Pois sim, mas o Chiado, a coscovilhice, os politiquetes, as gazetas, todos os horrores... A mim está-me positivamente a appetecer uma cubata na Africa!

O almoço, por fim, foi demorado. Ia bater uma hora quando a caleche do Torto começou a rolar na estrada, ainda encharcada da chuva da noite. Logo adiante da villa, na descida, cruzaram um coupé que trepava n’um trote esfalfado. Maria julgou avistar n’elle de relance o chapéo branco e o monoculo do Ega... Pararam. E era com effeito o Ega, que reconhecera tambem a caleche da Toca, vinha já saltitando as lamas com longas pernadas de cegonha, chamando por Carlos.

Ao vêr Maria ficou atrapalhado:

— Que bella surpreza! Eu ia para lá... Vi o dia tão bonito, disse commigo...

— Bem, paga a tua tipoia, vem comnosco! atalhou Carlos que trespassava o Ega, com os olhos inquietos, querendo adivinhar o motivo d’aquella brusca chegada aos Olivaes.

Quando entrou para a caleche, tendo pago o batedor, Ega, embaraçado, sem poder desabafar diante de Maria sobre o caso da Corneta, começou, sob os olhos de Carlos que o não deixavam, a fallar do inverno, das inundações do Riba-Tejo... Maria lêra. Uma desgraça, duas crianças afogadas nos berços, gados perdidos, uma grande miseria! Por fim Carlos não se conteve:

— Eu lá recebi a tua carta...

Ega acudiu:

— Arranja-se tudo! Está tudo combinado! E com effeito eu não vim senão por um sentimento bucolico...

Muito discretamente Maria olhára para o rio. Ega fez então um gesto rapido com os dedos significando «dinheiro, só questão de dinheiro». Carlos socegou: e Ega voltou a fallar dos inundados do Riba-Tejo e do sarau litterario e artistico que em beneficio d’elles se «ia commetter» no salão da Trindade... Era uma vasta solemnidade official. Tenores do parlamento, rouxinoes da litteratura, pianistas ornados com o habito de S. Thiago, todo o pessoal canoro e sentimental do constitucionalismo ia entrar em fogo. Os reis assistiam, já se teciam grinaldas de camelias para pendurar na sala. Elle, apesar de demagogo, fôra convidado para lêr um episodio das Memorias d’um Atomo: recusára-se, por modestia, por não encontrar nas Memorias nada tão sufficientemente palerma que agradasse á capital. Mas lembrára o Cruges; e o maestro ia ribombar ou arrulhar uma das suas Meditações. Além d’isso havia uma poesia social pelo Alencar. Emfim, tudo prenunciava uma immensa orgia...

— E a snr.ª D. Maria, acrescentou elle, devia ir!... É summamente pittoresco. Tinha v. exc.ª occasião de vêr todo o Portugal romantico e liberal, à la besogne, engravatado de branco, dando tudo que tem n’alma!

— Com effeito devias ir, disse Carlos, rindo. Demais a mais se o Cruges toca, se o Alencar recita, é uma festa nossa...

— Pois está claro! gritou Ega, procurando o monoculo, já excitado. Ha duas coisas que é necessario vêr em Lisboa... Uma procissão do Senhor dos Passos e um sarau poetico!

Rolavam então pelo largo do Pelourinho. Carlos gritou ao cocheiro que parasse no começo da rua do Alecrim: elles apeavam-se e tomavam de lá o americano para o Ramalhete.

Mas a tipoia estacou antes da calçada, rente ao passeio, em frente d’uma loja de alfaiate. E n’esse instante achava-se ahi parado, calçando as suas luvas pretas, um velho alto, de longas barbas d’apostolo, todo vestido de luto. Ao vêr Maria, que se inclinára á portinhola, o homem pareceu assombrado; depois, com uma leve côr na face larga e pallida, tirou gravemente o chapéo, um immenso chapéo de abas recurvas, á moda de 1830, carregado de crepe.

— Quem é? perguntou Carlos.

— É o tio do Damaso, o Guimarães, disse Maria, que córára tambem. É curioso, elle aqui!

Ah, sim! o famoso Mr. Guimarães, o do Rappel, o intimo de Gambetta! Carlos recordava-se de ter já encontrado aquelle patriarcha no Price com o Alencar. Comprimentou-o tambem; o outro ergueu de novo com uma gravidade maior o seu sombrio chapéo de carbonario. Ega entalára vivamente o monoculo para examinar esse lendario tio do Damaso, que ajudava a governar a França: e depois de se despedirem de Maria, quando a caleche já subia a rua do Alecrim e elles atravessavam para o Hotel Central, ainda se voltou seduzido por aquelles modos, aquellas barbas austeras de revolucionario...

— Bom typo! E que magnifico chapéo, hein! D’onde diabo o conhece a snr.ª D. Maria?

— De Paris... Este Mr. Guimarães era muito da mãi d’ella. A Maria já me tinha fallado n’elle. É um pobre diabo. Nem amigo de Gambetta, nem coisa nenhuma... Traduz noticias dos jornaes hespanhoes para o Rappel, e morre de fome...

— Mas então, o Damaso?

— O Damaso é um trapalhão. Vamos nós ao nosso caso... Essa immundicie que me mandaste, a Corneta? Dize lá.

Seguindo devagar pelo Aterro, Ega contou a historia da immundicie. Fôra na vespera á tarde que recebera no Ramalhete a Corneta. Elle já conhecia o papelucho, já privára mesmo com o proprietario e redactor — o Palma, chamado Palma Cavallão para se distinguir d’outro benemerito chamado Palma Cavallinho. Comprehendeu logo que se a prosa era do Palma a inspiração era alheia. O Palma nada sabia de Carlos, nem de Maria, nem da casa da rua de S. Francisco, nem da Toca... Não era natural que escrevesse por deleite intellectual um documento que só lhe podia render desgostos e bengaladas. O artigo, pois, fôra-lhe simplesmente encommendado e pago. No terreno do dinheiro vence sempre quem tem mais dinheiro. Por este solido principio correra a procurar o Palma Cavallão no seu antro.

— Tambem lhe conheces o antro? perguntou Carlos, com horror.

— Tanto não... Fui perguntar á secretaria da Justiça a um sujeito que esteve associado com elle n’um negocio de Almanachs religiosos...

Fôra pois ao antro. E encontrára as coisas dispostas pelas mãos habeis d’uma Providencia amiga. Primeiramente, depois de imprimir cinco ou seis numeros, a machina, esfalfada na pratica d’aquellas maroteiras, desmanchára-se. Além d’isso o bom Palma estava furioso com o cavalheiro que lhe encommendára o artigo, por divergencia na seriissima questão de pecunia. De sorte que apenas elle propôz comprar a tiragem do jornal — o jornalista estendeu logo a mão larga, d’unhas roídas, tremendo de reconhecimento e de esperança. Dera-lhe cinco libras que tinha, e a promessa de mais dez...

— É caro, mas que queres? continuou o Ega. Deixei-me atarantar, não regateei bastante... E emquanto a dizer quem é o cavalheiro que encommendou o artigo, o Palma, coitado, affirma que tem uma rapariga hespanhola a sustentar, que o senhorio lhe levantou o aluguer da casa, que Lisboa está carissima, que a litteratura n’este desgraçado paiz...

— Quanto quer elle?

— Cem mil reis. Mas, ameaçando-o com a policia, talvez desça a quarenta.

— Promette os cem, promette tudo, comtanto que eu tenha o nome... Quem te parece que seja?

Ega encolheu os hombros, deu um risco lento no chão com a bengala. E mais lentamente ainda foi considerando que o inspirador da Corneta devia ser alguem familiar com Castro Gomes; alguem frequentador da rua de S. Francisco; alguem conhecedor da Toca; alguem que tinha, por ciume ou vingança, um desejo ferrenho de magoar Carlos; alguem que sabia a historia de Maria; e emfim alguem que era um covarde...

— Estás a descrever o Damaso! exclamou Carlos, pallido e parando.

Ega encolheu de novo os hombros, tornou a riscar o chão:

— Talvez não... Quem sabe! Emfim, nós vamos averigual-o com certeza, porque, para terminar a negociação, fiquei de me ir encontrar com o Palma ás tres horas no Lisbonense... E o melhor é vires tambem. Trazes tu dinheiro?

— Se fôr o Damaso, mato-o! murmurou Carlos.

E não trazia sufficiente dinheiro. Tomaram uma tipoia para correr ao escriptorio do Villaça. O procurador fôra a Mafra, a um baptisado. Carlos teve de ir pedir cem mil reis ao velho Cortez, alfaiate do avô. Quando perto das quatro horas se apearam á entrada do Lisbonense, no largo de Santa Justa, o Palma no portal, com um jaquetão de velludo coçado e calça de casimira clara collada á côxa, accendia um cigarro. Estendeu logo rasgadamente a mão a Carlos — que lhe não tocou. E Palma Cavallão, sem se offender, com a mão abandonada no ar, declarou que ia justamente sahir, cançado já de esperar em cima diante d’um grog frio. De resto sentia que o snr. Maia se incommodasse em vir alli...

— Eu arranjava cá o negociosinho com o amigo Ega... Em todo o caso, se os senhores querem, vamos lá p’ra cima para um gabinete, que se está mais á vontade, e toma-se outra bebida.

Subindo a escada lobrega, Carlos recordava-se de ter já visto aquella luneta de vidros grossos, aquella cara balofa côr de cidra... Sim, fôra em Cintra, com o Eusebiosinho e duas hespanholas, n’esse dia em que elle farejára pelas estradas silenciosas, como um cão abandonado, procurando Maria!... Isto tornou-lhe mais odioso o snr. Palma. Em cima entraram n’um cubiculo, com uma janella gradeada por onde resvalava uma luz suja de saguão. Na toalha da mesa, salpicada de gordura e vinho, alguns pratos rodeavam um galheteiro que tinha moscas no azeite. O snr. Palma bateu as palmas, mandou vir genebra. Depois dando um grande puxão ás calças:

— Pois eu espero que me acho aqui entre cavalheiros. Como eu já disse cá ao amigo Ega, em todo este negocio...

Carlos atalhou-o, tocando muito significativamente com a ponteira da bengala na borda da mesa.

— Vamos ao ponto essencial... Quanto quer o snr. Palma por me dizer quem lhe encommendou o artigo da Corneta?

— Dizer quem o encommendou, e proval-o! acudiu o Ega, que examinava na parede uma gravura onde havia mulheres núas á beira d’agua. Não nos basta o nome... O amigo Palma, está claro, é de toda a confiança... Mas emfim, que diabo, não é natural que nós acreditassemos se o amigo nos dissesse que tinha sido o snr. D. Luiz de Bragança!

Palma encolheu os hombros. Está visto que havia de dar provas. Elle podia ter outros defeitos, trapalhão não! Em negocios era todo franqueza e lisura... E, se se entendessem, alli as entregava logo, essas provas que lhe estavam enchendo o bolsinho, pimponas e d’escachar! Tinha a carta do amigo que lhe encommendára a piada: a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta: o rascunho do artigo a lapis...

— Quer cem mil reis por tudo isso? perguntou Carlos.

O Palma ficou um momento indeciso, ageitando as lunetas com os dedos molles. Mas o criado veio trazer a garrafa da genebra: e então o redactor da Corneta offereceu a «bebida» rasgadamente, puxou mesmo cadeiras para aquelles cavalheiros abancarem. Ambos recusaram — Carlos de pé junto da mesa onde terminára por pousar a bengala, Ega passando a outra gravura onde dois frades se emborrachavam. Depois, quando o criado sahiu, Ega acercou-se, tocou com bonhomia no hombro do jornalista:

— Cem mil reis são uma linda somma, Palma amigo! E olhe que se lhe offerecem por delicadeza comsigo. Porque artiguinhos como este da Corneta, apresentados na Boa-Hora, levam á grilheta!... Está claro, este caso é outro, vossê não teve intenção d’offender; mas levam á grilheta!... Foi assim que o Severino marchou para a Africa. Alli no porãosinho d’um navio, com ração de marujo e chibatadas. Desagradavel, muito desagradavel. Por isso eu quiz que tratassemos isto aqui, entre cavalheiros, e em amizade.

Palma, com a cabeça baixa, desfazia torrões de assucar dentro do copo de genebra. E suspirou, findou por dizer, um pouco murcho, que era por ser entre cavalheiros, e com amizade, que aceitava os cem mil reis...

Immediatamente Carlos tirou da algibeira das calças um punhado de libras, que começou a deixar cahir em silencio uma a uma dentro d’um prato. E Palma Cavallão, agitado com o tinir do ouro, desabotoou logo o jaquetão, sacou uma carteira onde reluzia um pesado monogramma de prata sob uma enorme corôa de visconde. Os dedos tremiam-lhe; por fim desdobrou, estendeu tres papeis sobre a mesa. Ega, que esperava, com o monoculo sôfrego, teve um brado de triumpho. Reconhecera a letra do Damaso!

Carlos examinou os papeis lentamente. Era uma carta do Damaso ao Palma, curta e em calão, remettendo o artigo, recommendando-lhe «que o apimentasse». Era o rascunho do artigo, laboriosamente trabalhado pelo Damaso, com entrelinhas. Era a lista, escripta pelo Damaso, das pessoas que deviam receber a Corneta: vinha lá a Gouvarinho, o ministro do Brazil, D. Maria da Cunha, El-Rei, todos os amigos do Ramalhete, o Cohen, varias authoridades, e a Fancelli prima-donna...

Palma no emtanto, nervoso, rufava com os dedos sobre a toalha, junto ao prato onde reluziam as libras. E foi o Ega que o animou, depois de relancear os olhos aos documentos por cima do hombro de Carlos:

— Recolha o bago, amigo Palma! Negocios são negocios, e o baguinho está ahi a arrefecer!

Então, ao palpar o ouro, Palma Cavallão commoveu-se. Palavra, caramba, se soubesse que se tratava d’um cavalheiro como o snr. Maia não tinha aceitado o artigo! Mas então!... Fôra o Eusebio Silveira, rapaz amigo, que lhe viera fallar. Depois o Salcede. E ambos com muitas lérias, e que era uma brincadeira, e que o Maia não se importava, e isto e aquillo, e muita promessa... Emfim deixára-se tentar. E tanto o Salcede como o Silveira se tinham portado pulhamente.

— Foi uma sorte que se escangalhasse a machina! Senão estava agora entalado, irra! E tinha desgosto, palavra, caramba, tinha desgosto! Mas acabou-se! O mal não foi grande, e sempre se fez alguma coisa pela porca da vida.

Vivamente, com um olhar, recontára o dinheiro na palma da mão: depois esvaziou a genebra, d’um trago consolado e ruidoso. Carlos guardára as cartas do Damaso, levantava já o fecho da porta. Mas voltou-se ainda, n’uma derradeira averiguação:

— Então esse meu amigo Eusebio Silveira tambem se metteu no negocio?...

O snr. Palma, muito lealmente, afiançou que o Eusebio lhe fallára apenas em nome do Damaso!

— O Eusebio, coitado, veio só como embaixador... Que o Damaso e eu não vamos muito na mesma bola. Ficámos exquisitos, desde uma péga em casa da Biscainha. Aqui p’ra nós, eu prometti-lhe dois estalos na cara, e elle embuchou. Passados tempos tornámos a fallar, quando eu fazia o High-life na Verdade. Elle veio-me pedir com bons modos, em nome do conde de Landim, para eu dar umas piadas catitas sobre um baile d’annos... Depois, quando o Damaso fez tambem annos, eu dei outra piadita. Elle pagou a ceia, ficámos mais calhados... Mas é traste... E lá o Eusebiosinho, coitado, veio só d’embaixador.

Sem uma palavra, sem um aceno ao Palma, Carlos virou as costas, deixou o cubiculo. O redactor da Corneta ainda baixou a cabeça para a porta; depois, sem se offender, voltou alegremente á genebra, dando outro puxão ás calças. Ega no emtanto accendia devagar o charuto.

— Vossê agora é que redige o jornal todo, Palma?

— O Silvestre, tambem...

— Que Silvestre?

— O que está com a Pingada. Vossê não conhece, creio eu. Um rapazola magro, que não é feio... Semsaborão, escreve uma palhada... Mas sabe coisas da sociedade. Esteve um tempo com a viscondessa de Cabellas, que elle chama a sua cabelluda... Que o Silvestre ás vezes tem graça! E sabe, sabe coisas da sociedade, assim maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices... Vossê nunca leu nada d’elle? Chôcho. Tenho sempre de lhe arranjar o estylo... N’este numero é que havia um folhetimzito meu, catita, cá á moderna, como eu gósto, alli com a piadinha realista a bater... Emfim fica para outra vez. E outra coisa, Ega, olhe que lhe agradeço. Quando quizer, eu e a Corneta ás ordens!

Ega estendeu-lhe a mão:

— Obrigado, digno Palma! E adiós!

— Pues vaya usted con Dios, Don Juanito! exclamou logo o benemerito homem com infinito salero.

Em baixo Carlos esperava, dentro do coupé.

— E agora? perguntou Ega, á portinhola.

— Agora salta para dentro e vamos liquidar com o Damaso...

Carlos já esboçára summariamente o plano d’essa liquidação. Queria mandar desafiar o Damaso como author comprovado d’um artigo de jornal que o injuriava. O duello devia ser á espada ou ao florete, um d’esses ferros cujo lampejo, na sala d’armas do Ramalhete, fazia empallidecer o Damaso. Se contra toda a verosimilhança elle se batesse, Carlos fazia-lhe algures, entre a bochecha e o ventre, um furo que o cravasse mezes na cama. Senão a unica explicação que Carlos aceitaria do snr. Salcede seria um documento em que elle escrevesse esta coisa simples: «Eu abaixo assignado declaro que sou um infame.» E para estes serviços Carlos contava com o Ega.

— Agradeço! agradeço! Vamos a isso! exclamava o Ega esfregando as mãos, faiscando de jubilo.

No emtanto, dizia elle, a etiqueta funebre reclamava outro padrinho; e lembrou o Cruges, moço passivo e malleavel. Mas era impossivel encontrar o maestro, porque invariavelmente a criada affirmava que o menino Victorino não estava em casa... Decidiram ir ao Gremio, mandar de lá um bilhete chamando o Cruges — «para um caso urgente d’amizade e d’arte».

— Com quê, dizia o Ega continuando a esfregar as mãos emquanto a tipoia trotava para a rua de S. Francisco, com quê, demolir o nosso Damaso?

— Sim, é necessario acabar com esta perseguição. Chega a ser ridiculo... E com uma estocada, ou com a carta, temos esse biltre aniquilado por algum tempo. Eu preferia a estocada. Senão deixo-te a ti arranjar os termos d’uma carta forte...

— Has de ter uma boa carta! disse o Ega com um sorriso de ferocidade.

No Gremio, depois de redigirem o bilhete ao Cruges, vieram esperar por elle na sala das Illustrações. O conde de Gouvarinho e Steinbroken conversavam de pé, no vão d’uma janella. E foi uma surpreza. O ministro da Filandia abriu os braços para o cher Maia, que elle não vira desde a partida d’Affonso para Santa Olavia. Gouvarinho acolheu o Ega risonhamente, reatando uma certa camaradagem que entre elles se formára n’esse verão, em Cintra: mas o aperto de mão a Carlos foi sêcco e curto. Já dias antes, tendo-se encontrado no Loreto, o Gouvarinho murmurára de leve e de passagem «um como está, Maia?» em que se sentia arrefecimento. Ah! já não eram essas effusões, essas palmadas enternecidas pelos hombros, dos tempos em que Carlos e a condessa fumavam cigarettes na cama da titi em Santa Isabel. Agora que Carlos abandonára a snr.ª condessa de Gouvarinho, a rua de S. Marçal e o commodo sofá em que ella cahia com um rumor de saias amarrotadas — o marido amuava, como abandonado tambem.

— Tenho tido saudade das nossas bellas discussões em Cintra! disse elle, dando ao Ega a palmada carinhosa nas costas que outr’ora pertencia ao Maia. Tivemol-as de primeira ordem!

Eram realmente «pégas tremendas» no pateo do Victor sobre litteratura, sobre religião, sobre moral... Uma noite mesmo tinham-se zangado por causa da divindade de Jesus.

— É verdade! acudiu o Ega. Vossê n’essa noite parecia ter ás costas uma opa de irmão do Senhor dos Passos!

O conde sorriu. Irmão do Senhor dos Passos não, graças a Deus! Ninguem melhor do que elle sabia que n’esses sublimes episodios do Evangelho reinava bastante lenda... Mas emfim eram lendas que serviam para consolar a alma humana. É o que elle objectára n’essa noite ao amigo Ega... Sentiam-se a philosophia e o racionalismo capazes de consolar a mãi que chora? Não. Então...

— Em todo o caso, tivemol-as brilhantes! concluiu elle olhando o relogio. E, eu confesso, uma discussão elevada sobre religião, sobre metaphysica, encanta-me... Se a politica me deixasse vagares dedicava-me á philosophia... Nasci para isso, para aprofundar problemas.

Steinbroken no emtanto, esticado na sua sobrecasaca azul, com um raminho d’alecrim ao peito, tomára as mãos de Carlos:

— Mais vous êtes encore devenu plus fort!... Et Affonso da Maia, toujours dans ses terres?... Est-ce qu’on ne va pas le voir un peu cet hiver?

E immediatamente lamentou não ter visitado Santa Olavia. Mas quê! a familia real installára-se em Cintra; elle fôra forçado a acompanhal-a, fazer a sua côrte... Depois necessitára ir de fugida a Inglaterra d’onde acabava de chegar, havia dias.

Sim, Carlos sabia, vira na Gazeta Illustrada...

— Vous avez lu ça? Oh oui, on a été très aimable, très aimable pour moi à la Gazette...

Tinham-lhe annunciado a partida, depois a chegada, com palavras de amizade particularmente bem escolhidas. Nem podia deixar de ser, dada esta affeição sincera que liga Portugal e a Filandia... «Mais enfin on avait été charmant, charmant!...»

— Seulement — ajuntou elle, sorrindo com finura e voltando-se tambem para o Gouvarinho — on a fait une petite erreur... On a dit que j’étais venu de Southampton par le Royal Mail... Ce n’est pas vrai, non! Je me suis embarqué à Bordeaux dans les Messageries. J’ai même pensé à écrire à Mr. Pinto, redacteur de la Gazette, qui est un charmant garçon... Puis, j’ai reflechi, je me suis dit: «Mon Dieu, on va croire que je veux donner une leçon d’exactitude à la Gazette, c’est très grave...» Alors, voilà, très prudemment, j’ai gardé le silence... Mais enfin c’est une erreur: je me suis embarqué à Bordeaux.

Ega murmurou que a Historia se encarregaria um dia de rectificar esse facto. O ministro sorria modestamente, fazendo um gesto em que parecia desejar, por polidez, que a Historia se não incommodasse. E então o Gouvarinho, que accendêra o charuto, espreitára outra vez o relogio, perguntou se os amigos tinham ouvido alguma coisa do ministerio e da crise.

Foi uma surpreza para ambos, que não tinham lido os jornaes... Mas, exclamou logo o Ega, crise porquê, assim em pleno remanso, com as camaras fechadas, tudo contente, um tão lindo tempo d’outono?

O Gouvarinho encolheu os hombros com reserva. Houvera na vespera, á noitinha, uma reunião de ministros; n’essa manhã o presidente do conselho fôra ao paço, fardado, determinado a «largar o poder»... Não sabia mais. Não conferenciára com os seus amigos, nem mesmo fôra ao seu Centro. Como n’outras occasiões de crise, conservára-se retirado, calado, esperando... Alli estivera toda a manhã, com o seu charuto, e a Revista dos Dois Mundos.

Isto parecia a Carlos uma abstenção pouco patriotica...

— Porque emfim, Gouvarinho, se os seus amigos subirem...

— Exactamente por isso, acudiu o conde com uma côr viva na face, não desejo pôr-me em evidencia... Tenho o meu orgulho, talvez motivos para o ter... Se a minha experiencia, a minha palavra, o meu nome são necessarios, os meus correligionarios sabem onde eu estou, venham pedir-m’os...

Calou-se, trincando nervosamente o charuto. E Steinbroken, perante estas coisas politicas, começou logo a retrahir-se para o fundo da janella, limpando os vidros da luneta, recolhido, já impenetravel, no grande recato neutral que competia á Filandia. Ega no emtanto não sahia do seu espanto. Mas porque cahia, porque cahia assim um governo com maioria nas camaras, socego no paiz, o apoio do exercito, a benção da Igreja, a protecção do Comptoir d’Escompte?...

O Gouvarinho correu devagar os dedos pela pera, e murmurou esta razão:

— O ministerio estava gasto.

— Como uma vela de sebo? exclamou Ega, rindo.

O conde hesitou. Como uma vela de sebo não diria... Sebo subentendia obtusidade... Ora n’este ministerio sobrava o talento. Incontestavelmente havia lá talentos pujantes...

— Essa é outra! gritou Ega atirando os braços ao ar. É extraordinario! N’este abençoado paiz todos os politicos têm immenso talento. A opposição confessa sempre que os ministros, que ella cobre d’injurias, têm, á parte os disparates que fazem, um talento de primeira ordem! Por outro lado a maioria admitte que a opposição, a quem ella constantemente recrimina pelos disparates que fez, está cheia de robustissimos talentos! De resto todo o mundo concorda que o paiz é uma choldra. E resulta portanto este facto supra-comico: um paiz governado com immenso talento, que é de todos na Europa, segundo o consenso unanime, o mais estupidamente governado! Eu proponho isto, a vêr: que como os talentos sempre falham, se experimentem uma vez os imbecis!

O conde sorria com bonhomia e superioridade a estes exageros de phantasista. E Carlos, ancioso por ser amavel, atalhou, accendendo o charuto no d’elle:

— Que pasta preferiria você, Gouvarinho, se os seus amigos subissem? A dos Estrangeiros, está claro...

O conde fez um largo gesto d’abnegação. Era pouco natural que os seus amigos necessitassem da sua experiencia politica. Elle tornára-se sobretudo um homem d’estudo e de theoria. Além d’isso não sabia bem se as occupações da sua casa, a sua saude, os seus habitos lhe permittiriam tomar o fardo do governo. Em todo o caso, decerto, a pasta dos Estrangeiros não o tentava...

— Essa, nunca! proseguiu elle, muito compenetrado. Para se poder fallar d’alto na Europa, como ministro dos Estrangeiros, é necessario ter por traz um exercito de duzentos mil homens e uma esquadra com torpedos. Nós, infelizmente, somos fracos... E eu, para papeis subalternos, para que venha um Bismarck, um Gladstone, dizer-me «ha de ser assim», não estou!... Pois não acha, Steinbroken?

O ministro tossiu, balbuciou:

— Certainement... C’est très grave... C’est excessivement grave...

Ega então affirmou que o amigo Gouvarinho, com o seu interresse geographico pela Africa, faria um ministro da Marinha iniciador, original, rasgado...

Toda a face do conde reluzia, escarlate de prazer.

— Sim, talvez... Mas eu lhe digo, meu querido Ega, nas colonias todas as coisas bellas, todas as coisas grandes estão feitas. Libertaram-se já os escravos; deu-se-lhes já uma sufficiente noção da moral christã; organisaram-se já os serviços aduaneiros... Emfim o melhor está feito. Em todo o caso ha ainda detalhes interessantes a terminar... Por exemplo, em Loanda... Menciono isto apenas como um pormenor, um retoque mais de progresso a dar. Em Loanda precisava-se bem um theatro normal como elemento civilisador!

N’esse momento um criado veio annunciar a Carlos — que o snr. Cruges estava em baixo, no portal, á espera. Immediatamente os dois amigos desceram.

— Extraordinario, este Gouvarinho! dizia o Ega na escada.

— E este, observou Carlos com um immenso desdem de mundano, é um dos melhores que ha na politica. Pensando mesmo bem, e mettendo a roupa branca em linha de conta, este é talvez o melhor!

Acharam o Cruges á porta, de jaquetão claro, embrulhando um cigarro. E Carlos pediu-lhe logo que voltasse a casa vestir uma sobrecasaca preta. O maestro arregalava os olhos.

— É jantar?

— É enterro.

E rapidamente, sem alludir a Maria, contaram ao maestro que o Damaso publicára n’um jornal, a Corneta do Diabo (cuja tiragem elles tinham supprimido, não sendo possivel por isso mostrar o numero immundo) um artigo em que a coisa mais dôce que se chamava a Carlos era pulha. Portanto Ega e elle Cruges iam a casa do Damaso pedir-lhe a honra ou a vida.

— Bem, rosnou o maestro. Que tenho eu a fazer?... Que eu d’essas coisas não entendo.

— Tens, explicou Ega, d’ir vestir uma sobrecasaca preta e franzir o sobr’olho. Depois vir commigo; não dizer nada; tratar o Damaso por «v. exc.ª»; assentar em tudo o que eu propuzer; e nunca desfranzir o sobr’olho nem despir a sobrecasaca...

Sem outra observação, Cruges partiu a cobrir-se de ceremonia e de negro. Mas no meio da rua retrocedeu:

— Ó Carlos, olha que eu fallei lá em casa. Os quartos do primeiro andar estão livres, e forrados de papel novo...

— Obrigado. Vai-te fazer sombrio, depressa!...

O maestro abalára, quando diante do Gremio estacou a todo o trote uma caleche. De dentro saltou o Telles da Gama que, ainda com a mão no fecho da portinhola, gritou aos dois amigos:

— O Gouvarinho? está lá em cima?

— Está... Novidade fresca?

— Os homens cahiram. Foi chamado o Sá Nunes!

E enfiou pelo pateo, correndo. Carlos e Ega continuaram devagar até ao portão do Cruges. As janellas do primeiro andar estavam abertas, sem cortinas. Carlos, erguendo para lá os olhos, pensava n’essa tarde das corridas em que elle viera no phaeton, de Belem, para vêr aquellas janellas: ia então escurecendo, por traz dos stores fechados surgira uma luz, elle contemplára-a como uma estrella inaccessivel... Como tudo passa!

Retrocederam para o Gremio. Justamente o Gouvarinho e Telles atiravam-se á pressa para dentro da caleche que esperára. Ega parou, deixou cahir os braços:

— Lá vae o Gouvarinho batendo para o Poder, a mandar representar a Dama das Camelias no sertão! Deus se amerceie de nós!

Mas o Cruges appareceu emfim de chapéo alto, entalado n’uma sobrecasaca solemne, com botins novos de verniz. Apilharam-se logo na tipoia estreita e dura. Carlos ia leval-os a casa do Damaso. E como queria ainda jantar nos Olivaes, esperaria por elles, para saber o resultado «do chinfrin», no jardim da Estrella, junto ao coreto.

— Sêde rapidos e medonhos!

A casa do Damaso, velha e d’um andar só, tinha um enorme portão verde, com um arame pendente que fez resoar dentro uma sineta triste de convento: e os dois amigos esperaram muito antes que apparecesse, arrastando as chinelas, o gallego achavascado que o Damaso (agora livre de Carlos e das suas pompas) já não trazia torturado em botins crueis de verniz. A um canto do pateo uma portinha abria sobre a luz d’um quintal, que parecia ser um deposito de caixotes, de garrafas vazias e de lixo.

O gallego, que reconhecera o snr. Ega, conduziu-os logo, por uma escadinha esteirada, a um corredor largo, escuro, com cheiro a môfo. Depois, batendo o chinelo, correu ao fundo, onde alvejava a claridade d’uma porta entreaberta. Quasi immediatamente Damaso gritou de lá:

— Ó Ega, é você? Entre para aqui, homem! Que diabo!... Eu estou-me a vestir...

Embaraçado com estes brados de intimidade e tanta effusão, Ega ergueu a voz da sombra do corredor, gravemente:

— Não tem duvida, nós esperamos...

O Damaso insistia, á porta, em mangas de camisa, cruzando os suspensorios:

— Venha você, homem! Que diabo, eu não tenho vergonha, já estou de calças!

— Ha aqui uma pessoa de ceremonia, gritou o Ega para findar.

A porta ao fundo cerrou-se, o gallego veio abrir a sala. O tapete era exactamente igual aos dos quartos de Carlos no Ramalhete. E em redor abundavam os vestigios da antiga amizade com o Maia: o retrato de Carlos a cavallo, n’um vistoso caixilho de flôres em faiança: uma das colchas da India das senhoras Medeiros, branca e verde, enroupando o piano, arranjada por Carlos com alfinetes: e sobre um contador hespanhol, debaixo de redoma, um sapatinho de setim de mulher, novo, que o Damaso comprára no Serra, por ter ouvido um dia a Carlos que «em todo o quarto de rapaz deve apparecer, discretamente disposta, alguma reliquia d’amor...»

Sob estes retoques de chic, dados á pressa sob a influencia do Maia, impertigava-se a sólida mobilia do pai Salcede, de mogno e velludo azul; a console de marmore, com um relogio de bronze dourado, onde Diana acariciava um galgo; o grande e dispendioso espelho, tendo entalado no caixilho uma fila de bilhetes de visita, de retratos de cantoras, de convites para soirées. E Cruges ia examinar estes documentos, quando os passos alegres do Damaso soaram no corredor. O maestro correu logo a perfilar-se ao lado do Ega, diante do canapé de velludo, teso, commodo, com o seu chapéo alto na mão.

Ao vêl-o, o bom Damaso, que se abotoára todo n’uma sobrecasaca azul, florida por um botão de camelia, atirou risonhamente os braços ao ar:

— Então esta é que é a pessoa de ceremonia? Sempre vocês têm coisas! E eu a pôr sobrecasaca... Por pouco que não lhe afinfo com o habito de Christo!...

Ega atalhou, muito sério:

— O Cruges não é de ceremonia, mas o motivo que aqui nos traz é delicado e grave, Damaso.

Damaso arregalou os olhos, reparando emfim n’aquelle estranho modo dos seus amigos, ambos de negro, seccos, tão solemnes. E recuou, todo o sorriso se lhe apagou na face.

— Que diabo é isso? Sentem-se, sentem-se vocês...

A voz apagava-se-lhe tambem. Pousado á borda d’uma poltrona baixa, junto d’uma mesa coberta d’encadernações ricas, com as mãos nos joelhos, ficou esperando, n’uma anciedade.

— Nós vimos aqui, começou Ega, em nome do nosso amigo Carlos da Maia...

Uma brusca onda de sangue cobriu a face rechonchuda do Damaso até á risca do cabello encaracolado a ferro. E não achou uma palavra, attonito, suffocado, esfregando estupidamente os joelhos.

Ega proseguiu, lento, direito no canapé:

— O nosso amigo Carlos da Maia queixa-se de que o Damaso publicou, ou fez publicar, um artigo extremamente injurioso para elle e para uma senhora das relações d’elle na Corneta do Diabo...

— Na Corneta, eu? acudiu o Damaso, balbuciando. Que Corneta? Nunca escrevi em jornaes, graças a Deus! Ora essa, a Corneta!...

Ega, muito friamente, tirou do bolso um masso de papeis. E veio collocal-os um por um, ao lado do Damaso, na mesa, sobre um magnifico volume da Biblia de Doré.

— Aqui está a sua carta remettendo ao Palma Cavallão o rascunho do artigo... Aqui está, pela sua letra igualmente, a lista das pessoas a quem se devia mandar a Corneta, desde o Rei até á Fancelli... Além d’isso nós temos as declarações do Palma. O Damaso é não só o inspirador, mas materialmente o auctor do artigo... O nosso amigo Carlos da Maia exige, pois, como injuriado, uma reparação pelas armas...

Damaso deu um salto da poltrona, tão arrebatado — que involuntariamente Ega recuou, no receio d’uma brutalidade. Mas já o Damaso estava no meio da sala, esgazeado, com os braços tremulos no ar:

— Então o Carlos manda-me desafiar? A mim?... Que lhe fiz eu? Elle a mim é que me pregou uma partida!... Foi elle, vocês sabem perfeitamente que foi elle!...

E desabafou, n’um prodigioso fluxo de loquacidade, atirando palmadas ao peito, com os olhos marejados de lagrimas. Fôra Carlos, Carlos, que o desfeitiára a elle, mortalmente! Durante todo o inverno tinha-o perseguido para que elle o apresentasse a uma senhora brazileira muito chic, que vivia em Paris, e que lhe fazia olho... E elle, bondoso como era, promettia, dizia: «Deixa estar, eu te apresento!» Pois, senhores, que faz Carlos? Aproveita uma occasião sagrada, um momento de luto, quando elle Damaso fôra ao Norte por causa da morte do tio, e mette-se dentro da casa da brazileira... E tanto intriga, que leva a pobre senhora a fechar-lhe a sua porta, a elle, Damaso, que era intimo do marido, intimo de tu! Caramba, elle é que devia mandar desafiar Carlos! Mas não! fôra prudente, evitára o escandalo por causa do snr. Affonso da Maia... Queixára-se de Carlos, é verdade... Mas no Gremio, na Casa Havaneza, entre rapaziada amiga... E no fim Carlos préga-lhe uma d’estas!

— Mandar-me desafiar, a mim! A mim, que todo o mundo conhece!...

Calou-se, engasgado. E Ega, estendendo a mão, observou placidamente que se desviavam do ponto vivo da questão. O Damaso concebera, rascunhára, pagára o artigo da Corneta. Isso não o negava, nem o podia negar: as provas estavam alli, abertas sobre a mesa: elles tinham além d’isso a declaração do Palma...

— Esse desavergonhado! gritou o Damaso, levado n’outra rajada d’indignação que o fez redemoinhar, estonteado, tropeçando nos moveis. Esse descarado do Palma! Com esse é que eu me quero vêr!... Lá a questão com o Carlos não vale nada, arranja-se, somos todos rapazes finos... Com o Palma é que é! Esse traidor é que eu quero rachar! Um homem a quem eu tenho dado ás meias libras, aos sete mil reis! E ceias, e tipoias! Um ladrão que pediu o relogio ao Zeferino para figurar n’um baptisado, e pôl-o no prégo!... E faz-me uma d’estas!... Mas hei de escavacal-o! Onde é que você o viu, Ega? Diga lá, homem! Que quero ir procural-o, hoje mesmo, correl-o a chicotadas... Traições não, não admitto a ninguem!

Ega, com a tranquillidade paciente de quem sente a prêsa certa, lembrou de novo a inutilidade d’aquellas divagações:

— Assim nunca acabamos, Damaso... O nosso ponto é este: o Damaso injuriou Carlos da Maia: ou se retracta publicamente d’essa injuria, ou dá uma reparação pelas armas...

Mas o Damaso, sem escutar, appellava desesperadamente para o Cruges, que se não movera do sofá de velludo, esfregando, um contra o outro, com um ar arripiado e de dôr, os dois sapatos novos de verniz.

— Aquelle Carlos! Um homem que se dizia meu amigo intimo! Um homem que fazia de mim tudo! Até lhe copiava coisas... Você bem viu, Cruges. Diga! Falle, homem! Não sejam vocês todos contra mim!... Até ás vezes ia á alfandega despachar-lhe caixotes...

O maestro baixava os olhos, vermelho, n’um infinito mal-estar. E Ega, por fim, já farto, lançou uma intimação derradeira:

— Em resumo, Damaso, desdiz-se ou bate-se?

— Desdizer-me? tartamudeou o outro, impertigando-se, n’um penoso esforço de dignidade, a tremer todo. E de quê? Ora essa! É boa! Eu sou lá homem que me desdiga!

— Perfeitamente, então bate-se...

Damaso cambaleou para traz, desvairado:

— Qual bater-me! Eu sou lá homem que me bata! Eu cá é a sôcco. Que venha para cá, não tenho medo d’elle, arrombo-o...

Dava pulinhos curtos de gordo, através do tapete, com os punhos fechados e em riste. E queria Carlos alli para o escavacar! Não lhe faltava mais senão bater-se... E então duellos em Portugal, que acabavam sempre por troça!

Ega no emtanto, como se a sua missão estivesse finda, abotoára a sobrecasaca e recolhia os papeis espalhados sobre a Biblia. Depois, serenamente, fez a ultima declaração de que fôra incumbido. Como o snr. Damaso Salcede recusava retractar-se e rejeitava tambem uma reparação pelas armas, Carlos da Maia prevenia-o de que em qualquer parte que o encontrasse d’ahi por diante, fosse uma rua, fosse um theatro, lhe escarraria na face...

— Escarrar-me! berrou o outro, livido, recuando, como se o escarro já viesse no ar.

E de repente, espavorido, coberto de bagas de suor, precipitou-se sobre o Ega, agarrando-lhe as mãos, n’uma agonia:

— Ó João, ó João, tu, que és meu amigo, por quem és, livra-me d’esta entaladella!

Ega foi generoso. Desprendeu-se d’elle, empurrou-o brandamente para a poltrona, calmando-o com palmadinhas fraternaes pelo hombro. E declarou que, desde que Damaso appellava para a sua amizade, desapparecia o enviado de Carlos necessariamente exigente, ficava só o camarada, como no tempo dos Cohens e da villa Balzac. Queria pois o amigo Damaso um conselho? Era assignar uma carta affirmando que tudo o que fizera publicar na Corneta sobre o snr. Carlos da Maia e certa senhora fôra invenção falsa e gratuita. Só isto o salvava. D’outro modo, Carlos um dia, no Chiado, em S. Carlos, escarrava-lhe na cara. E, dado esse desastre, Damasosinho, a não querer ser apontado em Lisboa como um incomparavel cobarde, tinha de se bater á espada ou á pistola...

— Ora, em qualquer d’esses casos, você era um homem morto.

O outro escutava, esbarrondado no fundo do assento de velludo, com a face emparvecida para o Ega. Alargou mollemente os braços, murmurou da profundidade do seu terror:

— Pois sim, eu assigno, João, eu assigno...

— É o que lhe convém... Arranje então papel. Você está perturbado, eu mesmo redijo.

Damaso ergueu-se, com as pernas frouxas, atirando um olhar tonto e vago por sobre os moveis:

— Papel de carta? É para carta?

— Sim, está claro, uma carta ao Carlos!

Os passos do desgraçado perderam-se emfim no corredor, pesados e succumbidos.

— Coitado! suspirou o Cruges levando de novo, com um ar de arripio, a mão aos sapatos.

Ega lançou-lhe um chut severo. Damaso voltava com o seu sumptuoso papel de monogramma e corôa. Para envolver em silencio e segredo aquelle transe amargo, cerrou o reposteiro; e o vasto pano de velludo, desdobrando-se, mostrou o brazão de Salcede, onde havia um leão, uma torre, um braço armado, e por baixo, a letras d’ouro, a sua formidavel divisa: SOU FORTE! Immediatamente Ega afastou os livros na mesa, abancou, atirou largamente ao papel a data e a adresse do Damaso...

— Eu faço o rascunho, você depois copía...

— Pois sim! gemeu o outro, de novo, aluido na poltrona, passando o lenço pelo pescoço e pela face.

Ega no emtanto escrevia muito lentamente, com amor. E n’aquelle silencio, que o embaraçava, Cruges terminou por se erguer, foi coxeando até ao espelho onde se desenrolavam, entalados na frincha do caixilho, bilhetes e photographias. Eram as glorias sociaes do Damaso, os documentos do chic a valer que era a paixão da sua vida: bilhetes com titulos, retratos de cantoras, convites para bailes, cartas de entrada no Hippodromo, diplomas de membro do Club Naval, de membro do Jockey Club, de membro do Tiro aos Pombos: — até pedaços cortados de jornaes annunciando os annos, as partidas, as chegadas do snr. Salcede, «um dos nossos mais distinctos sportmen».

Desventuroso sportman! Aquella folha de papel, onde o Ega rascunhava, ia-o enchendo pouco a pouco d’um terror angustioso. Santo Deus! Para que eram tantos apuros n’uma carta ao Carlos, um rapaz intimo? Uma linha bastaria: — «Meu querido Carlos, não te zangues, desculpa, foi brincadeira.» Mas não! Toda uma pagina de letra miuda com entrelinhas! Já mesmo Ega voltava a folha, molhava a penna, como se d’ella devessem escorrer sem cessar coisas humilhadoras! Não se conteve, estendeu a face por sobre a mesa, até o papel:

— Ó Ega, isso não é para publicar, pois não é verdade?

Ega reflectiu, com a penna no ar:

— Talvez não... Estou certo que não. Naturalmente Carlos, vendo o seu arrependimento, deixa isto esquecido no fundo d’uma gaveta.

Damaso respirou com allivio. Ah, bem! Isso parecia-lhe mais decente entre amigos! Que lá isso, mostrar o seu arrependimento, até elle desejava! Com effeito o artigo fôra uma tolice... Mas então! Em questões de mulheres era assim, assomado, um leão...

Abanou-se com o lenço, desanuviado, recomeçando a achar sabôr á vida. Findou mesmo por accender um charuto, levantar-se sem rumor, acercar-se do Cruges — que, coxeando através das curiosidades da sala, encalhára sobre o piano e sobre os livros de musica, com o pé dorido no ar.

— Então tem-se feito alguma coisa de novo, Cruges?

Cruges, muito vermelho, resmungou que não tinha feito nada.

Damaso ficou alli um momento, a mascar o charuto. Depois, atirando um olhar inquieto á mesa onde o Ega rascunhava interminavelmente, murmurou, sobre o hombro do maestro:

— Uma entaladella assim! Eu é por causa da gente conhecida... Senão não me importava! Mas veja você tambem se arranja as coisas e se o Carlos deixa aquillo na gaveta...

Justamente Ega erguera-se com o papel na mão e caminhava para o piano, devagar, relendo baixo.

— Ficou optimo, salva tudo! exclamou por fim. Vai em fórma de carta ao Carlos, é mais correcto. Você depois copía e assigna. Ouça lá: «Exc.mo snr....» Está claro, você dá-lhe excellencia, porque é um documento d’honra... «Exc.mo snr. — Tendo-me v. exc.ª, por intermédio dos seus amigos João da Ega e Victorino Cruges, manifestado a indignação que lhe causára um certo artigo da Corneta do Diabo de que eu escrevi o rascunho e de que promovi a publicação, venho declarar francamente a v. exc.ª que esse artigo, como agora reconheço, não continha senão falsidades e incoherencias: e a minha desculpa unica está em que o compuz e enviei á redacção da Corneta no momento de me achar no mais completo estado d’embriaguez...»

Parou. E nem se voltou para o Damaso, que deixára pender os braços, rolar o charuto no tapete, varado. Foi ao Cruges que se dirigiu, entalando o monoculo:

— Achas talvez forte?... Pois eu redigi assim por ser justamente a unica maneira de resalvar a dignidade do nosso Damaso.

E desenvolveu a sua idéa, mostrando quanto era generosa e habil — emquanto o Damaso, aparvalhado, apanhava o charuto. Nem Carlos nem elle queriam que o Damaso n’uma carta (que se podia tornar publica) declarasse «que calumniára por ser calumniador». Era necessario, pois, dar á calumnia uma d’essas causas fortuitas e ingovernaveis que tiram a responsabilidade ás acções. E que melhor, tratando-se d’um rapaz mundano e femeeiro, do que estar bebedo?... Não era vergonha para ninguem embebedar-se... O proprio Carlos, todos elles alli, homens de gosto e de honra, se tinham embebedado. Sem remontar aos romanos, onde isso era uma hygiene e um luxo, muitos grandes homens na Historia bebiam de mais. Em Inglaterra era tão chic, que Pitt, Fox e outros nunca fallavam na Camara dos communs senão aos bordos. Musset, por exemplo, que bebedo! Emfim a Historia, a Litteratura, a Politica, tudo fervilhava de piteiras... Ora, desde que o Damaso se declarava borracho, a sua honra ficava salva. Era um homem de bem que apanhára uma carraspana e que commettera uma indiscrição... Nada mais!

— Pois não te parece, Cruges?

— Sim, talvez, que estava bebedo, murmurou o maestro timidamente.

— Pois não lhe parece a você, francamente, Damaso?

— Sim, que estava bebedo, balbuciou o desgraçado.

Immediatamente Ega retomou a leitura: «Agora que voltei a mim reconheço, como sempre reconheci e proclamei, que é v. exc.ª um caracter absolutamente nobre; e as outras pessoas, que n’esse momento d’embriaguez ousei salpicar de lama, são-me só merecedoras de veneração e louvor. Mais declaro que se por acaso tornasse a succeder soltar eu alguma palavra offensiva para v. exc.ª, não lhe devia dar v. exc.ª, ou aquelles que a escutassem, mais importancia do que a que se dá a uma involuntaria baforada d’alcool — pois que, por um habito hereditario que reapparece frequentemente na minha familia, me acho repetidas vezes em estado de embriaguez... De v. exc.ª, com toda a estima etc....» Rodou sobre os tacões, pousou o rascunho na mesa — e accendendo o charuto ao lume do Damaso, explicou com amizade, com bonhomia, o que o determinára áquella confissão de bebedeira incorrigivel e palreira. Fôra ainda o desejo de garantir a tranquillidade do «nosso Damaso». Attribuindo todas as imprudencias em que pudesse cahir a um habito d’intemperança hereditaria, de que tinha tão pouca culpa como de ser baixo e gordo, o Damaso punha-se para sempre ao abrigo das provocações de Carlos...

— Você, Damaso, tem genio, tem lingua... Um dia esquece-se, e no Gremio, sem querer, na cavaqueira depois do theatro, lá lhe escapa uma palavra contra Carlos... Sem esta precaução, ahi recomeça a questão, o escarro, o duello... Assim já Carlos não se póde queixar. Lá tem a explicação que tudo cobre, uma gotta de mais, a gotta tomada por impulso de borrachice hereditaria... Você alcança d’este modo a coisa que mais se appetece n’este nosso seculo XIX — a irresponsabilidade!... E depois para a sua familia não é vergonha, porque você não tem familia. Em resumo, convem-lhe?

O pobre Damaso escutava-o, esmagado, enervado, sem comprehender aquellas roncantes phrases sobre «a hereditariedade», sobre «o seculo XIX». E um unico sentimento vivo o dominava, acabar, reentrar na sua paz pachorrenta, livre de floretes e de escarros. Encolheu os hombros, sem força:

— Que lhe hei de eu fazer?... Para evitar fallatorios.

E abancou, metteu um bico novo na penna, escolheu uma folha de papel em que o monogramma luzia mais largo, começou a copiar a carta na sua maravilhosa letra, com finos e grossos, d’uma nitidez de gravura em aço.

Ega no emtanto, de sobrecasaca desabotoada e charuto fumegante, rondava em torno da mesa, seguindo sôfregamente as linhas que traçava a mão applicada do Damaso, ornada d’um grosso annel d’armas. E durante um momento atravessou-o um susto... Damaso parára, com a penna indecisa. Diabo! Acordaria emfim, no fundo de toda aquella gordura balofa, um resto escondido de dignidade, de revolta?... Damaso alçou para elle os olhos embaciados:

— Embriaguez é com n ou com m?

— Com um m, um m só, Damaso! acudiu Ega affectuosamente. Vai muito bem... Que linda letra você tem, caramba!

E o infeliz sorriu á sua propria letra — pondo a cabeça de lado, no orgulho sincero d’aquella soberba prenda.

Quando findou a cópia foi Ega que conferiu, pôz a pontuação. Era necessario que o documento fosse chic e perfeito.

— Quem é o seu tabellião, Damaso?

— O Nunes, na rua do Ouro... Porque?

— Oh! nada. É um detalhe que n’estes casos se pergunta sempre. Mera ceremonia... Pois amigos, como papel, como letra, como estylo, está d’appetite a cartinha!

Metteu-a logo n’um enveloppe onde rebrilhava a divisa «Sou Forte», sepultou-a preciosamente no interior da sobrecasaca. Depois, agarrando o chapéo, batendo no hombro do Damaso com uma familiaridade folgazã e leve:

— Pois, Damaso, felicitemo-nos todos! Isto podia acabar fóra de portas, n’uma poça de sangue! Assim é uma delicia. E adeus... Não se incommode você. Então o grande sarau sempre é na segunda-feira? Vai lá tudo, hein! Não venha cá, homem... Adeus!

Mas o Damaso acompanhou-os pelo corredor, mudo, murcho, cabisbaixo. E no patamar reteve o Ega, desafogou outra inquietação que o assaltára:

— Isso não se mostra a ninguem, não é verdade, Ega?

Ega encolheu os hombros. O documento pertencia a Carlos... Mas emfim Carlos era tão bom rapaz, tão generoso!

Esta incerteza, que o ficava minando, arrancou um suspiro ao Damaso:

— E chamei eu áquelle homem meu amigo!

— Tudo na vida são desapontamentos, meu Damaso! foi a observação do Ega, saltando alegremente os degraus.

Quando o calhambeque parou no Jardim da Estrella, Carlos já esperava ao portão de ferro, n’uma impaciencia, por causa do jantar na Toca. Enfiou logo para dentro atropellando o maestro, bradou ao cocheiro que voasse ao Loreto.

— E então, meus senhores, temos sangue?

— Temos melhor! exclamou Ega no barulho das rodas, floreando o enveloppe.

Carlos leu a carta do Damaso. E foi um immenso assombro:

— Isto é incrivel!... Chega a ser humilhante para a natureza humana!

— O Damaso não é o genero humano, acudiu Ega. Que diabo esperavas tu? Que elle se batesse?

— Não sei, corta o coração... Que se ha de fazer a isto?

Segundo o Ega não se devia publicar; seria crear curiosidade e escandalo em torno do artigo da Corneta que custára trinta libras a suffocar. Mas convinha conservar aquillo como uma ameaça pairando sobre o Damaso, tornando-o para longos annos nullo e inoffensivo.

— Eu estou mais que vingado, concluiu Carlos. Guarda o papel: é obra tua, usa-o como quizeres...

Ega guardou-o com prazer, emquanto Carlos, batendo no joelho do maestro, queria saber como elle se portára n’aquelle lance d’honra...

— Pessimamente! gritou Ega. Com expressões de compaixão; sem linha nenhuma; estendido por cima do piano; agarrando com a mão no sapato...

— Pudera! exclamou Cruges desafogando emfim. Vocês dizem-me que me ponha de ceremonia, calço uns sapatos novos de verniz, estive toda a tarde n’um tormento!

E não se conteve mais, arrancou o sapato, pallido, com um medonho suspiro de consolação.

No dia seguinte, depois do almoço, emquanto uma chuva grossa alagava os vidros sob as lufadas de sudoeste, Ega, no fumoir, enterrado n’uma poltrona, com os pés para o lume, relia a carta do Damaso: e pouco a pouco subia n’elle a mágoa de que esse colossal documento de cobardia humana, tão interessante para a physiologia e para a arte, ficasse para sempre inaproveitado no escuro d’uma gaveta!... Que effeito, que soberbo effeito se aquella confissão do «nosso distincto sportman» surgisse um dia na Gazeta Illustrada ou no novo jornal A Tarde, nas columnas do High-life, sob este titulo — Pendencia d’honra! E que lição, que meritorio acto de justiça social!

Todo esse verão, Ega detestára o Damaso, certo, desde Cintra, de que elle era o amante da Cohen — e de que, por esse imbecil de grossas nadegas, esquecera ella para sempre a villa Balzac, as manhãs na colcha de setim preto, os seus beijos delicados, os versos de Musset que lhe lia, os lunchesinhos de perdiz, tantos encantos poeticos. Mas o que lhe tornára o Damaso intoleravel — fôra a sua farofia radiante de homem preferido; o ar de posse com que passeava ao lado de Rachel pelas estradas de Cintra, vestido de flanella branca; os segredinhos que tinha sempre a cochichar-lhe sobre o hombro; e o acênosinho desdenhoso, com um dedo, que lhe atirava de lado, ao passar, a elle proprio, Ega... Era odioso! Odiava-o: e através d’esse odio ruminára sempre o desejo d’uma vingança — pancada, deshonra ou ridiculo que tornasse o snr. Salcede, aos olhos de Rachel, desprezivel, grutesco, chato como um balão furado...

E agora alli tinha essa carta providencial, em que o homem solemnemente se declarava bebedo. «Sou um bebedo, estou sempre bebedo»! Assim o dizia, no seu papel de monogramma d’ouro, o snr. Salcede, n’um medo vil de cão gôso, rastejando com o rabo entre as pernas diante de qualquer pau!... Nenhuma mulher resistiria a isto... E havia d’encafuar tão decisivo documento no fundo d’um gavetão?

Publical-o na Gazeta Illustrada ou na Tarde não podia, infelizmente, por interesse de Carlos. Mas porque o não mostraria «em segredo», como uma curiosidade psychologica, ao Craft, ao marquez, ao Telles, ao Gouvarinho, ao primo do Cohen? Podia mesmo confiar uma cópia ao Taveira que, resentido eternamente da questão com o Damaso em casa da Lola Gorda, correria a lêl-a em segredo na Casa Havaneza, no bilhar do Gremio, no Silva, nos camarins de cantoras... E ao fim de uma semana a snr.ª D. Rachel saberia inevitavelmente que o escolhido do seu coração era por confissão propria um calumniador e um bebedo!... Delicioso!

Tão delicioso que não hesitou mais, subiu ao quarto para copiar a carta do Damaso. Mas quasi immediatamente um criado trouxe-lhe um telegramma de Affonso da Maia annunciando que chegava no dia seguinte ao Ramalhete. Ega teve de sahir, telegraphar para os Olivaes, avisar Carlos.

Carlos appareceu n’essa noite, já tarde, transido de frio, com um monte de bagagens — porque abandonára definitivamente os Olivaes. Maria Eduarda regressava tambem a Lisboa, para o primeiro andar da rua de S. Francisco, tomado agora por seis mezes, tapetado de novo pela mãi Cruges. E Carlos vinha muito impressionado, com profundas saudades da Toca. Depois de cear, ao fogão, acabando o charuto, relembrou infindavelmente esses dias alegres, a sua casinhola, o banho da manhã tomado dentro d’uma dorna, a festa do deus Tchi, as guitarradas do marquez, as longas cavaqueiras ao café com as janellas abertas e as borboletas voando em torno aos candieiros... Fóra as cordas d’agua, sob o vento d’inverno, batiam os vidros na mudez da noite negra. Ambos terminaram por ficar calados, pensativos, com os olhos no lume.

— Quando esta tarde dei pela ultima vez uma volta na quinta, disse por fim Carlos, já não havia uma unica folha nas arvores... Tu não sentes sempre uma grande melancolia n’estes fins de outono?...

— Immensa! murmurou Ega lugubremente.

Ao outro dia a manhã clareava, limpa e branca, quando Ega e Carlos, ainda estremunhados e tiritando, se apearam em Santa Apolonia. O comboio acabava justamente de chegar; e viram logo, entre o rumor de gente que se escoava das portinholas abertas, Affonso, com o seu velho capote de gola de velludo, apegado a uma bengala, debatendo-se entre homens de boné agaloado que lhe offereciam o Hotel Terreirense e a Pomba d’Ouro. Atraz Mr. Antoine, o chefe francez, grave, de chapéo alto, trazia o cesto em que viajára o reverendo Bonifacio.

Carlos e Ega acharam Affonso mais acabado, mais pesado. Todavia gabaram-lhe muito, entre os primeiros abraços, a sua robustez de patriarcha. Elle encolheu os hombros, queixando-se de ter sentido desde o fim do verão vertigens, um cansaço vago...

— Vocês é que estão excellentes, acrescentou abraçando outra vez Carlos e sorrindo ao Ega. E que ingratidão foi essa tua, John, mettido aqui todo um verão sem me ir visitar?... Que tens tu feito? Que têm vocês feito?

— Mil coisas! acudiu Ega alegremente. Planos, ideias, titulos... Temos sobretudo o projecto d’uma Revista, um apparelho d’educação superior que vamos montar com uma força de mil cavallos!... Emfim logo se lhe conta tudo ao almoço.

E ao almoço, com effeito, para justificarem as suas occupações em Lisboa, fallaram da Revista como se ella já estivesse organisada e os artigos a imprimir na officina — tanta foi a precisão com que lhe descreveram as tendencias, a feição critica, as linhas de pensamento sobre que ella devia rolar... Ega já preparára um trabalho para o primeiro numero — A capital dos portuguezes. Carlos meditava uma série d’ensaios á ingleza, sob este titulo — Porque falhou entre nós o systema constitucional. E Affonso escutava, encantado com aquellas bellas ambições de lucta, querendo partilhar da grande obra como socio capitalista... Mas Ega entendia que o snr. Affonso da Maia devia descer á arena, lançar tambem a palavra do seu saber e da sua experiencia. Então o velho riu. O quê! compôr prosa, elle, que hesitava para traçar uma carta ao feitor? De resto o que teria a dizer ao seu paiz, como fructo da sua experiencia, reduzia-se pobremente a tres conselhos em tres phrases: aos politicos — «menos liberalismo e mais caracter»; aos homens de letras — «menos eloquencia e mais ideia»; aos cidadãos em geral — «menos progresso e mais moral».

Isto enthusiasmou o Ega! Justamente, ahi estavam as verdadeiras feições da reforma espiritual que a Revista devia prégar! Era necessario tomal-as como moto symbolico, inscrevel-as em letras gothicas no frontispicio — porque Ega queria que a Revista fosse original logo na capa. E então a conversação desviou para o exterior da Revista — Carlos pretendendo que fosse azul-claro com typo Renascença, Ega exigindo uma cópia exacta da Revista dos Dois Mundos, n’uma nuance mais côr de canario. E, levados pela sua imaginação de meridionaes, já não era só para agradar a Affonso da Maia que iam levantando e dando fórma áquelle confuso plano.

Carlos exclamava para o Ega, com os olhos já apaixonados:

— Isto agora é sério. Precisamos arranjar immediatamente a casa para a redacção!

Ega bracejava:

— Pudera! E moveis! E machinas!

Toda a manhã, no escriptorio d’Affonso, azafamados, com papel e lapis, se occuparam em fixar uma lista de collaboradores. Mas já as difficuldades surgiam. Quasi todos os escriptores suggeridos desagradavam ao Ega, por lhes faltar no estylo aquelle requinte plastico e parnasiano de que elle desejava que a Revista fosse o impeccavel modelo. E a Carlos alguns homens de letras pareciam impossiveis — sem querer confessar que n’elles lhe repugnava exclusivamente a falta de linha e o fato mal feito...

Uma coisa porém ficou decidida: a casa da redacção. Devia ser mobilada luxuosamente, com sofás do consultorio de Carlos e algum bric-à-brac da Toca: e sobre a porta (ornada d’um guarda-portão de libré) a taboleta de verniz preto, com Revista de Portugal em altas letras a ouro. Carlos sorria, esfregava as mãos, pensando na alegria de Maria ao saber esta decisão que o lançava, como era o desejo d’ella, na actividade, n’uma lucta interessante d’ideias. Ega, esse, via já a brochura côr de canario aos montões nas vitrines dos livreiros, discutida nas soirées do Gouvarinho, folheada na camara com espanto pelos politicos...

— Vai-se remexer Lisboa este inverno, snr. Affonso da Maia! gritou elle atirando um gesto immenso até ao tecto.

E o mais contente era o velho.

Depois de jantar, Carlos pediu ao Ega para ir com elle á rua de S. Francisco (onde Maria se installára n’essa manhã) levarem a nova da grande obra. Mas encontraram á porta uma carroça descarregando malas; e a senhora, contou o Domingos que ajudava os carroceiros, estava ainda jantando a um canto da mesa e sem toalha. Com tanta confusão na casa, Ega não quiz subir.

— Até logo, disse elle. Vou talvez procurar o Simão Craveiro e fallar-lhe da Revista.

Subiu lentamente o Chiado, leu os telegrammas na Casa Havaneza. Depois á esquina da rua Nova da Trindade, um homem rouco, sumido n’um paletot, offereceu-lhe uma «senhasinha». Outros, em volta, gritavam na sombra do Hotel Alliança:

— Bilhete para o Gymnasio! Mais barato... Bilhete para o Gymnasio! Quem vende?...

Havia um cruzar animado de carruagens com librés. Os bicos de gaz do Gymnasio tinham um fulgor de festa. E Ega deu de rosto com o Craft que atravessava do lado do Loreto, de gravata branca e flôr no paletot.

— Que é isto?

— Festa de beneficencia, não sei, disse o Craft. Uma coisa promovida por senhoras, a baroneza d’Alvim mandou-me um bilhete... Venha você d’ahi ajudar-me a levar esta caridade ao Calvario.

E na esperança de flirtar com a Alvim, Ega comprou logo uma senha. No perystilo do Gymnasio encontraram Taveira passeando e fumando solitariamente, á espera que findasse a primeira comedia, o Fructo prohibido. Então Craft propôz «botequim e genebra».

— E que ha do ministerio? perguntou elle, apenas abancaram a um canto.

O Taveira não sabia. Todos esses dois longos dias se intrigára desesperadamente. O Gouvarinho queria as Obras Publicas: o Videira tambem. E fallava-se d’uma scena terrivel por causa de syndicatos, em casa do presidente do conselho, o Sá Nunes, que terminára por dar um murro na mesa, gritar: «Irra! que isto não é o pinhal d’Azambuja!»

— Canalha! rosnou Ega com odio.

Depois fallaram do Ramalhete, da volta d’Affonso, da reapparição de Carlos. Craft louvou Deus por haver outra vez n’esse inverno uma casa com fogões, onde se passasse uma hora civilisada e intelligente.

Taveira acudiu com o olho brilhante:

— Diz que vamos ter um centrosinho muito mais interessante ainda, na rua de S. Francisco! Foi o marquez que me disse. Madame Mac-Gren vai receber.

Craft não sabia mesmo que ella já tivesse recolhido da Toca.

— Voltou hoje, disse o Ega. Você ainda não a conhece?... Encantadora.

— Creio que sim.

O Taveira vira-a de relance no Chiado. Parecera-lhe uma belleza. E um ar tão sympathico!

— Encantadora! repetiu Ega.

Mas o Fructo prohibido findára, os homens enchiam o peristylo, n’um rumor lento, accendendo os cigarros. E Ega, deixando o Craft e Taveira com a genebra, correu á plateia para descobrir o camarote da Alvim.

Mal erguera porém a cortina e assestára o monoculo — avistou defronte, na primeira ordem, a Cohen, toda de preto, com um grande leque de rendas brancas; por traz negrejavam as suissas fortes do marido; e em face d’ella, recostado no velludo da grade, de casaca, com a bochecha risonha, uma grossa perola no peitilho da camisa, o Damaso, o bebedo!

Ega cahiu mollemente, ao acaso, na borda d’uma cadeira: e perturbado, já esquecido da Alvim, alli ficou a olhar o panno coberto d’annuncios, correndo os dedos tremulos pelo bigode.

No emtanto a campainha retinia, a gente vagarosamente reentrava na plateia. Um cavalheiro gordo e carrancudo tropeçou no joelho do Ega: outro, de luvas claras, com uma polidez adocicada, pediu permissão a s. exc.ª Elle não escutava, não percebia: os seus olhos, um momento errantes, tinham-se emfim cravado no camarote da Cohen e não se desviaram de lá, n’uma emoção que o empallidecia.

Não a tornára a encontrar desde Cintra, onde só a via de longe, com vestidos claros sob o verde das arvores; e agora alli, toda de preto, em cabello, com um decote curto onde brilhava a perfeita brancura do seu collo, ella era outra vez a sua Rachel, dos tempos divinos da villa Balzac. Era assim que elle, todas as noites em S. Carlos, a contemplava do fundo da frisa de Carlos, com a cabeça encostada ao tabique, saturado de felicidade. Lá tinha a sua luneta d’ouro, presa por um fio d’ouro. Parecia mais pallida, mais delicada, com o longo quebranto dos olhos pisados, o seu ar de romance e de lirio meio murcho: e como então os seus cabellos magnificos e pesados cahiam habilmente n’uma massa meia solta sobre as costas, n’um desalinho de nudez. Pouco a pouco, entre o afinar de rebecas e o rumor das cadeiras Ega revia, n’uma onda de recordações que o suffocava, o grande leito da villa Balzac, certos beijos e certos risos, as perdizes comidas em camisa á borda do sofá, e a melancolia deliciosa das tardes, quando ella sahia furtivamente, coberta de véos, e elle ficava, cansado, no crepusculo poetico do quarto, cantarolando a Traviata...

— V. exc.ª dá licença, snr. Ega?

Era um sujeito escaveirado, de barba rala, que reclamava a sua cadeira. Ega ergueu-se, confusamente, sem reconhecer o snr. Sousa Netto. O panno subira. Á borda da rampa um lacaio, piscando o olho á Plateia, fazia confidencias sobre a patrôa, de espanejador debaixo do braço. E Cohen, agora de pé, enchia o meio do camarote, cofiando as suissas com um correr lento da mão bem tratada, onde reluzia um diamante.

Ega então, n’um soberbo alarde d’indifferença, cravou o monoculo no palco. O lacaio abalára espavorido, a um repique furioso de sineta; e uma megera azeda, de roupão verde e touca á banda, rompera de dentro, meneando desesperadamente o leque, ralhando com uma mocinha delambida que batia o tacão, se esganiçava: «Pois hei de amal-o sempre! hei de amal-o sempre!»

Irresistivelmente Ega revirou o canto do olho para o camarote: Rachel e o Damaso, com as cabeças chegadas como em Cintra, cochichavam n’um sorriso. E tudo logo dentro do Ega se resumiu n’um immenso odio ao Damaso! Collado á umbreira da porta, rilhava os dentes, n’um desejo de subir, escarrar-lhe na bochecha gorda.

E não desviava d’elle os olhos, que dardejavam. Na scena, um velho general, gottoso e resmungão, sacudia um jornal, gritava pela sua tapioca. A Plateia ria, o Cohen ria. E n’esse momento Damaso, que se debruçára no camarote com as mãos de fóra, calçadas de gris-perle, descobriu o Ega, sorriu, atirou-lhe como em Cintra um acenosinho petulante, muito d’alto, na ponta dos dedos. Isto feriu o Ega como um insulto. E ainda na vespera aquelle covarde se lhe agarrára ás mãos, tremendo todo, a gritar «que o salvasse!...»

Subitamente, com uma idéa, palpou por sobre o bolso a carteira onde na vespera guardára a carta do Damaso... «Eu t’arranjo!» murmurou elle. E abalou, desceu a rua da Trindade, cortou pelo Loreto como uma pedra que rola, enfiou, ao fundo da praça de Camões, n’um grande portão que uma lanterna alumiava. Era a redacção da Tarde.

Dentro do pateo d’esse jornal elegante fedia. Na escadaria de pedra, sem luz, cruzou um sujeito encatarrhoado que lhe disse que o Neves estava em cima ao cavaco. O Neves, deputado, politico, director da Tarde, fôra, havia annos, n’umas ferias, seu companheiro de casa no largo do Carmo; e desde esse verão alegre em que o Neves lhe ficára sempre devendo tres moedas, os dois tratavam-se por tu.

Foi encontral-o n’uma vasta sala alumiada por bicos de gaz sem globo, sentado na borda d’uma mesa atulhada de jornaes, com o chapéo para a nuca, discursando a alguns cavalheiros de provincia que o escutavam de pé, n’um respeito de crentes. N’um vão de janella, com dois homens d’idade, um rapaz esgalgado, de jaquetão de cheviote claro e uma cabelleira crespa que parecia erguida n’uma rajada de vento, bracejava como um moinho na crista d’um monte. E, abancado, outro sujeito já calvo rascunhava laboriosamente uma tira de papel.

Ao vêr o Ega (um intimo do Gouvarinho) alli na redacção, n’aquella noite de intriga e de crise, Neves cravou n’elle os olhos tão curiosos, tão inquietos, que o Ega apressou-se a dizer:

— Nada de politica, negocio particular... Não te interrompas. Depois fallaremos.

O outro findou a injuria que estava lançando ao José Bento, «essa grande besta que fôra metter tudo no bico da amiga do Sousa e Sá, o par do reino» — e na sua impaciencia saltou da mesa, travou do braço do Ega arrastando-o para um canto:

— Então que é?

— É isto, em quatro palavras. O Carlos da Maia foi offendido ahi por um sujeito muito conhecido. Nada d’interessante. Um paragrapho immundo na Corneta do Diabo, por uma questão de cavallos... O Maia pediu-lhe explicações. O outro deu-as, chatas, medonhas, n’uma carta que quero que vocês publiquem.

A curiosidade do Neves flammejou:

— Quem é?

— O Damaso.

O Neves recuou d’assombro:

— O Damaso!? Ora essa! Isso é extraordinario! Ainda esta tarde jantei com elle! Que diz a carta?

— Tudo. Pede perdão, declara que estava bebedo, que é de profissão um bebedo...

O Neves agitou as mãos com indignação:

— E tu querias que eu publicasse isso, homem? O Damaso, nosso amigo politico!... E que não fosse, não é questão de partido, é de decencia! Eu faço lá isso!... Se fosse uma acta de duello, uma coisa honrosa, explicações dignas... Mas uma carta em que um homem se declara bebedo! Tu estás a mangar!

Ega, já furioso, franzia a testa. Mas o Neves, com todo o sangue na face, teve ainda uma revolta áquella idéa do Damaso se declarar bebedo!

— Isso não póde ser! É absurdo! Ahi ha historia... Deixa vêr a carta.

E, mal relanceára os olhos ao papel, á larga assignatura floreada, rompeu n’um alarido:

— Isto não é o Damaso nem é letra do Damaso!... «Salcede»! Quem diabo é «Salcede»? Nunca foi o meu Damaso!

— É o meu Damaso, disse o Ega. O Damaso Salcede, um gordo...

O outro atirou os braços ao ar:

— O meu é o Guedes, homem, o Damaso Guedes! Não ha outro! Que diabo, quando se diz o Damaso é o Guedes!...

Respirou com grande allivio:

— Irra, que me assustaste! Olha agora n’este momento, com estas coisas de ministerio, uma carta d’essas escripta pelo Guedes... Se é o Salcede, bem, acabou-se! Espera lá... Não é um gordalhufo, um janota que tem uma propriedade em Cintra? Isso! Um maganão que nos entalou na eleição passada, fez gastar ao Silverio mais de trezentos mil reis... Perfeitamente, ás ordens... Ó Pereirinha, olhe aqui o snr. Ega. Tem ahi uma carta para sahir ámanhã, na primeira pagina, typo largo...

O snr. Pereirinha lembrou o artigo do snr. Vieira da Costa sobre a «Reforma das Pautas».

— Vai depois! gritou o Neves. As questões de honra antes de tudo!

E voltou ao seu grupo onde agora se fallava do conde de Gouvarinho, saltou para a borda da mesa, lançou logo o seu vozeirão de chefe, affirmando no Gouvarinho enormes dotes de parlamentar!

Ega accendeu o charuto, ficou um momento considerando aquelles sujeitos que pasmavam para o verbo do Neves. Eram decerto deputados que a crise arrastára a Lisboa, arrancára á quietação das villas e das quintas. O mais novo parecia um pote, vestido de casimira fina, com uma enorme face a estourar de sangue, jocundo, crasso, lembrando ares sadios e lombo de porco. Outro, esguio, com o paletot solto sobre as costas em arco, tinha um queixo duro e macisso de cavallo: e dois padres muito rapados, muito morenos, fumavam pontas de cigarro. Em todos havia esse ar, conjunctamente apagado e desconfiado, que marca os homens de provincia, perdidos entre as tipoias e as intrigas da Capital. Vinham alli ás noites, áquelle jornal do partido, saber as novas, beber do fino, uns com esperanças de empregos, outros por interesses de terriola, alguns por ociosidade. Para todos o Neves era um «robusto talento»; admiravam-lhe a verbosidade e a tactica; decerto gostavam de citar nas lojas das suas villas o amigo Neves, o jornalista, o da Tarde... Mas, através d’essa admiração e do prazer de roçar por elle, percebia-se-lhes um vago medo que aquelle «robusto talento» lhes pedisse, n’um vão de janella, duas ou tres moedas. O Neves no emtanto celebrava o Gouvarinho como orador. Não que tivesse os rasgos, a pureza, as bellas syntheses historicas do José Clemente! Nem a poesia do Rufino! Mas não havia outro para as piadas que ferem e que ficam cravadas, alli a arder, na pelle do touro! E era a grande coisa na Camara — ter a farpa, sabêl-a ferrar!

— Ó Gonçalo, tu lembras-te da piada do Gouvarinho, a do trapezio? gritou elle virando-se para a janella, para o rapaz de jaquetão claro.

O Gonçalo, cujos olhos pretos refulgiram de agudeza e malicia, estendeu o pescoço magro n’um collarinho muito decotado, lançou de lá:

— A do trapezio? Divina! Conta á rapaziada!

A rapaziada arregalou os olhos para o Neves, á espera da «do trapezio». Fôra na Camara dos Pares, na reforma da instrucção. Estava fallando o Torres Valente, esse maluco que defendia a gymnastica dos collegios e queria as meninas a fazerem a prancha. Gouvarinho ergue-se e atira-lhe esta:

«Snr. presidente, direi uma palavra só. Portugal sahirá para sempre da senda do progresso, em que tanto se tem illustrado, no dia em que nós fôrmos ao ensino, com mão impia, substituir a cruz pelo trapezio!»

— Muito bem! rosnou um dos padres profundamente satisfeito.

E no murmurio de admiração que se ergueu destacou um ganido — o do rapaz mais grosso que um pote, que mexia os hombros, chasqueava com uma risota na bochecha côr de tomate:

— Pois, senhores, o que esse conde de Gouvarinho me sae é um grandissimo carola!

E em redor correram sorrisos entre os cavalheiros de provincia, liberaes e finorios, que achavam aquelle fidalgo excessivamente apegado á cruz. Mas já o Neves, de pé, bravejava:

— Carola! Vem-nos agora o menino gordo com carola!... O Gouvarinho carola! Está claro que tem toda a orientação mental do seculo, é um racionalista, um positivista... Mas a questão aqui é a réplica, a tactica parlamentar! Desde que o typo da maioria vem de lá com a descoberta do trapezio, Gouvarinho amigo, ainda que fosse tão atheu como Renan, zás! atira-lhe logo para cima com a cruz!... Isto é que é a estrategia parlamentar! Pois não é assim, Ega?

Ega murmurou, através do fumo do charuto:

— Sim, com effeito a cruz para isso ainda serve...

Mas n’esse momento o sujeito calvo, que repellira a tira de papel e se espreguiçava, cahido para as costas da cadeira, exhausto, pediu ao snr. João da Ega — que fallasse á gente e guardasse o seu dinheiro...

Ega acercou-se logo d’aquelle sympathico homem, tão engraçado, tão querido de todos:

— Então, na grande faina, Melchior?

— Estou aqui a vêr se faço uma coisa sobre o livro do Craveiro, os Cantos da Serra, e não me sae nada em termos... Não sei o que hei de dizer!

Ega gracejou, de mãos nos bolsos, muito risonho, muito camarada com o Melchior:

— Nada! Vocês aqui são simples localistas, noticiaristas, annunciadores. D’um livro como o do Craveiro têm só respeitosamente a dizer onde se vende e quanto custa.

O outro considerou o Ega ironicamente, com os dedos cruzados por traz da nuca:

— Então onde queria você que se fallasse dos livros?... Nos reportorios?

Não, nas Revistas Criticas: ou então nos jornaes — que fossem jornaes, não papeluchos volantes, tendo em cima uma cataplasma de politica em estylo mazorro ou em estylo fadista, um romance mal traduzido do francez por baixo e o resto cheio com «annos», despachos, parte de policia e loteria da Misericordia. E como em Portugal não havia nem jornaes sérios nem Revistas Criticas — que se não fallasse em parte nenhuma.

— Com effeito, murmurou Melchior, ninguem falla de nada, ninguem parece pensar em nada...

E com toda a razão, affirmou Ega. Certamente muito d’esse silencio provinha do natural desejo que têm os que são mediocres de que se não alluda muito aos que são grandes. É a invejasinha reles e rastejante! Mas em geral o silencio dos jornaes para com os livros provém sobretudo d’elles terem abdicado todas as funcções elevadas d’estudo e de critica, de se terem tornado folhas rasteiras d’informação caseira, e de sentirem por isso a sua incompetencia...

— Está claro, não fallo por você, Melchior, que é dos nossos e de primeira ordem! Mas os seus collegas, menino, calam-se por se saberem incompetentes...

O Melchior ergueu os hombros com um ar cançado e descrente:

— Calam-se tambem porque o publico não se importa, ninguem se importa...

Ega protestou, já excitado. O Publico não se importava!? Essa era curiosa! O Publico então não se importa que lhe fallem de livros que elle compra aos tres mil, aos seis mil exemplares? E isto, dada a população de Portugal, caramba, é igual aos grandes successos de Paris e de Londres... Não, Melchiorzinho amigo, não! Esse silencio diz ainda mais claramente e retumbantemente que as palavras: «Nós somos incompetentes. Nós estamos bestialisados pela noticia do snr. conselheiro que chegou ou do snr. conselheiro que partiu, pelos High-lifes, pela amabilidade dos donos da casa, pelo artigo de fundo em descompostura e calão, por toda esta prosa chula em que nos atolamos... Nós não sabemos, não podemos já fallar d’uma obra d’arte ou d’uma obra de historia, d’este bello livro de versos ou d’este bello livro de viagens. Não temos nem phrases nem idéas. Não somos talvez cretinos — mas estamos cretinisados. A obra de litteratura passa muito alto — nós chafurdamos aqui muito em baixo...»

— E aqui tem você, Melchior, o que diz, através do silencio dos jornaes, o côro dos jornalistas!

Melchior sorria, enlevado, com a cabeça deitada para traz, como quem goza uma bella ária. Depois com uma palmada na mesa:

— Caramba, ó Ega, muito bem falla você!... Você nunca pensou em ser deputado? Eu ainda outro dia dizia ao Neves: «O Ega! O Ega é que era, para atirar alli na camara a piadinha á Rochefort. Ardia Troia!»

E immediatamente, emquanto Ega ria, contente, tornando a accender o charuto — Melchior arrebatou a penna:

— Você está em veia! Diga lá, dicte lá... Que hei de eu aqui pôr sobre o livro do Craveiro?

Ega quiz saber o que escrevera já o amigo Melchior. Apenas tres linhas: «Recebemos o novo livro do nosso glorioso poeta Simão Craveiro. O precioso volume, onde scintillam em caprichosos relevos todas as joias d’este prestigioso escriptor, é publicado pelos activos editores...» E aqui o Melchior emperrára. Melchior não gostava d’aquelle frouxo termo — activos. Ega então suggeriu — emprehendedores. Melchior emendou, leu:

— «...publicado pelos emprehendedores editores...» Ora sêbo, rima!

Arrojou a penna, descorçoado. Acabou-se! Não estava em verve. E além d’isso era tarde, tinha a rapariga á espera...

— Fica para ámanhã... O peor é que já ando n’isto ha cinco dias! Irra! Você tem razão, a gente bestialisa-se. E faz-me raiva! Não é lá pelo livro, não me importa o livro... É pelo Craveiro, que é bom rapaz, e demais a mais pertence cá ao partido!

Abriu um gavetão, sacou uma escova, rompeu a escovar-se com desespero. E Ega ia ajudal-o, limpar-lhe as costas cheias de cal — quando entre elles surgiu a face chupada e nervosa do Gonçalo, com a sua gaforinha perpetuamente erguida como por uma rajada de vento.

— Que está o Egasinho a fazer n’este covil da noticia?

— Aqui a escovar o Sampaio... Estive tambem a ouvir o Neves, a grande phrase do Gouvarinho...

O Gonçalo pulou, com uma faisca de malicia nos olhos negros de algarvio esperto.

— A da cruz? Espantosa! Mas ha melhor, ha melhor!

Travou do braço do Ega, puxou-o para um canto da janella:

— É necessario fallar baixo por causa da rapaziada de provincia... Ha outra deliciosa. Eu não me lembro bem, o Neves é que sabe! É uma coisa da Liberdade conduzindo á mão o corcel do Progresso... O quer que seja assim, uma imagem equestre! A Liberdade com calções de jockey, o Progresso com um grande freio... Espantoso! Que besta, aquelle Gouvarinho! E os outros, menino, os outros! Você não foi á camara quando se discutiu a questão de Tondella? Extraordinario! O que se disse! Foi de morrer! E eu morro! Esta politica, este S. Bento, esta eloquencia, estes bachareis matam-me. Querem dizer agora ahi que isto por fim não é peor que a Bulgaria. Historias! Nunca houve uma choldra assim no universo!

— Choldra em que você chafurda! observou o Ega rindo.

O outro recuou com um grande gesto:

— Distingamos! Chafurdo por necessidade, como politico: e tróço por gosto, como artista!

Mas Ega justamente achava uma desgraça incomparavel para o paiz — esse immoral desaccordo entre a intelligencia e o caracter. Assim, alli estava o amigo Gonçalo, como homem de intelligencia, considerando o Gouvarinho um imbecil...

— Uma cavalgadura, corrigiu o outro.

— Perfeitamente! E todavia, como politico, você quer essa cavalgadura para ministro, e vai apoial-a com votos e com discursos sempre que ella rinche ou escoucinhe.

Gonçalo correu lentamente a mão pela gaforinha, com a face franzida:

— É necessario, homem! Razões de disciplina e de solidariedade partidaria... Ha uns compromissos... O paço quer, gosta d’elle...

Espreitou em roda, murmurou, collado ao Ega:

— Ha ahi umas questões de syndicatos, de banqueiros, de concessões em Moçambique... Dinheiro, menino, o omnipotente dinheiro!

E como Ega se curvava, vencido, cheio só de respeito — o outro, faiscando todo de finura e cynismo, atirou-lhe uma palmada ao hombro:

— Meu caro, a politica hoje é uma coisa muito differente! Nós fizemos como vocês os litteratos. Antigamente a litteratura era a imaginação, a phantasia, o ideal... Hoje é a realidade, a experiencia, o facto positivo, o documento. Pois cá a politica em Portugal tambem se lançou na corrente realista. No tempo da Regeneração e dos Historicos a politica era o progresso, a viação, a liberdade, o palavrorio... Nós mudamos tudo isso. Hoje é o facto positivo, — o dinheiro, o dinheiro! o bago! a massa! A rica massinha da nossa alma, menino! O divino dinheiro!

E de repente emmudeceu, sentindo na sala um silencio — onde o seu grito de «dinheiro! dinheiro!» parecera ficar vibrando, no ar quente do gaz, com a prolongação de um toque de rebate acordando as cubiças, chamando ao longe e ao largo todos os habeis para o saque da Patria inerte!...

O Neves desapparecera. Os cavalheiros de provincia dispersavam, uns enfiando o paletot, outros sem pressa dando um olhar amortecido aos jornaes sobre a mesa. E o Gonçalo bruscamente disse adeus ao Ega, rodou nos tacões, desappareceu tambem, abraçando ao passar um dos padres a quem tratou de «malandro!»

Era meia noite, Ega sahiu. E na tipoia que o levava ao Ramalhete, já mais calmo, começou logo a reflectir que o resultado da publicação da carta seria despertar em toda Lisboa uma curiosidade voraz. A «questão de cavallos» com que o Neves se contentára promptamente, distrahido e absorvido n’essa noite pela crise, — ninguem mais a acreditaria... O Damaso decerto, interrogado, para se desculpar, contaria horrores de Maria e de Carlos: e uma intoleravel luz d’escandalo ia bater coisas que deviam permanecer na sombra. Eram talvez apoquentações, desesperos que elle assim estivera preparando a Carlos — por causa d’um odiosinho ao Damaso. Nada mais egoista e pequeno!... E subindo para o quarto Ega decidia correr depois d’almoço á redacção da Tarde, suster a publicação da carta.

Mas toda essa noite sonhou com Rachel e com Damaso. Via-os rolando por uma estrada sem fim, entre pomares e vinhedos, deitados n’uma carroça de bois, sobre um enxergão onde se desdobrava, lasciva e rica, a sua colcha de setim preto da villa Balzac: os dois beijavam-se, enroscados, sem pudor, sob a fresca sombra que cahia dos ramos, ao chiar lento das rodas. E por um requinte do sonho cruel, elle Ega, sem perder a consciencia e o orgulho d’homem, era um dos bois que puxava ao carro! Os moscardos picavam-no, a canga pesava-lhe; e, a cada beijo mais cantado que atraz soava no carro, elle erguia o focinho a escorrer de baba, sacudia os cornos, mugia lamentavelmente para os céos!

Acordou n’estes urros d’agonia: e a sua cólera contra o Damaso resurgiu, mais nutrida pelas incoherencias do sonho. Além d’isso chovia. E decidiu não voltar á Tarde, deixar imprimir a carta. Que importava, de resto, o que dissesse o Damaso? O artigo da Corneta estava extincto, o Palma bem pago. — E quem jámais acreditaria n’um homem que nos jornaes se declara calumniador e bebedo?

E Carlos assim pensou tambem — quando, depois d’almoço, Ega lhe contou a sua resolução da vespera ao vêr o Damaso no camarote, d’olho trocista posto n’elle, a segredar com os Cohens...

— Percebi claramente, sem erro possivel, que estava a fallar de ti, da snr.ª D. Maria, de nós todos, contando horrores... E então acabou-se, não hesitei mais. Era necessario deixar passar a justiça de Deus! Não tinhamos paz emquanto o não aniquilassemos!

Sim, concordou Carlos, talvez. Sómente receava que o avô, sabendo o escandalo, se desgostasse de vêr o seu nome misturado a toda aquella sordidez de Corneta e de bebedeira...

— Elle não lê a Tarde, acudiu Ega. O rumor, se lhe chegar, é já vago e desfigurado.

Com effeito Affonso soube apenas confusamente que o Damaso soltára no Gremio algumas palavras desagradaveis para Carlos, e declarára depois n’um jornal que, n’esse momento, estava bebedo. E a opinião do velho foi — que se o Damaso estava embriagado (e d’outro modo como teria injuriado Carlos, seu antigo amigo?) a sua declaração revelava extrema lealdade e um amor quasi heroico da verdade!

— Por esta não esperavamos nós! exclamou depois Ega no quarto de Carlos. O Damaso torna-se um justo!

De resto os amigos da casa, sem conhecer o artigo da Corneta, approvavam a aniquilação do Damaso. Só o Craft sustentou que Carlos lhe devia ter antes dado «bengaladas secretas»; e o Taveira achou cruel que se dissesse ao desgraçado, com um florete ao peito — «ou a dignidade ou a vida!»

Mas dias depois não se fallava mais n’esse escandalo. Outras coisas interessavam o Chiado e a Casa Havaneza. O ministerio fôra formado, finalmente! Gouvarinho entrava na Marinha — Neves no Tribunal de Contas. Já os jornaes do governo cahido começavam, segundo a pratica constitucional, a achar o paiz irremediavelmente perdido, e a alludir ao rei com azedume... E o derradeiro, esvaído echo da carta do Damaso foi, na vespera do sarau da Trindade, um paragrapho da propria Tarde onde ella fôra publicada, n’estas amaveis palavras:

— «O nosso amigo e distincto sportman Damaso Salcede parte brevemente para uma viagem de recreio a Italia. Desejamos ao elegante touriste todas as prosperidades na sua bella excursão ao paiz do canto e das artes.»

VI

 

Ao fim do jantar, na rua de S. Francisco, Ega que se demorára no corredor a procurar a charuteira pelos bolsos do paletot, entrou na sala, perguntando a Maria, já sentada ao piano:

— Então, definitivamente, v. exc.ª não vem ao sarau da Trindade?...

Ella voltou-se para dizer, preguiçosamente, por entre a walsa lenta que lhe cantava entre os dedos:

— Não me interessa, estou muito cançada...

— É uma sécca, murmurou Carlos do lado, da vasta poltrona onde se estirára consoladamente, fumando, d’olhos cerrados.

Ega protestou. Tambem era uma massada subir ás Pyramides no Egypto. E no emtanto soffria-se invariavelmente, porque nem todos os dias póde um christão trepar a um monumento que tem cinco mil annos de existencia... Ora a snr.ª D. Maria, n’este sarau, ia vêr por dez tostões uma coisa tambem rara, — a alma sentimental d’um povo exhibindo-se n’um palco, ao mesmo tempo nua e de casaca.

— Vá, coragem! um chapéo, um par de luvas, e a caminho!

Ella sorria, queixando-se de fadiga e preguiça.

— Bem, exclamou Ega, eu é que não quero perder o Rufino... Vamos lá, Carlos, mexe-te!

Mas Carlos implorou clemencia:

— Mais um bocadinho, homem! Deixa a Maria tocar umas notas do Hamlet. Temos tempo... Esse Rufino, e o Alencar, e os bons, só gorgeiam mais tarde...

Então Ega, cedendo tambem a todo aquelle conchego tepido e amavel, enterrou-se no sofá com o charuto, para escutar a canção d’Ophelia, de que Maria já murmurava baixo as palavras scismadoras e tristes:

Pâle et blonde,
Dort sous l’eau profonde...

Ega adorava esta velha ballada escandinavia. Mais porém o encantava Maria que nunca lhe parecera tão bella: o vestido claro que tinha n’essa noite modelava-a com a perfeição d’um marmore: e entre as velas do piano, que lhe punham um traço de luz no perfil puro e tons d’ouro esfiado no cabello — o incomparavel eburneo da sua pelle ganhava em esplendor e mimo... Tudo n’ella era harmonioso, são, perfeito... E quanto aquella serenidade da sua fórma devia tornar delicioso o ardor da sua paixão! Carlos era positivamente o homem mais feliz d’estes reinos! Em torno d’elle só havia facilidades, doçuras. Era rico, intelligente, d’uma saude de pinheiro novo; passava a vida adorando e adorado; só tinha o numero d’inimigos que é necessario para confirmar uma superioridade; nunca soffrera de dyspepsia; jogava as armas bastante para ser temido; e na sua complacencia de forte nem a tolice publica o irritava. Sêr verdadeiramente ditoso!

— Quem é por fim esse Rufino? perguntou Carlos, alongando mais os pés pelo tapete, quando Maria findou a canção d’Ophelia.

Ega não sabia. Ouvira que era um deputado, um bacharel, um inspirado...

Maria, que procurava os nocturnos de Chopin, voltou-se:

— É esse grande orador de que fallavam na Toca?

Não, não! Esse era outro, a sério, um amigo de Coimbra, o José Clemente, homem d’eloquencia e de pensamento... Este Rufino era um ratão de pera grande, deputado por Monção, e sublime n’essa arte, antigamente nacional e hoje mais particularmente provinciana, de arranjar, n’uma voz de theatro e de papo, combinações sonoras de palavras...

— Detesto isso! rosnou Carlos.

Maria tambem achava intoleravel um sujeito a chilrear, sem idéas, como um passaro n’um galho d’arvore...

— É conforme a occasião, observou Ega, olhando o relogio. Uma walsa de Strauss tambem não tem idéas, e á noite, com mulheres n’uma sala, é deliciosa...

Não, não! Maria entendia que essa rhetorica amesquinhava sempre a palavra humana, que, pela sua natureza mesma, só póde servir para dar fórma ás idéas. A musica, essa, falla aos nervos. Se se cantar uma marcha a uma criança, ella ri-se e salta no collo...

— E se lhe lêres uma pagina de Michelet, concluiu Carlos, o anjinho secca-se e berra!

— Sim, talvez, considerou o Ega. Tudo isso depende da latitude e dos costumes que ella cria. Não ha inglez, por mais culto e espiritualista, que não tenha um fraco pela força, pelos athletas, pelo sport, pelos musculos de ferro. E nós, os meridionaes, por mais criticos, gostamos do palavriadinho mavioso. Eu cá pelo menos, á noite, com mulheres, luzes, um piano e gente de casaca, pello-me por um bocado de rhetorica.

E, com o appetite assim desperto, ergueu-se logo para enfiar o paletot, voar á Trindade, n’um receio de perder o Rufino.

Carlos deteve-o ainda, com uma grande idéa:

— Espera. Descobri melhor, fazemos o sarau aqui! Maria toca Beethoven; nós declamamos Mussuet, Hugo, os parnasianos; temos padre Lacordaire se te appetece a eloquencia; e passa-se a noite n’uma medonha orgia d’ideal!...

— E ha melhores cadeiras, acudiu Maria.

— Melhores poetas, affirmou Carlos.

— Bons charutos!

— Bom cognac!

Ega alçou os braços ao ar, desolado. Ahi está como se pervertia um cidadão, impedindo-o de proteger as letras patrias — com promessas perfidas de tabaco e de bebidas!... Mas de resto elle não tinha só uma razão litteraria para ir ao sarau. O Cruges tocava uma das suas Meditações d’Outono, e era necessario dar palmas ao Cruges.

— Não digas mais! gritou Carlos, dando um pulo da poltrona. Esquecia-me o Cruges!... É um dever d’honra! Abalemos.

E d’ahi a pouco, tendo beijado a mão de Maria que ficava ao piano, os dois, surprehendidos com a belleza d’essa noite d’inverno, tão clara e dôce, seguiam devagar pela rua — onde Carlos ainda duas vezes se voltou para olhar as janellas alumiadas.

— Estou bem contente, exclamou elle travando do braço do Ega, em ter deixado os Olivaes!... Aqui ao menos podemos reunir-nos para um bocado de cavaco e de litteratura...

Tencionava arranjar a sala com mais gosto e conforto, converter o quarto ao lado n’um fumoir forrado com as suas colchas da India, depois ter um dia certo em que viessem os amigos cear... Assim se realisava o velho sonho, o cenaculo de dilettantismo e d’arte... Além d’isso havia a lançar a Revista, que era a suprema pandega intellectual. Tudo isto annunciava um inverno chic a valer, como dizia o defunto Damaso.

— E tudo isto, resumiu o Ega, é dar civilisação ao paiz. Positivamente, menino, vamo-nos tornar grandes cidadãos!...

— Se me quizerem erguer uma estatua, disse Carlos alegremente, que seja aqui na rua de S. Francisco... Que belleza de noite!

Pararam á porta do theatro da Trindade no momento em que, d’uma tipoia de praça, se apeava um sujeito de barbas de apostolo, todo de luto, com um chapéo de largas abas recurvas á moda de 1830. Passou junto dos dois amigos sem os vêr, recolhendo um troco á bolsa. Mas Ega reconheceu-o.

— É o tio do Damaso, o demagogo! Bello typo!

— E segundo o Damaso, um dos bebedos da familia, lembrou Carlos rindo.

Por cima, de repente, no salão, estalaram grandes palmas. Carlos, que dava o paletot ao porteiro, receou que já fosse o Cruges...

— Qual! disse o Ega. Aquillo é applaudir de rhetorica!

E com effeito, quando pela escada ornada de plantas chegaram ao ante-salão, onde dois sujeitos de casaca passeavam em bicos de pés, segredando — sentiram logo um vozeirão tumido, garganteado, provinciano, de vogaes arrastadas em canto, invocando lá do fundo, do estrado, «a alma religiosa de Lamartine!...»

— É o Rufino, tem estado soberbo! murmurou o Telles da Gama que não passára da porta, com o charuto escondido atraz das costas.

Carlos, sem curiosidade, ficou junto do Telles. Mas Ega, esguio e magro, foi rompendo pela coxia tapetada de vermelho. D’ambos os lados se cerravam filas de cabeças, embebidas, enlevadas, atulhando os bancos de palhinha até junto ao tablado, onde dominavam os chapéos de senhoras picados por manchas claras de plumas ou flôres. Em volta, de pé, encostados aos pilares ligeiros que sustêm a galeria, reflectidos pelos espelhos, estavam os homens, a gente do Gremio, da Casa Havaneza, das Secretarias, uns de gravata branca, outros de jaquetões. Ega avistou o snr. Sousa Netto, pensativo, sustentando entre dois dedos a face escaveirada, de barba rala; adiante o Gonçalo, com a sua gaforinha ao vento; depois o marquez atabafado n’um cache-nez de sêda branca; e, n’um grupo, mais longe, rapazes do Jockey Club, os dois Vargas, o Mendonça, o Pinheiro, assistindo áquelle sport da eloquencia com uma mistura d’assombro e tedio. Por cima, no parapeito de velludo da galeria, corria outra linha de senhoras com vestidos claros, abanando-se mollemente; por traz alçava-se ainda uma fila de cavalheiros onde destacava o Neves, o novo Conselheiro, grave, de braços cruzados, com um botão de camelia na casaca mal feita.

O gaz suffocava, vibrando cruamente n’aquella sala clara, d’um tom desmaiado de canario, raiada de reflexos de espelhos. Aqui e além uma tosse timida de catarrho desmanchava o silencio, logo abafada no lenço. E na extremidade da galeria, n’um camarote feito de tabiques, com sanefas de velludo côr de cereja, duas cadeiras de espaldar dourado permaneciam vazias, na solemnidade real do seu damasco escarlate.

No emtanto, no estrado, o Rufino, um bacharel transmontano, muito trigueiro, de pera, alargava os braços, celebrava um anjo, «o Anjo da Esmola que elle entrevira, além no azul, batendo as azas de setim...» Ega não comprehendia bem — entalado entre um padre muito gordo que pingava de suor, e um alferes de lunetas escuras. Por fim não se conteve: — «Sobre que está elle a fallar?» E foi o padre que o informou, com a face luzidia, inflammada de enthusiasmo:

— Tudo sobre a caridade, sobre o progresso! Tem estado sublime... Infelizmente está a acabar!

Parecia ser, com effeito, a peroração. O Rufino arrebatára o lenço, limpava a testa lentamente; depois arremetteu para a borda do tablado, voltando-se para as cadeiras reaes com um tão ardente gesto d’inspiração — que o collete repuxado descobriu o começo da ceroula. Foi então que Ega comprehendeu. Rufino estava exaltando uma princeza que dera seiscentos mil reis para os inundados do Ribatejo, e ia a beneficio d’elles organisar um bazar na Tapada. Mas não era só essa soberba esmola que deslumbrava o Rufino — porque elle, «como todos os homens educados pela philosophia e que têm a verdadeira orientação mental do seu tempo, via nos grandes factos da historia não só a sua belleza poetica, mas a sua influencia social. A multidão, essa, sorria simplesmente, enlevada, para a incomparavel poesia da mão calçada de fina luva que se estende para o pobre. Elle porém, philosopho, antevia já, sahindo d’esses delicados dedos de princeza, um resultado bem profundo e formoso... O quê, meus senhores? O renascimento da Fé!»

De repente, um leque que escorregára da galeria, arrancando em baixo um berro a uma senhora gorda, creou um susurro, uma curta emoção. Um commissario do sarau, D. José Sequeira, ergueu-se logo nos degraus do tablado, com o seu laçarote de sêda vermelha na casaca, dardejando severamente os olhos vesgos para o recanto indisciplinado onde curtos risos esfusiavam. Outros cavalheiros, indignados, gritavam «chut, silencio, fóra!» E das cadeiras da frente surgiu a face ministerial do Gouvarinho, inquieta pela Ordem, com as lunetas brilhando duramente... Então Ega procurou ao lado a condessa: e avistou-a emfim mais longe, com um chapéo azul, entre a Alvim toda de preto e umas vastas espádoas cobertas de setim malva que eram as da baroneza de Craben. Todo o rumor findava — e o Rufino, que molhára lentamente os labios no copo, avançou um passo, sorrindo, com o lenço branco na mão:

— Dizia eu, meus senhores, que dada a orientação mental d’este seculo...

Mas o Ega suffocava, esmagado, farto do Rufino, com a impressão de que o padre ao lado cheirava mal. E não aturou mais, furou para traz, para desabafar com Carlos.

— Tu imaginavas uma besta assim?

— Horroroso! murmurou Carlos. Quando tocará o Cruges?

Ega não sabia, todo o programma fôra alterado.

— E tens cá a Gouvarinho! Está lá adiante, d’azul... Hei de querer vêr logo esse encontro!

Mas ambos se voltaram sentindo por traz alguem ciciar discretamente «bonsoir, messieurs...» Era Steinbroken e o seu secretario, graves, de casaca, em pontas de pés, com as claques fechadas. E immediatamente Steinbroken queixou-se da ausencia da familia real...

— Mr. de Cantanhede, qui est de service, m’avait cependant assuré que la reine viendrait... C’est bien sous sa protection, n’est-ce pas, toute cette musique, ces vers?... Voilà pourquoi je suis venu. C’est très ennuyeux... Et Alphonse de Maia, toujours en santé?

— Merci...

Na sala o silencio impressionava. Rufino, com gestos de quem traça n’uma tela linhas lentas e nobres, descrevia a doçura d’uma aldeia, a aldeia em que elle nascera, ao pôr do sol. E o seu vozeirão velava-se, enternecido, morrendo n’um rumor de crepusculo. Então Steinbroken, subtilmente, tocou no hombro do Ega. Queria saber se era esse o grande orador de que lhe tinham fallado...

Ega affirmou com patriotismo que era um dos maiores oradores da Europa!

— Em qual génerro?...

— Genero sublime, genero de Demosthenes!

Steinbroken alçou as sobrancelhas com admiração, fallou em filandez ao seu secretario que entalou languidamente o monoculo: e com as claques debaixo do braço, cerrados os olhos, recolhidos como n’um templo, os dois enviados da Filandia ficaram escutando, á espera do sublime.

Ruffino, no entanto, com as mãos descahidas, confessava uma fragilidade de sua alma! Apesar da poesia ambiente d’essa sua aldeia natal, onde a violeta em cada prado, o rouxinol em cada balseira provavam Deus irrefutavelmente, — elle fôra dilacerado pelo espinho da descrença! Sim, quantas vezes, ao cahir da tarde, quando os sinos da velha torre choravam no ar a Ave-Maria e no valle cantavam as ceifeiras, elle passára junto da cruz do adro e da cruz do cemiterio, atirando-lhes de lado, cruelmente, o sorriso frio de Voltaire!...

Um largo fremito d’emoção passou. Vozes suffocadas de gozo mal podiam murmurar «muito bem, muito bem...»

Pois fôra n’esse estado, devorado pela duvida, que Rufino ouvira um grito d’horror resoar por sobre o nosso Portugal... Que succedera? Era a Natureza que atacava seus filhos! — E lançando os braços, como quem se debate n’uma catastrophe, Rufino pintou a inundação... Aqui aluia um casal, ninho florido d’amores; além, na quebrada, passava o balar choroso dos gados; mais longe as negras aguas iam juntamente arrastando um botão de rosa e um berço!...

Os bravos partiram profundos e roucos de peitos que arfavam. E em torno de Carlos e do Ega sujeitos voltavam-se apaixonadamente uns para os outros, com um brilho na face, commungando no mesmo enthusiasmo: «Que rajadas!... Caramba!... Sublime!...»

Rufino sorria, bebendo esta commoção, que era a obra do seu verbo. Depois, respeitosamente, voltou-se para as cadeiras reaes, solemnes e vazias...

Vendo que a cólera da Natureza rugia implacavel, elle erguera os olhos para o natural abrigo, para o exaltado logar d’onde desce a salvação, para o Throno de Portugal! E de repente, deslumbrado, vira por sobre elle estenderem-se as azas brancas d’um anjo! Era o anjo da esmola, meus senhores! E d’onde vinha? d’onde recebera a inspiração da caridade? d’onde sahia assim, com os seus cabellos d’ouro? Dos livros da sciencia? dos laboratorios chimicos? d’esses amphitheatros d’anatomia onde se nega covardemente a alma? das sêccas escólas de philosophia que fazem de Jesus um precursor de Robespierre? Não! Elle ousára interrogar o anjo, submisso, com o joelho em terra. E o anjo da esmola, apontando o espaço divino, murmurára: «Venho d’além!»

Então pelos bancos apinhados correu um susurro d’enlevo. Era como se os estuques do tecto se abrissem, os anjos cantassem no alto. Um estremecimento devoto e poetico arrepiava as cuias das senhoras.

E Rufino findava, com uma altiva certeza na alma! Sim, meus senhores! Desde esse momento, a duvida fôra n’elle como a nevoa que o sol, este radiante sol portuguez, desfaz nos ares... E agora, apesar de todas as ironias da sciencia, apesar dos escarneos orgulhosos d’um Renan, d’um Littré e d’um Spencer, elle, que recebera a confidencia divina, podia alli, com a mão sobre o coração, affirmar a todos bem alto — havia um céo!

— Apoiado! mugiu na coxia o padre sebento.

E por todo o salão, no aperto e no calor do gaz, os cavalheiros das Secretarias, da Arcada, da Casa Havaneza, berrando, batendo as mãos, affirmaram soberbamente o céo!

O Ega que ria, divertido, sentiu ao lado um som rouco de cólera. Era o Alencar, de paletot, de gravata branca, cofiando sombriamente os bigodes.

— Que te parece, Thomaz?

— Faz nojo! rugiu surdamente o poeta.

Tremia, revoltado! N’uma noite d’aquellas, toda de poesia, quando os homens de letras se deviam mostrar como são, filhos da democracia e da liberdade, vir aquelle pulha pôr-se alli a lamber os pés á familia real... Era simplesmente ascoroso!

Lá ao fundo, junto aos degraus do tablado, ia um tumulto d’abraços, de comprimentos, em torno do Rufino, que reluzia todo de orgulho e suor. E pela porta os homens escoavam-se, afogueados, commovidos ainda, puxando das charuteiras. Então o poeta travou do braço do Ega:

— Ouve lá, eu vinha justamente procurar-te. É o Guimarães, o tio do Damaso, que me pediu para te ser apresentado... Diz que é uma coisa séria, muito séria... Está lá em baixo no botequim, com um grog.

Ega pareceu surprehendido... Coisa séria!?

— Bem, vamos nós lá baixo tomar tambem um grog! E que recitas tu logo, Alencar?

A Democracia, foi dizendo o poeta pela escada, com certa reserva. Uma coisita nova, tu verás... São algumas verdades duras a toda essa burguezia...

Estavam á porta do botequim — e precisamente o snr. Guimarães sahia, com o chapéo sobre o olho, de charuto accêso, abotoando a sobrecasaca. Alencar lançou a apresentação, com immensa gravidade:

— O meu amigo João da Ega... O meu velho amigo Guimarães, um bravo cá dos nossos, um veterano da Democracia.

Ega acercou-se d’uma mesa, puxou cortezmente um banco para o veterano da Democracia, quiz saber se elle preferia cognac ou cerveja.

— Tomei agora o meu grog de guerra, disse o snr. Guimarães com seccura, tenho para toda a noite.

Um criado dava uma limpadella lenta sobre o marmore da mesa. Ega ordenou cerveja. E directamente, largando o charuto, passando a mão pelas barbas a retocar a magestade da face, o snr. Guimarães começou com lentidão e solemnidade:

— Eu sou tio do Damaso Salcede, e pedi aqui ao meu velho amigo Alencar para me apresentar a v. exc.ª, com o fim de o intimar a que olhe bem para mim e que diga se me acha cara de bebedo...

Ega comprehendeu, atalhou logo, cheio de franqueza e bonhomia:

— V. exc.ª refere-se a uma carta que seu sobrinho me escreveu...

— Carta que v. exc.ª dictou! Carta que v. exc.ª o forçou a assignar!

— Eu?...

— Affirmou-m’o elle, senhor!

Alencar interveio:

— Fallem vocês baixo, que diabo!... Isto é terra de curiosos...

O snr. Guimarães tossiu, chegou a cadeira mais para a mesa. Tinha estado, contou elle, havia semanas fóra de Lisboa por negocios da herança de seu irmão. Não vira o sobrinho, porque só por necessidade se encontrava com esse imbecil. Na vespera, em casa d’um antigo amigo, o Vaz Forte, deitára por acaso os olhos ao Futuro, um jornal republicano, bem escripto, mas frouxo de idéas. E avistára logo na primeira pagina, em typo enorme, sob esta rubrica aliás justa Coisas do high-life, a carta do sobrinho... Imagine o snr. Ega o seu furor! Alli mesmo, em casa do Forte, escrevera ao Damaso pouco mais ou menos n’estes termos: «Li a tua infame declaração. Se ámanhã não fazes outra, em todos os jornaes, dizendo que não tinhas intenção de me incluir entre os bebedos da tua familia, vou ahi e quebro-te os ossos um por um. Treme!» Assim lhe escrevera. E sabia o snr. João da Ega qual fôra a resposta do snr. Damaso?

— Tenho-a aqui, é um documento humano, como diz o amigo Zola! Aqui está... Grande papel, monogramma d’ouro, corôa de conde. Aquelle asno! Quer v. exc.ª que eu leia?

A um gesto risonho do Ega, elle mesmo leu, lentamente, e sublinhando:

— «Meu caro tio! A carta de que falla foi escripta pelo snr. João da Ega. Eu era incapaz de tal desacato á nossa querida familia. Foi elle que me agarrou na mão, á força, para eu assignar: e eu, n’aquella atrapalhação, sem saber o que fazia, assignei para evitar fallatorios. Foi um laço que me armaram os meus inimigos. O meu querido tio, que sabe como eu gósto de si, que até estava o anno passado com tenção, se soubesse a sua morada em Paris, de lhe mandar meia pipa de vinho de Collares, não fique pois zangado commigo. Bem infeliz já eu sou! E se quizer procure esse João da Ega que me perdeu! Mas acredite que hei de tirar uma vingança que ha de ser fallada! Ainda não decidi qual, n’esta atarantação; mas em todo o caso a nossa familia ha de ficar desenxovalhada, porque eu nunca admitti que ninguem brincasse com a minha dignidade... E se o não fiz já antes de partir para Italia, se ainda não pugnei pela minha honra, é porque ha dias, com todos estes abalos, veio-me uma tremenda dysenteria, que estou que me não tenho nas pernas. Isto por cima dos meus males moraes!...» V. exc.ª ri-se, snr. Ega?

— Pois que quer v. exc.ª que eu faça? balbuciou o Ega por fim, suffocado, com os olhos em lagrimas. Rio-me eu, ri-se o Alencar, ri-se v. exc.ª Isso é extraordinario! Essa dignidade, essa dysenteria...

O snr. Guimarães, embaçado, olhou o Ega, olhou o poeta que fungava sob os longos bigodes, e terminou por dizer:

— Com effeito, a carta é d’uma cavalgadura... Mas o facto permanece...

Então Ega appellou para o bom senso do snr. Guimarães, para a sua experiencia das coisas d’honra. Comprehendia elle que dois cavalheiros, indo desafiar um homem a sua casa, lhe agarrem no pulso, o forcem violentamente a assignar uma carta em que elle se declara bebedo?...

O snr. Guimarães, agradado com aquella deferencia pelo seu tacto e pela sua experiencia, confessou que o caso, pelo menos em Paris, seria pouco natural.

— E em Lisboa, senhor! Que diabo, isto não é a Cafraria! E diga-me o snr. Guimarães outra coisa, de gentleman para gentleman: como considera seu sobrinho? um homem irreprehensivelmente veridico?

O snr. Guimarães cofiou as barbas, declarou lealmente:

— Um refinado mentiroso.

— Então! gritou Ega em triumpho, atirando os braços ao ar.

De novo Alencar interveio. A questão parecia-lhe satisfactoriamente finda. E não restava senão os dois apertarem-se a mão fraternalmente, como bons democratas...

Já de pé, atirou a genebra ás guelas. Ega sorria, estendia a mão ao snr. Guimarães. Mas o velho demagogo, ainda com uma sombra na face enrugada, desejou que o snr. João da Ega (se n’isso não tinha duvida) declarasse, alli diante do amigo Alencar, que não lhe achava a elle, Guimarães, cara de bebedo...

— Oh meu caro senhor! exclamou Ega, batendo com o dinheiro na mesa para chamar o criado. Pelo contrario! O maior prazer em proclamar diante do Alencar, e aos quatro ventos, que lhe acho a cara d’um perfeito cavalheiro e d’um patriota!

Então trocaram um rasgado aperto de mãos — emquanto o snr. Guimarães affirmava a sua satisfação por conhecer o snr. João da Ega, moço de tantos dotes e tão liberal. E quando s. exc.ª quizesse qualquer coisa, politica ou litteraria, era escrever este endereço bem conhecido no mundo: — Redaction du Rappel, Paris!

Alencar abalára. E os dois deixaram o botequim, trocando impressões do sarau. O snr. Guimarães estava enojado com a carolice, a sabujice d’esse Rufino. Quando o ouvira palrar das azas da princeza e da cruz do adro, quasi lhe gritára cá do fundo: «Quanto te pagam para isso, miseravel?»

Mas de repente Ega estacou na escada, tirando o chapéo:

— Oh snr.ª baroneza, então já nos abandona?

Era a Alvim que descia devagar, com a Joanninha Villar, atando as largas fitas d’uma capa de pellucia verde. Queixou-se d’uma dôr de cabeça que a torturava, apesar de ter gostado loucamente do Rufino... Mas uma noite toda de litteratura, que estafa! E agora, para mais, ficára lá um homemzinho a fazer musica classica...

— É o meu amigo Cruges!

— Ah! é seu amigo? Pois olhe, devia-lhe ter dito que tocasse antes o Pirolito.

— V. exc.ª afflige-me com esse desdem pelos grandes mestres... Não quer que a vá acompanhar á carruagem? Paciencia... Muito boa noite, snr.ª D. Joanna!... Um servo seu, snr.ª baroneza! E Deus lhe tire a sua dôr de cabeça!

Ella voltou-se ainda no degrau, para o ameaçar risonhamente com o leque:

— Não seja impostor! O snr. Ega não acredita em Deus.

— Perdão... Que o Diabo lhe tire a sua dôr de cabeça, snr.ª baroneza!

O velho democrata desapparecera discretamente. E da ante-sala Ega avistou logo ao fundo, no tablado, sobre um môcho muito baixo que lhe fazia roçar pelo chão as longas abas da casaca — o Cruges, com o nariz bicudo contra o caderno da Sonata, martellando sabiamente o teclado. Foi então subindo em pontas de pés pela coxia tapetada de vermelho, agora desafogada, quasi vazia: um ar mais fresco circulava: as senhoras, cançadas, bocejavam por traz dos leques.

Parou junto de D. Maria da Cunha, apertada na mesma fila com todo um rancho intimo, a marqueza de Soutal, as duas Pedrosos, a Thereza Darque. E a boa D. Maria tocou-lhe logo no braço para saber quem era aquelle musico de cabelleira.

— Um amigo meu, murmurou Ega. Um grande maestro, o Cruges.

O Cruges... O nome correu entre as senhoras, que o não conheciam. E era composição d’elle, aquella coisa triste?

— É de Beethoven, snr.ª D. Maria da Cunha, a Sonata pathetica.

Uma das Pedrosos não percebera bem o nome da Sonata. E a marqueza de Soutal, muito séria, muito bella, cheirando devagar um frasquinho de saes, disse que era a Sonata pateta. Por toda a bancada foi um rastilho de risos suffocados. A Sonata pateta! Aquillo parecia divino! Da extremidade o Vargas gordo, o das corridas, estendeu a face enorme, imberbe e côr de papoula:

— Muito bem, snr.ª marqueza, muito catita!

E passou o gracejo a outras senhoras, que se voltavam, sorriam á marqueza, entre o frou-frou dos leques. Ella triumphava, bella e séria, com um velho vestido de velludo preto, respirando os saes — emquanto adiante um amador de barba grisalha cravava n’aquelle rancho ruidoso dois grandes oculos d’ouro que faiscavam de cólera.

No emtanto, por toda a sala, o susurro crescia. Os encatarrhoados tossiam livremente. Dois cavalheiros tinham aberto a Tarde. E cahido sobre o teclado, com a gola da casaca fugida para a nuca, o pobre Cruges, suando, estonteado por aquella desattenção rumorosa, atabalhoava as notas, n’uma debandada.

— Fiasco completo, declarou Carlos que se aproximára do Ega e do rancho.

Foi para D. Maria da Cunha uma alegria, uma surpreza! Até que emfim se via o snr. Carlos da Maia, o Principe Tenebroso! Que fizera elle durante esse verão? Todo o mundo a esperal-o em Cintra, alguem mesmo com anciedade... Um chut furioso do amador de barbas grisalhas emmudeceu-a. E justamente Cruges, depois de bater dois accordes bruscos, arredára o môcho, esgueirava-se do estrado, enxugando as mãos ao lenço. Aqui e além algumas palmas resoaram, molles e de cortezia, entre um grande murmurio d’allivio. E o Ega e Carlos correram á porta, onde já esperavam o marquez, o Craft, o Taveira — para abraçar, consolar o pobre Cruges que tremia todo, com os olhos esgazeados.

E immediatamente, no silencio attento que redominava, um sujeito muito magro, muito alto, surgiu no tablado, com um manuscripto na mão. Alguem ao lado do Ega disse que era o Prata, que ia fallar sobre o Estado agricola da provincia do Minho. Atraz, um criado veio collocar sobre a mesa um candelabro de duas velas: o Prata, d’ilharga para a luz, mergulhou no caderno: e d’entre o perfil triste e as folhas largas um rumor lento foi escorrendo, rumor de reza n’uma somnolencia de novena, onde por vezes destacavam como gemidos — «riqueza dos gados..., esphacelamento da propriedade..., fertil e desprotegida região...»

Começou então uma debandada sorrateira e formigueira, que nem os chuts do commissario do sarau, vigilante e de pé sobre um degrau do estrado, podiam conter. Só as senhoras ficavam; e um ou outro burocrata idoso, que se inclinava zelosamente para o murmurio de reza, com a mão em concha sobre a orelha.

Ega, que fugia tambem «ao vecejante paraiso do Minho», achou-se em frente do snr. Guimarães.

— Que massada, hein?

O democrata concordou que aquelle preopinante não lhe parecia divertido... Depois, mais sério, com outra idéa, segurando um botão da casaca do Ega:

— Eu espero que v. exc.ª ha pouco não ficasse com a impressão de que eu sou solidario ou me importo com meu sobrinho...

Oh! decerto que não! Ega vira bem que o snr. Guimarães não tinha pelo Damaso nenhum enthusiasmo de familia.

— Asco, senhor, só asco! Quando elle foi a primeira vez a Paris, e soube que eu morava n’uma trapeira, nunca me procurou! Porque aquelle imbecil dá-se ares d’aristocrata... E como v. exc.ª sabe, é filho d’um agiota!

Puxou a charuteira, ajuntou gravemente:

— A mãi, sim! Minha irmã era d’uma boa familia. Fez aquelle desgraçado casamento, mas era d’uma boa familia! Que, com os meus principios, já v. exc.ª vê que tudo isso de fidalguia, pergaminhos, brazões, são para mim blague e mais blague! Mas emfim os factos são os factos, a historia de Portugal ahi está... Os Guimarães da Bairrada eram de sangue azul.

Ega sorriu, n’um assentimento cortez:

— E v. exc.ª então parte brevemente para Paris?

— Ámanhã mesmo, por Bordeus... Agora que toda essa cambada do marechal de Mac-Mahon, e do duque de Broglie, e do Descazes foi pelos ares, já se póde lá respirar...

N’esse instante Telles e o Taveira, passando de braço dado, voltaram-se, a observar curiosamente aquelle velho austero, todo de preto, que fallava alto com o Ega de marechaes e de duques. Ega reparou: o democrata, de resto, tinha uma sobrecasaca de casimira nova; o seu altivo chapéo reluzia; e Ega ficou de bom grado a conversar com aquelle gentleman correcto e venerando que impressionava os seus amigos.

— A republica com effeito, observou elle, dando alguns passos ao lado do snr. Guimarães, esteve alli um momento compromettida!

— Perdida! E eu, meu caro senhor, aqui onde me vê, para ser expulso por causa d’umas verdadesinhas que soltei n’uma reunião anarchista. Até me affirmaram que n’um conselho de ministros o marechal de Mac-Mahon, que é um tarimbeiro, batera um murro na mesa e dissera: Ce sacré Guimaran, il nous embête, faut lui donner du pied dans le derrière! Eu não estava lá, não sei, mas affirmaram-me... Em Paris, como os francezes não sabem pronunciar Guimarães, e eu embirro que me estropiem o nome, assigno Mr. Guimaran. Ha dois annos, quando fui á Italia, era Mr. Guimarini. E se fôr agora á Russia, cá por coisas, hei de ser Mr. Guimaroff... Embirro que me estropiem o nome!

Tinham voltado á porta do salão. Longas bancadas vazias punham dentro, no brilho pesado do gaz, uma tristeza de abandono e tedio; e no estrado o Prata continuava, de mão no bolso, com o nariz sobre o manuscripto, sem que se sentisse agora surdir um som d’aquelle espantalho esguio. Mas o marquez, que descia do fundo, atabafando-se no seu cache-nez de sêda, disse ao Ega ao passar que o homemzinho era muito pratico, sabia da póda, e lá tinha ficado ás voltas com Proudhon.

Ega e o democrata recomeçaram então os seus passos lentos na ante-sala onde o susurro de conversas mal abafadas crescia, como n’um pateo, entre fumaças furtivas de cigarro. E o snr. Guimarães chasqueava, achando uma boa bêtise que se citasse Proudhon, alli n’aquelle theatreco, a proposito d’estrumes do Minho...

— Oh, Proudhon entre nós, acudiu Ega rindo, cita-se muito, é já um monstro classico. Até os conselheiros d’Estado já sabem que para elle a propriedade era um roubo, e Deus era o mal...

O democrata encolheu os hombros:

— Grande homem, senhor! Homem immenso! São os tres grandes pimpões d’este seculo: Proudhon, Garibaldi, e o compadre!

— O compadre! exclamou Ega, attonito.

Era o nome d’amizade que o snr. Guimarães dava em Paris a Gambetta. Gambetta nunca o via, que não lhe gritasse de longe, em hespanhol: «Hombre, compadre!» E elle tambem, logo: «Compadre, caramba!» D’ahi ficára a alcunha, e Gambetta ria. Porque lá isso, bom rapaz, e amigo d’esta franqueza do sul, e patriota, até alli!

— Immenso, meu caro senhor! O maior de todos!

Pois Ega imaginaria que o snr. Guimarães, com as suas relações do Rappel, devia ter sobretudo o culto de Victor Hugo...

— Esse, meu caro senhor, não é um homem, é um mundo!

E o snr. Guimarães ergueu mais a face, ajuntou infinitamente grave:

— É um mundo! .. E aqui onde me vê, ainda não ha tres mezes que elle me disse uma coisa que me foi direita ao coração!

Vendo com deleite o interesse e a curiosidade do Ega, o democrata contou largamente esse glorioso lance que ainda o commovia:

— Foi uma noite no Rappel. Eu estava a escrever, elle appareceu, já um pouco trôpego, mas com o olho a luzir, e aquella bondade, aquella magestade!... Eu ergui-me, como se entrasse um rei... Isto é, não! que se fosse um rei tinha-lhe dado com a bota no rabiosque. Levantei-me como se elle fosse um Deus! Qual Deus! não ha Deus que me fizesse levantar!... Emfim, acabou-se, levantei-me! Elle olhou para mim, fez assim um gesto com a mão, e disse, a sorrir, com aquelle ar de genio que tinha sempre: Bonsoir, mon ami!

E o snr. Guimarães deu alguns passos dignos, em silencio, como se aquelle bonsoir, aquelle mon ami, assim recordados, lhe fizessem mais vivamente sentir a sua importancia no mundo.

De repente Alencar, que bracejava n’um grupo, rompeu para elles, pallido, d’olhos chammejantes:

— Que me dizem vocês a esta pouca vergonha? Aquelle infame alli ha meia hora, com o in-folio, a rosnar, a rosnar... E toda a gente a sahir, não fica ninguem! Tenho de recitar aos bancos de palhinha!...

E abalou, rilhando os dentes, a exhalar mais longe o seu furor.

Mas algumas palmas cançadas, dentro, fizeram voltar o Ega. O estrado ficára novamente vazio, com as duas velas ardendo no candelabro. Um cartão em grossas letras, que um criado collocára no piano, annunciava um «intervallo de dez minutos» como n’um circo. E n’esse instante a snr.ª condessa de Gouvarinho sahira pelo braço do marido, deixando atraz um sulco largo de comprimentos, d’espinhas que se vergavam, de chapéos de burocratas rasgadamente erguidos. O commissario do sarau azafamava-se procurando duas cadeiras para ss. exc.as A condessa porém foi reunir-se a D. Maria da Cunha, que ella vira, com as Pedrosos e a marqueza de Soutal, refugiada n’um vão de janella. Ega immediatamente acercou-se do rancho intimo, esperando que as senhoras se beijocassem.

— Então, snr.ª condessa, ainda muito commovida com a eloquencia do Rufino?

— Muito cançada... E que calor, hein?

— Horrivel. A snr.ª baroneza d’Alvim sahiu ha pouco, com uma dor de cabeça...

A condessa, que tinha os olhos pisados e uma prega de velhice aos cantos da boca, murmurou:

— Não admira, isto não é divertido... Emfim, já agora é necessario levar a cruz ao Calvario.

— Se fosse uma cruz, minha senhora! exclamou o Ega. Infelizmente é uma lyra!

Ella riu. E D. Maria da Cunha, n’essa noite mais remoçada e viva, ficou logo toda banhada n’um sorriso, com aquella carinhosa admiração pelo Ega, que era um dos seus sentimentos.

— Este Ega!... Não ha mal que lhe chegue!... E diga-me outra coisa, que é feito do seu amigo Maia?

Ega vira-a momentos antes, no salão, puxar pela manga de Carlos, cochichar com Carlos. Mas conservou um ar innocente:

— Está ahi, anda por ahi, assistindo a toda essa litteratura.

De repente os olhos sempre bonitos e languidos de D. Maria da Cunha rebrilharam com uma faisca de malicia:

— Fallai no mau... N’este caso seria fallar do bom. Emfim ahi nos vem o Principe Tenebroso!

E era com effeito Carlos que passava, se encontrára diante dos braços do conde de Gouvarinho, estendidos para elle com uma effusão em que parecia renascer o antigo affecto. Pela primeira vez Carlos via a condessa, desde a noite em que no Aterro, abandonando-a para sempre, fechára com odio a portinhola da tipoia onde ella ficava chorando. Ambos baixaram os olhos, ao adiantar a mão um para o outro, lentamente. E foi ella que findou o embaraço, abrindo o seu grande leque de pennas de avestruz:

— Que calor, não é verdade?

— Atroz! disse Carlos. Não vá v. exc.ª apanhar ar d’essa janella.

Ella forçou os labios brancos a um sorriso:

— É conselho de medico?

— Oh, minha senhora, não são as horas da minha consulta! É apenas caridade de christão.

Mas de repente a condessa chamou o Taveira, que ria, derretido, com a marqueza de Soutal, para o reprehender por elle não ter apparecido terça-feira na rua de S. Marçal. Surprehendido com tanto interesse, tanta familiaridade, o Taveira, muito vermelho, balbuciou que nem sabia, fôra o seu infortunio, tinham-se mettido umas coisas...

— Além d’isso não imaginei que v. exc.ª começasse a receber tão cedo... V. exc.ª antigamente era só depois da Cerração da Velha. Até me lembro que o anno passado...

Mas emmudeceu. O conde de Gouvarinho voltára-se, pousando a mão carinhosa no hombro de Carlos, desejando a sua impressão sobre o «nosso Rufino». Elle conde estava encantado! Encantado sobretudo com a variedade d’escala, aquella arte tão difficil de passar do solemne para o ameno, de descer das grandes rajadas para os brincados de linguagem. Extraordinario!

— Tenho ouvido grandes parlamentares, o Rouher, o Gladstone, o Canovas, outros muitos. Mas não são estes vôos, esta opulencia... É tudo muito sêcco, idéas e factos. Não entra n’alma! Vejam os amigos aquella imagem tão pujante, tão respeitosa, do Anjo da Esmola, descendo devagar, com as azas de setim... É de primeira ordem.

Ega não se conteve:

— Eu acho esse genio um imbecil.

O conde sorriu, como á tonteria d’uma criança:

— São opiniões...

E estendeu em redor as mãos ao Sousa Netto, ao Darque, ao Telles da Gama, a outros que se juntavam ao rancho intimo — emquanto os seus correligionarios, os seus collegas do Centro e da Camara, o Gonçalo, o Neves, o Vieira da Costa rondavam de longe, sem poder roçar pelo ministro que tinham creado, agora que elle conversava e ria com rapazes e senhoras da «sociedade». O Darque, que era parente do Gouvarinho, quiz saber como o amigo Gastão se ia dando com os encargos do Poder... O conde declarou para os lados que não fizera mais por ora do que passar em revista os elementos com que contava para atacar os problemas... De resto, em questões de trabalho, o ministerio fôra infelicissimo! O presidente do conselho de cama com uma catarrheira, inutil para uma semana. Agora o collega da fazenda com as febres do Aterro...

— Está melhor? Já sae? foi em torno a pergunta cheia de cuidado.

— Está na mesma, vai ámanhã para o Dáfundo. Mas realmente esse não se acha de todo inutilisado. Ainda hontem eu lhe dizia: «Você parte para o Dáfundo, leva os seus papeis, os seus documentos... Pela manhã dá os seus passeios, respira o bom ar... E á noite, depois de jantar, á luz do candieiro, entretem-se a resolver a questão de fazenda!»

Uma campainha retiniu. D. José Sequeira, escarlate d’azafama, veio, furando, annunciar a s. exc.ª o fim do intervallo — offerecer o braço á snr.ª condessa. Ao passar, ella lembrou a Carlos as suas «terças-feiras», com a delicada simplicidade d’um dever. Elle curvou-se em silencio. Era como se todo o passado, o sofá que rolava, a casa da titi em Santa Isabel, as tipoias em que ella deixava o seu cheiro de verbena — fossem coisas lidas por ambos n’um livro e por ambos esquecidas. Atraz, o marido seguia, erguendo alto a cabeça e as lunetas, como representante do Poder n’aquella festa da Intelligencia.

— Pois senhores, disse o Ega afastando-se com Carlos, a mulherzinha tem topete!

— Que diabo queres tu? Atravessou a sua hora de tolice e de paixão, e agora continúa tranquillamente na rotina da vida.

— E na rotina da vida, concluiu Ega, encontra-se a cada passo comtigo, que a viste em camisa!... Bonito mundo!

Mas o Alencar appareceu no alto da escada, voltando do botequim e da genebra, com um brilho maior no olho cavo, de paletot no braço, já preparado para gorgear. E o marquez juntou-se a elles, abafado no cache-nez de sêda branca, mais rouco, queixando-se de que a cada minuto a garganta se lhe punha peor... Aquella canalha d’aquella garganta ainda lhe vinha a pregar uma!...

Depois, muito sério, considerando o Alencar:

— Ouve lá, isso que tu vaes recitar, a Democracia, é politica ou sentimento? Se é politica, raspo-me. Mas se é sentimento, e a humanidade, e o santo operario, e a fraternidade, então fico, que d’isso gósto e até talvez me faça bem.

Os outros affirmaram que era sentimento. O poeta tirou o chapéo, passou os dedos pelos anneis fôfos da grenha inspirada:

— Eu vos digo, rapazes... Uma coisa não vai sem a outra, vejam vocês Danton!... Mas já não fallo emfim d’esses leões da Revolução. Vejam vocês o Passos Manoel! Está claro, é necessario logica... Mas, tambem, caramba, sêbo para uma politica sem entranhas e sem um bocado de infinito!

Subitamente, por sobre o novo silencio da sala, um vozeirão mais forte que o do Rufino fez retumbar os grandes nomes de D. João de Castro e de Affonso d’Albuquerque... Todos se acercaram da porta, curiosamente. Era um maganão gordo, de barba em bico e camelia na casaca, que, de mão fechada no ar como se agitasse o pendão das Quinas, lamentava aos berros que nós portuguezes, possuindo este nobre estuario do Tejo e tão formosas tradições de gloria, deixassemos esbanjar, ao vento do indifferentismo, a sublime herança dos avós!...

— É patriotismo, disse o Ega. Fujamos!

Mas o marquez reteve-os, gostando tambem de um bocado de Quinas. E foi o pobre marquez que o patriota pareceu interpellar, alçando na ponta dos botins o corpanzil rotundo, aos urros. Quem havia agora ahi, que, agarrando n’uma das mãos a espada e na outra a cruz, saltasse para o convés d’uma caravella a ir levar o nome portuguez através dos mares desconhecidos? Quem havia ahi, heroico bastante, para imitar o grande João de Castro, que na sua quinta de Cintra arrancára todas as arvores de fructo, tal a era a isenção da sua alma de poeta?...

— Aquelle miseravel quer-nos privar da sobremesa! exclamou Ega.

Em torno correram risos alegres. O marquez virou costas, enojado com aquella patriotice reles. Outros bocejavam por traz da mão, n’um tedio completo de «todas as nossas glorias». E Carlos, enervado, preso alli pelo dever de applaudir o Alencar, chamava o Ega para irem abaixo ao botequim espairecer a impaciencia — quando viu o Eusebiosinho que descia a escada, enfiando á pressa um paletot alvadio. Não o encontrára mais desde a infamia da Corneta, em que elle fôra «embaixador». E a cólera que tivera contra elle n’esse dia reviveu logo n’um desejo irresistivel de o espancar. Disse ao Ega:

— Vou aproveitar o tempo, emquanto esperamos pelo Alencar, a arrancar as orelhas áquelle maroto!

— Deixa lá, acudiu Ega, é um irresponsavel!

Mas já Carlos corria pelas escadas: Ega seguiu atraz, inquieto, temendo uma violencia. Quando chegaram á porta, Eusebio mettera para os lados do Carmo. E alcançaram-no no largo da Abegoaria, áquella hora deserto, mudo, com dois bicos de gaz mortiços. Ao vêr Carlos fender assim sobre elle, sem paletot, de peitilho claro na noite escura, o Eusebio, encolhido, balbuciou atarantadamente: «Olá, por aqui...»

— Ouve cá, estupôr! rugiu Carlos, baixo. Então tambem andaste mettido n’essa maroteira da Corneta? Eu devia rachar-te os ossos um a um!

Agarrára-lhe o braço, ainda sem odio. Mas, apenas sentiu na sua mão de forte aquella carne mollenga e tremula, resurgiu n’elle essa aversão nunca apagada — que já em pequeno o fazia saltar sobre o Eusebiosinho, esfrangalhal-o, sempre que as Silveiras o traziam á quinta. E então abanou-o, como outr’ora, furiosamente, gozando o seu furor. O pobre viuvo, no meio das lunetas negras que lhe voavam, do chapéo coberto de luto que lhe rolára nas lages, dançava, escanifrado e desengonçado. Por fim Carlos atirou-o contra a porta d’uma cocheira.

— Acudam! Aqui d’el-rei, policia! rouquejou o desgraçado.

Já a mão de Carlos lhe empolgára as guelas. Mas Ega interveio:

— Alto! Basta! O nosso querido amigo já recebeu a sua dóse...

Elle mesmo lhe apanhou o chapéo. Tremendo, arquejando, de bruços, Eusebiosinho procurava ainda o guarda-chuva. E, para findar, a bota de Carlos, atirada com nojo, estatelou-o nas pedras, para cima d’uma sargeta onde restavam immundicies e humidade de cavallo.

O largo permanecia deserto, com o gaz adormecendo nos candieiros baços. Tranquillamente os dois recolheram ao sarau. No peristylo, cheio de luz e plantas, cruzaram-se com o patriota de barbas em bico, rodeado d’amigos, em caminho para o botequim, limpando ao lenço o pescoço e a face, exclamando com o cansaço radiante d’um triumphador:

— Irra! custou, mas sempre lhes fiz vibrar a corda!

Já o Alencar estaria gorgeando! Os dois amigos galgaram a escada. E com effeito Alencar apparecera no estrado, onde ardia ainda o candelabro de duas velas.

Esguio, mais sombrio n’aquelle fundo côr de canario, o poeta derramou pensativamente pelas cadeiras, pela galeria, um olhar encovado e lento: e um silencio pesou, mais enlevado, diante de tanta melancolia e de tanta solemnidade.

A Democracia! annunciou o auctor d’Elvira, com a pompa d’uma revelação.

Duas vezes passou pelos bigodes o lenço branco, que depois atirou para a mesa. E levantando a mão n’um gesto demorado e largo:

Era n’um parque. O luar
Sobre os vastos arvoredos,
Cheios de amor e segredos...

— Que lhe disse eu? exclamou o Ega, tocando no cotovêlo do marquez. É sentimento... Aposto que é o festim!

E era com effeito o festim, já cantado na Flôr de Martyrio, festim romantico, n’um vago jardim onde vinhos de Chypre circulam, caudas de brocado rojam entre macissos de magnolias, e das aguas do lago sobem cantos ao gemer dos violoncellos... Mas bem depressa transpareceu a severa idéa social da Poesia. Emquanto, sob as arvores radiantes de luar, tudo são «risos, brindes, lascivos murmurios» — fóra, junto ás grades douradas do parque, assustada com o latir dos molossos, uma mulher macilenta, em farrapos, chora, aconchegando ao seio magro o filho que pede pão... E o poeta, sacudindo os cabellos para traz, perguntava porque havia ainda esfomeados n’este orgulhoso seculo XIX? De que servira então, desde Spartacus, o esforço desesperado dos homens para a Justiça e para a Igualdade? De que servira então a cruz do grande Martyr, erguida além na collina, onde, por entre os abetos

Os raios do sol se somem,
O vento triste se cala...
E as aguias revolteando
D’entre as nuvens estão olhando
Morrer o filho do Homem!

A sala permanecia muda e desconfiada. E o Alencar, com as mãos tremendo no ar, desolava-se de que todo o Genio das gerações fosse impotente para esta coisa simples — dar pão á criança que chora!

Martyrio do coração!
Espanto da consciencia!
Que toda a humana sciencia
Não solva a negra questão!

Que os tempos passem e rolem
E nenhuma luz assome,
E eu veja d’um lado a fome
E do outro a indigestão!

Ega torcia-se, fungando dentro do lenço, jurando que rebentava. «E do outro a indigestão!» Nunca, nas alturas lyricas, se gritára nada tão extraordinario! E sujeitos graves, em redor, sorriam d’aquelle realismo sujo. Um jocoso lembrou que para indigestões já havia o bi-carbonato de potassa.

— Quando não são das minhas! rosnou um cavalheiro esverdinhado, que alargava a fivela do collete.

Mas tudo emmudeceu ante um chut terrivel do marquez, que desapertára o cache-nez, já excitado, no enternecimento que sempre lhe davam estes humanitarismos poeticos. E entretanto, no estrado, o Alencar achára a solução do soffrimento humano! Fôra uma Voz que lh’a ensinára! Uma Voz sahida do fundo dos seculos, e que através d’elles, sempre suffocada, viera crescendo todavia irresistivelmente desde o Golgotha até á Bastilha! E então, mais solemne por traz da mesa, com um arranque de Precursor e uma firmeza de Soldado, como se aquelle honesto movel de mogno fosse um pulpito e uma barricada — o Alencar, alçando a fronte n’uma grande audacia á Danton, soltou o brado temeroso. Alencar queria a Republica!

Sim, a Republica! Não a do Terror e a do odio, mas a da mansidão e do Amor. Aquella em que o Millionario sorrindo abre os braços ao Operario! Aquella que é Aurora, Consolação, Refugio, Estrella mystica e Pomba...

Pomba da Fraternidade,
Que estendendo as brancas azas
Por sobre os humanos lodos,
Envolve os seus filhos todos
Na mesma santa Igualdade!...

Em cima, na galeria, resoou um bravo ardente. E immediatamente, para o suffocar, sujeitos sérios lançaram, aqui e além: «Chut, silencio!» Então Ega ergueu as mãos magras, bem alto, berrou com um destaque atrevido:

— Bravo! Muito bem! Bravo!

E todo pallido da sua audacia, entalando o monoculo, declarou para os lados:

— Aquella democracia é absurda... Mas que os burguezes se dêem ares intolerantes, isso não! Então applaudo eu!

E as suas mãos magras de novo se ergueram, bem alto, junto das do marquez que retumbavam como malhos. Outros em volta, immediatamente, não se querendo mostrar menos democratas que o Ega e aquelle fidalgo de tão grande linhagem, reforçaram os bravos com calor. Já pela sala se voltavam olhares inquietos para aquelle grupo cheio de revolução. Mas um silencio cahiu, mais commovido e grave, quando o Alencar (que inspiradamente previra a intolerancia burgueza) perguntou em estrophes iradas o que detestavam, o que receavam elles, no advento sublime da Republica? Era o pão carinhoso dado á criança? Era a mão justa estendida ao proletario? Era a esperança? Era a aurora?

Receaes a grande luz?
Tendes medo do Abecê?...
Então castigai quem lê,
Voltai á plebe soez!
Recuai sempre na Historia,
Apagai o gaz nas ruas,
Deixai as crianças nuas,
E venha a forca outra vez!

Palmas, mais numerosas, já sinceras, estalaram pela sala, que cedia emfim ao repetido encanto d’aquelle lyrismo humanitario e sonoro. Já não importava a Republica, os seus perigos. Os versos rolavam, cantantes e claros; e a sua onda larga arrastava os espiritos mais positivos. Sob aquelle bafo de sympathia Alencar sorria, com os braços abertos, annunciando uma a uma, como perolas que se desfiam, todas as dadivas que traria a Republica. Debaixo da sua bandeira, não vermelha mas branca, elle via a terra coberta de searas, todas as fomes satisfeitas, as nações cantando nos valles sob o olhar risonho de Deus. Sim, porque Alencar não queria uma Republica sem Deus! A Democracia e o Christianismo, como um lirio que se abraça a uma espiga, completavam-se, estreitando os seios! A rocha do Golgotha tornava-se a tribuna da Convenção! E para tão dôce ideal não se necessitavam cardeaes, nem missaes, nem novenas, nem igrejas. A Republica, feita só de pureza e de fé, reza nos campos; a lua cheia é hostia; os rouxinoes entoam o tantum ergo nos ramos dos loureiraes. E tudo prospéra, tudo refulge — ao mundo do Conflicto substitue-se o mundo do Amor...

Á espada succede o arado,
A Justiça ri da Morte,
A escóla está livre e forte,
E a Bastilha derrocada.
Róla a tiára no lodo,
Brota o lirio da Igualdade,
E uma nova Humanidade
Planta a cruz na barricada!

Uma rajada farta e franca de bravos fez oscillar as chammas do gaz! Era a paixão meridional do verso, da sonoridade, do Liberalismo romantico, da imagem que esfuzia no ar com um brilho crepitante de foguete, conquistando emfim tudo, pondo uma palpitação em cada peito, levando chefes de repartição a berrarem, estirados por cima das damas, no enthusiasmo d’aquella republica onde havia rouxinoes! E quando Alencar, alçando os braços ao tecto, com modulações de preghiera na voz roufenha, chamou para a terra essa pomba da Democracia, que erguera o vôo do Calvario, e vinha com largos sulcos de luz — foi um enternecimento banhando as almas, um fundo arrepio d’extasi. As senhoras amolleciam nas cadeiras, com a face meia voltada ao céo. No salão abrazado perpassavam frescuras de capella. As rimas fundiam-se n’um murmurio de ladainha, como evoladas para uma Imagem que pregas de setim cobrissem, estrellas d’ouro coroassem. E mal se sabia já se Essa, que se invocava e se esperava, era a deusa da Liberdade — ou Nossa Senhora das Dôres.

Alencar no emtanto via-a descer, espalhando um perfume. Já Ella tocava com os seus pés divinos os valles humanos. Já do seu seio fecundo trasbordava a universal abundancia. Tudo reflorescia, tudo rejuvenescia:

As rosas têm mais aroma!
Os fructos têm mais doçura!
Brilha a alma clara e pura,
Solta de sombras e véos...
Foge a dôr espavorida,
Foi-se a fome, foi-se a guerra,
O homem canta na terra,
E Christo sorri nos céos!...

Uma acclamação rompeu, immensa e rouca, abalando os muros côr de canario. Moços exaltados treparam ás cadeiras, dois lenços brancos fluctuavam. E o poeta, tremulo, exhausto, rolou pela escada até aos braços que se lhe estendiam frementes. Elle suffocava, murmurava: «filhos! rapazes!...» Quando Ega correu do fundo, com Carlos, gritando — «Fôste extraordinario, Thomaz!» — as lagrimas saltaram dos olhos do Alencar, quebrado todo d’emoção.

E ao longo da coxia a ovação continuou, feita de palmadinhas pelo hombro, de shake-hands da gente séria, de «muitos parabens a v. exc.ª!» Pouco a pouco elle erguia a cabeça, n’um altivo sorriso que lhe mostrava os dentes maus, sentindo-se o poeta da Democracia, consagrado, ungido pelo triumpho, com a inesperada missão de libertar almas! D. Maria da Cunha puxou-lhe pela manga quando elle passou, para murmurar, encantada, que achára — «lindissimo, lindissimo». E o poeta, estonteado, exclamou: «Maria, é necessario luz!» Telles da Gama veio bater-lhe nas costas affirmando-lhe que «piára esplendidamente». E Alencar, inteiramente perdido, balbuciou: «Sursum corda, meu Telles, sursum corda

Ega no emtanto, através do tumulto, farejava buscando Carlos que desapparecera depois dos abraços ao Alencar. Taveira assegurou-lhe que Carlos passára para o botequim. Depois em baixo um garoto jurou que o snr. D. Carlos tomára uma tipoia e ia já virando o Chiado...

Ega ficou á porta hesitando se aturaria o resto do sarau. N’esse momento o Gouvarinho, trazendo a condessa pelo braço, descia rapidamente, com a face toda contrariada e sombria. O trintanario de ss. exc.as correu a chamar o coupé. E quando o Ega se acercou, sorrindo, para saber que impressão lhes deixára o grande triumpho democratico do Alencar — a profunda cólera do Gouvarinho escapou-se-lhe, mal contida, por entre os dentes cerrados:

— Versos admiraveis, mas indecentes!

O coupé avançou. Elle teve apenas tempo de rosnar ainda, surdamente, apertando a mão ao Ega:

— N’uma festa de sociedade, sob a protecção da rainha, diante d’um ministro da corôa, fallar de barricadas, prometter mundos e fundos ás classes proletarias... É perfeitamente indecente!

Já a condessa enfiára a portinhola, apanhando a larga cauda de sêda. O ministro mergulhou tambem furiosamente na sombra do coupé. Junto ás rodas passou choutando, n’uma pileca branca, o correio agaloado.

Ega ia subir. Mas o marquez appareceu, abafado n’um gabão d’Aveiro, fugindo a um poeta de grandes bigodes que ficára em cima a recitar quadrinhas miudinhas a uns olhinhos galantinhos: e o marquez detestava versos feitos a partes do corpo humano. Depois foi o Cruges que surgiu do botequim, abotoando o paletot. Então, perante essa debandada de todos os amigos, Ega decidiu abalar tambem, ir tomar o seu grog ao Gremio com o maestro.

Metteram o marquez n’uma tipoia — e elle e Cruges desceram a rua Nova da Trindade, devagar, no encanto estranho d’aquella noite d’inverno, sem estrellas, mas tão macia que n’ella parecia andar perdido um bafo de maio.

Passavam á porta do Hotel Alliança quando Ega sentiu alguem, que se apressava, chamar atraz: «Ó snr. Ega! V. exc.ª faz favor, snr. Ega?...» — Parou, reconheceu o chapéo recurvo, as barbas brancas do snr. Guimarães.

— V. exc.ª desculpe! exclamou o demagogo esbaforido. Mas vi-o descer, queria-lhe dar duas palavras, e como me vou embora ámanhã...

— Perfeitamente... Ó Cruges, vai andando, já te apanho!

O maestro estacionou á esquina do Chiado. O snr. Guimarães pedia de novo desculpa. De resto eram duas curtas palavras...

— V. exc.ª, segundo me disseram, é o grande amigo do snr. Carlos da Maia... São como irmãos...

— Sim, muito amigos...

A rua estava deserta, com alguns garotos apenas á porta alumiada da Trindade. Na noite escura a alta fachada do Alliança lançava sobre elles uma sombra maior. Todavia o snr. Guimarães baixou a voz cautelosa:

— Aqui está o que é... V. exc.ª sabe, ou talvez não saiba, que eu fui em Paris intimo da mãi do snr. Carlos da Maia... V. exc.ª tem pressa, e não vem agora a proposito essa historia. Basta dizer que aqui ha annos ella entregou-me, para eu guardar, um cofre que, segundo dizia, continha papeis importantes... Depois naturalmente, ambos tivemos muitas outras coisas em que pensar, os annos correram, ella morreu. N’uma palavra, porque v. exc.ª está com pressa: eu conservo ainda em meu poder esse deposito, e trouxe-o por acaso quando vim agora a Portugal por negocios da herança de meu irmão... Ora hoje justamente, alli no theatro, comecei a reflectir que o melhor era entregal-o á familia...

O Cruges mexeu-se impaciente:

— Ainda te demoras?

— Um instante! gritou Ega, já interessado por aquelles papeis e pelo cofre. Vai andando.

Então o snr. Guimarães, á pressa, resumiu o pedido. Como sabia a intimidade do snr. João da Ega e de Carlos da Maia, lembrára-se de lhe entregar o cofresinho para que elle o restituisse á familia...

— Perfeitamente! acudiu Ega. Eu estou mesmo em casa dos Maias, no Ramalhete.

— Ah, muito bem! Então v. exc.ª manda um criado de confiança ámanhã buscal-o... Eu estou no Hotel de Paris, no Pelourinho. Ou melhor ainda: levo-lh’o eu, não me dá incommodo nenhum, apesar de ser dia de partida...

— Não, não, eu mando um criado! insistiu o Ega estendendo a mão ao democrata.

Elle estreitou-lh’a com calor.

— Muito agradecido a v. exc.ª! Eu junto-lhe então um bilhete e v. exc.ª entrega-o da minha parte ao Carlos da Maia, ou á irmã.

Ega teve um movimento d’espanto:

— Á irmã!... A que irmã?

O snr. Guimarães considerou Ega tambem com assombro. E abandonando-lhe lentamente a mão:

— A que irmã!? Á irmã d’elle, á unica que tem, á Maria!

Cruges, que batia as solas no lagedo, enfastiado gritou da esquina:

— Bem, eu vou andando para o Gremio.

— Até logo!

O snr. Guimarães, no emtanto, passava os dedos calçados de pellica preta pelos longos fios da barba, fitando o Ega, n’um esforço de penetração. E quando Ega lhe travou do braço, pedindo-lhe para conversarem um pouco até ao Loreto, o democrata deu os primeiros passos com uma lentidão desconfiada.

— Eu parece-me, dizia o Ega sorrindo, mas nervoso, que nós estamos aqui a enrodilhar-nos n’um equivoco... Eu conheço o Maia desde pequeno, vivo até agora em casa d’elle, posso afiançar-lhe que não tem irmã nenhuma...

Então o snr. Guimarães começou a rosnar umas desculpas embrulhadas que mais enervavam, torturavam o Ega. O snr. Guimarães imaginava que não era segredo, que todas essas coisas da irmã estavam esquecidas, desde que houvera reconciliação...

— Como vi, ainda não ha muitos dias, o snr. Carlos da Maia com a irmã e com v. exc.ª, na mesma carruagem, no caes do Sodré...

— O quê! Aquella senhora! A que ia na carruagem?

— Sim! exclamou o snr. Guimarães irritado, farto emfim d’essa confusão em que se debatiam. Aquella mesma, a Maria Eduarda Monforte, ou a Maria Eduarda Maia, como quizer, que eu conheci de pequena, com quem andei muitas vezes ao collo, que fugiu com o Mac-Gren, que esteve depois com a besta do Castro Gomes... Essa mesma!

Era ao meio do Loreto sob o lampeão de gaz. E o snr. Guimarães de repente estacou, vendo os olhos do Ega esgazearem-se de horror, uma terrivel pallidez cobrir-lhe a face.

— V. exc.ª não sabia nada d’isto?

Ega respirou fortemente, arredando o chapéo da testa sem responder. Então o outro, embaçado, terminou por encolher os hombros. Bem, via que tinha feito uma tolice! A gente nunca se devia intrometter nos negocios alheios! Mas acabou-se! Imaginasse o snr. Ega que aquillo fôra um pesadêlo, depois da versalhada do sarau! Pedia desculpa sinceramente — e desejava ao snr. João da Ega muitissimo boas noites.

Ega, como a um clarão de relampago, entrevira toda a catastrophe: e agarrou avidamente o braço do snr. Guimarães, n’um terror que elle abalasse, desapparecesse, levando para sempre o seu testemunho, esses papeis, o cofre da Monforte, e com elles a certeza — a certeza por que agora anciava. E através do Loreto, vagamente, foi balbuciando, justificando a sua emoção, para tranquillisar o homem, poder lentamente arrancar-lhe as coisas que soubesse, as provas, a verdade inteira.

— O snr. Guimarães comprehende... Isto são coisas muito delicadas, que eu suppunha absolutamente ignoradas de todos... De modo que fiquei embatucado, fiquei tonto, quando o ouvi assim de repente fallar d’ellas com essa simplicidade... Porque emfim, aqui para nós, essa senhora não passa em Lisboa por irmã de Carlos.

O snr. Guimarães atirou logo a mão n’um grande gesto. Ah, bem! Então era jogo com elle? Pois tinha feito o snr. Ega perfeitamente... Com certeza eram coisas muito sérias, que necessitavam toda a sorte de véos... Elle comprehendia, comprehendia muito bem!... E realmente, dada a posição dos Maias em Lisboa, na sociedade, aquella senhora não era irmã que se apresentasse.

— Mas a culpa não a teve ella, meu caro senhor! Foi a mãi, foi aquella extraordinaria mãi que o Diabo lhe deu!...

Desciam o Chiado. Ega parou um momento, devorando o velho com olhos de febre:

— O snr. Guimarães conheceu muito essa senhora, a Monforte?

Intimamente! Já a conhecera em Lisboa — mas de longe, como mulher de Pedro da Maia. Depois viera essa tragedia, ella fugira com o italiano. Elle abalára tambem para Paris n’esse anno, com uma Clemence, uma costureira da Levaillant: e, umas coisas enfiando n’outras, negocios e desgraças, por lá ficára para sempre! Emfim, não era a sua vida que lhe ia contar... Só mais tarde encontrára a Monforte, uma noite, no baile Laborde: e d’ahi datavam as suas relações. A esse tempo já o italiano morrera n’um duello, e o velho Monforte espichára da bexiga. Ella estava então com um rapaz chamado Trevernnes — n’uma casa bonita, no Parc Monceaux, em grande chic... Mulher extraordinaria! E não se envergonhava de confessar que lhe devia obrigações! Quando essa rapariga, a Clemence, que era um encanto, adoecera do peito, a Monforte trazia-lhe flôres, frutas, vinhos, fazia-lhe companhia, velava-a como um anjo... Porque lá isso coração largo e generoso até alli! Esta, a filha, a D. Maria, tinha então sete ou oito annos, linda como os amores... E houvera uma outra pequena do italiano, muito galantinha tambem. Oh! muito galantinha tambem! Mas morrera em Londres, essa...

— E com esta Maria andei muitas vezes ao collo, meu caro senhor... Não sei se ella ainda se lembra d’uma boneca que eu lhe dei, que fallava, dizia Napoléon... Era no bello tempo do Imperio, até as desavergonhadas das bonecas eram imperialistas! Depois, quando ella estava em Tours, no convento, fui lá duas vezes com a mãi. Já então os meus principios me não permittiam entrar n’esses covis religiosos: mas emfim fui acompanhar a mãi... E quando ella fugiu com o irlandez, o Mac-Gren, foi commigo que a mãi veio ter, furiosa, a querer que eu chamasse o commissario de policia para se prender o irlandez. Por fim metteu-se n’um fiacre, foi para Fontainebleau, lá fez as pazes, viviam até juntos... Emfim uma série de trapalhadas.

Um suspiro cansado escapou-se do peito do Ega, que arrastava os passos, succumbido:

— E esta senhora, está claro, não sabia então de quem era filha...

O snr. Guimarães encolheu os hombros:

— Nem suspeitava que existissem Maias sobre a face da terra! A Monforte dissera-lhe sempre que o pai era um fidalgo austriaco com quem ella casára na Madeira... Uma mixordia, meu caro senhor, uma mixordia!

— É horrivel! murmurou Ega.

Mas, dizia o snr. Guimarães, que podia tambem fazer a Monforte? Que diabo, era duro confessar á filha: «Olha que eu fugi a teu pai, e elle por causa d’isso matou-se!» Não tanto pela questão de pudor; a rapariga devia perceber que a mãi tinha amantes, ella mesma aos dezoito annos, coitadinha, já tinha um; mas por causa do tiro, do cadaver, do sangue...

— A mim mesmo! exclamou o snr. Guimarães, parando, alargando os braços na rua deserta. A mim mesmo nunca ella fallou do marido, nem de Lisboa, nem de Portugal. Lembra-me até uma occasião em casa da Clemence, que eu alludi a um cavallo lazão, um cavallo de Pedro da Maia, em que ella costumava montar. Animal soberbo! Mas nem mencionei o marido, fallei só do cavallo. Pois senhores, bate com o leque em cima da mesa, grita como uma bicha: — Dites donc, mon cher, vous m’embêtez avec ces histoires de l’autre monde!... Com effeito, bem o podia dizer, eram historias do outro mundo! Para encurtar: estou convencido que nos ultimos tempos ella mesmo julgava que Pedro da Maia nunca existira. Uma insensata! Por fim até bebia... Mas acabou-se! Tinha grande coração, e portou-se muito bem com a Clemence. Parce sepultis!

— É horrivel! murmurou outra vez o Ega, tirando o chapéo, correndo a mão tremula pela testa.

E agora o seu unico desejo era a accumulação incessante de provas, de detalhes. Fallou então d’esses papeis, d’esse cofre da Monforte. O snr. Guimarães não sabia o que elles continham; e não se admiraria se fossem apenas contas de modista, ou pedaços velhos do Figaro em que se fallava d’ella...

— É uma caixita pequena que a Monforte me deu, na vespera de partir para Londres com a filha. Era no tempo da guerra... Já a Maria vivia com o irlandez, tinha mesmo uma pequena, a Rosa. Depois veio a Communa, todos aquelles desastres. Quando a Monforte voltou de Londres eu estava em Marselha. Foi então que a pobre Maria se metteu com o Castro Gomes, creio que para não morrer de fome... Eu recolhi a Paris, mas não vi mais a Monforte, que já estava muito doente... Á Maria, collada então a essa besta do Castro Gomes, um pedante, um rastaquouère mesmo a calhar para a guilhotina, não tornei tambem a fallar. Se a encontrava era um comprimento de longe, como n’outro dia, quando a vi na carruagem com v. exc.ª e com o irmão... De sorte que fui ficando com os papeis. Nem a fallar a verdade, com estas coisas todas de politica, me lembrei mais d’elles. E agora ahi estão, ás ordens da familia.

— Se isso não fosse incommodo para v. exc.ª, acudiu Ega, eu passava agora pelo seu hotel e levava-os logo commigo...

— Incommodo nenhum! Estamos em caminho, é negocio que fica feito!

Algum tempo seguiram calados. O sarau decerto acabára. Um bater de carruagens atroava as descidas do Chiado. Junto d’elles passaram duas senhoras, com um rapaz que bracejava, fallando alto do Alencar. O snr. Guimarães tirára lentamente do bolso a charuteira: depois parando, para raspar um phosphoro:

— Então a D. Maria passa simplesmente por parenta?... E como soube ella? Como foi isso?

Ega, que caminhava com a cabeça cahida, estremeceu como se acordasse. E começou a tartamudear uma historia confusa, de que elle mesmo córava na sombra. Sim, Maria Eduarda passava por parenta. Fôra o procurador que descobrira. Ella rompera com o Castro Gomes, com todo o passado. Os Maias davam-lhe uma mezada; e vivia nos Olivaes, muito retirada, como filha d’um Maia que morrera na Italia. Todos gostavam muito d’ella, Affonso da Maia tinha grande ternura pela pequena...

E de repente indignou-se com estas invenções por onde arrastava já o nome do nobre velho, exclamou como se abafasse:

— Emfim, nem eu sei, um horror!

— Um drama! resumiu gravemente o snr. Guimarães.

E como estavam no Pelourinho rogou ao Ega que esperasse um momento emquanto elle corria acima buscar os papeis da Monforte.

Só, no largo, Ega ergueu as mãos ao céo n’um desabafo mudo d’aquella angustia em que caminhava, como um somnambulo, desde o Loreto. E a sua unica sensação, bem clara — era a indestructivel certeza da historia do Guimarães, tão compacta, sem uma lacuna, sem uma falha por onde rachasse e se fizesse cahir aos pedaços. O homem conhecera Maria Monforte em Lisboa, ainda mulher de Pedro da Maia, brilhando no seu cavallo lazão; encontrára-a em Paris já fugida, depois da morte do primeiro amante, vivendo com outros; andára então ao collo com Maria Eduarda a quem se davam bonecas... E desde então não deixára mais de vêr Maria Eduarda, de a seguir: em Paris; no convento de Tours; em Fontainebleau com o irlandez; nos braços de Castro Gomes; n’uma tipoia de praça emfim com elle e com Carlos da Maia, havia dias, no caes do Sodré! Tudo isto se encadeava, concordando com a historia contada por Maria Eduarda. E de tudo resaltava esta certeza monstruosa: — Carlos amante da irmã!

Guimarães não descia. No segundo andar surgira uma luz viva, n’uma janella aberta. Ega recomeçou a passear lentamente pelo meio do largo. E agora, pouco a pouco, subia n’elle uma incredulidade contra esta catastrophe de dramalhão. Era acaso verosimil que tal se passasse, com um amigo seu, n’uma rua de Lisboa, n’uma casa alugada á mãi Cruges?... Não podia ser! Esses horrores só se produziam na confusão social, no tumulto da Meia-Idade! Mas n’uma sociedade burgueza, bem policiada, bem escripturada, garantida por tantas leis, documentada por tantos papeis, com tanto registro de baptismo, com tanta certidão de casamento, não podia ser! Não! Não estava no feitio da vida contemporanea que duas crianças separadas por uma loucura da mãi, depois de dormirem um instante no mesmo berço, cresçam em terras distantes, se eduquem, descrevam as parabolas remotas dos seus destinos — para quê? Para virem tornar a dormir juntas no mesmo ponto, n’um leito de concubinagem! Não era possivel. Taes coisas pertencem só aos livros, onde vêm, como invenções subtis da arte, para dar á alma humana um terror novo... Depois levantava os olhos para a janella alumiada — onde o snr. Guimarães decerto rebuscava os papeis na mala. Alli estava porém esse homem com a sua historia — em que não havia uma discordancia por onde ella pudesse ser abalada!... E pouco a pouco aquella luz viva, sahida do alto, parecia ao Ega penetrar n’essa intrincada desgraça, aclaral-a toda, mostrar-lhe bem a lenta evolução. Sim, tudo isso era provavel no fundo! Essa criança, filha d’uma senhora que a levára comsigo, cresce, é amante d’um brazileiro, vem a Lisboa, habita Lisboa. N’um bairro visinho vive outro filho d’essa mulher, por ella deixado, que cresceu, é um homem. Pela sua figura, o seu luxo, elle destaca n’esta cidade provinciana e pelintra. Ella por seu lado, loura, alta, esplendida, vestida pela Laferrière, flôr d’uma civilisação superior, faz relêvo n’esta multidão de mulheres miudinhas e morenas. Na pequenez da Baixa e do Aterro, onde todos se acotovelavam, os dois fatalmente se cruzam: e com o seu brilho pessoal, muito fatalmente se attrahem! Ha nada mais natural? Se ella fosse feia e trouxesse aos hombros uma confecção barata da loja da America, se elle fosse um mocinho encolhido de chapéo côco, nunca se notariam e seguiriam diversamente nos seus destinos diversos. Assim, o conhecerem-se era certo, o amarem-se era provavel... E um dia o snr. Guimarães passa, a verdade terrivel estala!

A porta do hotel rangeu no escuro, o snr. Guimarães adiantou-se, de boné de sêda na cabeça, com o embrulho na mão.

— Não podia dar com a chave da mala, desculpe v. exc.ª É sempre assim quando ha pressa... E aqui temos o famoso cofre!

— Perfeitamente, perfeitamente...

Era uma caixa que parecia de charutos e que o democrata embrulhára n’um velho numero do Rappel. Ega metteu-a no bolso largo do seu paletot: e immediatamente, como se qualquer outra palavra entre elles fosse vã, estendeu a mão ao snr. Guimarães. Mas o outro insistiu em o acompanhar até á esquina da rua do Arsenal, apesar de estar de boné. A noite, para quem vinha de Paris, tinha uma doçura oriental — e elle, com os seus habitos de jornalista, nunca se deitava senão tarde, ás duas, tres horas da madrugada...

E então, caminhando devagar, com as mãos nos bolsos e o charuto entre os dentes, o snr. Guimarães voltou á politica e ao sarau. A poesia do Alencar (de que esperára muito por causa do titulo, A Democracia) sahira-lhe consideravelmente chôcha.

— Muita flôr, muita farofia, muita liberdade, mas não havia alli um ataque em fórma, duas ou tres boas estocadas n’esta choldra da monarchia e da côrte... Pois não é verdade?

— Sim, com effeito... — murmurou Ega, olhando ao longe, na esperança d’uma tipoia.

— É como os jornaes republicanos que por ahi ha... Tudo uma palhada, senhores, tudo uma balofice!... É o que eu lhes digo a elles: — «Ó almas do diabo, atacai as questões sociaes!»

Felizmente um trem avançava, rolando devagar, do lado do Terreiro do Paço. Ega, precipitadamente, deu um aperto de mão ao democrata, desejou-lhe uma «boa viagem», atirou ao cocheiro a adresse do Ramalhete. Mas o snr. Guimarães ainda se apoderou da portinhola — para aconselhar ao Ega que fosse a Paris. Agora, que tinham feito amizade, havia de o apresentar a toda aquella gente... E o snr. Ega veria! Não era cá a grande pose portugueza, d’estes imbecis, d’estes pelintras a darem-se ares, torcendo os bigodes. Lá, na primeira nação do mundo, tudo era alegria e fraternidade e espirito a rodos...

— E a minha adresse, na redacção do Rappel! Bem conhecida no mundo! Emquanto ao embrulhosinho fico descançado...

— Póde v. exc.ª ficar descançado!

— Criado de v. exc.ª... Os meus comprimentos á snr.ª D. Maria!

Na carruagem, através do Aterro, a anciosa interrogação do Ega a si mesmo foi — «que hei de fazer?» Que faria, santo Deus, com aquelle segredo terrivel que possuia, de que só elle era senhor, agora que o Guimarães partia, desapparecia para sempre? E antevendo com terror todas as angustias em que essa revelação ia lançar o homem que mais estimava no mundo — a sua instinctiva idéa foi guardar para sempre o segredo, deixal-o morrer dentro em si. Não diria nada; o Guimarães sumia-se em Paris; e quem se amava continuava a amar-se!... Não crearia assim uma crise atroz na vida de Carlos — nem soffreria elle, como companheiro, a sua parte d’essas afflicções. Que coisa mais impiedosa, de resto, que estragar a vida de duas innocentes e adoraveis creaturas, atirando-lhes á face uma prova de incesto!...

Mas, a esta idéa de incesto, todas as consequencias d’esse silencio lhe appareceram, como coisas vivas e pavorosas, flammejando no escuro diante dos seus olhos. Poderia elle tranquillamente testemunhar a vida dos dois — desde que a sabia incestuosa? Ir á rua de S. Francisco, sentar-se-lhes alegremente á mesa, entrevêr através do reposteiro a cama em que ambos dormiam — e saber que esta sordidez de peccado era obra do seu silencio? Não podia ser... Mas teria tambem coragem de entrar ao outro dia no quarto de Carlos, e dizer-lhe em face — «Olha que tu és amante de tua irmã?»

A carruagem parára no Ramalhete. Ega subiu, como costumava, pela escada particular de Carlos. Tudo estava apagado e mudo. Accendeu a sua palmatoria; entreabriu o reposteiro dos aposentos de Carlos; deu alguns passos timidos no tapete, que pareceram já soar tristemente. Um reflexo d’espelho alvejou ao fundo na sombra da alcova. E a luz cahiu sobre o leito intacto, com a sua longa colcha lisa, entre os cortinados de sêda. Então a idéa que Carlos estava áquella hora na rua de S. Francisco, dormindo com uma mulher que era sua irmã, atravessou-o com uma cruel nitidez, n’uma imagem material, tão viva e real, que elle viu-os claramente, de braços enlaçados, e em camisa... Toda a belleza de Maria, todo o requinte de Carlos desappareciam. Ficavam só dois animaes, nascidos do mesmo ventre, juntando-se a um canto como cães, sob o impulso bruto do cio!

Correu para o seu quarto, fugindo áquella visão a que o escuro do corredor, mal dissipado pela luz tremula, accentuava mais o relêvo. Aferrolhou a porta; accendeu á pressa sobre o toucador, uma depois da outra, com a mão agitada, as seis velas dos candelabros. E agora apparecia-lhe mais urgente, inevitavel, a necessidade de contar tudo a Carlos. Mas ao mesmo tempo sentia em si, a cada instante, menos animo para chegar, encarar Carlos, e destruir-lhe a felicidade e a vida com uma revelação d’incesto. Não podia! Outro que lh’o dissesse! Elle lá estava depois para o consolar, tomar metade da sua dôr, carinhoso e fiel. Mas o desgosto supremo da vida de Carlos não viria de palavras cahidas da sua boca!... Outro que lh’o dissesse! Mas quem? Mil idéas passavam na sua pobre cabeça, incoherentes e tontas. Pedir a Maria que fugisse, desapparecesse... Escrever uma carta anonyma a Carlos, com a detalhada historia do Guimarães... E esta confusão, esta anciedade ia-se resolvendo lentamente em odio ao snr. Guimarães. Para que fallára áquelle imbecil? Para que insistira em lhe confiar papeis alheios? Para que lh’o apresentára o Alencar? Ah! se não fosse a carta do Damaso... Tudo provinha do maldito Damaso!

Agitando-se pelo quarto, ainda de chapéo, os seus olhos cahiram n’um sobrescripto pousado sobre a mesa de cabeceira. Reconheceu a letra do Villaça. E nem a abriu... Uma idéa sulcára-o de repente. Contar tudo ao Villaça!... Porque não? Era o procurador dos Maias. Nunca para elle houvera segredos n’aquella casa. E esta complicação singular d’uma senhora da familia, considerada morta e que surge inesperadamente — a quem a pertencia aclarar senão ao fiel procurador, ao velho confidente, ao homem que, por herança e por destino, recebera sempre todos os segredos e partilhára todos os interesses domesticos?... E sem pensar, sem aprofundar mais, fixou-se logo n’esta decisão salvadora, — que ao menos o socegava, lhe tirava já do coração um peso de ferro, suffocante e intoleravel...

Devia acordar cedo, procurar Villaça em casa. Escreveu n’uma folha de papel — «Acorda-me ás sete». E desceu abaixo, ao longo corredor de pedra onde dormiam os criados, dependurou este recado na chave do quarto do escudeiro.

Quando subiu, mais calmo, — abriu então a carta do Villaça. Era uma curta linha lembrando ao amigo Ega que a letrinha de duzentos mil reis, no Banco Popular, se vencia d’ahi a dois dias...

— Sêbo, tudo se junta! exclamou Ega furioso, atirando a carta amarrotada para o chão.

VII

 

Pontual, ás sete horas, o escudeiro acordou Ega. Ao rumor da porta elle sentou-se na cama com um salto — e logo todos os negros cuidados da vespera, Carlos, a irmã, a felicidade d’aquella casa acabada para sempre, se lhe ergueram n’alma em sobresalto, como despertando tambem. A portada da varanda ficára aberta; um ar silencioso e livido de madrugada clareava através do transparente de fazenda branca. Durante um momento Ega ficou olhando em redor, arrepiado; depois, sem coragem, remergulhou nos lençoes, gozando aquelle bocado de calor e de conchêgo antes d’ir affrontar fóra as amarguras do dia.

E pouco a pouco, sob o tepido conchêgo dos cobertores em que se atabafára, começou a afigurar-se-lhe menos urgente, e menos util, essa correria estremunhada a casa do Villaça... De que servia procurar o Villaça? Não se tratava alli de dinheiro, nem de demandas, nem de legalidade — de nada que reclamasse a experiencia d’um procurador. Era apenas introduzir um burguez mais n’um segredo tão terrivelmente delicado que elle mesmo se assustava de o saber. E acochado mais sob a roupa, apenas com o nariz ao frio, murmurava comsigo: «É uma tolice ir ao Villaça!»

De resto não poderia elle ajuntar em si bastante coragem para contar tudo a Carlos, logo, n’essa manhã, claramente, virilmente? Era por fim aquelle caso tão pavoroso como lhe parecera na vespera — um irreparavel desabamento d’uma vida de homem?... Ao pé da quinta da mãe, em Celorico, no logar de Vouzeias, houvera um successo parecido, dois irmãos que innocentemente iam casar. Tudo se aclarou ao reunirem-se os papeis para os banhos. Os noivos ficaram uns dias «embatucados», como dizia o padre Seraphim; mas por fim já riam, muito amigos, muito divertidos, quando se tratavam de «manos». O noivo, um rapagão bonito, contava depois «que ia havendo uma mixordia na familia». Aqui o engano seguira mais longe, as sensibilidades eram mais requintadas; mas os seus corações permaneciam livres de toda a culpa, innocentes absolutamente. Porque ficaria pois a existencia de Carlos para sempre estragada? A inconsciencia impedia-lhe o remorso: e passado o primeiro horror, de que lhe podia, na realidade, vir a definitiva dôr? Sómente do prazer ter findado. Era então como outro qualquer desgosto d’amor. Bem menos atroz do que se Maria o tivesse trahido com o Damaso!

De repente a porta abriu-se, Carlos appareceu exclamando:

— Então que madrugada foi esta? Disse-me agora lá em baixo o Baptista... É aventura? duello?

Trazia o paletot todo abotoado, com a gola erguida, escondendo ainda a gravata branca da vespera; e decerto chegára da rua de S. Francisco na tipoia que havia instantes Ega sentira parar na calçada.

Elle sentára-se bruscamente na cama; e estendendo a mão para os cigarros, sobre a mesa ao lado, murmurou, bocejando, que na véspera combinára uma ida a Cintra com o Taveira... Por precaução mandára-se chamar... Mas não sabia, acordára cansado...

— Que tal está o dia?

Justamente Carlos fôra correr o transparente da janella. Ahi, na mesa de trabalho, collocada em plena luz, ficára a caixa da Monforte embrulhada no Rappel. E Ega pensou n’um relance: — «Se elle repara, se pergunta, digo tudo!» — O seu pobre coração pôz-se a bater anciosamente no terror d’aquella decisão. Mas o transparente um pouco pêrro subiu, uma facha de sol banhou a mesa — e Carlos voltou sem reparar no cofre. Foi um immenso allivio para o Ega.

— Então, Cintra? disse Carlos, sentando-se aos pés da cama. Com effeito não é má idéa... A Maria ainda hontem esteve tambem a fallar d’ir a Cintra... Espera! Podiamos fazer a patuscada juntos... Iamos no break, a quatro!

E olhava já o relogio, calculando o tempo para atrellar, avisar Maria.

— O peor, acudiu o Ega atrapalhado, tomando de sobre a mesa o monoculo, é que o Taveira fallou em irmos com umas raparigas...

Carlos encolheu os hombros com horror. Que sordidez, ir com mulheres para Cintra, de dia!... De noite, nas trevas, por bebedeira, vá... Mas á luz do Senhor! Talvez com a Lola gorda, hein?...

Ega embrulhou-se n’uma complicada historia, limpando o monoculo á ponta do lençol. Não eram hespanholas... Pelo contrario, umas costureiras, raparigas sérias... Elle tinha um compromisso antigo d’ir a Cintra com uma d’ellas, filha d’um Simões, um estofador que fallira... Gente muito séria!...

Perante estes compromissos, tanta seriedade, Carlos desistiu logo da idéa de Cintra.

— Bem, acabou-se!... Vou então tomar banho e depois a negocios... E tu, se fôres, traze-me umas queijadas para a Rosa, que ella gosta!...

Apenas Carlos sahiu, Ega cruzou os braços desanimado, descorçoado, sentindo bem que não teria coragem nunca de «dizer tudo». Que havia de fazer?... E de novo, insensivelmente, se refugiou na idéa de procurar o Villaça, entregar-lhe o cofre da Monforte. Não havia homem mais honesto, nem mais pratico; e, pela mesma mediocridade do seu espirito burguez, quem melhor para encarar aquella catastrophe sem paixão e sem nervos?... E esta falta de nervos do Villaça fixou-o definitivamente.

Saltou então da cama, n’uma impaciencia, repicou a campainha. E emquanto o criado não entrava, foi, com o robe-de-chambre aos hombros, examinar o cofre da Monforte. Parecia com effeito uma velha caixa de charutos, embrulhada n’um papel de dobras já sujas e gastas, com marcas de lacre onde se distinguia uma divisa que seria decerto a da Monforte — Pro amore. Na tampa tinha escripto n’uma letra de mulher mal-ensinada — Monsieur Guimaran, à Paris. Ao sentir os passos do criado deitou-lhe por cima uma toalha, que pendia ao lado, n’uma cadeira. E d’ahi a meia hora rolava pelo Aterro n’uma tipoia descoberta, mais animado, respirando largamente aquelle bello ar da manhã, fino e fresco, que elle tão raras vezes gozava.

Começou por uma contrariedade. Villaça já sahira: e a criada não sabia bem se elle fôra para o escriptorio, se a uma vistoria ao Alfeite... Ega largou para o escriptorio, na rua da Prata. O snr. Villaça ainda não viera...

— E a que horas virá?

O escrevente, um rapaz macilento que torcia nervosamente sobre o collete uma corrente de coral, balbuciou que o snr. Villaça não devia tardar, se não tivesse atravessado, no vapor das nove, para o Alfeite... Ega desceu desesperado.

— Bem, gritou ao cocheiro, vai ao café Tavares...

No Tavares, ainda solitario áquella hora, um moço areava o sobrado. E emquanto esperava o almoço Ega percorreu os jornaes. Todos fallavam do sarau, em linhas curtas, promettendo detalhes criticos, mais tarde, sobre esse brilhante torneio artistico. Só a Gazeta Illustrada se alargava, com phrases sérias, tratando o Rufino de grandioso, o Cruges de esperançoso: no Alencar a Gazeta separava o philosopho do poeta; ao philosopho a Gazeta lembrava com respeito que nem todas as aspirações ideaes da philosophia, bellas como miragens de deserto, são realisaveis na pratica social; mas ao poeta, ao creador de tão formosas imagens, de tão inspiradas estancias, a Gazeta desafogadamente bradava — «bravo! bravo!» Havia ainda outras abominaveis sandices. Depois seguia-se a lista das pessoas que a Gazeta se recordava de ter visto, entre as quaes «destacava com o seu monoculo o fino perfil de João da Ega, sempre brilhante de verve.» Ega sorriu, cofiando o bigode. Justamente o bife chegava, fumegante, chiando na frigideirinha de barro. Ega pousou a Gazeta ao lado, dizendo comsigo: «Não é nada mal feito, este jornal!»

O bife era excellente: — e depois d’uma perdiz fria, d’um pouco de dôce de ananaz, d’um café forte, Ega sentiu adelgaçar-se emfim aquelle negrume que desde a vespera lhe pesava n’alma. No fim, pensava elle, accendendo o charuto e lançando os olhos ao relogio, n’aquelle desastre praticamente encarado só havia para Carlos a perda d’uma bella amante. E essa perda, que agora o angustiava, não traria depois compensações? O futuro de Carlos até ahi tinha uma sombra — aquella promessa de casamento que irreparavelmente o collava pela honra a uma mulher muito interessante, mas com um passado cheio de brazileiros e de irlandezes... A sua belleza poetisava tudo: mas quanto tempo mais duraria esse encanto, o seu brilho de deusa pisando a terra?... Não seria por fim aquella descoberta do Guimarães uma libertação providencial? D’ahi a annos Carlos estaria consolado, sereno como se nunca tivesse sofrido — e livre, e rico, com o largo mundo diante de si!

O relogio do café deu dez horas. «Bem, vamos a isto», pensou Ega.

De novo a tipoia bateu para a rua da Prata. O snr. Villaça ainda não viera, o escrevente estava realmente pensando que o snr. Villaça fôra ao Alfeite. E diante d’esta incerteza, de repente, Ega ficou de novo descorçoado, sem coragem. Despediu a tipoia: com o embrulho do cofre na mão foi andando pela rua do Ouro, depois até ao Rocio, parando distrahidamente diante d’um ourives, lendo aqui e além a capa d’um livro na vitrine dos livreiros. Pouco a pouco o negrume da vespera, um momento adelgaçado, recahia-lhe n’alma mais denso. Já não via as «libertações» nem as «compensações». Só sentia em torno de si, como fluctuando no ar, aquelle horror — Carlos a dormir com a irmã.

Voltou pela rua da Prata, de novo subiu a suja escadaria de pedra; e logo no patamar, diante da porta de baeta verde, deu com o Villaça que sahia, atarefado, calçando as luvas.

— Homem, até que emfim!

— Ah! Era o amigo que me tinha procurado?... Pois tenha paciencia, que está o visconde do Torral á minha espera...

Ega quasi o empurrou. Qual visconde!... Tratava-se d’uma coisa muito urgente, muito séria! Mas o outro não se arredava da porta, acabando de calçar a luva, com o mesmo ar vivo de negocio e de pressa.

— O amigo bem vê... Está o homem á espera! É um rendez-vous para as onze!

Ega, já furioso, agarrou-lhe a manga, murmurou-lhe junto á face, tragicamente, que se tratava de Carlos, d’um caso de vida ou de morte! Então o Villaça, n’um grande espanto, atravessou bruscamente o escriptorio, fez entrar Ega n’um cubiculo ao lado, estreito como um corredor, com um canapé de palhinha, uma mesa onde os livros tinham pó, e um armario ao fundo. Fechou a porta, atirou o chapéo para a nuca:

— Então que é?

Ega, com um gesto, indicou fóra o escrevente que podia escutar. O procurador abriu a porta, gritou ao rapazola que voasse ao Hotel Pelicano pedir ao snr. visconde do Torral a fineza de esperar meia hora... Depois, fechada a porta no ferrolho, foi a mesma exclamação anciosa:

— Então que é?

— É um horror, Villaça, um grande horror... Nem eu sei por onde hei de começar.

Villaça, já muito pallido, pousou lentamente o guardachuva sobre a mesa.

— É duello?

— Não... É isto... Você sabia que o Carlos tinha relações com uma snr.ª Mac-Gren que veio o inverno passado a Portugal, ficou ahi?...

Uma senhora brazileira, mulher d’um brazileiro, que passára o verão nos Olivaes?... Sim, Villaça sabia. Fallára até n’isso com o Eusebiosinho.

— Ah, com o Eusebio?... Pois não é brazileira! É portugueza, e é irmã d’elle!

Villaça cahiu para o canapé, batendo as mãos n’um assombro.

— Irmã do Eusebio!

— Qual do Eusebio, homem!... Irmã de Carlos!

Villaça ficára mudo, sem comprehender, com os olhos terrivelmente arregalados para o outro, que se movia pelo cubiculo, repetindo: «irmã! irmã legítima!» Ega por fim sentou-se no canapé de palhinha; e baixo, muito baixo, apesar da solidão do escriptorio, contou o seu encontro com o Guimarães no sarau, e como a verdade terrivel estalára casualmente, n’uma palavra, á esquina do Alliança... Mas quando fallou dos papeis, entregues pela Monforte ao Guimarães, ha tantos annos guardados, nunca reclamados, e que o democrata agora, tão de repente, tão urgentemente, queria restituir á familia — Villaça, até ahi esmagado e como emparvecido, despertou, teve uma explosão:

— Ahi ha marosca! Tudo isso é para apanhar dinheiro!...

— Apanhar dinheiro! Quem?

— Quem!? exclamou Villaça de pé, arrebatadamente. Essa senhora, esse Guimarães, essa tropa!... É que o amigo não percebe! Se apparecer uma irmã do Maia, legitima e authentica, são quatrocentos contos e pico que cabem á irmã do Maia!...

Então os dois ficaram-se devorando com os olhos, na forte impressão d’aquella idéa inesperada que a seu pezar abalava o Ega. Mas como o procurador, tremulo, voltava á grande somma de quatrocentos contos, lembrava a Companhia do Olho Vivo, Ega terminou por encolher os hombros:

— Isso não tem verosimilhança nenhuma! Ella é incapaz, absolutamente incapaz, de semelhante intriga. Além d’isso, se é uma questão de dinheiro, que necessidade tinha de se fazer passar como irmã desde que Carlos lhe promettera casar com ella?

Casar com ella! Villaça erguia as mãos, não queria acreditar. O quê! o snr. Carlos da Maia dar a sua mão, o seu nome, a essa creatura amigada com um brazileiro!?... Santissimo nome de Deus! E através do assombro recrescia-lhe a desconfiança, via ahi um novo feito do Olho Vivo.

— Não senhor, Villaça, não senhor! insistiu Ega, já impaciente. Se a questão é de documentos e se ella os tinha, verdadeiros ou falsificados, apresentava-os logo, não ia primeiro dormir com o irmão!

Villaça baixou lentamente os olhos para o sobrado. Um terror invadia-o diante d’aquella grande casa, que era o seu orgulho, partida em metade, empolgada por uma aventureira... Mas como o Ega, muito nervoso, lembrava que de resto a questão não era de documentos, nem de legalidade, nem de fortuna — o procurador teve outro grito, com a face de novo alumiada:

— Espere, homem, ha outra coisa!... Talvez ella seja filha do italiano!

— E então?... Vem a dar na mesma.

— Alto lá! berrou o procurador, batendo com o punho na mesa. Não tem direito á legitima do pai, e não apanha um real d’esta casa!... Irra, ahi é que está o ponto!

Ega teve um gesto desolado. Não, nem isso, desgraçadamente! Esta era a filha do Pedro da Maia. O Guimarães conhecia-a de a trazer ao collo, de lhe dar bonecas quando ella tinha sete annos, e quando apenas havia quatro ou cinco annos que o italiano estivera em Arroios, de cama, com uma chumbada... A filha d’esse morrera em Londres, pequenina.

Villaça recahiu no canapé, succumbido.

— Quatrocentos contos, que bolada!

Então Ega resumiu. Se não existia ainda uma certeza legal, havia já uma forte suspeita. E desde logo não se podia deixar o pobre Carlos, innocentemente, a chafurdar n’aquella sordidez. Era pois indispensavel revelar tudo a Carlos n’essa noite...

— E você, Villaça, é que tem de lh’o dizer.

Villaça deu um salto que fez bater o canapé contra a parede.

— Eu!?

— Você, que é o procurador da casa!

Que havia alli, senão uma questão de filiação, portanto de legitima? A quem pertenciam esses detalhes legaes senão ao procurador?

Villaça murmurou com todo o sangue na face:

— Homem, o amigo mette-me n’uma!...

Não. Ega mettia-o apenas n’aquillo em que o Villaça, como procurador, logicamente e profissionalmente devia estar.

O outro protestou, tão perturbado que gaguejava. Que diabo! Não era esquivar-se aos seus deveres! Mas é que elle não sabia nada! Que podia dizer ao snr. Carlos da Maia? «O amigo Ega veio-me contar isto, que lhe contou um tal Guimarães hontem á noite no Loreto...» Não tinha a dizer mais nada...

— Pois diga isso.

O outro encarou Ega com olhos que chammejavam:

— Diga isso, diga isso... Que diabo, senhor, é necessario ter topete!

Deu um puxão desesperado ao collete, foi bufando até ao fundo do cubiculo, onde esbarrou com o armario. Voltou, tornou a encarar o Ega:

— Não se vai a um homem com uma coisa d’essas sem provas... Onde estão as provas?...

— Ó Villaça, desculpe, você está obtuso!... A que vim eu aqui senão trazer-lhe as provas, as que ha, boas ou más, a historia do Guimarães, essa caixa com os papeis da Monforte?...

Villaça, que resmungava, foi examinar a caixa, virando-a nas mãos, decifrando o mote do sinete Pro amore.

— Então, abrimol-a?

Já Ega puxára uma cadeira para a mesa. Villaça cortou o papel, gasto nos cantos, que envolvia o cofre. E appareceu effectivamente uma velha caixa de charutos pregada com duas taxas, cheia de papeis, alguns em maços apertados por fitas, outros soltos dentro de sobrescriptos abertos que tinham o monogramma da Monforte sob uma corôa de marquez. Ega desembrulhou o primeiro maço. Eram cartas em allemão, que elle não percebia, datadas de Buda-Pesth e de Carlsruhe.

— Bem, isto não nos diz nada... Adiante!

Outro embrulho, a que Villaça cuidadosamente desapertou o nó côr de rosa, resguardava uma caixa oval com a miniatura d’um homem de bigodes e suissas ruivas, entalado na alta gola dourada d’uma farda branca. Villaça achou a pintura «linda».

— Algum official austriaco, rosnou Ega. Outro amante... Ça marche.

Iam tirando os papeis por ordem, com a ponta dos dedos, como tocando em reliquias. Um largo enveloppe atulhado de contas de modistas, algumas pagas, outras sem recibo, interessou profundamente o Villaça — que percorria os items, espantado dos preços, das infinitas invenções do luxo. Contas de seis mil francos! Um só vestido, dois mil francos!... Outro maço trouxe uma surpreza. Eram cartas de Maria Eduarda á mãi, escriptas do convento, n’uma letra redonda e trabalhada como um desenho, com phrasesinhas cheias de gravidade devota, dictadas decerto pelas boas Irmãs; e n’estas composições, virtuosas e frias como themas, o sincero coração da rapariga só transparecia n’alguma florzinha, agora sêcca, pregada no alto do papel com um alfinete.

— Isto põe-se de parte, murmurou Villaça.

Então Ega, já impaciente, esvaziou toda a caixa sobre a mesa, alastrou os papeis. E entre cartas, outras contas, bilhetes de visita, um grande sobrescripto destacou com esta linha a tinta azul: — Pertence a minha filha Maria Eduarda. Foi Villaça que lançou os olhos rapidamente á enorme folha de papel que elle continha, luxuosa e documental, com o monogramma d’ouro sob a corôa de marquez. Quando o passou em silencio para a mão do Ega parecia suffocado, com todo o sangue nas orelhas.

Ega leu-o alto, devagar. Dizia: — «Como a Maria teve a pequena e anda muito fraca, e eu tambem me não sinto nada boa com umas pontadas, parece-me prudente, para o que possa vir a succeder, fazer aqui uma declaração que te pertence a ti, minha querida filha, e que só sabe o padre Talloux (Mr. l’abbé Talloux, coadjuteur à Saint-Roch) porque lh’o disse ha dois annos quando tive a pneumonia. E é o seguinte: Declaro que minha filha Maria Eduarda, que costuma assignar Maria Calzaski, por suppôr ser esse o nome de seu pai, é portugueza e filha de meu marido Pedro da Maia, de quem me separei voluntariamente, trazendo-a commigo para Vienna, depois para Paris, e que agora vive em companhia de Patrick Mac-Gren, em Fontainebleau, com quem vai casar. E o pai de meu marido era meu sogro Affonso da Maia, viuvo, que vivia em Bemfica e tambem em Santa Olavia ao pé do rio Douro. O que tudo se póde verificar em Lisboa pois devem lá estar os papeis; e os meus erros de que vejo agora as consequencias não devem impedir que tu, minha querida filha, tenhas a posição e fortuna que te pertencem. E por isso aqui declaro tudo isto que assigno, no caso que o não possa fazer diante d’um tabellião, o que tenciono logo que esteja melhor. E de tudo, se eu vier a morrer, o que Deus não permitta, peço perdão a minha filha. E assigno com o meu nome de casada — Maria Monforte da Maia

Ega ficou a olhar para o Villaça. O procurador só pôde murmurar, com as mãos cruzadas sobre a mesa:

— Que bolada! Que bolada!

Então Ega ergueu-se. Bem! Agora tudo se simplificava. Havia unicamente a entregar aquelle documento a Carlos, sem commentarios. Mas o Villaça coçava a cabeça, retomado por uma duvida:

— Eu não sei se este papelinho faria fé em juizo...

— Qual fé, qual juizo! exclamou Ega violentamente. É o bastante para que elle não torne a dormir com ella!...

Uma pancada timida na porta do cubiculo fêl-o estacar, inquieto. Desandou a chave. Era o escrevente, que segredou através da frincha:

— O snr. Carlos da Maia ficou agora lá em baixo no carrinho quando eu entrei, perguntou pelo snr. Villaça.

Houve um pânico! Ega, atarantado, agarrára o chapéo do Villaça. O procurador atirava ás mãos ambas, para dentro d’uma gaveta, os papeis da Monforte.

— É talvez melhor dizer que não está, lembrou o escrevente.

— Sim, que não está! foi o grito abafado de ambos.

Ficaram á escuta, ainda pallidos. O dog-cart de Carlos rolou na calçada; os dois amigos respiraram. Mas agora Ega arrependia-se de não terem mandado subir Carlos — e alli mesmo, sem outras vacillações nem pieguices, corajosamente, contarem-lhe tudo, diante d’aquelles papeis bem abertos. E estava saltado o barranco!

— Homem, dizia o Villaça passando o lenço pela testa, as coisas querem-se devagar, com methodo. É necessario preparar-se a gente, respirar para dar bem o mergulho...

Em todo o caso, concluiu o Ega, eram ociosas mais conversas. Os outros papeis da caixa perdiam o interesse depois d’aquella confissão da Monforte. Só restava que Villaça apparecesse á noite no Ramalhete ás oito e meia, ou nove horas, antes de Carlos sahir para a rua de S. Francisco.

— Mas o amigo ha de lá estar! exclamou o procurador, já aterrado.

Ega prometteu. Villaça teve um pequeno suspiro. Depois, no patamar, onde viera acompanhar o outro:

— Uma d’estas, uma d’estas!... E eu ainda, tão contente, a jantar no Ramalhete...

— E eu, com elles, na rua de S. Francisco!...

— Emfim, até á noite!

— Até á noite.

Ega não se atreveu n’esse dia a voltar ao Ramalhete, a jantar diante de Carlos, a vêr-lhe a alegria e a paz — sentindo aquella negra desgraça que descia sobre elle á maneira que a noite descia. Foi pedir as sopas ao marquez, que desde o sarau se conservava em casa, de garganta entrapada. Depois, ás oito e meia, quando calculou que Villaça devia estar já no Ramalhete, deixou o marquez que se enfronhára com o capellão n’uma partida de damas.

Aquelle lindo dia, toldado de tarde, findára n’uma chuvinha miuda que transia as ruas. Ega tomou uma tipoia. E parava no Ramalhete, já terrivelmente nervoso, quando avistou Villaça no portal, de guardachuva sob o braço, arregaçando as calças para sahir.

— Então? gritou-lhe o Ega.

Villaça abriu o guardachuva, para murmurar debaixo, mas em segredo:

— Não foi possivel... Disse que tinha muita pressa, que não me podia ouvir.

Ega bateu o pé, desesperado:

— Oh homem!

— Que quer o amigo? Havia de o agarrar á força? Ficou para ámanhã... Tenho de cá estar ámanhã ás onze horas.

Ega galgou as escadas, rosnando entre dentes: «Irra! não sahimos d’esta!» Foi até ao escriptorio de Affonso. Mas não entrou. Através d’uma fenda larga do reposteiro meio franzido, um canto da sala apparecia, quente e cheio de conchêgo, no dôce tom côr de rosa da luz cahindo sobre os damascos: as cartas esperavam na mesa do whist: no sofá bordado a matiz D. Diogo, murcho e molle, olhava o lume, cofiando os bigodes. E, travadas n’alguma questão, a voz do Craft, que perpassou de cachimbo na mão, e a voz mais lenta de Affonso, tranquillo na sua poltrona, misturavam-se, abafadas pela do Sequeira, que berrava furiosamente: — «Mas se ámanhã houvesse uma bernarda, esse exercito com que os senhores querem acabar por ser uma escóla de vadiagem é que lhes havia de guardar as costas... É bom fallar, ter muita philosophia! Mas quando ellas chegam, se não ha meia duzia de baionetas promptas, então são as cólicas!...»

Ega foi d’alli aos quartos de Carlos. As velas ardiam ainda nas serpentinas: um aroma errava de agua de Lubin e charuto: e o Baptista disse-lhe que o snr. D. Carlos «sahira havia dez minutos». Fôra para a rua de S. Francisco! Ia lá dormir! Então enervado, com a longa e triste noite diante de si, Ega teve um appetite de se atordoar, dissipar n’uma excitação forte as idéas que o torturavam. Não despedira a tipoia, abalou para S. Carlos. E findou por ir cear ao Augusto com o Taveira e duas raparigas, a Paca e a Carmen Philosopha, prodigalisando o champagne. Ás quatro da manhã estava bebedo, estatelado sobre o sofá, gemendo sentimentalmente, só para si, as estrophes de Musset á Malibran... O Taveira e a Paca, juntinhos na mesma cadeira, elle com o seu ar terno de chulo, ella muy caliente tambem, debicavam copinhos de gelatina. E a Carmen Philosopha, empanturrada, desapertada, com o collete embrulhado já n’um Diario de Noticias, repicava a faca na borda do prato, cantarolando d’olhos perdidos nos bicos de gaz:

Señor Alcalde mayor,
No prenda usted los ladrones...

Acordou ao outro dia ás nove horas, ao lado da Carmen Philosopha, n’um quarto de grandes janellas rasgadas por onde entrava toda a melancolia da escura manhã de chuva. E, emquanto não vinha a tipoia fechada que a servente correra a chamar, o pobre Ega enojado, vexado, com a lingua pastosa, os pés nús sobre o tapete, reunindo o fato espalhado, tinha só uma idéa clara — fugir d’alli para um grande banho, bem perfumado e bem fresco, onde se purificasse d’uma sensação viscosa de Carmen e d’orgia que o arrepiava.

Esse banho lustral foi tomal-o ao Hotel Braganza, para se encontrar com Carlos e com Villaça ás onze horas já lavado e preparado. Mas precisou esperar pela roupa branca que o cocheiro, com um bilhete para o Baptista, voára a buscar ao Ramalhete: depois almoçou: e já batera meio dia quando se apeou á porta particular dos quartos de Carlos, com a roupa suja n’uma trouxa.

Justamente Baptista atravessava o patamar com camelias n’um açafate.

— O Villaça já veio? perguntou-lhe Ega baixo, andando em pontas de pés.

— O snr. Villaça já lá está dentro ha bocado. V. exc.ª recebeu a roupa branca?... Eu tambem mandei um fato, porque n’esses casos sempre dá mais frescura...

— Obrigado, Baptista, obrigado!

E Ega pensava: — «Bem, Carlos já sabe tudo, o barranco está passado!» Mas demorou-se ainda, tirando as luvas e o paletot com uma lentidão cobarde. Por fim, sentindo bater alto o coração, puxou o reposteiro de velludo. Na ante-camara pesava um silencio; a chuva grossa fustigava a porta envidraçada, por onde se viam as arvores do jardim esfumadas na nevoa. Ega levantou o outro reposteiro que tinha bordadas as armas dos Maias.

— Ah! és tu? exclamou Carlos, erguendo-se da mesa de trabalho com uns papeis na mão.

Parecia ter conservado um animo viril e firme: apenas os olhos lhe rebrilhavam, com um fulgor sêcco, anciosos e mais largos na pallidez que o cobria. Villaça, sentado defronte, passava vagarosamente pela testa, n’um movimento cansado, o lenço de sêda da India. Sobre a mesa alastravam-se os papeis da Monforte.

— Que diabo de embrulhada é esta que me vem contar o Villaça? rompeu Carlos, cruzando os braços diante do Ega, n’uma voz que apenas de leve tremia.

Ega balbuciou:

— Eu não tive coragem de te dizer...

— Mas tenho eu para ouvir!... Que diabo te contou esse homem?

Villaça ergueu-se immediatamente. Ergueu-se com a pressa d’um galucho timido que é rendido n’um posto arriscado, pediu licença, se não precisavam d’elle, para voltar ao escriptorio. Os amigos decerto preferiam conversar mais livremente. De resto, alli ficavam os papeis da snr.ª D. Maria Monforte. E se elle fosse necessario um recado encontrava-o na rua da Prata ou em casa...

— E v. exc.ª comprehende, acrescentou elle enrolando nas mãos o lenço de sêda, eu tomei a iniciativa de vir fallar, por ser o meu dever, como amigo confidencial da casa... Foi essa tambem a opinião do nosso Ega...

— Perfeitamente, Villaça, obrigado! acudiu Carlos. Se fôr necessario lá mando...

O procurador, com o lenço na mão, lançou em redor um olhar lento. Depois espreitou debaixo da mesa. Parecia muito surprehendido. E Carlos seguia com impaciencia os passos timidos que elle dava pelo quarto, procurando...

— Que é, homem?

— O meu chapéo. Imaginei que o tinha posto aqui... Naturalmente ficou lá fóra... Bem, se fôr necessario alguma coisa...

Mal elle sahiu, atirando ainda os olhos inquietos pelos cantos, Carlos fechou violentamente o reposteiro. E voltando para o Ega, cahindo pesadamente n’uma cadeira:

— Dize lá!

Ega, sentado no sofá, começou por contar o encontro com o snr. Guimarães, em baixo no botequim da Trindade, depois de ter fallado o Rufino. O homem queria explicações sobre a carta do Damaso, sobre a bebedeira hereditaria... Tudo se aclarára, ficando d’ahi entre elles um começo de familiaridade...

Mas o reposteiro mexeu de leve — e surdiu de novo a face do Villaça:

— Peço desculpa, mas é o meu chapéo... Não o acho, havia de jurar que o deixei aqui...

Carlos conteve uma praga. Então Ega procurou tambem, por traz do sofá, no vão da janella. Carlos, desesperado, para findar, foi vêr entre os cortinados da cama. E Villaça, escarlate, afflicto, esquadrinhava até a alcova do banho...

— Um sumiço assim! Emfim, talvez me esquecesse na ante-camara!... Vou vêr outra vez... O que peço é desculpa.

Os dois ficaram sós. E Ega recomeçou, detalhando como Guimarães, duas ou tres vezes nos intervallos, lhe viera fallar de coisas indifferentes, do sarau, de politica, do papá Hugo, etc. Depois elle procurára Carlos para irem um bocado ao Gremio. Terminára por sahir com o Cruges. E passavam defronte do Alliança...

Novamente o reposteiro franziu, Baptista pediu perdão a suas excellencias:

— É o snr. Villaça que não acha o chapéo, diz que o deixou aqui...

Carlos ergueu-se furioso, agarrando a cadeira pelas costas como para despedaçar o Baptista.

— Vai para o diabo tu e o snr. Villaça!... Que sáia sem chapéo! Dá-lhe um chapéo meu! Irra!

Baptista recuou, muito grave.

— Vá, acaba lá! exclamou Carlos, recahindo no assento, mais pallido.

E Ega, miudamente, contou a sua longa, terrivel conversa com o Guimarães, desde o momento em que o homem por acaso, já ao despedir-se, já ao estender-lhe a mão, fallára da «irmã do Maia». Depois entregára-lhe os papeis da Monforte á porta do Hotel de Paris, no Pelourinho...

— E aqui está, não sei mais nada. Imagina tu que noite eu passei! Mas não tive coragem de te dizer. Fui ao Villaça... Fui ao Villaça com a esperança sobretudo de elle saber algum facto, ter algum documento que atirasse por terra toda esta historia do Guimarães... Não tinha nada, não sabia nada. Ficou tão aniquilado como eu!

No curto silencio que cahiu, um chuveiro mais largo, alagando o arvoredo do jardim, cantou nas vidraças. Carlos ergueu-se arrebatadamente, n’uma revolta de todo o sêr:

— E tu acreditas que isso seja possivel? Acreditas que succeda a um homem como eu, como tu, n’uma rua de Lisboa? Encontro uma mulher, ólho para ella, conheço-a, durmo com ella e, entre todas as mulheres do mundo, essa justamente ha de ser minha irmã! É impossivel... Não ha Guimarães, não ha papeis, não ha documentos que me convençam!

E como Ega permanecia mudo, a um canto do sofá, com os olhos no chão:

— Dize alguma coisa, gritou-lhe Carlos. Duvída tambem, homem, duvída commigo!... É extraordinario! Todos vocês acreditam, como se isto fosse a coisa mais natural do mundo, e não houvesse por essa cidade fóra senão irmãos a dormir juntos!

Ega murmurou:

— Já ia succedendo um caso assim, lá ao pé da quinta, em Celorico...

E n’esse momento, sem que um rumor os prevenisse, Affonso da Maia appareceu n’uma abertura do reposteiro, encostado á bengala, sorrindo todo com alguma idéa que decerto o divertia. Era ainda o chapéo do Villaça.

— Que diabo fizeram vocês ao chapéo do Villaça? O pobre homem andou por ahi afflicto... Teve de levar um chapéo meu. Cahia-lhe pela cabeça abaixo, enchumaçaram-lh’o com lenços...

Mas subitamente reparou na face transtornada do neto. Reparou na atarantação do Ega cujos olhos mal se fixavam, fugindo anciosamente d’elle para Carlos. Todo o sorriso se lhe apagou, deu no quarto um passo lento:

— Que é isso, que têm vocês?... Ha alguma coisa?

Então Carlos, no ardente egoismo da sua paixão, sem pensar no abalo cruel que ia dar ao pobre velho, cheio só de esperança que elle, seu avô, testemunha do passado, soubesse algum facto, possuisse alguma certeza contraria a toda essa historia do Guimarães, a todos esses papeis da Monforte — veio para elle, desabafou:

— Ha uma coisa extraordinaria, avô! O avô talvez saiba... O avô deve saber alguma coisa que nos tire d’esta afflicção!... Aqui está, em duas palavras. Eu conheço ahi uma senhora que chegou ha tempos a Lisboa, mora na rua de S. Francisco. Agora de repente descobre-se que é minha irmã legitima!... Passou ahi um homem que a conhecia, que tinha uns papeis... Os papeis ahi estão. São cartas, uma declaração de minha mãe... Emfim uma trapalhada, um montão de provas... Que significa tudo isto? Essa minha irmã, a que foi levada em pequena, não morreu?... O avô deve saber!

Affonso da Maia, que um tremor tomára, agarrou-se um momento com força á bengala, cahiu por fim pesadamente n’uma poltrona, junto do reposteiro. E ficou devorando o neto, o Ega, com um olhar esgazeado e mudo.

— Esse homem, exclamou Carlos, é um Guimarães, um tio do Damaso... Fallou com o Ega, foi ao Ega que entregou os papeis... Conta tu ao avô, Ega, conta tu do começo!

Ega, com um suspiro, resumiu a sua longa historia. E findou por dizer que o importante, o decisivo alli era este homem, o Guimarães, que não tinha interesse em mentir e só por acaso, puramente por acaso, fallára em taes coisas — conhecia essa senhora, desde pequenina, como filha de Pedro da Maia e de Maria Monforte. E nunca a perdera de vista. Vira-a crescer em Paris, andára com ella ao collo, dera-lhe bonecas. Visitára-a com a mãi no convento. Frequentára a casa que ella habitava em Fontainebleau, como casada...

— Emfim, interrompeu Carlos, viu-a ainda ha dias, n’uma carruagem, commigo e com o Ega... Que lhe parece, avô?

O velho murmurou, n’um grande esforço, como se as palavras sahindo lhe rasgassem o coração:

— Essa senhora, está claro, não sabe nada...

Ega e Carlos, a um tempo, gritaram: — «Não sabe nada!» Segundo affirmava o Guimarães, a mãi escondera-lhe sempre a verdade. Ella julgava-se filha d’um austriaco. Assignava-se ao principio Calzaski...

Carlos, que remexera sobre a mesa, adiantou-se com um papel na mão:

— Aqui tem o avô a declaração de minha mãi.

O velho levou muito tempo a procurar, a tirar a luneta d’entre o collete com os seus pobres dedos que tremiam; leu o papel devagar, empallidecendo mais a cada linha, respirando penosamente; ao findar deixou cahir sobre os joelhos as mãos, que ainda agarravam o papel, ficou como esmagado e sem força. As palavras por fim vieram-lhe apagadas, morosas. Elle nada sabia... O que a Monforte alli assegurava, elle não o podia destruir... Essa senhora da rua de S. Francisco era talvez na verdade sua neta... Não sabia mais...

E Carlos diante d’elle vergava os hombros, esmagado tambem sob a certeza da sua desgraça. O avô, testemunha do passado, nada sabia! Aquella declaração, toda a historia do Guimarães ahi permaneciam inteiras, irrefutaveis. Nada havia, nem memoria de homem, nem documento escripto, que as pudesse abalar. Maria Eduarda era, pois, sua irmã!... E um defronte do outro, o velho e o neto pareciam dobrados por uma mesma dôr — nascida da mesma idéa.

Por fim Affonso ergueu-se, fortemente encostado á bengala, foi pousar sobre a mesa o papel da Monforte. Deu um olhar, sem lhes tocar, ás cartas espalhadas em volta da caixa de charutos. Depois, lentamente, passando a mão pela testa:

— Nada mais sei... Sempre pensamos que essa criança tinha morrido... Fizeram-se todas as pesquizas... Ella mesma disse que lhe tinha morrido a filha, mostrou já não sei a quem um retrato...

— Era outra mais nova, a filha do italiano, disse o Ega. O Guimarães fallou-me n’isso... Foi esta que viveu. Esta, que tinha já sete a oito annos, quando havia apenas quatro ou cinco que esse sujeito italiano apparecera em Lisboa... Foi esta.

— Foi esta, murmurou o velho.

Teve um gesto vago de resignação, acrescentou, depois de respirar fortemente:

— Bem! Tudo isto tem de ser mais pensado... Parece-me bom tornar a chamar o Villaça... Talvez seja necessario que elle vá a Paris... E antes de tudo precisamos socegar... De resto não ha aqui morte d’homem... Não ha aqui morte d’homem!

A voz sumia-se-lhe, toda tremula. Estendeu a mão a Carlos que lh’a beijou, suffocado; e o velho, puxando o neto para si, pousou-lhe os labios na testa. Depois deu dois passos para a porta, tão lentos e incertos que Ega correu para elle:

— Tome v. exc.ª o meu braço...

Affonso apoiou-se n’elle, pesadamente. Atravessaram a ante-camara silenciosa onde a chuva contínua batia os vidros. Por traz d’elles cahiu o grande reposteiro com as armas dos Maias. E então Affonso, de repente, soltando o braço do Ega, murmurou-lhe, junto á face, no desabafo de toda a sua dôr:

— Eu sabia d’essa mulher!... Vive na rua de S. Francisco, passou todo o verão nos Olivaes... É a amante d’elle!

Ega ainda balbuciou: «Não, não, snr. Affonso da Maia!» Mas o velho pôz o dedo nos labios, indicou Carlos dentro que podia ouvir... E afastou-se, todo dobrado sobre a bengala, vencido emfim por aquelle implacavel destino que depois de o ter ferido na idade de força com a desgraça do filho — o esmagava ao fim da velhice com a desgraça do neto.

Ega enervado, exhausto, voltou para o quarto — onde Carlos recomeçára n’aquelle agitado passeio que abalava o soalho, fazia tilintar finamente os frascos de crystal sobre o marmore da console. Calado, junto da mesa, Ega ficou percorrendo outros papeis da Monforte — cartas, um livrinho de marroquim com adresses, bilhetes de visita de membros do Jockey Club e de senadores do imperio. Subitamente Carlos parou diante d’elle, apertando desesperadamente as mãos:

— Estarem duas creaturas em pleno céo, passar um quidam, um idiota, um Guimarães, dizer duas palavras, entregar uns papeis e quebrar para sempre duas existencias!... Olha que isto é horrivel, Ega!

Ega arriscou uma consolação banal:

— Era peor se ella morresse...

— Peor porque? exclamou Carlos. Se ella morresse, ou eu, acabava o motivo d’esta paixão, restava a dôr e a saudade, era outra coisa... Assim estamos vivos, mas mortos um para o outro, e viva a paixão que nos unia!... Pois tu imaginas que por me virem provar que ella é minha irmã, eu gósto menos d’ella do que gostava hontem, ou gósto d’um modo differente? Está claro que não! O meu amor não se vai d’uma hora para a outra accommodar a novas circumstancias, e transformar-se em amizade... Nunca! Nem eu quero!

Era uma brutal revolta — o seu amor defendendo-se, não querendo morrer, só porque as revelações d’um Guimarães e uma caixa de charutos cheia de papeis velhos o declaravam impossivel, e lhe ordenavam que morresse!

Houve outro melancolico silencio. Ega accendeu uma cigarette, foi-se enterrar ao canto do sofá. Uma fadiga ia-o vencendo, feita de toda aquella emoção, da noitada no Augusto, da estremunhada manhã na alcova da Carmen. Todo o quarto ia entristecendo, á luz mais triste da tarde d’inverno que descia. Ega terminou por cerrar os olhos. Mas bem depressa o sacudiu outra exclamação de Carlos, que de novo, diante d’elle, apertava as mãos com desespero:

— E o peor ainda não é isto, Ega! O peor é que temos de lhe dizer tudo, de lhe contar tudo, a ella!...

Ega já pensára n’isso... E era necessario que se lhe dissesse immediatamente, sem hesitações.

— Vou-lhe eu mesmo contar tudo, murmurou Carlos.

— Tu!?

— Pois quem, então? Querias que fosse o Villaça?...

Ega franzia a testa:

— O que tu devias fazer era metter-te esta noite no comboio, e partir para Santa Olavia. De lá contavas-lhe tudo. Estavas assim mais seguro.

Carlos atirou-se para uma poltrona, com um grande suspiro de fadiga:

— Sim, talvez, ámanhã, no comboio da noite... Já pensei n’isso, era o melhor... Agora o que estou é muito cansado!

— Tambem eu, disse o Ega espreguiçando-se. E já não adiantamos nada, atolamo-nos mais na confusão. O melhor é serenar... Eu vou-me estirar um bocado na cama.

— Até logo!

Ega subiu ao quarto, deitou-se por cima da roupa; e no seu immenso cansaço bem depressa adormeceu. Acordou tarde a um rumor da porta. Era Carlos que entrava, raspando um phosphoro. Anoitecera, em baixo tocava a campainha para o jantar.

— Demais a mais esta massada do jantar! dizia Carlos accendendo as velas no toucador. Não termos um pretexto para irmos fóra, a uma taverna, conversar em socego! Ainda por cima convidei hontem o Steinbroken.

Depois voltando-se:

— Ó Ega, tu achas que o avô sabe tudo?

O outro saltára da cama, e diante do lavatorio arregaçava as mangas:

— Eu te digo... Parece-me que teu avô desconfia... O caso fez-lhe a impressão d’uma catastrophe... E, se não suspeitasse o que ha, devia-lhe causar simplesmente a surpreza de quem descobre uma neta perdida.

Carlos teve um lento suspiro. D’ahi a um instante desciam para o jantar.

Em baixo encontraram, além de Steinbroken e de D. Diogo — o Craft, que viera «pedir as sopas». E em tôrno áquella mesa, sempre alegre, coberta de flôres e de luzes, uma melancolia fluctuava n’essa tarde através d’uma conversa dormente sobre doenças, — o Sequeira que tinha rheumatismo, o pobre marquez peorára.

De resto Affonso, no escriptorio, queixára-se d’uma forte dôr de cabeça, que justificava o seu ar consumido e pallido. Carlos, a quem Steinbroken achára «má cara», explicou tambem que passára uma noite abominavel. Então Ega, para desanuviar o jantar, pediu ao amigo Steinbroken as suas impressões sobre o grande orador do sarau da Trindade, o Rufino. O diplomata hesitou. Surprehendera-o bastante saber que o Rufino era um politico, um parlamentar... Aquelles gestos, o bocado da camisa a vêr-se-lhe no estomago, a pera, a grenha, as botas, não lhe pareciam realmente d’um Homem d’Estado:

— Mais cependant, cependant... Dans ce genre là, dans le genre sublime, dans le genre de Demosthènes, il m’a paru très fort... Oh, il m’a paru excessivement fort!

— E você, Craft?

Craft, no sarau, só gostára do Alencar. Ega encolheu violentamente os hombros. Ora historias! Nada podia haver mais comico que a Democracia romantica do Alencar, aquella Republica meiga e loura, vestida de branco como Ophelia, orando no prado, sob o olhar de Deus... Mas Craft justamente achava tudo isso excellente por ser sincero. O que feria sempre nas exhibições da litteratura portugueza? A escandalosa falta de sinceridade. Ninguem, em verso ou prosa, parecia jámais acreditar n’aquillo que declamava com ardor, esmurrando o peito. E assim fôra na vespera. Nem o Rufino parecia acreditar na influencia da religião; nem o homem da barba bicuda no heroismo dos Castros e dos Albuquerques; nem mesmo o poeta dos olhinhos bonitos na bonitice dos olhinhos... Tudo contrafeito e postiço! Com o Alencar, que differença! Esse tinha uma fé real no que cantava, na Fraternidade dos povos, no Christo republicano, na Democracia devota e coroada d’estrellas...

— Já deve ser bem velho esse Alencar, observou D. Diogo que rolava bolinhas de pão entre os longos dedos pallidos.

Carlos, ao lado, emergiu emfim do seu silencio:

— O Alencar deve ter bons cincoenta annos.

Ega jurou pelo menos sessenta. Já em 1836 o Alencar publicava coisas delirantes, e chamava pela morte, no remorso de tantas virgens que seduzira...

— Ha que annos, com effeito, murmurou lentamente Affonso, eu ouvi fallar d’esse homem!

D. Diogo, que levára os labios ao copo, voltou-se para Carlos:

— O Alencar tem a idade que havia de ter teu pai... Eram intimos, d’essa roda distinguée d’então. O Alencar ia muito a Arroios com o pobre D. João da Cunha, que Deus haja, e com os outros. Era tudo uma fina flôr, e regulavam pela mesma idade... Já nada resta, já nada resta!

Carlos baixára os olhos: todos por acaso emmudeceram: um ar de tristeza passou entre as flôres e as luzes como vinda do fundo d’esse passado, cheio de sepulturas e dôres.

— E o pobre Cruges, coitado, que fiasco! exclamou Ega, para sacudir aquella nevoa.

Craft achava o fiasco justo. Para que fôra elle dar Beethoven a uma gente educada pela chulice de Offenbach? Mas Ega não admittia esse desdem por Offenbach, uma das mais finas manifestações modernas do scepticismo e da ironia! Steinbroken accusou Offenbach de não saber contra-ponto. Durante um momento discutiu-se musica. Ega acabou por sustentar que nada havia em arte tão bello como o fado. E appellou para Affonso, para o despertar.

— Pois não é verdade, snr. Affonso da Maia? V. exc.ª tambem é como eu, um dos fieis ao fado, á nossa grande creação nacional.

— Sim, com effeito, murmurou o velho, levando a mão á testa, como a justificar o seu modo desinteressado e murcho. Ha muita poesia no fado...

Craft porém atacava o fado, as malagueñas, as peteneras — toda essa musica meridional, que lhe parecia apenas um garganteado gemebundo, prolongado infinitamente, em ais de esterilidade e de preguiça. Elle, por exemplo, ouvira uma noite uma malagueña, uma d’essas famosas malagueñas, cantada em perfeito estylo por uma senhora de Malaga. Era em Madrid, em casa dos Villa-Rubia. A senhora põe-se ao piano, rosna uma coisa sobre piedra e sepultura, e rompe a gemer n’um gemido que não findava — ã-ã-ã-ã-ã-ah... Pois senhores, elle aborrece-se, passa para outra sala, vê jogar todo um robber de whist, folheia um immenso album, discute a guerra carlista com o general Jovellos, e quando volta, lá estava ainda a senhora, de cravos na trança e olhos no tecto, a gemer o mesmo — ã-ã-ã-ã-ã-ah!...

Todos riram. Ega protestou com impeto, já excitado. O Craft era um sêcco inglez, educado sobre o chato seio da Economia Politica, incapaz de comprehender todo o mundo de poesia que podia conter um ai! Mas elle não fallava das malagueñas. Não estava encarregado de defender a Hespanha. Ella possuia, para convencer o Craft e outros britannicos, bastante pilheria e bastante navalha... A questão era o fado!

— Onde é que você tem ouvido o fado? Ahi pelas salas, ao piano... Com effeito assim, concordo, é chôcho. Mas ouça-o você por tres ou quatro guitarristas, uma noite, no campo, com uma bella lua no céo... Como nos Olivaes este verão, quando o marquez lá levou o Vira-vira! Lembras-te, Carlos?...

E estacou, como entalado, no arrependimento d’aquella memoria da Toca que levianamente evocára. Carlos permanecera silencioso, com uma sombra na face. Craft ainda rosnou que, n’uma linda noite de luar, todos os sons no campo eram bonitos, mesmo o chiar dos sapos. E de novo uma estranha desanimação amolleceu a sala; os escudeiros serviam os dôces.

Então, no silencio, D. Diogo disse pensativamente, com a sua magestade de leão saudoso que relembra um grande passado:

— Uma musica tambem muito distinguée antigamente eram os Sinos do mosteiro. Parecia mesmo que se estavam ouvindo os sinos... Já não ha d’isso!

O jantar terminava friamente. Steinbroken voltára áquella falta da familia real no sarau, que desde a vespera o inquietava. Ninguem alli se interessava pelo Paço. Depois D. Diogo surdiu com uma velha e fastidiosa historia sobre a infanta D. Isabel. Foi um allivio quando o escudeiro trouxe em volta a larga bacia de prata e o jarro d’agua perfumada.

Ao fim do café, servido no bilhar, Steinbroken e Craft começaram uma partida «ás cincoenta» e a quinze tostões para interessar. Affonso e D. Diogo tinham recolhido ao escriptorio. Ega enterrára-se no fundo d’uma poltrona, com o Figaro. Mas bem depressa deixou escorregar a folha no tapete, cerrou os olhos. Então Carlos, que passeava pensativamente fumando, olhou um momento o Ega adormecido, e sumiu-se por traz do reposteiro.

Ia á rua de S. Francisco.

Mas não se apressava, a pé pelo Aterro, abafado n’um paletot de pelles, acabando o charuto. A noite clareára, com um crescente de lua entre farrapos de nuvens brancas, que fugiam sob um norte fino.

Fôra n’essa tarde, só no seu quarto, que Carlos decidira ir fallar a Maria Eduarda — por um motivo supremo de dignidade e de razão, que elle descobrira e que repetia a si mesmo incessantemente para se justificar. Nem ella nem elle eram duas crianças frouxas, necessitando que a crise mais temerosa da sua vida lhes fosse resolvida e arranjada pelo Ega ou pelo Villaça: mas duas pessoas fortes, com o animo bastante resoluto, e o juizo bastante seguro, para elles mesmos acharem o caminho da dignidade e da razão n’aquella catastrophe que lhes desmantelava a existencia. Por isso elle, só elle, devia ir á rua de S. Francisco.

Decerto era terrivel tornar a vêl-a n’aquella sala, quente ainda do seu amor, agora que a sabia sua irmã... Mas porque não? Havia acaso alli dois devotos, possuidos da preoccupação do demonio, espavoridos pelo peccado em que se tinham atolado ainda que inconscientemente, anciosos por irem esconder no fundo de mosteiros distantes o horror carnal um do outro? Não! Necessitavam elles acaso pôr immediatamente entre si as compridas legoas que vão de Lisboa a Santa Olavia, com receio de cahir na antiga fragilidade, se de novo os seus olhos se encontrassem brilhando com a antiga chamma? Não! Ambos tinham em si bastante força para enterrar o coração sob a razão, como sob uma fria e dura pedra, tão completamente que não lhe sentissem mais nem a revolta nem o chôro. E elle podia desafogadamente voltar áquella sala, toda quente ainda do seu amor...

De resto, que precisavam appellar para a razão, para a sua coragem de fortes?... Elle não ia revelar bruscamente toda a verdade a Maria Eduarda, dizer-lhe um «adeus!» pathetico, um adeus de theatro, affrontar uma crise de paixão e dôr. Pelo contrario! Toda essa tarde, através do seu proprio tormento, procurára anciosamente um meio de adoçar e graduar áquella pobre creatura o horror da revelação que lhe devia. E achára um por fim, bem complicado, bem cobarde! Mas que! Era o unico, o unico que por uma preparação lenta, caridosa, lhe pouparia uma dôr fulminante e brutal. E esse meio justamente só era praticavel indo elle, com toda a frieza, com todo o animo, á rua de S. Francisco.

Por isso ia — e ao longo do Aterro, retardando os passos, resumia, retocava esse plano, ensaiando mesmo comsigo, baixo, palavras que lhe diria. Entraria na sala, com um grande ar de pressa — e contava-lhe que um negocio de casa, uma complicação de feitores o obrigava a partir para Santa Olavia d’ahi a dias. E immediatamente sahia, com o pretexto de correr a casa do procurador. Podia mesmo ajuntar — «é um momento, não tardo, até já.» Uma coisa o inquietava. Se ella lhe désse um beijo?... Decidia então exagerar a sua pressa, conservando o charuto na bôca, sem mesmo pousar o chapéo... E sahia. Não voltava. Pobre d’ella, coitada, que ia esperar até tarde, escutando cada rumor de carruagem na rua!... Na noite seguinte abalava para Santa Olavia com o Ega, deixando-lhe a ella uma carta a annunciar que infelizmente, por causa d’um telegramma, se vira forçado a partir n’esse comboio. Podia mesmo ajuntar — «volto d’aqui a dois ou tres dias...» E ahi estava longe d’ella para sempre. De Santa Olavia escrevia-lhe logo, d’um modo incerto e confuso, fallando de documentos de familia, inesperadamente descobertos, provando entre elles um parentesco chegado. Tudo isto atrapalhado, curto, «á pressa». Por fim n’outra carta deixava escapar toda a verdade, mandava-lhe a declaração da mãe; e mostrando a necessidade d’uma separação, emquanto se não esclarecessem todas as duvidas, pedia-lhe que partisse para Paris. Villaça ficava encarregado da questão de dinheiro, entregando-lhe logo para a viagem trezentas ou quatrocentas libras... Ah! tudo isto era bem complicado, bem covarde! Mas só havia esse meio. E quem, senão elle, o podia tentar com caridade e com tacto?

E, entre o tumulto d’estes pensamentos, de repente achou-se na travessa da Parreirinha, defronte da casa de Maria. Na sala, através das cortinas, transparecia uma luz dormente. Todo o resto estava apagado — a janella do gabinete estreito onde ella se vestia, a varanda do quarto d’ella com os vasos de chrysantemos.

E pouco a pouco aquella fachada muda d’onde apenas sahia, a um canto, uma claridade languida d’alcova adormecida, foi-o estranhamente penetrando de inquietação e desconfiança. Era um medo d’essa penumbra molle que sentia lá dentro, toda cheia de calor e do perfume em que havia jasmim. Não entrou; seguiu devagar pelo passeio fronteiro, pensando em certos detalhes da casa — o sofá largo e profundo com almofadas de sêda, as rendas do toucador, o cortinado branco da cama d’ella... Depois parou diante da larga barra de claridade que sahia do portão do Gremio; e foi para lá, machinalmente attrahido pela simplicidade e segurança d’aquella entrada, lageada de pedra, com grossos bicos de gaz, sem penumbras e sem perfumes.

Na sala, em baixo, ficou percorrendo, sem os comprehender, os telegrammas soltos sobre a mesa. Um criado passou, elle pediu cognac. Telles da Gama, que vinha de dentro assobiando, com as mãos nos bolsos do paletot, deteve-se um momento para lhe perguntar se ia na terça-feira aos Gouvarinhos.

— Talvez, murmurou Carlos.

— Então venha!... Eu ando a arrebanhar gente... São os annos do Charlie, de mais a mais. Cae lá o peso do mundo, e ha ceia!...

O criado entrou com a bandeja — e Carlos, de pé junto da mesa, remexendo o assucar no copo, recordava, sem saber porque, aquella tarde em que a condessa, pondo-lhe uma rosa no casaco, lhe dera o primeiro beijo; revia o sofá onde ella cahira com um rumor de sêdas amarrotadas... Como tudo isto era já vago e remoto!

Apenas acabou o cognac sahiu. Agora, caminhando rente das casas, não via aquella fachada que o perturbava com a sua claridade d’alcova morrendo nos vidros. O portão ficára cerrado, o gaz ardia no patamar. E subiu, sentindo mais pela escada de pedra as pancadas do coração que o pousar dos seus passos. Melanie, que veio abrir, disse-lhe que a senhora, um pouco cansada, se fôra encostar sobre a roupa; — e a sala, com effeito, parecia abandonada por essa noite, com as serpentinas apagadas, o bordado ocioso e enrolado no seu cesto, os livros n’um frio arranjo orlando a mesa onde o candieiro espalhava uma luz tenue sob o abat-jour de renda amarella.

Carlos tirava as luvas, lentamente, retomado de novo por uma inquietação ante aquelle recolhimento adormecido. E de repente Rosa correu de dentro, rindo, pulando, com os cabellos soltos nos hombros, os braços abertos para elle. Carlos levantou-a ao ar, dizendo como costumava: «Lá vem a cabrita!...»

Mas então, quando a tinha assim suspensa, batendo os pésinhos — atravessou-o a idéa de que aquella criança era sua sobrinha e tinha o seu nome!... Largou-a, quasi a deixou cahir — assombrado para ella, como se pela vez primeira visse essa facesinha eburnea e fina onde corria o seu sangue...

— Que estás tu a olhar para mim? murmurou ella, recuando e sorrindo, com as mãosinhas cruzadas atraz das saias que tufavam.

Elle não sabia, parecia-lhe outra Rosa: e á sua perturbação misturava-se uma saudade pela antiga Rosa, a outra, a que era filha de Madame Mac-Gren, a quem elle contava historias de Joanna d’Arc, a quem balouçava na Toca sob as acacias em flôr. Ella no emtanto sorria mais, com um brilho nos dentinhos miudos, uma ternura nos bellos olhos azues, vendo-o assim tão grave e tão mudo, pensando que elle ia brincar, fazer «voz de Carlos Magno». Tinha o mesmo sorriso da mãi, com a mesma covinha no queixo. Carlos viu n’ella de repente toda a graça de Maria, todo o encanto de Maria. E arrebatou-a de novo nos braços, tão violentamente, com beijos tão bruscos no cabello e nas faces, que Rosa estrebuchou, assustada e com um grito. Soltou-a logo, n’um receio de não ter sido casto... Depois, muito sério:

— Onde está a mamã?

Rosa coçava o braço, com a testasinha franzida:

— Apre!... Magoaste-me.

Carlos passou-lhe pelos cabellos a mão que ainda tremia.

— Vá, não sejas piegas, a mamã não gosta. Onde está ella?

A pequena, aplacada, já contente, pulava em redor, agarrando nos pulsos de Carlos para que elle saltasse tambem...

— A mamã foi deitar-se... Diz que está muito cansada, depois chama-me a mim preguiçosa... Vá, salta tambem. Não sejas mono!...

N’esse instante, do corredor, miss Sarah chamou:

— Mademoiselle!...

Rosa pôz o dedinho na bôca cheia de riso:

— Dize-lhe que não estou aqui! A vêr... Para a fazer zangar!... Dize!

Miss Sarah erguera o reposteiro; e descobriu-a logo escondida, sumida por traz de Carlos, na pontinha dos pés, fazendo-se pequenina. Teve um sorriso benevolo, murmurou «good night, sir». Depois lembrou que eram quasi nove e meia, mademoiselle tinha estado um pouco constipada e devia recolher-se. Então Carlos puxou brandamente pelo braço de Rosa, acariciou-a ainda para que ella obedecesse a miss Sarah.

Mas Rosa sacudia-o, indignada d’aquella traição.

— Tambem nunca fazes nada!... Semsaborão! Pois olha, nem te digo adeus!

Atravessou a sala, amuada, esquivou-se com um repellão á governante que sorria e lhe estendia a mão — e pelo corredor rompeu n’um chôro despeitado e pêrro. Miss Sarah risonhamente desculpou mademoiselle. Era a constipação que a tornava impertinente. Mas se fosse diante da mamã não fazia aquillo, não!

— Good night, sir.

— Good night, miss Sarah...

Só, Carlos errou alguns momentos pela sala. Por fim ergueu o pedaço de tapeçaria que cerrava o estreito gabinete onde Maria se vestia. Ahi, na escuridão, um brilho pallido d’espelho tremia, batido por um longo raio do candieiro da rua. Muito de leve empurrou a porta do quarto.

— Maria!... Estás a dormir?

Não havia luz; mas o mesmo candieiro da rua, através do transparente erguido, tirava das trevas a brancura vaga do cortinado que envolvia o leito. E foi d’ahi que ella murmurou, mal acordada:

— Entra! Vim-me deitar, estava muito cansada... Que horas são?

Carlos não se movera, ainda com a mão na porta:

— É tarde, e eu preciso sahir já a procurar o Villaça ... Vinha dizer-te que tenho talvez de ir a Santa Olavia, além d’ámanhã, por dois ou tres dias...

Um movimento, entre os cortinados, fez ranger o leito.

— Para Santa Olavia?... Ora essa, porque? E assim de repente... Entra!... Vem cá!

Então Carlos deu um passo no tapete, sem rumor. Ainda sentia o ranger molle do leito. E já todo aquelle aroma d’ella que tão bem conhecia, esparso na sombra tepida, o envolvia, lhe entrava n’alma com uma seducção inesperada de caricia nova, que o perturbava estranhamente. Mas ia balbuciando, insistindo na sua pressa de encontrar essa noite o Villaça.

— É uma massada, por causa d’uns feitores, d’umas aguas...

Tocou no leito; e sentou-se muito á beira, n’uma fadiga que de repente o enleára, lhe tirava a força para continuar essas invenções d’aguas e de feitores, como se ellas fossem montanhas de ferro a mover.

O grande e bello corpo de Maria, embrulhado n’um roupão branco de sêda, movia-se, espreguiçava-se languidamente sobre o leito brando.

— Achei-me tão cansada, depois de jantar, veio-me uma preguiça... Mas então partires assim de repente!... Que sécca! Dá cá a mão!

Elle tenteava, procurando na brancura da roupa: encontrou um joelho a que percebia a fórma e o calor suave, através da sêda leve: e alli esqueceu a mão, aberta e frouxa, como morta, n’um entorpecimento onde toda a vontade e toda a consciencia se lhe fundiam, deixando-lhe apenas a sensação d’aquella pelle quente e macia onde a sua palma pousava. Um suspiro, um pequenino suspiro de criança, fugiu dos labios de Maria, morreu na sombra. Carlos sentiu a quentura de desejo que vinha d’ella, que o entontecia, terrivel como o bafo ardente d’um abysmo, escancarado na terra a seus pés. Ainda balbuciou: «não, não...» Mas ella estendeu os braços, envolveu-lhe o pescoço, puxando-o para si, n’um murmurio que era como a continuação do suspiro, e em que o nome de querido susurrava e tremia. Sem resistencia, como um corpo morto que um sopro impelle, elle cahiu-lhe sobre o seio. Os seus labios seccos acharam-se collados n’um beijo aberto que os humedecia. E de repente, Carlos enlaçou-a furiosamente, esmagando-a e sugando-a, n’uma paixão e n’um desespero que fez tremer todo o leito.

A essa hora Ega acordava no bilhar, ainda estirado na poltrona onde o cansaço o prostrára. Bocejando, estremunhado, arrastou os passos até ao escriptorio de Affonso.

Ahi ardia um lume alegre, a que o reverendo Bonifacio se deixava torrar, enrolado sobre a pelle d’urso. Affonso fazia a partida de whist com Steinbroken e com o Villaça: mas tão distrahido, tão confuso, que já duas vezes D. Diogo, infeliz e irritado, rosnára que se a dôr de cabeça assim o estonteava melhor seria findarem! Quando Ega appareceu, o velho levantou os olhos inquietos:

— O Carlos? Sahiu?...

— Sim, creio que sahiu com o Craft, disse o Ega. Tinham fallado em ir vêr o marquez.

Villaça, que baralhava com a sua lentidão meticulosa, deitou tambem para o Ega um olhar curioso e vivo. Mas já D. Diogo batia com os dedos no pano da mesa, resmungando: — «Vamos lá, vamos lá... Não se ganha nada em saber dos outros!» Então Ega ficou alli um momento, com bocejos vagos, seguindo o cahir lento das cartas. Por fim, molle e seccado, decidiu ir lêr para a cama, hesitou por diante das estantes, sahiu com um velho numero do Panorama.

Ao outro dia, á hora do almoço, entrou no quarto de Carlos. E ficou pasmado quando o Baptista — tristonho desde a vespera, farejando desgosto — lhe disse que Carlos fôra para a Tapada, muito cedo, a cavallo...

— Ora essa!... E não deixou ordens nenhumas, não fallou em ir para Santa Olavia?...

Baptista olhou Ega, espantado:

— Para Santa Olavia!... Não senhor, não fallou em semelhante coisa. Mas deixou uma carta para v. exc.ª vêr. Creio que é do snr. marquez. E diz que lá apparecia depois, ás seis... Acho que é jantar.

N’um bilhete de visita, o marquez, com effeito, lembrava que esse dia era «o seu fausto natalicio», e esperava Carlos e o Ega ás seis, para lhe ajudarem a comer a gallinha de dieta.

— Bem, lá nos encontraremos, murmurou Ega, descendo para o jardim.

Aquillo parecia-lhe extraordinario! Carlos passeando a cavallo, Carlos jantando com o marquez, como se nada houvesse perturbado a sua vida facil de rapaz feliz!... Estava agora certo de que elle na vespera fôra á rua de S. Francisco. Justos céos! Que se teria lá passado? Subiu, ouvindo a sineta do almoço. O escudeiro annunciou-lhe que o snr. Affonso da Maia tomára uma chavena de chá no quarto e ainda estava recolhido. Todos sumidos! Pela primeira vez no Ramalhete Ega almoçou solitariamente na larga mesa, lendo a Gazeta Illustrada.

De tarde, ás seis, no quarto do marquez (que tinha o pescoço enrolado n’uma boa de senhora de pelle de marta), encontrou Carlos, o Darque, o Craft, em torno d’um rapaz gordo que tocava guitarra — emquanto ao lado o procurador do marquez, um bello homem de barba preta, se batia com o Telles n’uma partida de damas.

— Viste o avô? perguntou Carlos, quando o Ega lhe estendeu a mão.

— Não, almocei só.

O jantar, d’ahi a pouco, foi muito divertido, largamente regado com os soberbos vinhos da casa. E ninguem decerto bebeu mais, ninguem riu mais do que Carlos, resurgido quasi de repente d’uma desanimação sombria a uma alegria nervosa — que incommodava o Ega, sentindo n’ella um timbre falso e como um som de crystal rachado. O proprio Ega por fim á sobremesa se excitou consideravelmente com um esplendido Porto de 1815. Depois houve um baccarat em que Carlos, outra vez sombrio, deitando a cada instante os olhos ao relogio, teve uma sorte triumphante, uma «sorte de cabrão», como a classificou o Darque, indignado, ao trocar a sua ultima nota de vinte mil reis. Á meia noite porém, inexoravelmente, o procurador do marquez lembrou as ordens do medico que marcára esse limite «ao natalicio». Foi então um enfiar de paletots, em debandada, por entre os queixumes do Darque e do Craft, que sahiam escorridos, sem sequer um troco para o «americano». Fez-se-lhes uma subscripção de caridade, que elles recolheram nos chapéos, rosnando bênçãos aos bemfeitores.

Na tipoia que os levava ao Ramalhete, Carlos e Ega permaneceram muito tempo em silencio, cada um enterrado ao seu canto, fumando. Foi já ao meio do Aterro que Ega pareceu despertar:

— E então por fim?... Sempre vaes para Santa Olavia, ou que fazes?

Carlos mexeu-se no escuro da tipoia. Depois, lentamente, como cheio de cansaço:

— Talvez vá ámanhã... Ainda não disse nada, ainda não fiz nada... Decidi dar-me quarenta e oito horas para acalmar, para reflectir... Não se póde agora fallar com este barulho das rodas.

De novo cada um recahiu na sua mudez, ao seu canto.

Em casa, subindo a escadinha forrada de velludo, Carlos declarou-se exhausto e com uma intoleravel dôr de cabeça:

— Ámanhã fallamos, Ega... Boa noite, sim?

— Até ámanhã.

Alta noite Ega acordou com uma grande sêde. Saltára da cama, esvaziára a garrafa no toucador, quando julgou sentir por baixo, no quarto de Carlos, uma porta bater. Escutou. Depois, arrepiado, remergulhou nos lençoes. Mas espertára inteiramente, com uma idéa estranha, insensata, que o assaltára sem motivo, o agitava, lhe fazia palpitar o coração no grande silencio da noite. Ouviu assim dar tres horas. A porta de novo batera, depois uma janella: era decerto vento que se erguera. Não podia porém readormecer, ás voltas, n’um terrivel mal-estar, com aquella idéa cravada na imaginação que o torturava. Então, desesperado, pulou da cama, enfiou um paletot, e em pontas de chinelas, com a mão diante da luz, desceu surdamente ao quarto de Carlos. Na ante-sala parou, tremendo, com o ouvido contra o reposteiro, na esperança de perceber algum calmo rumor de respiração. O silencio era pesado e pleno. Ousou entrar... A cama estava feita e vazia, Carlos sahira.

Elle ficou a olhar estupidamente para aquella colcha lisa, com a dobra do lençol de renda cuidadosamente entreaberta pelo Baptista. E agora não duvidava. Carlos fôra findar a noite á rua de S. Francisco!... Estava lá, dormia lá! E só uma idéa surgia através do seu horror — fugir, safar-se para Celorico, não ser testemunha d’aquella incomparavel infamia!...

E o dia seguinte, terça-feira, foi desolador para o pobre Ega. Vexado, n’um terror de encontrar Carlos ou Affonso, levantou-se cedo, esgueirou-se pelas escadas com cautelas de ladrão, foi almoçar ao Tavares. De tarde, na rua do Ouro, viu passar Carlos, que levava no break o Cruges e o Taveira — arrebanhados certamente para elle se não encontrar só á mesa com o avô. Ega jantou melancolicamente no Universal. Só entrou no Ramalhete ás nove horas, vestir-se para a soirée da Gouvarinho, que pela manhã no Loreto parára a carruagem para lhe lembrar «que era a festa do Charlie». E foi já de paletot, de claque na mão, que appareceu emfim na salinha Luiz xv onde Cruges tocava Chopin, e Carlos se installára n’uma partida de bezigue com o Craft. Vinha saber se os amigos queriam alguma coisa para os nobres condes de Gouvarinho...

— Diverte-te!

— Sê faiscante!

— Eu lá appareço para a ceia! prometteu Taveira, estirado n’uma poltrona com o Figaro.

Eram duas horas da manhã quando Ega recolheu da soirée — onde por fim se divertira n’uma desesperada flirtação com a baroneza d’Alvim, que á ceia, depois do champagne, vencida por tanta graça e tanta audacia, lhe tinha dado duas rosas. Diante do quarto de Carlos, accendendo a vela, Ega hesitou, mordido por uma curiosidade... Estaria lá? Mas teve vergonha d’aquella espionagem, e subiu, bem decidido como na vespera a fugir para Celorico. No seu quarto, diante do espelho, pôz cuidadosamente n’um copo as rosas da Alvim. E começava a despir-se, quando ouviu passos no negro corredor, passos muito lentos, muito pesados, que se adiantavam, findaram á sua porta em suspensão e silencio. Assustado, gritou: «Que é lá?» A porta rangeu. E appareceu Afonso da Maia, pallido, com um jaquetão sobre a camisa de dormir, e um castiçal onde a vela ia morrendo. Não entrou. N’uma voz enrouquecida, que tremia:

— O Carlos? esteve lá?

Ega balbuciou, atarantado, em mangas de camisa. Não sabia... Estivera apenas um momento nos Gouvarinhos... Era provavel que Carlos tivesse ido mais tarde com o Taveira, para a ceia.

O velho cerrára os olhos, como se desfallecesse, estendendo a mão para se apoiar. Ega correu para elle:

— Não se afflija, snr. Affonso da Maia!

— Que queres então que faça? Onde está elle? Lá mettido, com essa mulher... Escusas de dizer, eu sei, mandei espreitar... Desci a isso, mas quiz acabar esta angustia... E esteve lá hontem até de manhã, está lá a dormir n’este instante... E foi para este horror que Deus me deixou viver até agora!

Teve um grande gesto de revolta e de dôr. De novo os seus passos, mais pesados, mais lentos, se sumiram no corredor.

Ega ficou junto da porta, um momento, estarrecido. Depois foi-se despindo devagar, decidido a dizer a Carlos muito simplesmente, ao outro dia, antes de partir para Celorico, que a sua infamia estava matando o avô, e o forçava a elle, seu melhor amigo, a fugir para a não testemunhar por mais tempo.

Mal acordou, puxou a mala para o meio do quarto, atirou para cima da cama, ás braçadas, a roupa que ia emmalar. E durante meia hora, em mangas de camisa, lidou n’esta tarefa, misturando aos seus pensamentos de cólera lembranças da sóirée da vespera, certos olhares da Alvim, certas esperanças que lhe tornavam saudosa a partida. Um alegre sol dourava a varanda. Terminou por abrir a vidraça, respirar, olhar o bello azul d’inverno. Lisboa ganhava tanto com aquelle tempo! E já Celorico, a quinta, o padre Seraphim, lhe estendiam de longe a sua sombra n’alma. Ao baixar os olhos viu o dog-cart de Carlos atrellado com a Tunante, que escarvava a calçada animada pelo ar vivo. Era Carlos decerto que ia sahir cedo — para não se encontrar com elle e com o avô!

N’um receio de o não apanhar n’esse dia, desceu correndo. Carlos aferrolhára-se na alcova de banho. Ega chamou, o outro não tugiu. Por fim Ega bateu, gritou através da porta, sem esconder a sua irritação:

— Tem a bondade d’escutar!... Então partes para Santa Olavia, ou quê?

Depois d’um instante, Carlos lançou de lá, entre um rumor d’agua que cahia:

— Não sei... Talvez... Logo te digo...

O outro não se conteve mais:

— É que se não pôde ficar assim eternamente... Recebi uma carta de minha mãi... E se não partes para Santa Olavia, eu vou para Celorico... É absurdo! Já estamos n’isto ha tres dias!

E quasi se arrependia já da sua violencia, quando a voz de Carlos se arrastou de dentro, humilde e cansada, n’uma supplica:

— Por quem és, Ega! Tem um bocado de paciencia commigo. Eu logo te digo...

N’uma d’aquellas subitas emoções de nervoso, que o sacudiam — os olhos do Ega humedeceram. Balbuciou logo:

— Bem, bem! Eu fallei alto por ser através da porta... Não ha pressa!

E fugiu para o quarto, cheio só de compaixão e ternura, com uma grossa lagrima nas pestanas. Sentia agora bem a tortura em que o pobre Carlos se debatera, sob o despotismo d’uma paixão até ahi legitima, e que n’uma hora amarga se tornava de repente monstruosa, sem nada perder de seu encanto e da sua intensidade... Humano e fragil, elle não pudera estacar n’aquelle violento impulso de amor e de desejo que o levava como n’um vendaval! Cedera, cedera, continuára a rolar áquelles braços, que innocentemente o continuavam a chamar. E ahi andava agora, aterrado, escorraçado, fugindo occultamente de casa, passando o dia longe dos seus, n’uma vadiagem tragica, como um excommungado que receia encontrar olhos puros onde sinta o horror do seu peccado... E ao lado, o pobre Affonso, sabendo tudo, morrendo d’aquella dôr! Podia elle, hospede querido dos tempos alegres, partir, agora que uma onda de desgraça quebrára sobre essa casa, onde o acolhiam affeições mais largas que na sua propria? Seria ignobil! Tornou logo a desfazer a mala; e, furioso no seu egoismo com todas aquellas amarguras que o abalavam, arranjava outra vez a roupa dentro da commoda, com a mesma cólera com que a desmanchára, rosnando:

— Diabo levem as mulheres, e a vida, e tudo!...

Quando desceu, já vestido, Carlos desapparecera! Mas Baptista, tristonho, carrancudo, certo agora de que havia um grande desgosto, deteve-o para lhe murmurar:

— Tinha v. exc.ª razão... Partimos ámanhã para Santa Olavia e levamos roupa para muito tempo... Este inverno começa mal!

N’essa madrugada, ás quatro horas, em plena escuridão, Carlos cerrára de manso o portão da rua de S. Francisco. E, mais pungente, apoderava-se d’elle, na frialdade da rua, o medo que já o roçára, ao vestir-se na penumbra do quarto, ao lado de Maria adormecida — o medo de voltar ao Ramalhete! Era esse medo que já na vespera o trouxera todo o dia por fóra no dog-cart, findando por jantar lugubremente com o Cruges, escondido n’um gabinete do Augusto. Era medo do avô, medo do Ega, medo do Villaça; medo d’aquella sineta do jantar que os chamava, os juntava; medo do seu quarto, onde a cada momento qualquer d’elles podia erguer o reposteiro, entrar, cravar os olhos na sua alma e no seu segredo... Tinha agora a certeza que elles sabiam tudo. E mesmo que n’essa noite fugisse para Santa Olavia, pondo entre si e Maria uma separação tão alta como o muro d’um claustro, nunca mais do espirito d’aquelles homens, que eram os seus amigos melhores, sahiria a memoria e a dôr da infamia em que elle se despenhára. A sua vida moral estava estragada... Então, para que partiria — abandonando a paixão, sem que por isso encontrasse a paz? Não seria mais logico calcar desesperadamente todas as leis humanas e divinas, arrebatar para longe Maria na sua innocencia, e para todo o sempre abysmar-se n’esse crime que se tornára a sua sombria partilha na terra?

Já assim pensára na vespera. Já assim pensára... Mas antevira então um outro horror, um supremo castigo, a esperal-o na solidão onde se sepultasse. Já lhe percebera mesmo a aproximação; já n’outra noite recebera d’elle um arrepio; já n’essa noite, deitado junto de Maria, que adormecera cansada, o presentira, apoderando-se d’elle, com um primeiro frio d’agonia.

Era, surgindo do fundo do seu sêr, ainda tenue mas já perceptivel, uma saciedade, uma repugnancia por ella desde que a sabia do seu sangue!... Uma repugnancia material, carnal, á flôr da pelle, que passava como um arrepio. Fôra primeiramente aquelle aroma que a envolvia, fluctuava entre os cortinados, lhe ficava a elle na pelle e no fato, o excitava tanto outr’ora, o impacientava tanto agora — que ainda na vespera se encharcára em agua de Colonia para o dissipar. Fôra depois aquelle corpo d’ella, adorado sempre como um marmore ideal, que de repente lhe apparecera, como era na sua realidade, forte de mais, musculoso, de grossos membros de Amazona barbara, com todas as bellezas copiosas do animal de prazer. Nos seus cabellos d’um lustre tão macio, sentia agora inesperadamente uma rudeza de juba. Os seus movimentos na cama, ainda n’essa noite, o tinham assustado como se fossem os de uma fera, lenta e ciosa, que se estirava para o devorar... Quando os seus braços o enlaçavam, o esmagavam contra os seus rijos peitos tumidos de seiva, ainda decerto lhe punham nas veias uma chamma que era toda bestial. Mas, apenas o ultimo suspiro lhe morria nos labios, ahi começava insensivelmente a recuar para a borda do colchão, com um susto estranho: e immovel, encolhido na roupa, perdido no fundo d’uma infinita tristeza, esquecia-se pensando n’uma outra vida que podia ter, longe d’alli, n’uma casa simples, toda aberta ao sol, com sua mulher, legitimamente sua, flôr de graça domestica, pequenina, timida, pudica, que não soltasse aquelles gritos lascivos, e não usasse esse aroma tão quente! E desgraçadamente agora já não duvidava... Se partisse com ella, seria para bem cedo se debater no indizivel horror de um nojo physico. E que lhe restaria então, morta a paixão que fôra a desculpa do crime, ligado para sempre a uma mulher que o enojava — e que era... Só lhe restava matar-se!

Mas, tendo por um só dia dormido com ella, na plena consciencia da consanguinidade que os separava, poderia recomeçar a vida tranquillamente? Ainda que possuisse frieza e força para apagar dentro em si essa memoria — ella não morreria no coração do avô, e do seu amigo. Aquelle ascoroso segredo ficaria entre elles, estragando, maculando tudo. A existencia d’ora ávante só lhe offerecia intoleravel amargôr... Que fazer, santo Deus, que fazer! Ah, se alguem o podesse aconselhar, o podesse consolar! Quando chegou á porta de casa o seu desejo unico era atirar-se aos pés d’um padre, aos pés d’um santo, abrir-lhe as miserias do seu coração, implorar-lhe a doçura da sua misericordia! Mas ai! onde havia um santo?

Defronte do Ramalhete os candieiros ainda ardiam. Abriu de leve a porta. Pé ante pé, subiu as escadas ensurdecidas pelo velludo côr de cereja. No patamar tacteava, procurava a vela — quando, através do reposteiro entreaberto, avistou uma claridade que se movia no fundo do quarto. Nervoso, recuou, parou no recanto. O clarão chegava, crescendo: passos lentos, pesados, pisavam surdamente o tapete: a luz surgiu — e com ella o avô em mangas de camisa, livido, mudo, grande, espectral. Carlos não se moveu, suffocado; e os dois olhos do velho, vermelhos, esgazeados, cheios de horror, cahiram sobre elle, ficaram sobre elle, varando-o até ás profundidades d’alma, lendo lá o seu segredo. Depois, sem uma palavra, com a cabeça branca a tremer, Affonso atravessou o patamar, onde a luz sobre o velludo espalhava um tom de sangue: — e os seus passos perderam-se no interior da casa, lentos, abafados, cada vez mais sumidos, como se fossem os derradeiros que devesse dar na vida!

Carlos entrou no quarto ás escuras, tropeçou n’um sofá. E alli se deixou cahir, com a cabeça enterrada nos braços, sem pensar, sem sentir, vendo o velho livido passar, repassar diante d’elle como um longo phantasma, com a luz avermelhada na mão. Pouco a pouco foi-o tomando um cansaço, uma inercia, uma infinita lassidão da vontade, onde um desejo apenas transparecia, se alongava — o desejo de interminavelmente repousar algures n’uma grande mudez e n’uma grande treva... Assim escorregou ao pensamento da morte. Ella seria a perfeita cura, o asylo seguro. Porque não iria ao seu encontro? Alguns grãos de laudano n’essa noite e penetrava na absoluta paz...

Ficou muito tempo, embebendo-se n’esta idéa que lhe dava allivio e consolo, como se, escorraçado por uma tormenta ruidosa, visse diante dos seus passos abrir-se uma porta d’onde sahisse calor e silencio. Um rumor, o chilrear d’um passaro na janella, fez-lhe sentir o sol e o dia. Ergueu-se, despiu-se muito devagar, n’uma immensa molleza. E mergulhou na cama, enterrou a cabeça no travesseiro para recahir na doçura d’aquella inercia, que era um antegosto da morte, e não sentir mais nas horas que lhe restavam nenhuma luz, nenhuma coisa da terra.

O sol ia alto, um barulho passou, o Baptista rompeu pelo quarto:

— Ó snr. D. Carlos, ó meu menino! O avô achou-se mal no jardim, não dá accordo!...

Carlos pulou do leito, enfiando um paletot que agarrára. Na ante-camara a governante, debruçada no corrimão, gritava, afflicta: — «Adiante, homem de Deus, ao pé da padaria, o snr. dr. Azevedo!» E um moço que corria, com que esbarrou no corredor, atirou, sem parar:

— Ao fundo, ao pé da cascata, snr. D. Carlos, na mesa de pedra!...

Affonso da Maia lá estava, n’esse recanto do quintal, sob os ramos do cedro, sentado no banco de cortiça, tombado por sobre a tosca mesa, com a face cahida entre os braços. O chapéo desabado rolára para o chão; nas costas, com a gola erguida, conservava o seu velho capote azul. Em volta, nas folhas das camelias, nas aleas areadas, refulgia, côr d’ouro, o sol fino d’inverno. Por entre as conchas da cascata o fio d’agua punha o seu choro lento.

Arrebatadamente, Carlos levantára-lhe a face, já rigida, côr de cera, com os olhos cerrados, e um fio de sangue aos cantos da longa barba de neve. Depois cahiu de joelhos no chão humido, sacudia-lhe as mãos, murmurando: — «Ó avô! ó avô!» — Correu ao tanque, borrifou-o d’agua:

— Chamem alguem! chamem alguem!

Outra vez lhe palpava o coração... Mas estava morto. Estava morto, já frio, aquelle corpo que, mais velho que o seculo, resistira tão formidavelmente, como um grande roble, aos annos e aos vendavaes. Alli morrera solitariamente, já o sol ia alto, n’aquella tosca mesa de pedra onde deixára pender a cabeça cansada.

Quando Carlos se ergueu, Ega apparecia, esguedelhado, embrulhado no robe-de-chambre. Carlos abraçou-se n’elle, tremendo todo, n’um chôro despedaçado. Os criados em redor olhavam, aterrados. E a governante, como tonta, entre as ruas de roseiras, gemia com as mãos na cabeça: — «Ai o meu rico senhor, ai o meu rico senhor!»

Mas o porteiro, esbaforido, chegava com o medico, o dr. Azevedo, que felizmente encontrára na rua. Era um rapaz, apenas sahido da Escóla, magrinho e nervoso, com as pontas do bigode muito frisadas. Deu em redor, atarantadamente, um comprimento aos criados, ao Ega, e a Carlos, que procurava serenar com a face lavada de lagrimas. Depois, tendo descalçado a luva, estudou todo o corpo de Affonso com uma lentidão, uma minuciosidade que exagerava, á medida que sentia em volta, mais anciosos e attentos n’elle, todos aquelles olhos humedecidos. Por fim, diante de Carlos, passando nervosamente os dedos no bigode, murmurou termos technicos... De resto, dizia, já o collega se teria compenetrado de que tudo infelizmente findára. Elle sentia das véras da alma o desgosto... Se para alguma coisa fosse necessario, com o maximo prazer...

— Muito agradecido a v. exc.ª, balbuciou Carlos.

Ega, em chinelas, deu alguns passos com o snr. dr. Azevedo, para lhe indicar a porta do jardim.

Carlos no emtanto ficára defronte do velho, sem chorar, perdido apenas no espanto d’aquelle brusco fim! Imagens do avô, do avô vivo e forte, cachimbando ao canto do fogão, regando de manhã as roseiras, passavam-lhe n’alma, em tropel, deixando-lh’a cada vez mais dorida e negra... E era então um desejo de findar tambem, encostar-se como elle áquella mesa de pedra, e sem outro esforço, nenhuma outra dôr da vida, cahir como elle na sempiterna paz. Uma restea de sol, entre os ramos grossos do cedro, batia a face morta de Affonso. No silencio os passaros, um momento espantados, tinham recomeçado a chalrar. Ega veio a Carlos, tocou-lhe no braço:

— É necessario leval-o para cima.

Carlos beijou a mão fria que pendia. E, devagar, com os beiços a tremer, levantou o avô pelos hombros carinhosamente. Baptista correra a ajudar; Ega, embaraçado no seu largo roupão, segurava os pés do velho. Através do jardim, do terraço cheio de sol, do escriptorio onde a sua poltrona esperava diante do lume accêso, foram-o transportando n’um silencio só quebrado pelos passos dos criados, que corriam a abrir as portas, acudiam quando Carlos, na sua perturbação, ou o Ega fraquejavam sob o peso do grande corpo. A governante já estava no quarto d’Affonso com uma colcha de sêda para estender na singela cama de ferro, sem cortinado. E alli o depuzeram emfim sobre as ramagens claras bordadas na sêda azul.

Ega accendera dois castiçaes de prata: a governante, de joelhos á beira do leito, esfiava o rosario: e Mr. Antoine, com o seu barrete branco de cozinheiro na mão, ficára á porta, junto d’um cesto que trouxera, cheio de camelias e palmas de estufa. Carlos, no emtanto, movendo-se pelo quarto, com longos soluços que o sacudiam, voltava a cada instante, n’uma derradeira e absurda esperança, palpar as mãos ou o coração do velho. Com o jaquetão de velludilho, os seus grossos sapatos brancos, Affonso parecia mais forte e maior, na sua rigidez, sobre o leito estreito: entre o cabello de neve cortado á escovinha e a longa barba desleixada, a pelle ganhára um tom de marfim velho, onde as rugas tomavam a dureza d’entalhaduras a cinzel: as palpebras engelhadas, de pestanas brancas, pousavam com a consolada serenidade de quem emfim descança; e ao deitarem-no uma das mãos ficára-lhe aberta e posta sobre o coração, na simples e natural attitude de quem tanto pelo coração vivêra!

Carlos perdia-se n’esta contemplação dolorosa. E o seu desespero era que o avô assim tivesse partido para sempre, sem que entre elles houvesse um adeus, uma dôce palavra trocada. Nada! Apenas aquelle olhar angustiado, quando passára com a vela accêsa na mão. Já então elle ia andando para a morte. O avô sabia tudo, d’isso morrera! E esta certeza sem cessar lhe batia n’alma, com uma longa pancada repetida e lugubre. O avô sabia tudo, d’isso morrera!

Ega veio com um gesto indicar-lhe o estado em que estavam — elle de robe-de-chambre, Carlos com o paletot sobre a camisa de dormir:

— É necessario descer, é necessario vestir-nos.

Carlos balbuciou:

— Sim, vamo-nos vestir...

Mas não se arredava. Ega levou-o brandamente pelo braço. Elle caminhava como um somnambulo, passando o lenço devagar pela testa e pela barba. E de repente no corredor, apertando desesperadamente as mãos, outra vez coberto de lagrimas, n’um agoniado desabafo de toda a sua culpa:

— Ega, meu querido Ega! O avô viu-me esta manhã quando entrei! E passou, não me disse nada... Sabia tudo, foi isso que o matou!...

Ega arrastou-o, consolou-o, repellindo tal idéa. Que tolice! O avô tinha quasi oitenta annos, e uma doença de coração... Desde a volta de Santa Olavia, quantas vezes elles tinham fallado n’isso, aterrados! Era absurdo ir agora fazer-se mais desgraçado com semelhante imaginação!

Carlos murmurou, devagar, como para si mesmo, com os olhos postos no chão:

— Não! É estranho, não me faço mais desgraçado! Aceito isto como um castigo... Quero que seja um castigo... E sinto-me só muito pequeno, muito humilde diante de quem assim me castiga. Esta manhã pensava em matar-me. E agora não! É o meu castigo viver, esmagado para sempre... O que me custa é que elle não me tivesse dito adeus!!

De novo as lagrimas lhe correram, mas lentas, mansamente, sem desespero. Ega levou-o para o quarto, como uma criança. E assim o deixou a um canto do sofá, com o lenço sobre a face, n’um chôro contínuo e quieto, que lhe ia lavando, alliviando o coração de todas as angustias confusas e sem nome que n’esses dias derradeiros o traziam suffocado.

Ao meio dia, em cima, Ega acabava de vestir-se quando Villaça lhe rompeu pelo quarto de braços abertos.

— Então como foi isto, como foi isto?

Baptista mandára-o chamar pelo trintanario, mas o rapazola pouco lhe soubera contar. Agora em baixo o pobre Carlos abraçára-o, coitadinho, lavado em lagrimas, sem poder dizer nada, pedindo-lhe só para se entender em tudo com o Ega... E alli estava.

— Mas como foi, como foi, assim de repente?...

Ega contou, brevemente, como tinham encontrado Affonso de manhã no jardim, tombado para cima da mesa de pedra. Viera o dr. Azevedo, mas tudo acabára!

Villaça levou as mãos á cabeça:

— Uma coisa assim! Creia o amigo! Foi essa mulher, essa mulher que ahi appareceu, que o matou! Nunca foi o mesmo depois d’aquelle abalo! Não foi mais nada! Foi isso!

Ega murmurava, deitando machinalmente agua de Colonia no lenço:

— Sim, talvez, esse abalo, e oitenta annos, e poucas cautelas, e uma doença de coração.

Fallaram então do enterro, que devia ser simples como convinha áquelle homem simples. Para depositar o corpo, emquanto não fosse trasladado para Santa Olavia, Ega lembrára-se do jazigo do marquez.

Villaça coçava o queixo, hesitando:

— Eu tambem tenho um jazigo. Foi o proprio snr. Affonso da Maia que o mandou erguer para meu pai, que Deus haja... Ora parece-me que por uns dias ficava lá perfeitamente. Assim não se pedia a ninguem, e eu tinha n’isso muita honra...

Ega concordou. Depois fixaram outros detalhes de convite, de hora, de chave do caixão. Por fim Villaça, olhando o relogio, ergueu-se com um grande suspiro:

— Bem, vou dar esses tristes passos! E cá appareço logo, que o quero vêr pela ultima vez, quando o tiverem vestido. Quem me havia de dizer! Ainda antes de hontem a jogar com elle... Até lhe ganhei tres mil reis, coitadinho!

Uma onda de saudade suffocou-o, fugiu com o lenço nos olhos.

Quando Ega desceu, Carlos, todo de luto, estava sentado á escrivaninha, diante d’uma folha de papel. Immediatamente ergueu-se, arrojou a penna.

— Não posso!... Escreve-lhe tu ahi, a ella, duas palavras.

Em silencio, Ega tomou a penna, redigiu um bilhete muito curto. Dizia: «Minha senhora. O snr. Affonso da Maia morreu esta madrugada, de repente, com uma apoplexia. V. exc.ª comprehende que, n’este momento, Carlos nada mais póde do que pedir-me para eu transmittir a v. exc.ª esta desgraçada noticia. Creia-me, etc.» Não o leu a Carlos. E como Baptista entrava n’esse momento, todo de preto, com o almoço n’uma bandeja, Ega pediu-lhe para mandar o trintanario com aquelle bilhete á rua de S. Francisco. Baptista segredou sobre o hombro do Ega:

— É bom não esquecer as fardas de luto para os criados...

— O snr. Villaça já sabe.

Tomaram chá á pressa em cima do taboleiro. Depois Ega escreveu bilhetes a D. Diogo e ao Sequeira, os mais velhos amigos d’Affonso: e davam duas horas quando chegaram os homens com o caixão para amortalhar o corpo. Mas Carlos não permittiu que mãos mercenarias tocassem no avô. Foi elle e o Ega, ajudados pelo Baptista, que, corajosamente, recalcando a emoção sob o dever, o lavaram, o vestiram, o depuzeram dentro do grande cofre de carvalho, forrado de setim claro, onde Carlos collocou uma miniatura de sua avó Runa. Á tarde, com auxilio de Villaça, que voltára «para dar o ultimo olhar ao patrão», desceram-no ao escriptorio, que Ega não quizera alterar nem ornar, e que, com os damascos escarlates, as estantes lavradas, os livros juncando a carteira de pau preto, conservava a sua feição austera de paz estudiosa. Sómente, para depôr o caixão, tinham juntado duas largas mesas, recobertas por um panno de velludo negro que havia na casa, com as armas bordadas a ouro. Por cima o Christo de Rubens abria os braços sobre a vermelhidão do poente. Aos lados ardiam doze castiçaes de prata. Largas palmas d’estufa cruzavam-se á cabeceira do esquife, entre ramos de camelias. E Ega accendeu um pouco de incenso em dois perfumadores de bronze.

Á noite o primeiro dos velhos amigos a apparecer foi D. Diogo, solemne, de casaca. Encostado ao Ega, aterrado diante do caixão, só pôde murmurar: — «E tinha menos sete mezes que eu!» O marquez veio já tarde, abafado em mantas, trazendo um grande cesto de flôres. Craft e o Cruges nada sabiam, tinham-se encontrado na rampa de Santos; — e receberam a primeira surpreza ao vêr fechado o portão do Ramalhete. O ultimo a chegar foi o Sequeira, que passára o dia na quinta, e se abraçou em Carlos, depois no Craft ao acaso, entontecido, com uma lagrima nos olhos injectados, balbuciando: — «Foi-se o companheiro de muitos annos. Tambem não tardo!...»

E a noite de vigilia e pezames começou, lenta e silenciosa. As doze chammas das velas ardiam, muito altas, n’uma solemnidade funeraria. Os amigos trocavam algum murmurio abafado, com as cadeiras chegadas. Pouco a pouco, o calor, o aroma do incenso, a exhalação das flôres forçaram o Baptista a abrir uma das janellas do terraço. O céo estava cheio d’estrellas. Um vento fino susurrava nas ramagens do jardim.

Já tarde Sequeira, que não se movera d’uma poltrona, com os braços cruzados, teve uma tontura. Ega levou-o á sala de jantar, a reconfortal-o com um calice de cognac. Havia lá uma ceia fria, com vinhos e dôces. E Craft veio tambem — com o Taveira, que soubera a desgraça na redacção da Tarde, e correra quasi sem jantar. Tomando um pouco de Bordeus, uma sandwich, Sequeira reanimava-se, lembrava o passado, os tempos brilhantes, quando Affonso e elle eram novos. Mas emmudeceu vendo apparecer Carlos, pallido e vagaroso como um somnambulo, que balbuciou: «Tomem alguma coisa, sim, tomem alguma coisa...»

Mexeu n’um prato, deu uma volta á mesa, sahiu. Assim vagamente foi até á ante-camara, onde todos os candelabros ardiam. Uma figura esguia e negra surgiu da escada. Dois braços enlaçaram-no. Era o Alencar.

— Nunca vim cá nos dias felizes, aqui estou na hora triste!

E o poeta seguiu pelo corredor, em pontas de pés, como pela nave d’um templo.

Carlos no emtanto deu ainda alguns passos pela ante-camara. Ao canto d’um divan ficára um grande cesto com uma corôa de flôres, sobre que pousava uma carta. Reconheceu a letra de Maria. Não lhe tocou, recolheu ao escriptorio. Alencar, diante do caixão, com a mão pousada no hombro do Ega, murmurava: «Foi-se uma alma de heroe!»

As velas iam-se consumindo. Um cansaço pesava. Baptista fez servir café no bilhar. E ahi, apenas recebeu a sua chavena, Alencar, cercado do Cruges, do Taveira, do Villaça, rompeu a fallar tambem do passado, dos tempos brilhantes d’Arroios, dos rapazes ardentes d’então:

— Vejam vocês, filhos, se se encontra ainda uma gente como estes Maias, almas de leões, generosos, valentes!... Tudo parece ir morrendo n’este desgraçado paiz!... Foi-se a faisca, foi-se a paixão... Affonso da Maia! Parece que o estou a vêr, á janella do palacio em Bemfica, com a sua grande gravata de setim, aquella cara nobre de portuguez d’outr’ora... E lá vai! E o meu pobre Pedro tambem... Caramba, até se me faz a alma negra!

Os olhos ennevoavam-se-lhe, deu um immenso sorvo ao cognac.

Ega, depois de beber um gole de café, voltára ao escriptorio, onde o cheiro d’incenso espalhava uma melancolia de capella. D. Diogo, estirado no sofá, resonava; Sequeira defronte dormitava tambem, descahido sobre os braços cruzados, com todo o sangue na face. Ega despertou-os de leve. Os dois velhos amigos, depois d’um abraço a Carlos, partiram na mesma carruagem, com os charutos accêsos. Os outros, pouco a pouco, iam tambem abraçar Carlos, enfiavam os paletots. O ultimo a sahir foi Alencar, que, no pateo, beijou o Ega, n’um impulso d’emoção, lamentando ainda o passado, os companheiros desapparecidos:

— O que me vale agora são vocês, rapazes, a gente nova. Não me deitem á margem! Senão, caramba, quando quizer fazer uma visita tenho d’ir ao cemiterio. Adeus, não apanhes frio!

O enterro foi ao outro dia, á uma hora. O Ega, o marquez, o Craft, o Sequeira levaram o caixão até á porta, seguidos pelo grupo d’amigos, onde destacava o conde de Gouvarinho, solemnissimo, de gran-cruz. O conde de Steinbroken, com o seu secretario, trazia na mão uma corôa de violetas. Na calçada estreita os trens apertavam-se, n’uma longa fila que subia, se perdia pelas outras ruas, pelas travessas: em todas as janellas do bairro se apinhava gente: os policias berravam com os cocheiros. Por fim o carro, muito simples, rodou, seguido por duas carruagens da casa, vazias, com as lanternas recobertas de longos véos de crepe que pendiam. Atraz, um a um, desfilaram os trens da Companhia com os convidados, que abotoavam os casacos, corriam os vidros contra a friagem do dia ennevoado. O Darque e o Vargas iam no mesmo coupé. O correio do Gouvarinho passou choutando na sua pileca branca. E, sobre a rua deserta, cerrou-se finalmente para um grande luto o portão do Ramalhete.

Quando Ega voltou do cemiterio encontrou Carlos no quarto, rasgando papeis, emquanto o Baptista, atarefado, de joelhos no tapete, fechava uma mala de couro. E como Ega, pallido e arrepiado de frio, esfregava as mãos, Carlos fechou a gaveta cheia de cartas, lembrou que fossem para o fumoir onde havia lume.

Apenas lá entraram, Carlos correu o reposteiro, olhou para o Ega:

— Tens duvida em lhe ir fallar, a ella?

— Não. Para que?... Para lhe dizer o que?

— Tudo.

Ega rolou uma poltrona para junto da chaminé, despertou as brazas. E Carlos, ao lado, proseguiu devagar, olhando o lume:

— Além d’isso, desejo que ella parta, que parta já para Paris... Seria absurdo ficar em Lisboa... Emquanto se não liquidar o que lhe pertence, ha-de-se-lhe estabelecer uma mezada, uma larga mezada... Villaça vem d’aqui a bocado para fallar d’esses detalhes... Em todo o caso, ámanhã, para ella partir, levas-lhe quinhentas libras.

Ega murmurou:

— Talvez para essas questões de dinheiro fosse melhor ir lá o Villaça...

— Não, pelo amor de Deus! Para que se ha de fazer córar a pobre creatura diante do Villaça?...

Houve um silencio. Ambos olhavam a chamma clara que bailava.

— Custa-te muito, não é verdade, meu pobre Ega?...

— Não... Começo a estar embotado. É fechar os olhos, tragar mais essa má hora, e depois descansar. Quando voltas tu de Santa Olavia?

Carlos não sabia. Contava que Ega, terminada essa missão á rua de S. Francisco, fosse aborrecer-se uns dias com elle a Santa Olavia. Mais tarde era necessario trasladar para lá o corpo do avô...

— E passado isso, vou viajar... Vou á America, vou ao Japão, vou fazer esta coisa estupida e sempre efficaz que se chama distrahir...

Encolheu os hombros, foi devagar até á janella, onde morria pallidamente um raio de sol na tarde que clareára. Depois voltando para o Ega, que de novo remexia os carvões:

— Eu, está claro, não me atrevo a dizer-te que venhas, Ega... Desejava bem, mas não me atrevo!

Ega pousou devagar as tenazes, ergueu-se, abriu os braços para Carlos, commovido:

— Atreve, que diabo... Porque não?

— Então vem!

Carlos puzera n’isto toda a sua alma. E ao abraçar o Ega corriam-lhe na face duas grandes lagrimas.

Então Ega reflectiu. Antes de ir a Santa Olavia precisava fazer uma romagem á quinta de Celorico. O Oriente era caro. Urgia pois arrancar á mãi algumas letras de credito... E como Carlos pretendia ter «bastante para o luxo d’ambos», Ega atalhou muito sério:

— Não, não! Minha mãi tambem é rica. Uma viagem á America e ao Japão são fórmas de educação. E a mamã tem o dever de completar a minha educação. O que acceito, sim, é uma das tuas malas de couro...

Quando n’essa noite, acompanhados pelo Villaça, Carlos e Ega chegaram á estação de Santa Apolonia, o comboio ia partir. Carlos mal teve tempo de saltar para o seu compartimento reservado — emquanto o Baptista, abraçado ás mantas de viagem, empurrado pelo guarda, se içava desesperadamente para outra carruagem, entre os protestos dos sujeitos que a atulhavam. O trem immediatamente rolou. Carlos debruçou-se á portinhola, gritando ao Ega: — «Manda um telegramma ámanhã a dizer o que houve!»

Recolhendo ao Ramalhete com o Villaça, que ia n’essa noite colligir e sellar os papeis de Affonso da Maia, Ega fallou logo nas quinhentas libras que elle devia entregar na manhã seguinte a Maria Eduarda. Villaça recebera com effeito essa ordem de Carlos. Mas francamente, entre amigos, não lhe parecia excessiva a somma, para uma jornada? Além d’isso Carlos fallára em estabelecer a essa senhora uma mezada de quatro mil francos, cento e sessenta libras! Não achava tambem exagerado? Para uma mulher, uma simples mulher...

Ega lembrou que essa simples mulher tinha direito legal a muito mais...

— Sim, sim, resmungou o procurador. Mas tudo isso de legalidade tem ainda de ser muito estudado. Não fallemos n’isso. Eu nem gósto de fallar d’isso!...

Depois como Ega alludia á fortuna que deixava Affonso da Maia — Villaça deu detalhes. Era decerto uma das boas casas de Portugal. Só o que viera da herança de Sebastião da Maia, representava bem quinze contos de renda. As propriedades do Alemtejo, com os trabalhos que lá fizera o pai d’elle Villaça, tinham triplicado de valor. Santa Olavia era uma despeza. Mas as quintas ao pé de Lamego, um condado.

— Ha muito dinheiro! exclamou elle com satisfação, batendo no joelho do Ega. E isto, amigo, digam lá o que disserem, sempre consola de tudo.

— Consola de muito, com effeito.

Ao entrar no Ramalhete, Ega sentia uma longa saudade pensando no lar feliz e amavel que alli houvera e que para sempre se apagára. Na ante-camara, os seus passos já lhe pareceram soar tristemente como os que se dão n’uma casa abandonada. Ainda errava um vago cheiro de incenso e de phenol. No lustre do corredor havia uma luz só e dormente.

— Já anda aqui um ar de ruina, Villaça.

— Ruinasinha bem confortavel, todavia! murmurou o procurador dando um olhar ás tapeçarias e aos divans, e esfregando as mãos, arrepiado da friagem da noite.

Entraram no escriptorio de Affonso, onde durante um momento se ficaram aquecendo ao lume. O relogio Luiz XV bateu finalmente as nove horas — depois a toada argentina do seu minuete vibrou um instante e morreu. Villaça preparou-se para começar a sua tarefa. Ega declarou que ia para o quarto arranjar tambem a sua papelada, fazer a limpeza final de dois annos de mocidade...

Subiu. E pousára apenas a luz sobre a commoda, quando sentiu ao fundo, no silencio do corredor, um gemido longo, desolado, d’uma tristeza infinita. Um terror arrepiou-lhe os cabellos. Aquillo arrastava-se, gemia no escuro, para o lado dos aposentos d’Affonso da Maia. Por fim, reflectindo que toda a casa estava acordada, cheia de criados e de luzes, Ega ousou dar alguns passos no corredor, com o castiçal na mão tremula.

Era o gato! Era o reverendo Bonifacio, que, diante do quarto d’Affonso, arranhando a porta fechada, miava doloridamente. Ega escorraçou-o, furioso. O pobre Bonifacio fugiu, obeso e lento, com a cauda fôfa a roçar o chão: mas voltou logo, e esgatanhando a porta, roçando-se pelas pernas do Ega, recomeçou a miar, n’um lamento agudo, saudoso como o d’uma dôr humana, chorando o dono perdido que o acariciava no collo e que não tornára a apparecer.

Ega correu ao escriptorio a pedir ao Villaça que dormisse essa noite no Ramalhete. O procurador accedeu, impressionado com aquelle horror do gato a chorar. Deixára o montão de papeis sobre a mesa, voltára a aquecer os pés ao lume dormente. E voltando-se para o Ega, que se sentára, ainda todo pallido, no sofá bordado a matiz, antigo logar de D. Diogo, murmurou devagar, gravemente:

— Ha tres annos, quando o snr. Affonso me encommendou aqui as primeiras obras, lembrei-lhe eu que, segundo uma antiga lenda, eram sempre fataes aos Maias as paredes do Ramalhete. O snr. Affonso da Maia riu d’agouros e lendas... Pois fataes foram!

No dia seguinte, levando os papeis da Monforte e o dinheiro em letras e libras que Villaça lhe entregára á porta do Banco de Portugal, Ega, com o coração aos pulos, mas decidido a ser forte, a affrontar a crise serenamente, subia ao primeiro andar da rua de S. Francisco. O Domingos, de gravata preta, movendo-se em pontas de pés, abriu o reposteiro da sala. E Ega pousára apenas sobre o sofá a velha caixa de charutos da Monforte — quando Maria Eduarda entrou, pallida, toda coberta de negro, estendendo-lhe as mãos ambas.

— Então Carlos?

Ega balbuciou:

— Como v. exc.ª póde imaginar, n’um momento d’estes... Foi horrivel, assim de surpreza...

Uma lagrima tremeu nos olhos pisados de Maria. Ella não conhecia o snr. Affonso da Maia, nem sequer o vira nunca. Mas soffria realmente por sentir bem o soffrimento de Carlos... O que aquelle rapaz estremecia o avô!

— Foi de repente, não?

Ega retardou-se em longos detalhes. Agradeceu a corôa que ella mandára. Contou os gemidos, a afflicção do pobre Bonifacio...

— E Carlos? repetiu ella.

— Carlos foi para Santa Olavia, minha senhora.

Ella apertou as mãos, n’uma surpreza que a acabrunhava. Para Santa Olavia! E sem um bilhete, sem uma palavra?... Um terror empallidecia-a mais, diante d’aquella partida tão arrebatada, quasi parecida com um abandono. Terminou por murmurar, com um ar de resignação e de confiança que não sentia:

— Sim, com effeito, n’este momento não se pensa nos outros...

Duas lagrimas corriam-lhe devagar pela face. E diante d’esta dôr, tão humilde e tão muda, Ega ficou desconcertado. Durante um instante, com os dedos tremulos no bigode, viu Maria chorar em silencio. Por fim ergueu-se, foi á janella, voltou, abriu os braços diante d’ella n’uma afflicção:

— Não, não é isso, minha querida senhora! Ha outra coisa, ha ainda outra coisa! Tem sido para nós dias terriveis! Tem sido dias d’angustia...

Outra coisa!?... Ella esperava, com os olhos largos sobre o Ega, a alma toda suspensa.

Ega respirou fortemente:

— V. exc.ª lembra-se d’um Guimarães, que vive em Paris, um tio do Damaso?

Maria, espantada, moveu lentamente a cabeça.

— Esse Guimarães era muito conhecido da mãi de v. exc.ª, não é verdade?

Ella teve o mesmo movimento breve e mudo. Mas o pobre Ega hesitava ainda, com a face arrepanhada e branca, n’um embaraço que o dilacerava:

— Eu fallo em tudo isto, minha senhora, porque Carlos assim me pediu... Deus sabe o que me custa!... E é horrivel, nem sei por onde hei de começar...

Ella juntou as mãos, n’uma supplica, n’uma angustia:

— Pelo amor de Deus!

E n’esse instante, muito socegadamente, Rosa erguia uma ponta do reposteiro, com Niniche ao lado e a sua boneca nos braços. A mãi teve um grito impaciente:

— Vai lá p’ra dentro! deixa-me!

Assustada, a pequena não se moveu mais, com os lindos olhos de repente cheios de agua. O reposteiro cahiu, do fundo do corredor veio um grande chôro magoado.

Então Ega teve só um desejo, o desesperado desejo de findar.

— V. exc.ª conhece a letra de sua mãi, não é verdade?... Pois bem! Eu trago aqui uma declaração d’ella a seu respeito... Esse Guimarães é que tinha este documento, com outros papeis que ella lhe entregou em 71, nas vesperas da guerra... Elle conservou-os até agora, e queria restituir-lh’os, mas não sabia onde v. exc.ª vivia. Viu-a ha dias n’uma carruagem, commigo, e com o Carlos... Foi ao pé do Aterro, v. exc.ª deve lembrar-se, defronte do alfaiate, quando vinhamos da Toca... Pois bem! o Guimarães veio immediatamente ao procurador dos Maias, deu-lhe esses papeis, para que os entregasse a v. exc.ª... E nas primeiras palavras que disse, imagine o assombro de todos, quando se entreviu que v. exc.ª era parenta de Carlos, e parenta muito chegada...

Atabalhoára esta historia de pé, quasi d’um fôlego, com bruscos gestos de nervoso. Ella mal comprehendia, livida, n’um indefinido terror. Só pôde murmurar muito debilmente: «Mas...» E de novo emmudeceu, assombrada, devorando os movimentos do Ega que, debruçado sobre o sofá, desembrulhava a tremer a caixa de charutos da Monforte. Por fim voltou para ella com um papel na mão, atropellando as palavras n’uma debandada:

— A mãi de v. exc.ª nunca lh’o disse... Havia um motivo muito grave... Ella tinha fugido de Lisboa, fugido ao marido... Digo isto assim brutalmente, perdôe-me v. exc.ª, mas não é o momento de attenuar as coisas... Aqui está! V. exc.^a conhece a letra de sua mãi. É d’ella esta letra, não é verdade?

— É! exclamou Maria, indo arrebatar o papel.

— Perdão! gritou Ega, retirando-lh’o violentamente. Eu sou um estranho! E v. exc.ª não se póde inteirar de tudo isto emquanto eu não sahir d’aqui.

Fôra uma inspiração providencial, que o salvava de testemunhar o choque terrivel, o horror das coisas que ella ia saber. E insistiu. Deixava-lhe alli todos os papeis que eram de sua mãi. Ella lería, quando elle sahisse, comprehenderia a realidade atroz... Depois, tirando do bolso os dois pesados rôlos de libras, o sobrescripto que continha a letra sobre Paris, pôz tudo em cima da mesa, com a declaração da Monforte.

— Agora só mais duas palavras. Carlos pensa que o que v. exc.ª deve fazer já é partir para Paris. V. exc.ª tem direito, como sua filha ha de ter, a uma parte da fortuna d’esta familia dos Maias, que agora é a sua... N’este masso que lhe deixo está uma letra sobre Paris para as despezas immediatas... O procurador de Carlos tomou já um wagon-salão. Quando v. exc.ª decidir partir, peço-lhe que mande um recado ao Ramalhete para eu estar na gare... Creio que é tudo. E agora devo deixal-a...

Agarrára rapidamente o chapéo, veio tomar-lhe a mão inerte e fria:

— Tudo é uma fatalidade! V. exc.ª é nova, ainda lhe resta muita coisa na vida, tem a sua filha a consolal-a de tudo... Nem lhe sei dizer mais nada!

Suffocado, beijou-lhe a mão que ella lhe abandonou, sem consciencia e sem voz, de pé, direita no seu negro luto, com a lividez parada d’um marmore. E fugiu.

— Ao telegrapho! gritou em baixo ao cocheiro.

Foi só na rua do Ouro que começou a serenar, tirando o chapéo, respirando largamente. E ia então repetindo a si mesmo todas as consolações que se poderiam dar a Maria Eduarda: era nova e formosa; o seu peccado fôra inconsciente; o tempo acalma toda a dôr; e em breve, já resignada, encontrar-se-hia com uma familia séria, uma larga fortuna, n’esse amavel Paris, onde uns lindos olhos, com algumas notas de mil francos, têm sempre um reinado seguro...

— É uma situação de viuva bonita e rica, terminou elle por dizer alto no coupé. Ha peor na vida.

Ao sahir do telegrapho despediu a tipoia. Por aquella luz consoladora do dia de inverno, recolheu a pé para o Ramalhete, a escrever a longa carta que promettera a Carlos. Villaça já lá estava installado, com um boné de velludilho na cabeça, emmassando ainda os papeis de Affonso, liquidando as contas dos criados. Jantaram tarde. E fumavam junto do lume, na sala Luiz XV, quando o escudeiro veio dizer que uma senhora, em baixo, n’uma carruagem, procurava o snr. Ega. Foi um terror. Imaginaram logo Maria, alguma resolução desesperada. Villaça ainda teve a esperança d’ella trazer alguma nova revelação, que tudo mudasse, salvasse da «bolada»... Ega desceu a tremer. Era Melanie n’uma tipoia de praça, abafada n’uma grande ulster, com uma carta de Madame.

Á luz da lanterna Ega abriu o enveloppe, que trazia apenas um cartão branco, com estas palavras a lapis: «Decidi partir ámanhã para Paris.»

Ega recalcou a curiosidade de saber como estava a senhora. Galgou logo as escadas: e seguido de Villaça, que ficára na ante-camara á espreita, correu ao escriptorio d’Affonso, a escrever a Maria. N’um papel tarjado de luto dizia-lhe (além de detalhes sobre bagagens) — que o wagon-salão estava tomado até Paris, e que elle teria a honra de a vêr em Santa Apolonia. Depois, ao fazer o sobrescripto, ficou com a penna no ar, n’um embaraço. Devia pôr «Madame Mac-Gren» ou «D. Maria Eduarda da Maia?» Villaça achava preferivel o antigo nome, porque ella legalmente ainda não era Maia. Mas, dizia o Ega atrapalhado, tambem já não era Mac-Gren...

— Acabou-se! Vae sem nome. Imagina-se que foi esquecimento...

Levou assim a carta, dentro do sobrescripto em branco. Melanie guardou-a no regalo. E, debruçada á portinhola, entristecendo a voz, desejou saber, da parte de Madame, onde estava enterrado o avô do senhor...

Ega ficou com o monoculo sobre ella, sem sentir bem se aquella curiosidade de Maria era indiscreta ou tocante. Por fim deu uma indicação. Era nos Prazeres, á direita, ao fundo, onde havia um anjo com uma tocha. O melhor seria perguntar ao guarda pelo jazigo dos snrs. Villaças.

— Merci, monsieur, bien le bonsoir.

— Bonsoir, Melanie!

No dia seguinte, na estação de Santa Apolonia, Ega, que viera cedo com o Villaça, acabava de despachar a sua bagagem para o Douro, quando avistou Maria que entrava trazendo Rosa pela mão. Vinha toda envolta n’uma grande pelliça escura, com um véo dobrado, espesso como uma mascara: e a mesma gaze de luto escondia o rostosinho da pequena, fazendo-lhe um laço sobre a touca. Miss Sarah, n’uma ulster clara de quadrados, sobraçava um masso de livros. Atraz o Domingos, com os olhos muito vermelhos, segurava um rôlo de mantas, ao lado de Melanie carregada de preto que levava Niniche ao collo. Ega correu para Maria Eduarda, conduziu-a pelo braço, em silencio, ao wagon-salão que tinha todas as cortinas cerradas. Junto do estribo ella tirou devagar a luva. E muda, estendeu-lhe a mão.

— Ainda nos vemos no Entroncamento, murmurou Ega. Eu sigo tambem para o Norte.

Alguns sujeitos pararam, com curiosidade, ao vêr sumir-se n’aquella carruagem de luxo, fechada, mysteriosa, uma senhora que parecia tão bella, d’ar tão triste, coberta de negro. E apenas Ega fechou a portinhola, o Neves, o da Tarde e do Tribunal de Contas, rompeu d’entre um rancho, arrebatou-lhe o braço com sofreguidão:

— Quem é?

Ega arrastou-o pela plataforma, para lhe deixar cahir no ouvido, já muito adiante, tragicamente:

— Cleopatra!

O politico, furioso, ficou rosnando: «Que asno!...» Ega abalára. Junto do seu compartimento Villaça esperava, ainda deslumbrado com aquella figura de Maria Eduarda, tão melancolica e nobre. Nunca a vira antes. E parecia-lhe uma rainha de romance.

— Acredite o amigo, fez-me impressão! Caramba, bella mulher! Dá-nos uma bolada, mas é uma soberba praça!

O comboio partiu. O Domingos ficava choramingando com um lenço de côres sobre a face. E o Neves, o conselheiro do Tribunal de Contas, ainda furioso, vendo o Ega á portinhola, atirou-lhe de lado, disfarçadamente, um gesto obsceno.

No Entroncamento Ega veio bater nos vidros do salão que se conservava fechado e mudo. Foi Maria que abriu. Rosa dormia. Miss Sarah lia a um canto, com a cabeça n’uma almofada. E Niniche assustada ladrou.

— Quer tomar alguma coisa, minha senhora?

— Não, obrigada...

Ficaram calados, emquanto Ega com o pé no estribo tirava lentamente a charuteira. Na estação mal alumiada passavam saloios, devagar, abafados em mantas. Um guarda rolava uma carreta de fardos. Adiante a machina resfolegava na sombra. E dois sujeitos rondavam em frente do salão, com olhares curiosos e já languidos para aquella magnifica mulher, tão grave e sombria, envolta na sua pelliça negra.

— Vai para o Porto? murmurou ella.

— Para Santa Olavia...

— Ah!

Então Ega balbuciou com os beiços a tremer:

— Adeus!

Ella apertou-lhe a mão com muita força, em silencio, suffocada.

Ega atravessou, devagar, por entre soldados de capote enrolado a tiracollo que corriam a beber á cantina. Á porta do buffete voltou-se ainda, ergueu o chapéo. Ella, de pé, moveu de leve o braço n’um lento adeus. E foi assim que elle pela derradeira vez na vida viu Maria Eduarda, grande, muda, toda negra na claridade, á portinhola d’aquelle wagon que para sempre a levava.

VIII

 

Semanas depois, nos primeiros dias d’anno novo, a Gazeta Illustrada trazia na sua columna do High-life esta noticia: «O distincto e brilhante sportman, o snr. Carlos da Maia, e o nosso amigo e collaborador João da Ega, partiram hontem para Londres, d’onde seguirão em breve para a America do Norte, devendo d’ahi prolongar a sua interessante viagem até ao Japão. Numerosos amigos foram a bordo do Tamar despedir-se dos sympathicos touristes. Vimos entre outros os snrs. ministro da Filandia e seu secretario, o marquez de Souzella, conde de Gouvarinho, visconde de Darque, Guilherme Craft, Telles da Gama, Cruges, Taveira, Villaça, general Sequeira, o glorioso poeta Thomaz d’Alencar, etc. etc. O nosso amigo e collaborador João da Ega fez-nos, no ultimo shake-hands, a promessa de nos mandar algumas cartas com as suas impressões do Japão, esse delicioso paiz d’onde nos vem o sol e a moda! É uma boa nova para todos os que prezam a observação e o espirito. Au revoir!»

Depois d’estas linhas affectuosas (em que o Alencar collaborára) as primeiras noticias dos «viajantes» vieram, n’uma carta do Ega para o Villaça, de New-York. Era curta, toda de negocios. Mas elle ajuntava um post-scriptum com o titulo de Informações geraes para os amigos. Contava ahi a medonha travessia desde Liverpool, a persistente tristeza de Carlos, e New-York coberta de neve sob um sol rutilante. E acrescentava ainda: «Está-se apossando de nós a embriaguez das viagens, decididos a trilhar este estreito Universo até que cancem as nossas tristezas. Planeamos ir a Pekin, passar a Grande Muralha, atravessar a Asia Central, o oasis de Merv, Khiva, e penetrar na Russia; d’ahi, pela Armenia e pela Syria, descer ao Egypto a retemperar-nos no sagrado Nilo; subir depois a Athenas, lançar sobre a Acropole uma saudação a Minerva; passar a Napoles; dar um olhar a Argelia e a Marrocos; e cahir emfim ao comprido em Santa Olavia lá para os meados de 79 a descançar os membros fatigados. Não escrevinho mais porque é tarde, e vamos á Opera vêr a Patti no Barbeiro. Larga distribuição d’abraços a todos os amigos queridos.»

Villaça copiou este paragrapho, e trazia-o na carteira para mostrar aos fieis amigos do Ramalhete. Todos approvaram, com admiração, tão bellas, aventurosas jornadas. Só Cruges, aterrado com aquella vastidão do Universo, murmurou tristemente: «Não voltam cá!»

Mas, passado anno e meio, n’um lindo dia de março, Ega reappareceu no Chiado. E foi uma sensação! Vinha esplendido, mais forte, mais trigueiro, soberbo de verve, n’um alto apuro de toilette, cheio de historias e de aventuras do Oriente, não tolerando nada em arte ou poesia que não fosse do Japão ou da China, e annunciando um grande livro, o «seu livro», sob este titulo grave de chronica heroica — Jornadas da Asia.

— E Carlos?...

— Magnifico! Installado em Paris, n’um delicioso appartamento dos Campos-Elyseos, fazendo a vida larga d’um principe artista da Renascença...

Ao Villaça porém, que sabia os segredos, Ega confessou que Carlos ficára ainda abalado. Vivia, ria, governava o seu phaeton no Bois — mas lá no fundo do seu coração permanecia, pesada e negra, a memoria da «semana terrivel».

— Todavia os annos vão passando, Villaça, acrescentou elle. E com os annos, a não ser a China, tudo na terra passa...

E esse anno passou. Gente nasceu, gente morreu. Searas amadureceram, arvoredos murcharam. Outros annos passaram.

Nos fins de 1886, Carlos veio fazer o Natal perto de Sevilha, a casa d’um amigo seu de Paris, o marquez de Villa-Medina. E d’essa propriedade dos Villa-Medina, chamada La Soledad, escreveu para Lisboa ao Ega annunciando que — depois d’um exilio de quasi dez annos, resolvera vir ao velho Portugal vêr as arvores de Santa Olavia e as maravilhas da Avenida. De resto tinha uma formidavel nova, que assombraria o bom Ega: e se elle já ardia em curiosidade, que viesse ao seu encontro com o Villaça, comer o porco a Santa Olavia.

— Vae casar! pensou Ega.

Havia tres annos (desde a sua ultima estada em Paris) que elle não via Carlos. Infelizmente não pôde correr a Santa Olavia, retido n’um quarto do Braganza com uma angina, desde uma ceia prodigiosamente divertida com que celebrára no Silva a noite de Reis. Villaça, porém, levou a Carlos para Santa Olavia uma carta em que o Ega, contando a sua angina, lhe supplicava que se não retardasse com o porco n’esses penhascos do Douro, e que voasse á grande Capital a trazer a grande nova.

Com effeito, Carlos pouco se demorou em Rezende. E n’uma luminosa e macia manhã de janeiro de 1887, os dois amigos emfim juntos almoçavam n’um salão do Hotel Braganza, com as duas janellas abertas para o rio.

Ega, já curado, radiante, n’uma excitação que não se calmava, alagando-se de café, entalava a cada instante o monoculo para admirar Carlos e a sua «immutabilidade».

— Nem uma branca, nem uma ruga, nem uma sombra de fadiga!... Tudo isso é Paris, menino!... Lisboa arraza. Olha para mim, olha para isto!

Com o dedo magro apontava os dois vincos fundos ao lado do nariz, na face chupada. E o que o aterrava sobretudo era a calva, uma calva que começára havia dois annos, alastrára, já reluzia no alto.

— Olha este horror! A sciencia para tudo acha um remedio, menos para a calva! Transformam-se as civilisações, a calva fica!... Já tem tons de bola de bilhar, não é verdade?... De que será?

— É a ociosidade, lembrou Carlos rindo.

— A ociosidade!... E tu, então?

De resto, que podia elle fazer n’este paiz?... Quando voltára de França, ultimamente, pensára em entrar na diplomacia. Para isso sempre tivera a blague: e agora que a mamã, coitada, lá estava no seu grande jazigo em Celorico, tinha a massa. Mas depois reflectira. Por fim, em que consistia a diplomacia portugueza? N’uma outra fórma da ociosidade, passada no estrangeiro, com o sentimento constante da propria insignificancia. Antes o Chiado!

E como Carlos lembrava a Politica, occupação dos inuteis, Ega trovejou. A politica! Isso tornára-se moralmente e physicamente nojento, desde que o negocio atacára o constitucionalismo como uma phylloxera! Os politicos hoje eram bonecos de engonços, que faziam gestos e tomavam attitudes porque dois ou tres financeiros por traz lhes puxavam pelos cordeis... Ainda assim podiam ser bonecos bem recortados, bem envernizados. Mas qual! Ahi é que estava o horror. Não tinham feitio, não tinham maneiras, não se lavavam, não limpavam as unhas... Coisa extraordinaria, que em paiz algum succedia, nem na Romelia, nem na Bulgaria! Os tres ou quatro salões que em Lisboa recebem todo o mundo, seja quem fôr, largamente, excluem a maioria dos politicos. E porque? Porque as senhoras têm nôjo!

— Olha o Gouvarinho! Vê lá se elle recebe ás terças-feiras os seus correligionarios...

Carlos que sorria, encantado com aquella veia acerba do Ega, saltou na cadeira:

— É verdade, e a Gouvarinho, a nossa boa Gouvarinho?

Ega, passeando pela sala, deu as novas dos Gouvarinhos. A condessa herdára uns sessenta contos de uma tia excentrica que vivia a Santa Isabel, tinha agora melhores carruagens, recebia sempre ás terças-feiras. Mas soffria uma doença qualquer, grave, no figado ou no pulmão. Ainda elegante todavia, muito séria, uma terrivel flôr de pruderie... Elle, o Gouvarinho, ahi continuava, palrador, escrevinhador, politicote, impertigadote, já grisalho, duas vezes ministro, e coberto de gran-cruzes...

— Tu não os viste em Paris, ultimamente?

— Não. Quando soube fui-lhes deixar bilhetes, mas tinham partido na vespera para Vichy...

A porta abriu-se, um brado cavo resoou:

— Até que emfim, meu rapaz!

— Oh Alencar! gritou Carlos, atirando o charuto.

E foi um infinito abraço, com palmadas arrebatadas pelos hombros, e um beijo ruidoso — o beijo paternal do Alencar, que tremia, commovido. Ega arrastára uma cadeira, berrava pelo escudeiro:

— Que tomas tu, Thomaz? Cognac? Curaçáo? Em todo o caso café! Mais café! Muito forte, para o snr. Alencar!

O poeta, no emtanto, abysmado na contemplação de Carlos, agarrára-o pelas mãos, com um sorriso largo, que lhe descobria os dentes mais estragados. Achava-o magnifico, varão soberbo, honra da raça... Ah! Paris, com o seu espirito, a sua vida ardente, conserva...

— E Lisboa arraza! acudiu Ega. Já cá tive essa phrase. Vá, abanca, ahi tens o cafésinho e a bebida!

Mas Carlos agora tambem contemplava o Alencar. E parecia-lhe mais bonito, mais poetico, com a sua grenha inspirada e toda branca, e aquellas rugas fundas na face morena, cavadas como sulcos de carros pela tumultuosa passagem das emoções...

— Estás typico, Alencar! Estás a preceito para a gravura e para a estatua!...

O poeta sorria, passando os dedos com complacencia pelos longos bigodes romanticos, que a idade embranquecera e o cigarro amarellára. Que diabo, algumas compensações havia de ter a velhice!... Em todo o caso o estomago não era mau, e conservava-se, caramba, filhos, um bocado de coração.

— O que não impede, meu Carlos, que isto por cá esteja cada vez peor! Mas acabou-se... A gente queixa-se sempre do seu paiz, é habito humano. Já Horacio se queixava. E vocês, intelligencias superiores, sabeis bem, filhos, que no tempo de Augusto... Sem fallar, é claro, na quéda da republica, n’aquelle desabamento das velhas instituições... Emfim deixemos lá os Romanos! Que está alli n’aquella garrafa? Chablis... Não desgosto, no outono, com as ostras. Pois vá lá o Chablis. E á tua chegada, meu Carlos! e á tua, meu João, e que Deus vos dê as glorias que mereceis, meus rapazes!...

Bebeu. Rosnou: «bom Chablis, bouquet fino». E acabou por abancar, ruidosamente, sacudindo para traz a juba branca.

— Este Thomaz! exclamava Ega, pousando-lhe a mão no hombro com carinho. Não ha outro, é unico! O bom Deus fel-o n’um dia de grande verve, e depois quebrou a fôrma.

Ora, historias! murmurava o poeta radiante. Havia-os tão bons como elle. A humanidade viera toda do mesmo barro como pretendia a Biblia — ou do mesmo macaco como affirmava o Darwin...

— Que, lá essas coisas d’evolução, origem das especies, desenvolvimento da cellula, cá para mim... Está claro, o Darwin, o Lamarck, o Spencer, o Claudio Bernard, o Littré, tudo isso, é gente de primeira ordem. Mas acabou-se, irra! Ha uns poucos de mil annos que o homem prova sublimemente que tem alma!

— Toma o cafésinho, Thomaz! aconselhou o Ega, empurrando-lhe a chavena. Toma o cafésinho!

— Obrigado!... E é verdade, João, lá dei a tua boneca á pequena. Começou logo a beijal-a, a embalal-a, com aquelle profundo instincto de mãi, aquelle quid divino... É uma sobrinhita minha, meu Carlos. Ficou sem mãi, coitadinha, lá a tenho, lá vou tratando de fazer d’ella uma mulher... Has de vêl-a. Quero que vocês lá vão jantar um dia, para vos dar umas perdizes á hespanhola... Tu demoras-te, Carlos?

— Sim, uma ou duas semanas, para tomar um bom sorvo de ar da patria.

— Tens razão, meu rapaz! exclamou o poeta, puxando a garrafa do cognac. Isto ainda não é tão mau como se diz... Olha tu para isso, para esse céo, para esse rio, homem!

— Com effeito é encantador!

Todos tres, durante um momento, pasmaram para a incomparavel belleza do rio, vasto, lustroso, sereno, tão azul como o céo, esplendidamente coberto de sol.

— E versos? exclamou de repente Carlos, voltando-se para o poeta. Abandonaste a lingua divina?

Alencar fez um gesto de desalento. Quem entendia já a lingua divina? O novo Portugal só comprehendia a lingua da libra, da «massa». Agora, filho, tudo eram syndicatos!

— Mas ainda ás vezes me passa uma coisa cá por dentro, o velho homem estremece... Tu não viste nos jornaes?... Está claro, não lês cá esses trapos que por ahi chamam gazetas... Pois veio ahi uma coisita, dedicada aqui ao João. Ora eu t’a digo se me lembrar...

Correu a mão aberta pela face escaveirada, lançou a estrophe n’um tom de lamento:

Luz d’esperança, luz d’amor,
Que vento vos desfolhou?
Que a alma que vos seguia
Nunca mais vos encontrou!

Carlos murmurou: «Lindo!» Ega murmurou: «Muito fino!» E o poeta, aquecendo, já commovido, esboçou um movimento d’aza que foge:

Minh’alma em tempos d’outr’ora,
Quando nascia o luar,
Como um rouxinol que acorda
Punha-se logo a cantar.

Pensamentos eram flôres,
Que a aragem lenta de Maio...

— O snr. Cruges! annunciou o criado, entreabrindo a porta.

Carlos ergueu os braços. E o maestro, todo abotoado n’um paletot claro, abandonou-se á effusão de Carlos, balbuciando:

— Eu só hontem é que soube. Queria-te ir esperar, mas não me acordaram...

— Então continúa o mesmo desleixo? exclamava Carlos, alegremente. Nunca te acordam?

Cruges encolhia os hombros, muito vermelho, acanhado, depois d’aquella longa separação. E foi Carlos que o obrigou a sentar-se ao lado, enternecido com o seu velho maestro, sempre esguio, com o nariz mais agudo, a grenha cahindo mais crespa sobre a gola do paletot.

— E deixa-me dar-te os parabens! Lá soube pelos jornaes, o triumpho, a linda opera-comica, a Flôr de Sevilha...

De Granada! acudiu o maestro. Sim, uma coisita para ahi, não desgostaram.

— Uma belleza! gritou Alencar, enchendo outro copo de cognac. Uma musica toda do sul, cheia de luz, cheirando a laranjeira... Mas já lhe tenho dito: «Deixa lá a opereta, rapaz, vôa mais alto, faze uma grande symphonia historica!» Ainda ha dias lhe dei uma idéa. A partida de D. Sebastião para a Africa. Cantos de marinheiros, atabales, o chôro do povo, as ondas batendo... Sublime! Qual, põe-se-me lá com castanholas... Emfim, acabou-se, tem muito talento, e é como se fosse meu filho porque me sujou muita calça!...

Mas o maestro, inquieto, passava os dedos pela grenha. Por fim confessou a Carlos que não se podia demorar, tinha um rendez-vous...

— D’amor?

— Não... É o Barradas que me anda a tirar o retrato a oleo.

— Com a lyra na mão?

— Não, respondeu o maestro, muito sério. Com a batuta... E estou de casaca.

E desabotoou o paletot, mostrou-se em todo o seu esplendor, com dois coraes no peitilho da camisa, e a batuta de marfim mettida na abertura do collete.

— Estás magnifico! affirmou Carlos. Então outra coisa, vem cá jantar logo. Alencar, tu tambem, hein? Quero ouvir esses bellos versos com socego... Ás seis, em ponto, sem falhar. Tenho um jantarinho á portugueza que encommendei de manhã, com cozido, arroz de forno, grão de bico, etc., para matar saudades...

Alencar lançou um gesto immenso de desdem. Nunca o cozinheiro do Braganza, francelhote miseravel, estaria á altura d’esses nobres petiscos do velho Portugal. Emfim acabou-se. Seria pontual ás seis para uma grande saude ao seu Carlos!

— Vocês vão sahir, rapazes?

Carlos e Ega iam ao Ramalhete visitar o casarão.

O poeta declarou logo que isso era romagem sagrada. Então elle partia com o maestro. O seu caminho ficava tambem para o lado do Barradas... Moço de talento, esse Barradas!... Um pouco pardo de côr, tudo por acabar, esborratado, mas uma bella ponta de faisca.

— E teve uma tia, filhos, a Leonor Barradas! Que olhos, que corpo! E não era só o corpo! Era a alma, a poesia, o sacrificio!... Já não ha d’isso, já lá vai tudo. Emfim, acabou-se, ás seis!

— Ás seis, em ponto, sem falhar!

Alencar e o maestro partiram, depois de se munirem de charutos. E d’ahi a pouco Carlos e Ega seguiam tambem pela rua do Thesouro Velho, de braço dado, muito lentamente.

Iam conversando de Paris, de rapazes e de mulheres que o Ega conhecêra, havia quatro annos, quando lá passára um tão alegre inverno nos appartamentos de Carlos. E a surpreza do Ega, a cada nome evocado, era o curto brilho, o fim brusco de toda essa mocidade estouvada. A Lucy Gray, morta. A Conrad, morta... E a Maria Blond? Gorda, emburguezada, casada com um fabricante de velas de estearina. O polaco, o louro? Fugido, desapparecido. Mr. de Menant, esse D. Juan? Sub-prefeito no departamento do Doubs. E o rapaz que morava ao lado, o belga? Arruinado na Bolsa... E outros ainda, mortos, sumidos, afundados no lodo de Paris!

— Pois tudo sommado, menino, observou Ega, esta nossa vidinha de Lisboa, simples, pacata, corredia, é infinitamente preferivel.

Estavam no Loreto; e Carlos parára, olhando, reentrando na intimidade d’aquelle velho coração da capital. Nada mudára. A mesma sentinella somnolenta rondava em torno á estatua triste de Camões. Os mesmos reposteiros vermelhos, com brazões ecclesiasticos, pendiam nas portas das duas igrejas. O Hotel Alliance conservava o mesmo ar mudo e deserto. Um lindo sol dourava o lagedo; batedores de chapéo á faia fustigavam as pilecas; tres varinas, de canastra á cabeça, meneavam os quadris, fortes e ageis na plena luz. A uma esquina, vadios em farrapos fumavam; e na esquina defronte, na Havaneza, fumavam tambem outros vadios, de sobrecasaca, politicando.

— Isto é horrivel quando se vem de fóra! exclamou Carlos. Não é a cidade, é a gente. Uma gente feiissima, encardida, mollenga, reles, amarellada, acabrunhada!...

— Todavia Lisboa faz differença, affirmou Ega, muito sério. Oh, faz muita differença! Has de vêr a Avenida... Antes do Ramalhete vamos dar uma volta á Avenida.

Foram descendo o Chiado. Do outro lado os toldos das lojas estendiam no chão uma sombra forte e dentada. E Carlos reconhecia, encostados ás mesmas portas, sujeitos que lá deixára havia dez annos, já assim encostados, já assim melancolicos. Tinham rugas, tinham brancas. Mas lá estacionavam ainda, apagados e murchos, rente das mesmas humbreiras, com collarinhos á moda. Depois, diante da livraria Bertrand, Ega, rindo, tocou no braço de Carlos:

— Olha quem alli está, á porta do Baltresqui!

Era o Damaso. O Damaso, barrigudo, nedio, mais pesado, de flôr ao peito, mamando um grande charuto, e pasmaceando, com o ar regaladamente embrutecido d’um ruminante farto e feliz. Ao avistar tambem os seus dois velhos amigos que desciam, teve um movimento para se esquivar, refugiar-se na confeitaria. Mas, insensivelmente, irresistivelmente, achou-se em frente de Carlos, com a mão aberta e um sorriso na bochecha, que se lhe esbrazeára.

— Olá, por cá!... Que grande surpreza!

Carlos abandonou-lhe dois dedos, sorrindo tambem, indifferente e esquecido.

— É verdade, Damaso... Como vai isso?

— Por aqui, n’esta semsaboria... E então com demora?

— Umas semanas.

— Estás no Ramalhete?

— No Braganza. Mas não te incommodes, eu ando sempre por fóra.

— Pois sim senhor!... Eu tambem estive em Paris, ha tres mezes, no Continental...

— Ah!... Bem, estimei vêr-te, até sempre!

— Adeus, rapazes. Tu estás bom, Carlos, estás com boa cara!

— É dos teus olhos, Damaso.

E nos olhos do Damaso, com effeito, parecia reviver a antiga admiração, arregalados, acompanhando Carlos, estudando-lhe por traz a sobrecasaca, o chapéo, o andar, como no tempo em que o Maia era para elle o typo supremo do seu querido chic, «uma d’essas coisas que só se vêem lá fóra...»

— Sabes que o nosso Damaso casou? disse o Ega um pouco adiante, travando outra vez do braço de Carlos.

E foi um espanto para Carlos. O quê! O nosso Damaso! Casado!?... Sim, casado com uma filha dos condes d’Agueda, uma gente arruinada, com um rancho de raparigas. Tinham-lhe impingido a mais nova. E o optimo Damaso, verdadeira sorte grande para aquella distincta familia, pagava agora os vestidos, das mais velhas.

— É bonita?

— Sim, bonitinha... Faz ahi a felicidade d’um rapazote sympathico, chamado Barroso.

— O quê, o Damaso, coitado!...

— Sim, coitado, coitadinho, coitadissimo... Mas como vês, immensamente ditoso, até tem engordado com a perfidia!

Carlos parára. Olhava, pasmado para as varandas extraordinarias d’um primeiro andar, recobertas, como em dia de procissão, de sanefas de pano vermelho onde se entrelaçavam monogrammas. E ia indagar — quando, d’entre um grupo que estacionava ao portal d’esse predio festivo, um rapaz d’ar estouvado, com a face imberbe cheia d’espinhas carnaes, atravessou rapidamente a rua para gritar ao Ega, suffocado de riso:

— Se você for depressa ainda a encontra ahi abaixo! Corra!

— Quem?

— A Adosinda!... De vestido azul, com plumas brancas no chapéo... Vá depressa... O João Elyseu metteu-lhe a bengala entre as pernas, ia-a fazendo estatelar no chão, foi uma scena... Vá depressa, homem!

Com duas pernadas esguias o rapaz recolheu ao seu rancho — onde todos, já calados, com uma curiosidade de provincia, examinavam aquelle homem de tão alta elegancia que acompanhava o Ega, e que nenhum conhecia. E Ega, no emtanto, explicava a Carlos as varandas e o grupo:

— São rapazes do Turf. É um club novo, o antigo Jockey da travessa da Palha. Faz-se lá uma batotinha barata, tudo gente muito sympathica... E como vês estão sempre assim preparados, com sanefas e tudo, para se acaso passar por ahi o Senhor dos Passos.

Depois, descendo para a rua Nova do Almada, contou o caso da Adosinda. Fôra no Silva, havia duas semanas, estando elle a cear com rapazes depois de S. Carlos, que lhes apparecera essa mulher inverosimil, vestida de vermelho, carregando insensatamente nos rr, mettendo rr em todas as palavras, e perguntando pelo snr. virrsconde... Qual virrsconde? Ella não sabia bem. Erra um virrsconde que encontrrárra no Crrolyseu. Senta-se, offerecem-lhe champagne, e D. Adosinda começa a revelar-se um sêr prodigioso. Fallavam de politica, do ministerio e do deficit. D. Adosinda declara logo que conhece muito bem o deficit, e que é um bello rapaz... O deficit bello rapaz — immensa gargalhada! D. Adosinda zanga-se, exclama que já fôra com elle a Cintra, que é um perfeito cavalheiro, e empregado no Banco Inglez... O deficit empregado no Banco Inglez — gritos, uivos, urros! E não cessou esta gargalhada contínua, estrondosa, phrenetica, até ás cinco da manhã em que D. Adosinda fôra rifada e sahira ao Telles!... Noite soberba!

— Com effeito, disse Carlos rindo, é uma orgia grandiosa, lembra Heliogabalo e o Conde d’Orsay...

Então Ega defendeu calorosamente a sua orgia. Onde havia melhor, na Europa, em qualquer civilisação? Sempre queria vêr que se passasse uma noite mais alegre em Paris, na desoladora banalidade do Grand-Treize, ou em Londres, n’aquella correcta e massuda semsaboria do Bristol! O que ainda tornava a vida toleravel era de vez em quando uma boa risada. Ora na Europa o homem requintado já não ri, — sorri regeladamente, lividamente. Só nós aqui, n’este canto do mundo barbaro, conservamos ainda esse dom supremo, essa coisa bemdita e consoladora — a barrigada de riso!...

— Que diabo estás tu a olhar?

Era o consultorio, o antigo consultorio de Carlos — onde agora, pela taboleta, parecia existir um pequeno atelier de modista. Então bruscamente os dois amigos recahiram nas recordações do passado. Que estupidas horas Carlos alli arrastára, com a Revista dos Dois Mundos, na espera vã dos doentes, cheio ainda de fé nas alegrias do trabalho!... E a manhã em que o Ega lá apparecera com a sua esplendida pelliça, preparando-se para transformar, n’um só inverno, todo o velho e rotineiro Portugal!

— Em que tudo ficou!

— Em que tudo ficou! Mas rimos bastante! Lembras-te d’aquella noite em que o pobre marquez queria levar ao consultorio a Paca, para utilisar emfim o divan, movel de serralho?...

Carlos teve uma exclamação de saudade. Pobre marquez! Fôra uma das suas fortes impressões, n’esses ultimos annos — aquella morte do marquez, sabida de repente ao almoço, n’uma banal noticia de jornal!... E através do Rocio, andando mais devagar, recordavam outros desapparecimentos: a D. Maria da Cunha, coitada, que acabara hydropica; o D. Diogo, casado por fim com a cozinheira; o bom Sequeira, morto uma noite n’uma tipoia ao sahir dos cavallinhos...

— E outra coisa, perguntou Ega. Tens visto o Craft em Londres?

— Tenho, disse Carlos. Arranjou uma casa muito bonita ao pé de Richmond... Mas está muito avelhado, queixa-se muito do figado. E, desgraçadamente, carrega de mais nos alcools. É uma pena!

Depois perguntou pelo Taveira. Esse lindo moço, contou o Ega, tinha agora por cima mais dez annos de Secretaria e de Chiado. Mas sempre apurado, já um bocado grisalho, mettido continuamente com alguma hespanhola, dando bastante a lei em S. Carlos, e murmurando todas as tardes na Havaneza, com um ar dôce e contente — «isto é um paiz perdido»! Enfim um bom typosinho de lisboeta fino.

— E a besta do Steinbroken?

— Ministro em Athenas, exclamou Carlos, entre as ruinas classicas!

E esta idéa do Steinbroken, na velha Grecia, divertiu-os infinitamente. Ega imaginava já o bom Steinbroken, têso nos seus altos collarinhos, affirmando a respeito de Socrates, com prudencia: «Oh, il est très fort, il est excessivement fort!» Ou ainda, a proposito da batalha das Thermopylas, rosnando, com medo de se comprometter: «C’est très grave, c’est excessivement grave!» Valia a pena ir á Grecia para vêr!

Subitamente Ega parou:

— Ora ahi tens tu essa Avenida! Hein?... Já não é mau!

N’um claro espaço rasgado, onde Carlos deixára o Passeio Publico pacato e frondoso — um obelisco, com borrões de bronze no pedestal, erguia um traço côr d’assucar na vibração fina da luz de inverno: e os largos globos dos candieiros que o cercavam, batidos do sol, brilhavam, transparentes e rutilantes, como grandes bolas de sabão suspensas no ar. Dos dois lados seguiam, em alturas desiguaes, os pesados predios, lisos e aprumados, repintados de fresco, com vasos nas cornijas onde negrejavam piteiras de zinco, e pateos de pedra, quadrilhados a branco e preto, onde guarda-portões chupavam o cigarro: e aquelles dois hirtos renques de casas ajanotadas lembravam a Carlos as familias que outr’ora se immobilisavam em filas, dos dois lados do Passeio, depois da missa «da uma», ouvindo a Banda, com casimiras e sêdas, no catitismo domingueiro. Todo o lagedo reluzia como cal nova. Aqui e além um arbusto encolhia na aragem a sua folhagem pallida e rara. E ao fundo a collina verde, salpicada d’arvores, os terrenos de Valle de Pereiro, punham um brusco remate campestre áquelle curto rompante de luxo barato — que partira para transformar a velha cidade, e estacára logo, com o fôlego curto, entre montões de cascalho.

Mas um ar lavado e largo circulava; o sol dourava a caliça; a divina serenidade do azul sem igual tudo cobria e adoçava. E os dois amigos sentaram-se n’um banco, junto de uma verdura que orlava a agua d’um tanque esverdinhada e molle.

Pela sombra passeavam rapazes, aos pares, devagar, com flôres na lapella, a calça apurada, luvas claras fortemente pespontadas de negro. Era toda uma geração nova e miuda que Carlos não conhecia. Por vezes Ega murmurava um ólá!, acenava com a bengala. E elles iam, repassavam, com um arzinho timido e contrafeito, como mal acostumados áquelle vasto espaço, a tanta luz, ao seu proprio chic. Carlos pasmava. Que faziam alli, ás horas de trabalho, aquelles moços tristes, de calça esguia? Não havia mulheres. Apenas n’um banco adiante uma creatura adoentada, de lenço e chale, tomava o sol; e duas matronas, com vidrilhos no mantelete, donas de casa de hospedes, arejavam um cãosinho felpudo. O que attrahia pois alli aquella mocidade pallida? E o que sobretudo o espantava eram as botas d’esses cavalheiros, botas despropositadamente compridas, rompendo para fóra da calça collante com pontas aguçadas e reviradas como prôas de barcos varinos...

— Isto é phantastico, Ega!

Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples fôrma de botas explicava todo o Portugal contemporaneo. Via-se por alli como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, á D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se á moderna: mas sem originalidade, sem força, sem caracter para crear um feitio seu, um feitio proprio, manda vir modelos do estrangeiro — modelos d’idéas, de calças, de costumes, de leis, d’arte, de cozinha... Sómente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciencia de parecer muito moderno e muito civilisado — exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até á caricatura. O figurino da bota que veio de fóra era levemente estreito na ponta; — immediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico d’alfinete. Por seu lado o escriptor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estylo precioso e cinzelado; — immediatamente retorce, emmaranha, desengonça a sua pobre phrase até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que lá fóra se levanta o nivel da instrucção; — immediatamente põe no programma dos exames de primeiras letras a metaphysica, a astronomia, a philologia, a egyptologia, a chresmatica, a critica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por ahi adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o orador até ao photographo, desde o jurisconsulto até ao sportman... É o que succede com os pretos já corrompidos de S. Thomé, que vêem os europeus de lunetas — e imaginam que n’isso consiste ser civilisado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavallam no nariz tres ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de côr. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros — para serem immensamente civilisados e immensamente brancos...

Carlos ria:

— De modo que isto está cada vez peor...

— Medonho! É d’um reles, d’um postiço! Sobretudo postiço! Já não ha nada genuino n’este miseravel paiz, nem mesmo o pão que comemos!

Carlos, recostado no banco, apontou com a bengala, n’um gesto lento:

— Resta aquillo, que é genuino...

E mostrava os altos da cidade, os velhos outeiros da Graça e da Penha, com o seu casario escorregando pelas encostas resequidas e tisnadas do sol. No cimo assentavam pesadamente os conventos, as igrejas, as atarracadas vivendas ecclesiasticas, lembrando o frade pingue e pachorrento, beatas de mantilha, tardes de procissão, irmandades d’opa atulhando os adros, herva dôce juncando as ruas, tremoço e fava-rica apregoada ás esquinas, e foguetes no ar em louvor de Jesus. Mais alto ainda, recortando no radiante azul a miseria da sua muralha, era o castello, sordido e tarimbeiro, d’onde outr’ora, ao som do hymno tocado em fagotes, descia a tropa de calça branca a fazer a bernarda! E abrigados por elle, no escuro bairro de S. Vicente e da Sé, os palacetes decrepitos, com vistas saudosas para a barra, enormes brazões nas paredes rachadas, onde entre a maledicencia, a devoção e a bisca, arrasta os seus derradeiros dias, cachetica e caturra, a velha Lisboa fidalga!

Ega olhou um momento, pensativo:

— Sim, com effeito, é talvez mais genuino. Mas tão estupido, tão sebento! Não sabe a gente para onde se ha de voltar... E se nos voltamos para nós mesmos, ainda peor!

E de repente bateu no joelho de Carlos, com um brilho na face:

— Espera... Olha quem ahi vem!

Era uma vittoria, bem posta e correcta, avançando com lentidão e estylo, ao trote esteppado de duas egoas inglezas. Mas foi um desapontamento. Vinha lá sómente um rapaz muito louro, d’uma brancura de camelia, com uma pennugem no beiço, languidamente recostado. Fez um aceno ao Ega, com um lindo sorriso de virgem. A vittoria passou.

— Não conheces?

Carlos procurava, com uma recordação.

— O teu antigo doente! O Charlie!

O outro bateu as mãos. O Charlie! O seu Charlie! Como aquillo o fazia velho!... E era bonitinho!

— Sim, muito bonitinho. Tem ahi uma amizade com um velho, anda sempre com um velho... Mas elle vinha decerto com a mãi, estou convencido que ella ficou por ahi a passear a pé. Vamos nós vêr?

Subiram ao comprido da Avenida, procurando. E quem avistaram logo foi o Eusebiosinho. Parecia mais funebre, mais tisico, dando o braço a uma senhora muito forte, muito córada, que estalava n’um vestido de sêda cor de pinhão. Iam devagar, tomando o sol. E o Eusebio nem os viu, descahido e mollengo, seguindo com as grossas lunetas pretas o marchar lento da sua sombra.

— Aquella aventesma é a mulher, contou Ega. Depois de varias paixões em lupanares, o nosso Eusebio teve este namoro. O pai da creatura, que é dono d’um prego, apanhou-o uma noite na escada com ella a surripiar-lhe uns prazeres... Foi o diabo, obrigaram-no a casar. E desappareceu, não o tornei a vêr... Diz que a mulher que o derreia á pancada.

— Deus a conserve!

— Amen!

E então Carlos, que recordava a coça no Eusebio, o caso da Corneta, quiz saber do Palma Cavallão. Ainda deshonrava o Universo com a sua presença, esse benemerito? Ainda o deshonrava, disse o Ega. Sómente deixára a litteratura, e tornára-se factotum do Carneiro, o que fôra ministro; levava-lhe a hespanhola ao theatro pelo braço; e era um bom empenho em politica.

— Ainda ha de ser deputado, acrescentou Ega. E, da fórma que as coisas vão, ainda ha de ser ministro... E isto está-se fazendo tarde, Carlinhos. Vamos nós tomar esta tipoia e abalar para o Ramalhete?

Eram quatro horas, o sol curto de inverno tinha já um tom pallido.

Tomaram a tipoia. No Rocio, Alencar que passava, que os viu — parou, sacudiu ardentemente a mão no ar. E então Carlos exclamou, com uma surpreza que já o assaltára essa manhã no Braganza:

— Ouve cá, Ega! Tu agora pareces intimo do Alencar! Que transformação foi essa?

Ega confessou que realmente agora apreciava immensamente o Alencar. Em primeiro logar no meio d’esta Lisboa toda postiça, Alencar permanecia o unico portuguez genuino. Depois, através da contagiosa intrujice, conservava uma honestidade resistente. Além d’isso havia n’elle lealdade, bondade, generosidade. O seu comportamento com a sobrinhita era tocante. Tinha mais cortezia, melhores maneiras que os novos. Um bocado de piteirice não lhe ia mal ao seu feitio lyrico. E por fim, no estado a que descambára a litteratura, a versalhada do Alencar tomava relevo pela correcção, pela simplicidade, por um resto de sincera emoção. Em resumo, um bardo infinitamente estimavel.

— E aqui tens tu, Carlinhos, a que nós chegamos! Não ha nada com efeito que caracterise melhor a pavorosa decadencia de Portugal, nos ultimos trinta annos, do que este simples facto: tão profundamente tem baixado o caracter e o talento, que de repente o nosso velho Thomaz, o homem da Flôr de Martyrio, o Alencar d’Alemquer, apparece com as proporções d’um Genio e d’um Justo!

Ainda fallavam de Portugal e dos seus males quando a tipoia parou. Com que commoção Carlos avistou a fachada severa do Ramalhete, as janellinhas abrigadas á beira do telhado, o grande ramo de girasoes fazendo painel no logar do escudo d’armas! Ao ruido da carruagem, Villaça appareceu á porta, calçando luvas amarellas. Estava mais gordo o Villaça — e tudo na sua pessoa, desde o chapéo novo até ao castão de prata da bengala, revelava a sua importancia como administrador, quasi directo senhor durante o longo desterro de Carlos, d’aquella vasta casa dos Maias. Apresentou logo o jardineiro, um velho, que alli vivia com a mulher e o filho, guardando o casarão deserto. Depois felicitou-se de vêr emfim os dois amigos juntos. E ajuntou, batendo com carinho familiar no hombro de Carlos:

— Pois eu, depois de nos separarmos em Santa Apolonia, fui tomar um banho ao Central e não me deitei. Olhe que é uma grande commodidade o tal sleeping-car! Ah lá isso, em progresso, o nosso Portugal já não está atraz de ninguem!... E v. exc.ª agora precisa de mim?

— Não, obrigado, Villaça. Vamos dar uma volta pelas salas... Vá jantar comnosco. Ás seis! Mas ás seis em ponto, que ha petiscos especiaes.

E os dois amigos atravessaram o perystillo. Ainda lá se conservavam os bancos feudaes de carvalho lavrado, solemnes como coros de cathedral. Em cima porém a ante-camara entristecia, toda despida, sem um movel, sem um estofo, mostrando a cal lascada dos muros. Tapeçarias orientaes que pendiam como n’uma tenda, pratos mouriscos de reflexos de cobre, a estatua da Friorenta rindo e arrepiando-se, na sua nudez de marmore, ao metter o pésinho na agua — tudo ornava agora os aposentos de Carlos em Paris: e outros caixões apilhavam-se a um canto, promptos a embarcar, levando as melhores faianças da Toca. Depois no amplo corredor, sem tapete, os seus passos soaram como n’um claustro abandonado. Nos quadros devotos, d’um tom mais negro, destacava aqui e além, sob a luz escassa, um hombro descarnado de eremita, a mancha livida d’uma caveira. Uma friagem regelava. Ega levantára a gola do paletot.

No salão nobre os moveis de brocado côr de musgo estavam embrulhados em lençoes d’algodão, como amortalhados, exhalando um cheiro de mumia a terebinthina e camphora. E no chão, na tela de Constable, encostada á parede, a condessa de Runa, erguendo o seu vestido escarlate de caçadora ingleza, parecia ir dar um passo, sahir do caixilho dourado, para partir tambem, consummar a dispersão da sua raça...

— Vamos embora, exclamou Ega. Isto está lugubre!...

Mas Carlos, pallido e calado, abriu adiante a porta do bilhar. Ahi, que era a maior sala do Ramalhete, tinham sido recentemente accumulados na confusão das artes e dos seculos, como n’um armazem de bric-à-brac, todos os moveis ricos da Toca. Ao fundo, tapando o fogão, dominando tudo na sua magestade architectural, erguia-se o famoso armario do tempo da Liga Hanseatica, com os seus Martes armados, as portas lavradas, os quatro Evangelistas prégando aos cantos, envoltos n’essas roupagens violentas que um vento de prophecia parece agitar. E Carlos immediatamente descobriu um desastre na cornija, nos dois faunos que entre trophéos agricolas tocavam ao desafio. Um partira o seu pé de cabra, outro perdera a sua frauta bucolica...

— Que brutos! exclamou elle furioso, ferido no seu amor da coisa d’arte. Um movel d’estes!...

Trepou a uma cadeira para examinar os estragos. E Ega, no emtanto, errava entre os outros moveis, cofres nupciaes, contadores hespanhoes, bufetes da Renascença italiana, recordando a alegre casa dos Olivaes que tinham ornado, as bellas noites de cavaco, os jantares, os foguetes atirados em honra de Leonidas... Como tudo passára! De repente deu com o pé n’uma caixa de chapéo sem tampa, atulhada de coisas velhas — um véo, luvas desirmanadas, uma meia de sêda, fitas, flôres artificiaes. Eram objectos de Maria, achados n’algum canto da Toca, para alli atirados, no momento de se esvaziar a casa! E, coisa lamentavel, entre estes restos d’ella, misturados como na promiscuidade d’um lixo, apparecia uma chinela de velludo bordada a matiz, uma velha chinela de Affonso da Maia! Ega escondeu a caixa rapidamente debaixo d’um pedaço solto de tapeçaria. Depois, como Carlos saltava da cadeira, sacudindo as mãos, ainda indignado, Ega apressou aquella peregrinação, que lhe estragava a alegria do dia.

— Vamos ao terraço! Dá-se um olhar ao jardim, e abalamos!

Mas deviam atravessar ainda a memoria mais triste, o escriptorio de Affonso da Maia. A fechadura estava pêrra. No esforço de abrir a mão de Carlos tremia. E Ega, commovido tambem, revia toda a sala tal como outr’ora, com os seus candieiros Carcel dando um tom côr de rosa, o lume crepitando, o reverendo Bonifacio sobre a pelle d’urso, e Affonso na sua velha poltrona, de casaco de velludo, sacudindo a cinza do cachimbo contra a palma da mão. A porta cedeu: e toda a emoção de repente findou, na grutesca, absurda surpreza de romperem ambos a espirrar, desesperadamente, suffocados pelo cheiro acre d’um pó vago que lhes picava os olhos, os estonteava. Fôra o Villaça, que, seguindo uma receita d’almanach, fizera espalhar ás mãos cheias, sobre os moveis, sobre os lençoes que os resguardavam, camadas espessas de pimenta branca! E estrangulados, sem vêr, sob uma nevoa de lagrimas, os dois continuavam, um defronte do outro, em espirros afflictivos que os desengonçavam.

Carlos por fim conseguiu abrir largamente as duas portadas d’uma janella. No terraço morria um resto de sol. E, revivendo um pouco ao ar puro, alli ficaram de pé, calados, limpando os olhos, sacudidos ainda por um ou outro espirro retardado.

— Que infernal invenção! exclamou Carlos, indignado.

Ega, ao fugir com o lenço na face, tropeçára, batera contra um sofá, coçava a canella:

— Estupida coisa! E que bordoada que eu dei!...

Voltou a olhar para a sala, onde todos os moveis desappareciam sob os largos sudarios brancos. E reconheceu que tropeçára na antiga almofada de velludo do velho Bonifacio. Pobre Bonifacio! Que fôra feito d’elle?

Carlos, que se sentára no parapeito baixo do terraço, entre os vasos sem flôr, contou o fim do reverendo Bonifacio. Morrera em Santa Olavia, resignado, e tão obeso que se não movia. E o Villaça, com uma idéa poetica, a unica da sua vida de procurador, mandára-lhe fazer um mausoléo, uma simples pedra de marmore branco, sob uma roseira, debaixo das janellas do quarto do avô.

Ega sentára-se tambem no parapeito, ambos se esqueceram n’um silencio. Em baixo o jardim, bem areado, limpo e frio na sua nudez d’inverno, tinha a melancolia de um retiro esquecido que já ninguem ama: uma ferrugem verde de humidade cobria os grossos membros da Venus Citherea; o cypreste e o cedro envelheciam juntos como dois amigos n’um ermo; e mais lento corria o prantosinho da cascata, esfiado saudosamente gotta a gotta na bacia de marmore. Depois ao fundo, encaixilhada como uma tela marinha nas cantarias dos dois altos predios, a curta paizagem do Ramalhete, um pedaço de Tejo e monte, tomava n’aquelle fim de tarde um tom mais pensativo e triste: na tira de rio um paquete fechado, preparado para a vaga, ia descendo, desapparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; no alto da collina o moinho parára, transido na larga friagem do ar; e nas janellas das casas á beira d’agua um raio de sol morria, lentamente sumido, esvaído na primeira cinza do crepusculo, como um resto d’esperança n’uma face que se anuvia.

Então, n’aquella mudez de soledade e d’abandono, Ega, com os olhos para o longe, murmurou devagar:

— Mas tu d’esse casamento não tinhas a menor indicação, a menor suspeita?

— Nenhuma... Soube-o de repente pela carta d’ella em Sevilha.

E era esta a formidavel nova annunciada por Carlos, a nova que elle logo contára de madrugada ao Ega, depois dos primeiros abraços, em Santa Apolonia. Maria Eduarda ia casar.

Assim o annunciára ella a Carlos n’uma carta muito simples, que elle recebera na quinta dos Villa-Medina. Ia casar. E não parecia ser uma resolução tomada arrebatadamente sob um impulso do coração; mas antes um proposito lento, longamente amadurecido. Ella alludia n’essa carta a ter «pensado muito, reflectido muito...» De resto o noivo devia ir perto dos cincoenta annos. E Carlos portanto via alli a união de dois sêres desilludidos da vida, maltratados por ella, cansados ou assustados do seu isolamento, que, sentindo um no outro qualidades sérias de coração e de espirito, punham em commum o seu resto de calor, d’alegria e de coragem para affrontar juntos a velhice...

— Que idade tem ella?

Carlos pensava que ella devia ter quarenta e um ou quarenta e dois annos. Ella dizia na carta «sou apenas mais nova que o meu noivo seis annos e tres mezes». Elle chamava-se Mr. de Trelain. E era evidentemente um homem d’espirito largo, desembaraçado de prejuizos, d’uma benevolencia quasi misericordiosa, porque quizera Maria, conhecendo bem os seus erros.

— Sabe tudo? exclamou Ega, que saltára do parapeito.

— Tudo não. Ella diz que Mr. de Trelain conhecia do seu passado «todos aquelles erros em que ella cahira inconscientemente». Isto dá a entender que não sabe tudo... Vamos andando, que se faz tarde, e quero ainda vêr os meus quartos.

Desceram ao jardim. Um momento seguiram calados pela alea onde cresciam outr’ora as roseiras de Affonso. Sob as duas olaias ainda existia o banco de cortiça; Maria sentára-se alli, na sua visita ao Ramalhete, a atar n’um ramo flôres que ia levar como reliquia. Ao passar Ega cortou uma pequenina margarida que ainda floria solitariamente.

— Ella continúa a viver em Orléans, não é verdade?

Sim, disse Carlos, vivia ao pé d’Orléans, n’uma quinta que lá comprára, chamada Les Rosières. O noivo devia habitar nos arredores algum pequeno château. Ella chamava-lhe «visinho». E era naturalmente um gentilhomme campagnard, de familia séria, com fortuna...

— Ella só tem o que tu lhe dás, está claro.

— Creio que te mandei contar tudo isso, murmurou Carlos. Emfim ella recusou-se a receber parte alguma da sua herança... E o Villaça arranjou as coisas por meio d’uma doação que lhe fiz, correspondente a doze contos de reis de renda...

— É bonito. Ella fallava de Rosa na carta?

— Sim, de passagem, que ia bem... Deve estar uma mulher.

— E bem linda!

Iam subindo a escadinha de ferro torneada que levava do jardim aos quartos de Carlos. Com a mão na porta da vidraça, Ega parou ainda, n’uma derradeira curiosidade:

— E que effeito te fez isso?

Carlos accendia o charuto. Depois atirando o phosphoro por cima da varandinha de ferro onde uma trepadeira se enlaçava:

— Um effeito de conclusão, de absoluto remate. É como se ella morresse, morrendo com ella todo o passado, e agora renascesse sob outra fórma. Já não é Maria Eduarda. É Madame de Trelain, uma senhora franceza. Sob este nome, tudo o que houve fica sumido, enterrado a mil braças, findo para sempre, sem mesmo deixar memoria... Foi o effeito que me fez.

— Tu nunca encontraste em Paris o snr. Guimarães?

— Nunca. Naturalmente morreu.

Entraram no quarto. Villaça, na supposição de Carlos vir para o Ramalhete, mandára-o preparar; e todo elle regelava — com o marmore das commodas espanejado e vazio, uma vela intacta n’um castiçal solitario, a colcha de fustão vincada de dobras sobre o leito sem cortinados. Carlos pousou o chapéo e a bengala em cima da sua antiga mesa de trabalho. Depois, como dando um resumo:

— E aqui tens tu a vida, meu Ega! N’este quarto, durante noites, soffri a certeza de que tudo no mundo acabára para mim... Pensei em me matar. Pensei em ir para a Trappa. E tudo isto friamente, com uma conclusão logica. Por fim dez annos passaram, e aqui estou outra vez...

Parou diante do alto espelho suspenso entre as duas columnas de carvalho lavrado, deu um geito ao bigode, concluiu, sorrindo melancolicamente:

— E mais gordo!

Ega espalhava tambem pelo quarto um olhar pensativo:

— Lembras-te quando appareci aqui uma noite, n’uma agonia, vestido de Mephistopheles?

Então Carlos teve um grito. E a Rachel, é verdade! A Rachel? Que era feito da Rachel, esse lirio d’Israel?

Ega encolheu os hombros:

— Para ahi anda, estuporada...

Carlos murmurou — «coitada!» E foi tudo o que disseram sobre a grande paixão romantica do Ega.

Carlos no emtanto fôra examinar, junto da janella, um quadro que pousava no chão, para alli esquecido e voltado para a parede. Era o retrato do pai, de Pedro da Maia, com as suas luvas de camurça na mão, os grandes olhos arabes na face triste e pallida que o tempo amarellára mais. Collocou-o em cima d’uma commoda. E atirando-lhe uma leve sacudidella com o lenço:

— Não ha nada que me faça mais pena do que não ter um retrato do avô!... Em todo o caso este sempre o vou levar para Paris.

Então Ega perguntou, do fundo do sofá onde se enterrára, se, n’esses ultimos annos, elle não tivera a idéa, o vago desejo de voltar para Portugal...

Carlos considerou Ega com espanto. Para que? Para arrastar os passos tristes desde o Gremio até á Casa Havaneza? Não! Paris era o unico logar da terra congenere com o typo definitivo em que elle se fixára: — «o homem rico que vive bem». Passeio a cavallo no Bois; almóço no Bignon; uma volta pelo boulevard; uma hora no club com os jornaes; um bocado de florete na sala d’armas; á noite a Comédie Française ou uma soirée; Trouville no verão, alguns tiros ás lebres no inverno; e através do anno as mulheres, as corridas, certo interesse pela sciencia, o bric-à-brac, e uma pouca de blague. Nada mais inoffensivo, mais nullo, e mais agradavel.

— E aqui tens tu uma existencia d’homem! Em dez annos não me tem succedido nada, a não ser quando se me quebrou o phaeton na estrada de Saint-Cloud... Vim no Figaro.

Ega ergueu-se, atirou um gesto desolado:

— Falhámos a vida, menino!

— Creio que sim... Mas todo o mundo mais ou menos a falha. Isto é, falha-se sempre na realidade aquella vida que se planeou com a imaginação. Diz-se: «vou ser assim, porque a belleza está em ser assim». E nunca se é assim, é-se invariavelmente assado, como dizia o pobre marquez. Ás vezes melhor, mas sempre differente.

Ega concordou, com um suspiro mudo, começando a calçar as luvas.

O quarto escurecia no crepusculo frio e melancolico d’inverno. Carlos pôz tambem o chapéo: e desceram pelas escadas forradas de velludo côr de cereja, onde ainda pendia, com um ar baço de ferrugem, a panoplia de velhas armas. Depois na rua Carlos parou, deu um longo olhar ao sombrio casarão, que n’aquella primeira penumbra tomava um aspecto mais carregado de residencia ecclesiastica, com as suas paredes severas, a sua fila de janellinhas fechadas, as grades dos postigos terreos cheias de treva, mudo, para sempre deshabitado, cobrindo-se já de tons de ruina.

Uma commoção passou-lhe n’alma, murmurou, travando do braço do Ega:

— É curioso! Só vivi dois annos n’esta casa, e é n’ella que me parece estar mettida a minha vida inteira!

Ega não se admirava. Só alli no Ramalhete elle vivera realmente d’aquillo que dá sabôr e relevo á vida — a paixão.

— Muitas outras coisas dão valor á vida... Isso é uma velha idéa de romantico, meu Ega!

— E que somos nós? exclamou Ega. Que temos nós sido desde o collegio, desde o exame de latim? Romanticos: isto é, individuos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão...

Mas Carlos queria realmente saber se, no fundo, eram mais felizes esses que se dirigiam só pela razão, não se desviando nunca d’ella, torturando-se para se manter na sua linha inflexivel, sêccos, hirtos, logicos, sem emoção até ao fim...

— Creio que não, disse o Ega. Por fóra, á vista, são desconsoladores. E por dentro, para elles mesmos, são talvez desconsolados. O que prova que n’este lindo mundo ou tem de se ser insensato ou semsabor...

— Resumo: não vale a pena viver...

— Depende inteiramente do estomago! atalhou Ega.

Riram ambos. Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua theoria da vida, a theoria definitiva que elle deduzira da experiencia e que agora o governava. Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança — nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquillidade com que se acolhem as naturaes mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, n’esta placidez, deixar esse pedaço de materia organisada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter appetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.

Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera, n’esses estreitos annos de vida, era da inutilidade de todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra — porque tudo se resolve, como já ensinára o sabio do Ecclesiastes, em desillusão e poeira.

— Se me dissessem que alli em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a corôa imperial de Carlos V, á minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não sahia d’este passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o unico que se deve ter na vida.

— Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva.

E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquelle fosse em verdade o caminho da vida, onde elles, certos de só encontrar ao fim desillusão e poeira, não devessem jámais avançar senão com lentidão e desdem. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade:

— Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este appetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas.

E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até ahi esquecido em memorias do passado e syntheses da existencia, pareceu ter inesperadamente consciencia da noite que cahira, dos candieiros accêsos. A um bico de gaz tirou o relogio. Eram seis e um quarto!

— Oh, diabo!... E eu que disse ao Villaça e aos rapazes para estarem no Braganza pontualmente ás seis! Não apparecer por ahi uma tipoia!...

— Espera! exclamou Ega. Lá vem um «americano», ainda o apanhamos.

— Ainda o apanhamos!

Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojára o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face:

— Que raiva ter esquecido o paiosinho! Emfim, acabou-se. Ao menos assentamos a theoria definitiva da existencia. Com effeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ancia para coisa alguma...

Ega, ao lado, ajuntava, offegante, atirando as pernas magras:

— Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder...

A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parára. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço:

— Ainda o apanhamos!

— Ainda o apanhamos!

De novo a lanterna deslisou e fugiu. Então, para apanhar o «americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.

FIM DO SEGUNDO VOLUME