Anexo:Imprimir/Reflexões sobre a Vaidade dos Homens

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Índice[editar]


Senhor:

Ofereço a Vossa Majestade as Reflexões sobre a vaidade dos homens; isto é o mesmo que oferecer em um pequeno livro aquilo de que o mundo todo se compõe, e que só Vossa Majestade não tem: feliz indigência, e que só em Vossa Majestade se acha. Declamei contra a vaidade, e não pude resistir à vaidade inocente de pôr estes discursos aos Reais pés de Vossa Majestade; para que os mesmos pés, que heroicamente pisam as vaidades, se dignem proteger estas reflexões. Mas que muito, Senhor, que as vaidades estejam só aos pés de Vossa Majestade, se as virtudes o ocupam todo. Alguma vez se havia de ver a vaidade sem lugar.

Têm os homens em si mesmos um espelho fiel, em que vêem, e sentem a impressão, que lhes faz a vaidade: Vossa Majestade só neste livro a pode sentir, e ver; e assim para Vossa Majestade saber o que a vaidade é, seria necessário que a estudasse aqui. Quanto deram os homens, e quanto valeriam mais, se pudessem, ainda que fosse por estudo, alcançar uma ignorância tão ditosa. Não é só nesta parte, Senhor, em que vemos um prodígio em Vossa Majestade. As gentes penetradas de admiração, e de respeito, acham unidos em Vossa Majestade muitos atributos gloriosos, que raramente se puderam unir bem; e com efeito, quando se viu senão agora, sentar-se no mesmo Trono a Soberania e a Benignidade, a Justiça e a Clemência, o Poder supremo e a Razão? Em Vossa Majestade ficaram concordes, e fáceis aqueles impossíveis.

A mesma Providência quis manifestar o Rei, que preparava para a sua Lusitânia; assim o mostrou logo, porque o Oriente, ou Régio berço, em que Vossa Majestade amanheceu, nunca viu figura tão gentil; nesta se fundou o primeiro anúncio da felicidade Portuguesa, e foi a voz do Oráculo por onde a natureza se explicou. Não foi preciso que os sucessos verificassem aquele vaticínio, porque Vossa Majestade assim que veio ao mundo, só com se mostrar, disse o que havia de ser.

Um semblante augusto, mas cheio de bondade, e agrado, foi o penhor precioso das nossas esperanças: venturoso, e claro presságio, pois se fez entender até pela mesma forma exterior.

Chegou finalmente o tempo, em que os acertos de Vossa Majestade persuadem, que se há uma arte de reinar, essa não podem os Monarcas aprender, Deus a infunde, não em todos, mas naqueles só, a quem as virtudes mais sublimes fizeram merecer um favor celeste; isto dizem as resoluções de Vossa Majestade; elas mostram que não foram aprendidas, inspiradas sim. Por isso as primeiras acções de Vossa Majestade não se distinguem das que se vão seguindo; todas são iguais, e todas grandes; aqueles prelúdios, ou ensaios, não cedem na perfeição a nenhuma parte da obra: daqui vem o parecer-nos, que Vossa Majestade não só nasceu para reinar, mas que já sabia reinar quando nasceu.

Pelas mãos da idade recebem os Soberanos a experiência de mandar. Vossa Majestade sem depender dos anos, logo com o poder, recebeu a ciência de usar dele: o que os mais devem ao exercício, Vossa Majestade só o deve à Omnipotência; por isso as disposições de Vossa Majestade todas são justas, porque com elas se justifica Deus. Aos outros Reis servem os homens por força do preceito; a Vossa Majestade servem por obrigação da lei, e também por obrigação do amor; destes dois vínculos, não sei qual é maior, mas é certo, que um deles é violento às vezes, o outro é suave sempre; porque as cadeias, ainda as que são mais pesadas, ficam sendo leves, quando é o amor quem as faz, e as suporta. Todos sabem, Senhor, que antes que as nossas vozes aclamassem a Vossa Majestade já o tinham aclamado os nossos corações; nestes levantou o mesmo amor o primeiro trono a que Vossa Majestade subiu; e se é certa aquela memorável profecia, que promete a um Rei de Portugal o ser senhor de toda a terra, já podemos crer que chegou o tempo de cumprir-se, e esta fé deve fundar-se nas virtudes de Vossa Majestade; e enquanto não chega a feliz hora de vermos na mão de Vossa Majestade o Ceptro universal, já vemos que Vossa Majestade é digno dele; sendo que é mais glorioso o merecer, do que o alcançar. A Real Pessoa de Vossa Majestade guarde Deus infinitos anos.

Matias Aires Ramos da Silva de Eça


Eu que disse mal das vaidades, vim a cair na de Autor: verdade é que a maior parte destas Reflexões escrevi sem ter o pensamento naquela vaidade; houve quem a suscitou, mas confesso que consenti sem repugnância, e depois quando quis retroceder, não era tempo, nem pude conseguir o ser Anónimo. Foi preciso pôr o meu nome neste livro, e assim fiquei sem poder negar a minha vaidade. A confissão da culpa costuma fazer menor a pena.

Não é só nesta parte em que sou repreensível: é pequeno este volume, mas pode servir de campo largo a uma censura dilatada. Uns hão-de dizer que o estilo oratório, e cheio de figuras, era impróprio na matéria; outros hão-de achar que as descrições, com que às vezes me afasto do sujeito, eram naturais em verso, e não em prosa; outros dirão, que os conceitos não são justos, e que alguns já foram ditos; finalmente outros hão-de reparar, que afectei nas expressões alguns termos desusados, e estrangeiros. Bem sei que contra o que eu disse, há muito que dizer; mas é tão natural nos homens a defesa, que não posso passar sem advertir, que se os conceitos neste livro não são justos, é porque em certo género de discursos, estes não se devem tomar rigorosamente pelo que as palavras soam, nem em toda a extensão, ou significação delas. Se os mesmos conceitos se acham ditos, que haverá que nunca o fosse? E além disto os primeiros princípios, ou as primeiras verdades, são de todos, nem pertencem mais a quem as disse antes, do que aqueles que as disseram depois. Se o estilo é impróprio, também pode ponderar-se que no modo de escrever, às vezes se encontram umas tais imperfeições, que têm não sei que gala, e brio: a observância das regras nem sempre é prova da bondade do livro; muitos escrevem exactamente, e segundo os preceitos da arte, mas nem por isso o que disseram foi mais seguido, ou aprovado: a arte leva consigo uma espécie de rudeza; a fermosura atrai só por si, e não pela sua regularidade, desta sabe afastar-se a natureza, e então é que se esforça, e produz cousas admiráveis; do fugir das proporções, e das medidas, resulta muitas vezes uma fantasia tosca, e impolida, mas brilhante, e forte. Nada disto presumo se ache aqui; o que disse, foi para mostrar, que ainda em um estilo impróprio se pode achar alguma propriedade feliz, e agradável.

Escrevi das vaidades, mais para instrução minha, que para doutrina dos outros, mais para distinguir as minhas paixões, que para que os outros distingam as suas; por isso quis de alguma sorte pintar as vaidades com cores lisonjeiras, e que as fizessem menos horríveis, e sombrias, e por consequência menos fugitivas da minha lembrança, e do meu conhecimento. Mas se ainda assim fiz mal em formar das minhas Reflexões um livro, já me não posso emendar por esta vez, senão com prometer, que não hei-de fazer outro; e esta promessa entro a cumprir já, porque em virtude dela ficam desde logo suprimidas as traduções de Quinto Cúrcio, e de Lucano. As acções de Alexandre, e César, que estavam brevemente para sair à luz no idioma Português, ficam reservadas para serem obras póstumas, e talvez que então sejam bem aceites; porque os erros facilmente se desculpam em favor de um morto; se bem que pouco vale um livro, quando para merecer algum sufrágio, necessita que primeiro morra o seu Autor; e com efeito é certo que então o aplauso não procede de justiça, mas vem por compaixão, e lástima

Não me obrigo porém a que (vivendo quase retirado) deixe de ocupar o tempo em escrever em outra língua; e ainda que a vulgar é um tesouro, que contém riqueza imensa para quem se soubesse servir dela, contudo não sei que fatalidades me têm feito olhar com susto, e desagrado para tudo quanto nasceu comigo: além disto, as letras parece que têm mais fortuna, quando estão separadas do lugar em que nasceram; a mudança de linguagem é como uma árvore que se transplanta, não só para frutificar melhor, mas também para ter abrigo.

Vale

Vanitas vanitatum et omnia vanitas Eccl., cap. I, vers. 2

Sendo o termo da vida limitado, não tem limite a nossa vaidade; porque dura mais, do que nós mesmos, e se introduz nos aparatos últimos da morte. Que maior prova, do que a fábrica de um elevado mausoléu? No silêncio de uma urna depositam os homens as suas memórias, para com a fé dos mármores fazerem seus nomes imortais: querem que a sumptuosidade do túmulo sirva de inspirar veneração, como se fossem relíquias as suas cinzas, e que corra por conta dos jaspes a continuação do respeito. Que frívolo cuidado! Esse triste resto daquilo, que foi homem, já parece um ídolo colocado em um breve, mas soberbo domicílio, que a vaidade edificou para habitação de uma cinza fria, e desta declara a inscrição o nome, e a grandeza. A vaidade até se estende a enriquecer de adornos o mesmo pobre horror da sepultura.

Vivemos com vaidade, e com vaidade morremos; arrancando os últimos suspiros, estamos dispondo a nossa pompa fúnebre, como se em hora tão fatal o morrer não bastasse para ocupação: nessa hora, em que estamos para deixar o mundo, ou em que o mundo está para nos deixar, entramos a compor, e a ordenar o nosso acompanhamento, e assistência funeral; e com vanglória anticipada nos pomos a antever aquela ceremónia, a que chamam as Nações últimas honras, devendo antes chamá-la vaidades últimas. Queremos, que em cada um de nós se entregue à terra com solenidade, e fausto, outra infeliz porção de terra: tributo inexorável! A vaidade no meio da agonia nos faz saborear a ostentação de um luxo, que nos é posterior, e nos faz sensíveis as atenções, que hão-de dirigir-se à nossa insensibilidade. Transportamos para o tempo da vida aquela vaidade, de que não podemos ser capazes depois da morte: nisto é piedosa connosco a vaidade; porque em instantes cheios de dor, e de amargura, não nos desempara; antes nas disposições de uma pompa fúnebre, dá ao nosso cuidado uma aplicação, ainda que triste, e faz com que divertido, e empregado o nosso pensamento chegue a contemplar vistosa a nossa mesma morte, e luzida a nossa mesma sombra.

De todas as paixões, a que mais se esconde, é a vaidade; e se esconde de tal sorte, que a si mesma se oculta, e ignora: ainda as acções mais pias nascem muitas vezes de uma vaidade mística, que quem a tem, não a conhece, nem distingue: a satisfação própria, que a alma recebe, é como um espelho em que nos vemos superiores aos mais homens pelo bem que obramos, e nisso consiste a vaidade de obrar bem.

Não há maior injúria, que o desprezo; e é porque o desprezo todo se dirige, e ofende à vaidade; por isso a perda da honra aflige mais que a da fortuna; não porque esta deixe de ter um objecto mais certo, e mais visível, mas porque aquela toda se compõe de vaidade, que é em nós a parte mais sensível. Poucas vezes se expõe a honra por amor da vida, e quási sempre se sacrifica a vida por amor da honra. Com a honra, que adquire, se consola o que perde a vida; porém o que perde a honra, não lhe serve de alívio a vida, que conserva: como se os homens mais nascessem para terem honra, que para terem vida, ou fossem formados menos para existirem no ser, que para durarem na vaidade. Justo fora, que amassem com excesso a honra, se esta não fosse quási sempre um desvario, que se sustenta da estimação dos homens, e só vive da opinião deles.

O não fazer caso do que é vão, também pode nascer de uma excessiva vaidade, e a este grau de vaidade não chega aquela, que é medíocre, e ordinária; e desta sorte o excesso no vício da vaidade vem a produzir a aparência de uma virtude, que é a de não ser vaidoso: e com efeito assim como o excesso na virtude parece vício, também o excesso no vício vem de algum modo a parecer virtude. Na maior parte dos homens se acham os mesmos géneros de vaidade, e quási todos se desvanecem dos mesmos acidentes, de que estão, ou se imaginam revestidos: porém alguns há, em quem a vaidade é misteriosa, e esquisita; porque consiste em desprezar a mesma vaidade, e em não fazer caso dos motivos, em que se funda a vaidade dos outros.

Trazem os homens entre si uma contínua guerra de vaidade; e conhecendo todos a vaidade alheia, nenhum conhece a sua: a vaidade é como um instrumento, que tira dos nossos olhos os defeitos próprios, e faz com que apenas os vejamos em uma distância imensa, ao mesmo tempo que expõe à nossa vista os defeitos dos outros ainda mais perto, e maiores do que são. A nossa vaidade é a que nos faz ser insuportável a vaidade dos mais; por isso quem não tivesse vaidade, não lhe importaria nunca, que os outros a tivessem.

Todas as paixões têm um tempo certo em que começam, e em que acabam: algumas são incompatíveis entre si, por isso para nascerem umas é preciso, que acabem outras. O ódio, e o amor nascem connosco, e muitas vezes se encontram em um mesmo coração, e a respeito do mesmo objecto. A liberalidade, a ambição, e a avareza, são ordinariamente incompatíveis; manifestam-se em certa idade, ou ao menos então adquirem maior força. Não sei se diga, que as paixões são umas espécies de viventes, que moram em nós, cuja vida, e existência, semelhante à nossa, também tem um tempo certo, e limitado; e assim vivem, e acabam em nós, da mesma sorte que nós vivemos no mundo, e acabamos nele. Com todas as paixões se une a vaidade; a muitas serve de origem principal; nasce com todas elas, e é a última, que acaba: a mesma humildade, com ser uma virtude oposta, também costuma nascer de vaidade; e com efeito são menos os humildes por virtude, do que os humildes por vaidade; e ainda dos que são verdadeiramente humildes é raro o que é insensível ao respeito, e ao desprezo, e nisto se vê, que a vaidade exercita o seu poder, ainda donde parece, que o não tem.

A vaidade por ser causa de alguns males, não deixa de ser princípio de alguns bens: das virtudes meramente humanas, poucas se haviam de achar nos homens, se nos homens não houvesse vaidade: não só seriam raras as acções de valor, de generosidade, e de constância, mas ainda estes termos, ou palavras seriam como bárbaras, e ignoradas totalmente. Digamos que a vaidade as inventou. O ser inflexível é ser constante; o desprezar a vida é ter valor: são virtudes, que a natureza desaprova, e que a vaidade canoniza. A aleivosia, a ingratidão, e deslealdade, são vícios notados de vileza, por isso deles nos defende a vaidade; porque esta abomina tudo quanto é vil. Assim se vê, que há vícios, de que a vaidade nos preserva, e que há virtudes, que a mesma vaidade nos ensina.

Mas se é certo, que a vaidade é vício, parece difícil o haver virtude, que proceda dele; porém não é difícil, quando ponderarmos, que há efeitos contrários às suas causas. Quantas dores há, que se formam do gosto, e quantos gostos, que resultam da dor! Essa infinita variedade dos objectos tem a mesma causa por origem: as diferentes produções, que vemos, todas se compõem dos mesmos princípios, e se formam com os mesmos instrumentos. Algumas cousas degeneram à proporção, que se afastam do seu primeiro ser; outras se dignificam, e quási todas vão mudando de forma à medida, que vão ficando distantes de si mesmas. As águas de uma fonte a cada passo mudam; porque apenas deixam a brenha, ou rocha donde nascem, quando em uma parte ficam sendo limo, em outra flor, e em outra diamante. Que outra cousa mais é a natureza, do que uma perpétua, e singular metamorfósis?

A vaidade parece-se muito com o amor-próprio, se é que não é o mesmo; e se são paixões diversas, sempre é certo, que ou a vaidade procede do amor-próprio, ou este é efeito da vaidade. Nasceu o homem para viver em uma contínua aprovação de si mesmo; as outras paixões nos desemparam em um certo tempo, e só nos acompanham em lugares certos; a vaidade em todo o tempo, e em todo o lugar nos acompanha, e segue, não só nas Cidades, mas também nos desertos, não só na primavera dos anos, mas em toda a vida, não só no estado da fortuna, mas ainda no tempo da desgraça: paixão fiel, constante companhia, e permanente amor.

Nada contribui tanto para a sociedade dos homens, como a mesma vaidade deles: os Impérios, e Repúblicas, não tiveram outra origem, ou ao menos não tiveram outro princípio, em que mais seguramente se fundassem: na repartição da terra, não só fez ajuntar os homens os mesmos géneros de interesses, mas também os mesmos géneros de vaidades, e nisto se vê dous efeitos contrários; porque sendo próprio na vaidade o separar os homens, também serve muitas vezes de os unir. Há vaidades, que são universais, e compreendem Vilas, Cidades, e Nações inteiras; as outras são particulares, e próprias a cada um de nós; das primeiras resulta a sociedade, das segundas a divisão.

Dizem, que gostos, e desgostos não são mais que imaginação; porém melhor fora dizer, que gostos, e desgostos não são mais do que vaidades. Fazemos consistir o nosso bem no modo, com que os homens olham para nós, e no modo com que falam em nós; assim até nos fazemos dependentes das acções, e dos pensamentos dos mais homens, quando cremos, que eles nos atendem, e consideram; esta imaginação, que lisonjeia a vaidade, precisamente nos dá gosto; se por alguma causa imaginamos o contrário, a mesma imaginação nos perturba, e inquieta. Não há gosto, nem desgosto grande naquilo, em que a imaginação não tem a maior parte, e a vaidade empenho.

A vaidade diminui em nós algumas penas; porém aumenta aquelas, que nascem da mesma vaidade: a estas nem o esquecimento cura, nem o tempo; porque tudo o que ofende a vaidade, fica sendo inseparável da nossa memória, e da nossa dor. Entre os males da natureza, alguns há que têm remédio; porém os que têm a vaidade por origem, são incuráveis quási todos: e verdadeiramente como há-de acabar a pena, quando a lembrança da ofensa basta para fazer, que dure em nós a aflição? Ou como pode cessar a mágoa, se não cessa a vaidade, que a produz? Alguns sentimentos há, que se incorporam e unem de tal sorte a nós, que vêm a ficar sendo uma parte de nós mesmos.

A imaginação desperta, e dá movimento à vaidade; por isso esta não é paixão do corpo, mas da alma; não é vício da vontade, mas do entendimento, pois depende do discurso. Daqui vem, que a mais forte, e a mais vã de todas as vaidades, é a que resulta do saber; porque no homem não há pensamento, que mais o agrade, do que aquele, que o representa superior aos mais, e superior no entendimento, que é nele a parte mais sublime. A ciência humana o mais a que se estende, é ao conhecimento de que nada se sabe: é saber o saber ignorar, e assim vem a ciência a fazer vaidade da ignorância.

Bem se pode dizer, que o juízo é o mesmo que entendimento, porém é um entendimento sólido; por isso pode haver entendimento sem juízo, mas não juízo sem entendimento; o ter muito entendimento às vezes prejudica, o ter muito juízo sempre é útil; o entendimento é a parte que discorre, porém pode discorrer mal; o juízo é a mesma parte que discorre, quando discorre bem; o entendimento pensa, o juízo também obra; por isso nas acções de um homem conhecemos o seu juízo, e no discurso lhe vemos o entendimento; o juízo duvida antes que resolva, o entendimento resolve primeiro que duvide; por isso este se engana pela facilidade, com que decide, e aquele acerta pelo vagar, com que pondera. Ordinariamente falamos no juízo, e não no entendimento de Deus, e deve ser pela impressão, que temos, de que o juízo é menos sujeito ao erro, que em Deus é impossível; com toda esta ventagem, que achamos no juízo, pouco nos desvanece o ter juízo, e muito nos lisonjeia o ter entendimento. Consideramos o juízo como cousa popular, ou somente como uma espécie de prudência, sendo aliás cousa mui rara; e olhamos para o entendimento como cousa mais altiva, e em que reside a qualidade da agudeza; e assim mais nos agrada o discorrermos subtilmente, do que o discorrermos com acerto, e ainda fazemos vaidade de voltar de tal sorte as cousas, que fiquem parecendo, o que claramente se sabe, que não são. O engano vestido de eloquência, e arte, atrai, e a verdade mal polida nunca persuade. Fazemos vaidade de errar com subtileza, e temos pejo de acertar rusticamente.

Todos fazem vaidade de ter malícia; nem há quem diga, que a não tem, antes é defeito, que reconhecemos com gosto, e confessamos sem repugnância; a razão é porque a malícia consiste em penetração, por isso não nos defendemos de um defeito, que indica o termos entendimento. A vaidade faz, que não há cousa, que não sacrifiquemos ao desejo de parecer entendidos, ainda que seja à custa de um vício, ou de uma culpa. Quando nos queremos dar por uma bondade sem exemplo, dizemos, que não temos malícia alguma; porém este pensamento não dura muito em nós; porque a vaidade nos obriga a querermos antes parecer maus com entendimento, do que bons sem ele; verdadeiramente a falta de malícia é falta de entendimento; porque malícia propriamente é aquela inteligência, ou acto, que prevê o mal, ou o medita; por isso é diferente o ter malícia, e o ser malicioso: tem malícia quem descobre o mal para o evitar; é malicioso quem o antevê para o exercer; a malícia é uma espécie de arte natural, que se compõe de combinações, e consequências, e neste sentido a malícia é uma virtude política. As mais das cousas têm muitos modos, em que podem ser consideradas; por isso, a mesma cousa pode ser pequena, e grande; pode ser má, e também boa; pode ser injusta, e justa; a vaidade porém sempre se apropria o modo, ou o sentido, em que a cousa em nós fica sendo superior, e admirável.

A razão não nos fortalece contra os males, que resultam da vaidade, antes nos expõe a toda a actividade deles; porque induzida pela mesma vaidade só nos mostra, que devemos sentir, sem discorrer sobre a qualidade do sentimento. No princípio dos nossos desgostos, a razão não serve para diminui-los, para exasperá-los sim; porque como em nós tudo é vaidade, também a nossa razão não é outra cousa mais do que a nossa mesma vaidade. Sente a razão o que a vaidade sente, e quando vimos a sentir menos, é por cansados, e não por advertidos. Daqui vem, que as mais das vezes devemos os nossos acertos menos à vontade, do que à nossa fraqueza; devemos a nossa moderação menos ao discurso, do que à nossa própria debilidade. Deixamos o sentimento por cansados de padecer. A duração do mal, que nos abate, nos cura.

Há ocasiões, em que contraímos a obrigação connosco, de não admitirmos alívio nas nossas mágoas, e nos armamos de rigor, e de aspereza contra tudo o que pode consolar-nos, como querendo, que a constância na pena nos justifique, e sirva de mostrar a injustiça da fortuna: parece-nos, que o ser firme a nossa dor, é prova de ser justa; esta ideia nos inspira a vaidade, menos cuidadosa no sossego do nosso ânimo, do que atenta em procurar a estimação dos homens. Uma grande pena admira-se, e respeita-se; é o que basta para que a vaidade nos faça persistir no sentimento.

Os retiros, e as solidões nem sempre são efeitos do desengano, as mais das vezes são delírios de um sentimento vão, ou furores, em que brota a vaidade: então nos move o fim oculto de querermos, que a demonstração da dor nos faça recomendáveis: fazemos vaidade de tudo quanto é grande: a mesma pena quando é excessiva, nos lisonjeia; porque nos promete a admiração do mundo.

Buscamos a Deus quando o mundo nos não busca; se alguma ofensa nos irrita, deixamos a sociedade, não por arrependidos, mas por queixosos, e menos por amar a Deus, que por aborrecer os homens. A vaidade nos inspira aquele modo de vingança, e parece com efeito, que o deixar o mundo é desprezá-lo. Assim será; mas quem deseja vingar-se ainda ama, e quem se mostra ofendido ainda quer. Amamos o mundo, e as suas vaidades; porque o amor de cousas vãs é em nós quási inseparável. O mundo, e a vida tudo é o mesmo; e quem há que sem loucura deixe de amar a vida? Tudo no mundo é vão, por isso a vaidade é a que move os nossos passos: para donde quer, que vamos, a vaidade nos leva, e imos por vaidade. Mudamos de lugar, mas não mudamos de mundo.

A mesma vaidade, que nos separa do comércio dos homens, para sepultar-nos na solidão de um Claustro, vem depois a conservar-nos nele, e por um mesmo princípio nos conduz, e nos faz permanecer sempre no retiro. Fazem os homens ludíbrio da mudança da vontade, por isso muitas vezes somos firmes só por evitar o desprezo, vindo a parecer persistência na vocação, o que só é constância na vaidade. Vivemos temerosos, de que as nossas acções se reputem como efeitos da nossa variedade: queremos mudar, mas tememos o parecer vários; e assim a constância na virtude não a devemos à vontade, mas ao receio; não a conservamos por gosto, mas por vaidade; e esta assim como nos faz constantes na virtude, também outras vezes nos faz constantes na culpa.

Há vários termos no progresso da nossa vaidade: esta no primeiro estado da inocência vive em nós como oculta, e escondida: o tempo faz que ela se mova, e se dilate: semelhante às aves, que nascem todas sem penas, ainda que todas em si trazem a matéria delas. A nossa alma está disposta para receber, e concentrar em si as impressões da vaidade; e esta, que insensivelmente se forma, do que vemos, do que ouvimos, e ainda do que imaginamos, quando cresce em nós, é imperceptível, da mesma sorte, que cresce imperceptivelmente a luz, e que apenas se distingue a elevação das águas. Nascemos sem vaidade, porque nascemos sem uso de razão, nem de discurso; quem dissera, que aquilo, que nos devia defender do mal, é o mesmo que nos conduz a ele, e nos precipita! Todas as paixões dão connosco passos iguais no caminho da vida: logo que vimos ao mundo, começamos a ter ódio, ou amor, tristeza, ou alegria; só a vaidade vem depois, mas dura sempre, e quando se manifesta, é também quando em nós começa a aparecer o entendimento; por isso a emenda da vaidade é tão difícil, porque é erro, em que o entendimento tem parte de algum modo.

O homem de uma medíocre vaidade é incapaz de premeditar empresas, nem de formar projectos: tudo nele é sem calor: a sua mesma vida é uma espécie de letargo; tudo o que procura é com passos vagarosos, cobardes, e descuidados; porque a vaidade é em nós como um espírito dobrado, que nos anima, por isso o homem, em que a vaidade não domina é tímido, e sempre cercado de dúvida, e de receio; a vaidade logo traz consigo o desembaraço, a confiança, o arrojo, e a certeza. Presume muito de si quem tem vaidade, por isso é confiado; não presume de si nada quem não tem vaidade, por isso é tímido. A vaidade nos faz parecer, que merecemos tudo, por isso empreendemos, e conseguimos às vezes; a falta de vaidade nos faz parecer, que não merecemos nada, por isso nem buscamos, nem pedimos. Este extremo é raro, o outro é mui comum; daquele se compõe o mundo, deste o Céu.

A diferença, e desigualdade dos homens é uma das partes, em que se estabelece a sociedade, por isso esta se funda em princípios de vaidade; porque só a vaidade sabe corporificar ideias, e fazer diferente, e desigual o que é composto por um mesmo modo, e organizado de uma mesma forma. Os homens mais vaidosos são os mais próprios para a sociedade; aqueles que por temperamento, por razão, ou por virtude se fazem menos sensíveis aos impulsos da vaidade, são os que pela sua parte, contribuem menos na comunicação dos homens; ocupados em uma vida mole, isenta, e sem acção, só buscam no descanso a fortuna sólida, e desprezam as imagens de que se compõe a vaidade da vida civil.

A desordem dos homens parece que é precisa para a conservação da sociedade entre eles: é preciso com efeito, que sejamos loucos, e que deixemos muitas vezes a realidade das cousas, só por seguir a aparência, e vaidade delas. Que maior loucura, que a que nos expõe a perder a vida na expectação de podermos servir de objecto ao vaidoso ruído da fama? Que maior delírio, que sacrificarmos o descanso ao desejo de sermos admirados? Que desvario maior, que o fazer ídolo da reputação, fazendo-nos por essa causa dependentes, não só das acções dos homens, mas também das suas opiniões; não só das suas obras, mas também dos seus conceitos?

A vaidade nos ensina, que as acções heróicas se fazem imortais por meio das narrações da história; porém mal pode caber na lembrança dos homens todos os grandes sucessos, de que se compõe a variedade do mundo: ainda o mesmo pensamento tem limite, por mais que nos pareça imensa a sua esfera. Não há história, que verdadeiramente seja universal: quantos Aquiles terá havido, cujas notícias se acabaram, só porque não tiveram Homeros, que as fizessem durar um certo tempo, e isto por meio do encanto de um Poema ilustre? Quantos Eneias sem Virgílios? Quantos Alexandres sem Quintos Cúrcios? Na infância do mundo começaram logo a haver combates, por isso as vitórias sempre foram de todas as idades; porém esses mesmos combates se desfaziam uns a outros; porque a fortuna do vencer sempre foi vária, e inconstante. As notícias das vitórias também se vinham a extinguir umas pelas outras. Se quisermos remontar ao tempo que passou, a poucos passos havemos de encontrar a fábula, coberta de um véu escuro, e impenetrável: tudo quanto aquele tempo encerra nos é desconhecido totalmente. Os primeiros homens, que à força de fogo, e sangue se fizeram árbitros da terra, nos mesmos fundamentos das suas conquistas deixaram sepultadas as suas acções; o valor com que puderam perpetuar nos seus descendentes o poder, e a majestade, não lhes pôde perpetuar o nome; das maiores Monarquias ainda se ignora quem foram seus primeiros fundadores.

Que são os homens mais do que aparências de teatro? Tudo neles é representação, que a vaidade guia; a fatal revolução do tempo, e o seu curso rápido, que cousa nenhuma pára, nem suspende, tudo arrasta, e tudo leva consigo ao profundo de uma eternidade. Neste abismo, donde tudo entra, e nada sai, se vão precipitar todos os sucessos, e com eles todos os Impérios. Os nossos antepassados já vieram, e já foram; e nós daqui a pouco vamos ser também antepassados dos que hão-de vir. As idades se renovam, a figura do mundo sempre muda, os vivos, e os mortos continuamente se sucedem, nada fica, tudo se usa, tudo acaba. Só Deus é sempre o mesmo, os seus anos não têm fim, a torrente das idades, e dos séculos corre diante dos seus olhos, e ele vê a vaidade dos mortais, que ainda quando vão passando o insultam, e se servem desse mesmo instante, em que passam, para o ofenderem. Miseráveis homens, género infeliz, que nesse momento, que lhes dura a vida, preparam a sua mesma reprovação; e que tendo vaidade, que lhes faz parecer, que tudo meditam, que tudo sabem, e que tudo prevêem, só a não têm para anteverem as vinganças de um Deus irado, e que com o seu mesmo sofrimento, e silêncio, clama, ameaça, julga, condena!

Acabam os Heróis, e também acabam as memórias das suas acções; aniquilam-se os bronzes, em que se gravam os combates; corrompem-se os mármores, em que se esculpem os triunfos; e apesar dos milagres da estampa, também se desvanecem as cadências da prosa, em que se descrevem as empresas, e se dissipam as harmonias do verso, em que se depositam as vitórias: tudo cede à voracidade cruel do tempo. Acabam-se as tradições muito antes que acabe o mundo; porque a ordem dos sucessos não se inclui na fábrica do Universo; é cousa exterior, e indiferente. Os monumentos, que fazem da história a melhor parte, e a mais visível, não só se estragam, mas desaparecem, e de tal sorte, que nem vestígios deixam por onde ao menos lhes recordemos as ruínas. Não têm mais duração as cinzas dos Heróis; porque as mesmas urnas, que as escondem, se desfazem, e os mesmos epitáfios, por mais que sejam profundos os caracteres, insensivelmente vão fugindo dos nossos olhos, até que se apagam totalmente. Ainda as cousas inanimadas, parece que têm um tempo certo de vida; as pedras, de que se formam os padrões, vão perdendo a união das suas partes, em que consiste a sua dureza, até que vêm a reduzir-se ao princípio comum de tudo: terra, e pó.

Por isso é loucura sacrificar a vida por eternizar o nome; porque dos mesmos Heróis também morre o nome, e glória: a diferença é, que a vida dos Varões ilustres compõe-se de anos, como nos mais homens, e a vida das suas acções compõe-se de séculos; porém estes acabam, e tudo o que se encerra neles, vem a entrar finalmente no caos do esquecimento. Tudo no mundo são sombras, que passam; as que são maiores, e mais agigantadas, duram mais horas, mas também se extinguem, e do mesmo modo, que aquelas, que apenas tiveram de existência alguns instantes. O desejo nos finge mil objectos imortais, e entre eles a fama é ao que mais nos inclina a vaidade; sendo que o mesmo ar, que lhe dilata os ecos, lhe confunde, e apaga a voz. Nas cousas é trânsito, o que nos parece permanência: a diversidade, que vemos na duração delas, é porque umas gastam mais tempo em acabar que outras; de sorte que propriamente só podemos dizer, que as cousas estão acabando, e não que estão sendo.

Porém destes mesmos delírios resulta, e depende a sociedade; porque a vaidade de adquirir a fama infunde aquele valor nos homens, que quási chega a transformá-los em muralhas para defesa das Cidades, e dos Reinos; a vaidade de serem atendidos os reduz à trabalhosa ocupação de indagarem os segredos da Divindade, o giro dos astros, e os mistérios da natureza; a vaidade de serem leais os faz obedientes; a vaidade de serem amados os faz benignos; e finalmente a vaidade, ou amor da reputação os faz virtuosos. Daqui vem, que o homem sem vaidade entra em um desprezo universal de tudo, e começa por si mesmo: olha para a reputação como para uma fantasia, que se forma, e se sustenta de um sussurro mudável, e de uma opinião sempre inconstante; olha para o valor como para um meio cruel, que a tirania ideou para introduzir no mundo a escravidão; olha para o respeito como para uma ceremónia, ou dependência servil, que indica poder em uns, e nos outros medo, semelhante à estátua de Júpiter, diante da qual todos se prostram, não por amor do ídolo, mas por causa do raio, que tem na mão; olha para a benignidade como para um modo, ou artifício de atrair a si a inclinação dos outros, e por isso virtude mercenária; olha para a lealdade como para um acto, que precisamente resulta de uma submissão necessária; e ultimamente olha para a fama como para um objecto vago e incerto, e que na realidade vale menos do que custa a conseguir.

Com os anos não diminui em nós a vaidade, e se muda, é só de espécie. A cada passo, que damos no discurso da vida, se nos oferece um teatro novo, composto de representações diversas, as quais sucessivamente vão sendo objectos da nossa atenção, e da nossa vaidade. Assim como nos lugares, há também horizontes na idade, e continuamente imos deixando uns, e entrando em outros, e em todos eles a mesma vaidade, que nos cega, nos guia. Nem sempre somos susceptíveis das mesmas impressões; nem sempre somos sensíveis ao mesmo sentimento; sempre somos vaidosos, mas nem sempre domina em nós o mesmo género de vaidade.

Há vícios, que raramente deixamos, se eles primeiro nos não deixam; e quando com o tempo seguimos o exercício de obrar bem, não é porque o conhecimento, ou a experiência nos determine mas porque continuamente os anos nos vão fazendo incapazes de obrar mal; e assim virtudes há, que primeiro começam pela nossa incapacidade, do que por nós mesmos; e nos nossos acertos a razão é a que quási sempre tem menos parte. Só a vaidade não enfraquece, por mais, que o vigor nos falte; como se fora um afecto da alma independente da disposição do corpo.

Não temos alegria, se está descontente a vaidade; da mesma sorte, que a desgraça não aflige tanto, quando se acha a vaidade satisfeita. A mesma morte não se mostra com igual semblante nos suplícios; porque a qualidade deles influi maior, ou menor pena; por isso as honras do cadafalso servem de alívio ao delinquente; porque a vaidade, que está vendo a atenção do golpe, deste esconde ao mesmo tempo o horror e entretida nos faustos do luto, desvia da memória uma grande parte da consideração da ruína.

Para nada ser permanente em nós, até o ódio se extingue: cansamo-nos de aborrecer: a nossa inclinação tem intervalos, em que fica isenta da sua maldade natural; não esquece porém o ódio, que teve por princípio a vaidade ofendida; assim como nunca o favor esquece quando se dirige, e tem por objecto a vaidade de quem recebe o benefício. A nossa vaidade é a que julga tudo: dá estimação ao favor, e regula os quilates à ofensa; faz muito do que é nada; dos acidentes faz substância; e sempre faz maior tudo o que diz respeito a si. Nos benefícios pagamo-nos menos da utilidade, que do obséquio; nas ofensas consideramos mais o atrevimento da injúria, que o prejuízo do mal; por isso se sente menos a dor das feridas, do que o arrojo do impulso; e assim na vaidade nunca se formam cicatrizes firmes, e seguras; porque a lembrança do agravo a cada instante as faz abrir de novo, e verter sangue.

O corpo não é sensível igualmente em todas as suas partes: umas sofrem, e resistem mais; qualquer desconserto em outras é mortal; assim também no corpo da vaidade há partes, em que penetra mais o sentimento; daqui vêm inimizades, que nem a morte reconcilia, ódios que duram tanto como a vida. Tudo o que nos tira, ou diminui a estimação, nos serve de tormento; porque o respeito é o ídolo comum da vaidade; aquilo que o ofende, não se perdoa facilmente, e fica sendo como um sacrilégio irremissível, e como um princípio de donde se originam tantas aversões hereditárias.

Acabando tudo com a morte, só a desonra não acaba; porque o labéu ainda vive mais do que quem o padece: por mais insensível que esteja um cadáver na sepultura (permita-se o hipérbole) lá parece que a lembrança de uma infâmia, que existe na memória dos que ficam, lhe está animando as cinzas, para o fazer capaz de aflição, e sentimento: terrível qualidade, cujos efeitos, ou cujo mal, não se acaba, ainda depois que acaba quem o tem; sendo a única desgraça, que se imprime na alma, como um carácter imortal! A morte não serve de limite à desonra; porque esta vai seguindo a posteridade como uma herança bárbara, e infeliz. Estes são os pensamentos, que a vaidade nos inspira, e como uma paixão inconsolável, até nos persuade, que ainda depois de mortos podemos sentir a infâmia: esta diminui a estimação, e o respeito; e por isso mortifica tanto; como se a infâmia do delito só consistisse na atenção, e opinião dos homens, e não no delito mesmo; ou se só fosse desonra aquela que se sabe, e não aquela que se ignora.

Se a melancolia nos desterra para a solidão do ermo, não deixa de ir connosco a vaidade; e então somos como a ave desgraçada, que por mais que fuja do lugar em que recebeu o golpe, sempre leva no peito atravessada a seta: nunca podemos fugir de nós: para donde quer que vamos, imos com os nossos mesmos desvarios, se bem que as vaidades do ermo são vaidades inocentes. A natureza não tem lá por objecto mais do que a si mesma, e a vaidade, que tem na complacência, com que se contempla, consiste em reflectir sobre os enganos do século, e sobre as verdades da solidão; e se alguma vez chega a ser excessiva essa mesma complacência, não importa; porque a vaidade de ser virtuoso também parece que é virtude; e assim vimos a ter naquele caso um vício, que nos emenda, e um defeito, que nos melhora.

Oh quanto é especiosa a tranquilidade do destro! Lá não há ódio, nem soberba; não há crueldades nem inveja: estes monstros são feras invisíveis, que habitam entre nós, para serem ministros fatais das nossas discórdias e das nossas aflições; nascem da nossa sociedade, e se sustentam da nossa mesma comunicação: por isso a virtude costuma fugir ao tumulto, porque a nossa maldade não é pelo que toca a cada um de nós, mas pelo que respeita aos outros: somos perversos por comparação; e reciprocamente uns servimos de objecto às iniquidades dos outros; a vaidade sempre foi origem dos nossos males; mas primeiro que a vaidade, foi o comércio comum das gentes; porque dele resulta a vaidade como contágio contraído no trato, e conversação dos homens. O nosso entendimento facilmente se inficiona, não só com as opiniões próprias, mas também com as alheias; não só com as próprias vaidades, mas também com as dos outros. Não sei se seria mais útil ao homem o ser incomunicável.

Vemos confusamente as aparências de que o mundo se compõe: os nossos discursos raramente encontram com a verdade, com a dúvida sempre; de sorte que a ciência humana toda consiste em dúvidas. Ainda dos primeiros princípios visíveis, e materiais, só conhecemos a existência, a natureza não; porque a contextura do universo é em si unida, e regular, em forma que na ordem das suas partes não se podem conhecer umas, sem se conhecerem todas; por isso todas se ignoram, porque nenhuma se conhece; só a vaidade costuma decidir sem embaraço, porque não chega a imaginar-se capaz de erro: os homens mais obstinados são os mais vaidosos, e sempre a porfia vem à proporção da vaidade.

Algumas dúvidas há que respeitamos; mas nem a essas perdoa a vaidade, pois nunca quer que fiquem indecisas, mas infelizmente, porque nelas sempre a solução da dúvida vem a consistir em outra dúvida maior. Quási tudo transcende à nossa compreensão, mas nada transcende à nossa vaidade. Naturalmente nos é odiosa a irresolução, e antes nos inclinamos a errar, do que a ficar irresolutos: o confessar ignorância é acto a que se opõe a vaidade, sendo que rara é a cousa, que se nos mostra, sem um certo véu que a esconde; de sorte que não vemos, nem buscamos os objectos, mas a sombra deles.

Nas paixões é natural o entreter-nos cada uma com a esperança, que lhe é própria; e com efeito nada é mais agradável do que uma esperança lisonjeira. O desejo se deleita em meditar no bem, que espera; e a natureza, a quem as paixões têm sempre em acção, não cessa de guiar o pensamento para aquela mesma parte, para donde a nossa inclinação propende; por isso o amor continuamente nos promete, que há-de acabar a tirania, e que cedo há-de vir a feliz correspondência; o ódio nos segura, que vem chegando o dia da vingança; e finalmente a vaidade só nos oferece ideias de respeito, e de grandeza; e desta sorte não vivemos, esperamos a vida.

Há um género de vaidade, que toda consiste em procurarmos que se fale em nós; por isso a mesma vaidade inventou a frase de dizer-se, que vive no escuro aquele de quem se não fala; dando a entender, que as empresas, por meio das quais se fala nos homens, são a claridade que os mostra, e os distingue; com efeito por mais que vivamos juntos, e nos vejamos sempre, é por um modo como vago, e passageiro: as cousas nem por estarem muito perto se vêem melhor, e os Heróis o que os faz mais visíveis, é a distância, e desproporção dos outros homens em que os põem as suas acções; não só os homens, mas ainda os sucessos, quanto mais longe vão ficando, mais crescem, e nos vão parecendo maiores, até que os vimos a perder da vista, e muitas vezes da memória; porque no tempo também há um ponto de perspectiva, donde como em espelho vão crescendo todos os objectos, e em chegando a um certo termo, desaparecem. As empresas, que hoje vemos, talvez não são inferiores às que a tradição refere do tempo do heroísmo; porém têm de menos o estarem próximas a nós, e as outras têm de mais, o valor que recebem de uma antiguidade venerável: aquelas admiramos porque não temos inveja, nem vaidade, que nos preocupe contra os que passaram há muitos séculos; contra os que existem sim, e destes, se sabemos as acções, também sabemos as circunstâncias delas; por isso as desprezamos, porque é rara a empresa heróica, em que não entre algum fim indigno, e vil: a mais ilustre acção fica infame pelo motivo.

O que chamamos inveja, não é senão vaidade. Continuamente acusamos a injustiça da fortuna, e a consideramos ainda mais cega do que o amor, na repartição das felicidades. Desejamos o que os outros possuem, porque nos parece, que tudo o que os outros têm, nós o merecíamos melhor; por isso olhamos com desgosto para as cousas alheias, por nos parecer, que deviam ser nossas: que é isto senão vaidade? Não podemos ver luzimento em outrem, porque imaginamos, que só em nós é próprio: cuidamos, que a grandeza só em nós fica sendo natural, e nos mais violenta: o esplendor alheio passa no nosso conceito por desordem do acaso, e por miséria do tempo. Quem diria aos homens, que no mundo há outra cousa mais do que fortuna, e que nas honras há predestinação?

Não vivemos contentes, se a nossa vaidade não vive satisfeita: ainda temos o bem, que com pouco se alimenta a vaidade. Um riso agradável, que achamos nas pessoas eminentes, e que por mais, que seja equívoco, sempre a vaidade o interpreta a seu favor; um obséquio, que tem por princípio a dependência, e em que o interesse se esconde subtilmente; uma submissão, que nos faz crer que os homens têm obrigação de respeitar-nos; uma lisonja dita com tal arte, que fica sendo impossível, conhecermos-lhe o veneno; qualquer cousa destas, e ainda menos basta, para que a nossa vaidade se reveja, e se satisfaça; de sorte que não vivemos alegres, se não vivemos vaidosos.

Procuramos ser objectos da memória, e assuntos da fama: o nosso fim é querermos, que se fale em nós, vindo a ser ambiciosos das palavras dos outros, e idólatras das narrações da história. Este delírio nos entrega à aplicação das letras, e nos inspira a inclinação das armas, como dous pólos, que guiam para uma fingida, e sonhada imortalidade. Alguns fogem da sociedade, ou por cansados do tumulto, ou porque conhecem os enganos do aplauso; porém ainda esses lá se formam uma crença vaidosa, de que os homens falam neles, e discorrem sobre a causa dos seus retiros. Quantas vezes nos parece, que o bosque, que nos serve de muda companhia, se magoa dos nossos infortúnios, e que o vale recebe o sentimento das nossas queixas, quando em ecos entrega aos ventos, partidos, os nossos ais! Parece-nos, que a Aurora nasce rindo dos nossos males; que as fontes murmuram dos nossos desassossegos; que as flores crescem para símbolo das nossas delícias; e que as aves festejam os nossos triunfos.

Os homens, a quem a concorrência de acasos felices faz chamar grandes, presumem, que ainda que deles não depende a existência do mundo, contudo depende deles a ordem, e a economia das cousas: todos falam nas suas acções, e nisto consiste a sua maior, e mais estimada vaidade. Deixamos livremente o comércio dos homens, mas não renunciamos o viver na admiração, e notícia deles; consentimos em apartar-nos de sorte, que nunca mais sejamos vistos, mas não consentimos em não ser lembrados; finalmente queremos, que se fale em nós: as mesmas sepulturas, que são uns pequenos teatros das mais lastimosas tragédias, espantam menos pelo horror das sombras, que pelo silêncio.

Mil preceitos há que nos ensinam, o quão pouco são estimáveis em si, esses mesmos objectos, que buscamos com fadiga: o conhecermos a vaidade das cousas, não basta para as não querermos; porque o conhecimento de um mal, que se apetece, é um meio muito débil para o deixar. No mesmo retiro temos todo o mundo no coração, e neste vivem as paixões então mais concentradas, e por isso mais vigorosas, e mais fortes: o ser o lugar mais apertado não nos livra do combate, antes o faz mais arriscado; a vaidade é como o amor, este quando o deixamos, sempre nos fica uma saudade lenta, que insensivelmente nos devora; porque é um mal, cuja privação se sente como outro mal maior; ainda depois de passados muitos anos, a lembrança, que às vezes nos ocorre de um amor, que parece que acabou, sempre nos vem com sobressalto; o coração nunca fica indiferente, e sempre recebe com alvoroço a ideia de um ardor amortecido, e como que o reclama. Verdadeiramente, perdida a vaidade, e perdido o amor, que nos fica?

É próprio da vaidade o dar valor a muitas cousas, que o não têm, e quási tudo o que a vaidade estima, é vão. Que cousa pode haver, que tenha em si menos substância do que umas certas felicidades, que ponderada a melhor parte delas, consiste, ou em palavras, ou em gestos; a denominação de grande, de maior, e de excelente, e as submissões, que indicam o respeito, fazem uma parte essencial das glórias deste mundo; a primeira não consiste mais do que em palavras; a segunda toda se compõe de gestos. Que importa à felicidade do homem, que os outros, quando lhe falam, articulem mais um som, que outro, e que nas reverências que introduziu a lisonja, se dobrem mais, ou menos? A vaidade nos faz crer felices à proporção, que ouvimos esta, ou aquela voz, e que vemos este, ou aquele culto: a vida civil se reduz a um ceremonial composto de genuflexões, e de palavras.

Só a vaidade sabe dar existência às cousas que a não têm, e nos faz idólatras de uns nadas, que não têm mais corpo, que o que recebem do nosso modo de entender, e nos induz a buscarmos esses mesmos nadas, como meios de nos distinguir; sendo que nem Deus, nem a natureza nos distinguiu nunca. Na lei universal, ninguém ficou isento da dor, nem da tristeza; todos nascem sujeitos ao mesmo princípio, que é a vida, e ao mesmo fim, que é a morte; a todos compreende o efeito dos elementos; todos sentem o ardor do Sol, e o rigor do frio; a fome, e a sede, o gosto, e a pena, é comum a tudo aquilo que respira: o Autor do mundo fez ao homem sobre uma mesma ideia uniforme, e igual, e na ordem com que dispôs a natureza, não conheceu exceições, nem privilégios: nunca o homem pode ser mais, nem menos do que homem; e por mais, que a vaidade lhe esteja sugerindo uns certos atributos, ou certas qualidades, que o fazem parecer maior, e mais considerável, que os mais homens, essas mesmas qualidades, ainda sendo verdadeiras, sempre são imaginárias; porque também há verdades fantásticas, e compostas somente de ilusões.

A vaidade é cheia de artifício, e se ocupa em tirar da nossa vista, e da nossa compreensão o verdadeiro ser das cousas, para lhes substituir um falso, e aparente. De que serve a púrpura, mais que de encobrir o homem a si mesmo, e uma figura simples, comua, e igual em todos, mostrá-la desfigurada, e outra debaixo de um véu puramente exterior? Tudo o que se esconde fica com carácter de mistério, e por isso com veneração, e com respeito, a vaidade foi o primeiro artífice, que inventou o distinguir os homens pela especialidade do ornato e pela singularidade da cor; assim são as distinções, que a vaidade nos procura; nenhuma é, nem pode ser em nós, mas nas cousas que nos cobrem.

Só a vaidade dos Reis é vaidade justa, porque a Providência já quando os formou para a dominação, logo os destinou para figuras da divindade, e com uma semelhança mais que material, e indiferente; porque a mesma essência, de que são imagens, parece, lhes comunica uma porção da ideia, que representam. Por mais que os sucessos sejam regidos pelo acaso, contudo aos Reis não os faz a fortuna, nem o valor; mas sim aquela mesma inteligência, que dá os primeiros, e principais movimentos ao Universo. Ainda nos Orbes Celestes vemos alguns corpos, que parece custaram mais cuidado ao Autor do mundo, pois brilham com luz mais firme, mais intensa e mais constante. Os Monarcas parecem-se com os mais homens na humanidade, mas diferem nas qualidades da alma: a Coroa, que os cinge, não só lhes ilustra a cabeça, mas também o pensamento; o Ceptro, que indica a majestade, também inspira o esforço; e a grandeza no poder também influi extensão no espírito; por isso na arte de reinar não há regras, que possam ser sabidas por quem não é Rei.

Assim como é justa a vaidade de um Rei justo, também é iníqua a vaidade de um tirano: o esplendor de um trono adquirido injustamente não cega a atenção de sorte, que fiquem os olhos sem poder examinar-lhe os raios; um lugar tão sagrado, nem sempre o consideram os homens com imunidade. Os tiranos sempre foram objectos, não só dos louvores, mas também da crítica; não só das admirações, mas também dos reparos; não só do amor, mas também do ódio: se há quem os admire, também há quem os reprove; se a lisonja os iguala ao Sol, a censura sabe compará-los ao Cometa; se o amor lhes prepara agrados, também encontram aversões no ódio. As submissões não são todas voluntárias; e o respeito ainda quando degenera em adoração, nem sempre tributa um incenso puro, e muitas vezes procede de uma violência interior, e oculta; então por mais que as expressões se elevem, sempre a verdade se distingue da exageração; e por mais que o joelho dobre, sempre o desprezo fica inflexível no conceito.

Nos Príncipes é virtude, uma vaidade bem intendida; e discorre santamente um Rei, quando se desvanece da qualidade de ser justo: há vícios necessários em certos homens, assim como há virtudes impróprias em outros. Os soberanos sendo a fonte da justiça, são os que mais injustamente são julgados: os mais homens são ouvidos, os Príncipes não; todos os julgam, e ninguém os ouve; como se a preeminência da dignidade os fizesse incapazes, ou indignos da defesa: o julgar por este modo aos Reis, é sacrilégio, porque a traição é maior aquela que se dirige à fama, que a que conspira contra a vida; esta nos Monarcas é-lhes menos importante, que a memória; a existência deve ser-lhes menos preciosa do que a fama: com a vida se acaba o respeito, a grandeza, e o poder, mas não acaba a reputação; o túmulo não encobre, nem a ignomínia do nome, nem o esclarecido, porque nos Príncipes nunca acaba a glória, nem a infâmia: o breve espaço de uma urna basta para esconder as cinzas de muitos Reis; porém por mais que as confunda a morte, a história as separa e as divide: a tradição anima essas mesmas cinzas; umas para honra da natureza, outras para horror da posteridade.

A maior parte das acções dos homens consiste no modo delas; o modo com que se propõe, com que se diz, com que se fala, com que se ouve, com que se olha, com que se vê, com que se anda, e enfim todos os mais modos, que são inseparáveis de qualquer acção, nos dão a conhecer o que devemos pensar delas: quási sempre o modo, ou nos obriga, ou nos ofende, e ordinariamente o modo das cousas nos ocupa mais do que as cousas mesmas. Umas vezes nos engana o modo, porém também outras o mesmo modo nos desengana: a imaginação verdadeira, falsa, ou vaidosa, é a que produz os diferentes modos, que vemos uns nos outros. Os Soberanos têm um certo modo de olhar, de ver, de ouvir, de andar, de preguntar, e de responder, que só neles é natural; a vaidade dos Grandes lhes faz afectar o mesmo modo, que vêem nos Soberanos; os mais homens tomam o mesmo modo, que vêem nos Grandes, e cada um se irrita de ver um modo impróprio, e sente como um desprezo o achar um modo, que não convém a quem usa dele; o que diversifica os modos é a alegria, a tristeza, o amor, o ódio, o desejo, ou a indiferença, e mais que tudo a vaidade.

A maior parte da vida passamos em buscar a fortuna, e a que vemos nos outros, é a que nos engana nós; porém é feliz o engano, que nos anima sempre. Que maior desgraça que o viver indiferente, e sem acção; e que maior ventura que a esperança com que a buscamos! O conceito, que fazemos de qualquer bem, sempre excede ao mesmo bem, e assim perdemos quando o alcançamos; de sorte que a fortuna parece não está tanto em possui-la, como em desejá-la. As fortunas humanas, ou consistem na abundância, ou no poder, ou no respeito: estas são as mesmas fontes donde nasce a vaidade, e com efeito se há vaidade sem fortuna, não há fortuna sem vaidade.

Por nosso mal lá chega a idade, em que não queremos mais fortunas, que o viver; conhecemos a ilusão delas, e se as buscamos, é como por costume, mas sem ânsia, e sem desassossego; o desejo de as alcançar, é como um resto de calor, que apenas se faz sentir. Não reflectimos sobre o pouco tempo, que devemos gozar um bem, senão depois de o ter: só então consideramos o muito que custou a alcançar, e o pouco que o havemos possuir. Em cada país há um modo com que as cousas se imaginam; o que é fortuna em uma parte, é desgraça em outra, o que aqui se busca com empenho, ali se despreza totalmente. Os objectos que entretêm a vaidade, e estimação dos homens, são como ídolos, que só se veneram em lugar determinado, e fora daquele tal espaço, a adoração se troca em vitupério; o mesmo mármore de que em Atenas se faria uma Minerva, transportado a outro lugar, apenas servirá de base a uma coluna; assim é a vaidade, por mais que seja universal nos homens, os motivos dela não são universais.

É raro o mal, de que não venha a nascer algum bem, nem bem, que não produza algum mal: como só o presente é nosso, por isso não nos serve de alívio o bem futuro, nem nos inquieta o mal que ainda não sentimos; um infeliz não se persuade, que a sua sorte possa ter mudança; um venturoso não crê, que possa deixar de o ser; a este a vaidade tira o menor receio; àquele o abatimento priva de esperança. Se fizermos reflexão, havemos de admirar o pouco que basta para fazer o nosso bem, ou o nosso mal: de um instante a outro mudamos da alegria para a tristeza, e muitas vezes sem outro algum motivo, que o de uma vaidade mais, ou menos satisfeita. Os homens não são todos igualmente sensíveis ao bem, e ao mal; a uns penetra mais vivamente a dor, a outros só faz uma impressão ligeira; o bem não acha em todos o mesmo grau de contentamento. Nas almas deve de haver a mesma diferença, que há nos corpos: umas mais débeis, e outras mais robustas; por isso em umas obra mais o sentimento, e acha mais resistência em outras; em umas domina a vaidade com império, e com furor, em outras só assiste como cousa natural; naquelas a vaidade é uma paixão com ímpeto, nestas é um vício sossegado, e sem desordem.

O entendimento nos homens, é como a fermosura nas mulheres; não há desgraça de que um espelho as não console, nem tristeza de que se não esqueçam, vendo-se em estado de inspirar amor; a um homem infeliz serve de alívio, o considerar-se sábio; este pensamento, ou esta vaidade lhe faz adormecer o mal que sente; como se a mulher só viesse ao mundo, para ser querida, e o homem só nascesse para ser discreto; entre um, e outro a diferença é grande: a mulher fermosa, com o tempo conhece que já o não é; o homem entendido nunca alcança que só o foi; a mulher não pode deixar de ver o estrago, que os anos fazem na beleza, o homem não penetra a ruína, que o tempo causa ao entendimento; mas não importa que assim seja, porque é justo que o homem se desvaneça sempre, e que tenha fim na mulher a vaidade: ninguém adora ao homem por entendido, e à mulher todos a idolatram por fermosa. Acabe pois a vaidade na mulher, porque foi tão excessiva, e no homem dure, porque foi mais moderada.

Olhamos para o tempo passado com saudade, para o presente com desprezo, e para o futuro com esperança: do passado nunca se diz mal; do presente continuamente nos queixamos, e sempre apetecemos que o futuro chegue: o passado parece-nos que não foi mais do que um instante; o presente apenas o sentimos; e julgamos que o futuro está ainda mui distante. Para dizermos bem do tempo, é necessário que ele tenha passado, e para que o desejemos é preciso considerá-lo longe. A vaidade faz-nos olhar para o tempo, que passou, com indiferença, porque já nele fica sem acção; faz-nos ver o presente com desprezo, porque nunca vive satisfeita; e faz-nos contemplar o futuro com esperança, porque sempre se funda no que há-de vir; e assim só estimamos o que já não temos; fazemos pouco caso do que possuímos; e cuidamos no que não sabemos se teremos.

Com os anos imos mudando de umas vaidades par outras; não porque queiramos mudar de vaidade, mas porque algumas há, que em certos anos são incompatíveis, e só têm lugar em outros. A gentileza é a primeira vaidade, que a natureza nos inspira; vaidade simples, e inocente ainda quando é mentirosa: a natureza quer que nos amemos, por isso faz que nos vejamos dotados de uma forma, ou figura encantadora; somos Narcisos logo no berço: a nossa imagem apenas acabada de formar, logo nos atrai; o vidro que a representa nos agrada, e lisonjeia, ainda quando ignoramos o artifício do cristal; e desta sorte imos passando sucessivamente a vida, entretidos em um laberinto de vaidades, até que chegamos à vaidade dos velhos; vaidade discursiva, prudencial, histórica, e muitas vezes imbecil. O ser antigo não dá juízo a todos, antes o tira, porque o tempo insensivelmente vai destruindo o homem em todas as suas partes, e por mais, que o não sintamos, o que primeiro cansa, é o entendimento; porque este é como a força, que até um certo tempo cresce, até outro se conserva, e depois sempre vai diminuindo. Perdemos a inocência assim que entramos a ter uso de razão, e perdemos a razão assim que tornamos ao estado da inocência: uma e outra cousa são virtudes puras, e excelentes, mas insaciáveis. Primeiramente adquirimos a razão à custa da inocência, e depois alcançamos a inocência à custa da razão; não sei quando é que perdemos, ou ganhamos. Indiscretamente fazemos vaidade de sermos entendidos: o entendimento parece que nos foi dado por castigo, pois com ele ficamos sem desculpa para nada. Que maior mal!

É rara a cousa, em que não tenha parte a vaidade. A mesma ingratidão, de quem recebe um benefício, é efeito da vaidade; porque sendo o benefício uma espécie de socorro, sempre indica superioridade em quem o faz, e necessidade naquele que o recebe; por isso a lembrança de um benefício, humilha, e mortifica a nossa vaidade, e se alguma vez nos lembra, é porque a natureza se acusa de sentir-se ingrata. Muitos por vaidade confessam benefícios, que nunca receberam; é confissão, que os não aflige, porque assenta em uma dívida suposta; outros também por vaidade reconhecem benefícios verdadeiros, e isto porque fazem vaidade de uma dívida, que já julgam satisfeita pela confissão.

Quando pretendemos um favor, parece-nos que sempre havemos conservar a memória dele; mas é erro, porque apenas o alcançamos, quando logo se forma em nós um desejo imperceptível de o esquecer: a vaidade tem horror a tudo o que desperta a lembrança da nossa indigência; por isso não há ingratidão sem ódio; aborrecemos a quem remiu a nossa vexação, só porque a ficou conhecendo. Não se paga um benefício, senão com outro maior, e quem o não pode pagar assim, fica devendo sempre; por isso a vaidade antes nos resolve a ser ingratos, do que a conhecer uma obrigação de que nunca podemos estar livres. A ingratidão não consiste só no esquecimento do favor, mas também em uma aversão oculta, que temos a quem nos obrigou; por isso quando o vemos, e encontramos, sempre é com nosso pesar, e desagrado. Insensivelmente se forma uma espécie de divórcio entre quem recebe um favor, e quem o faz; este por vaidade afecta, o não lembrar-se do benefício feito, aquele tem pejo de haver-se esquecido dele; um e outro se retira: a ausência, ou a ruína daquele a quem somos obrigados, nunca nos é desagradável; porque então parece que respira a vaidade, como livre de um peso insuportável: naturalmente não podemos amar a quem devemos; a dívida leva consigo um desejo da extinção do seu objecto.

Não sucede assim nos benefícios, que os Soberanos fazem; quem os recebe, sempre os reconhece; porque a mesma vaidade, que nos faz ser ingratos para com os mais homens, é a que nos faz ser agradecidos para com os Príncipes; e com razão, porque nestes o favor sempre é puro, e generoso, em lugar que nos mais homens sempre é inficionado de algum género de interesse: nos Príncipes os benefícios nascem de liberalidade, nos mais homens procedem de premeditação, e esta fundada comummente na satisfação do que já devem, ou esperam dever; de sorte que nos Príncipes os benefícios é grandeza, nos mais homens é comércio. O maior favor é aquele que se faz sem condição: quando os Soberanos favorecem, é sem a expectativa de retribuição alguma, porque esta não pode ter lugar de nós para eles; dão, e não esperam; por isso as mercês de um Rei mostram a sua inclinação, e não a sua intenção: as graças dos Reis, e as de Deus, só se pagam com amor. Como os Príncipes são os melhores avaliadores dos homens, por isso supomos, que o favor, que fazem, sempre se dirige ao nosso merecimento. Estimamos viver na lembrança dos Reis, ainda que seja por meio da desgraça: o mesmo decreto, que impõe a pena, suaviza o efeito dela, porque há um instante, em que a vaidade nos representa o Soberano ocupado de nós: o castigo, que imediatamente vem do Trono, parece que de algum modo nos ilustra.

Tudo são produções da vaidade, esta até nos faz achar consolação nas mesmas razões do nosso dano; até nos faz descobrir utilidade na nossa mesma perda; e até nos sabe mostrar um semblante de fortuna na nossa mesma ruína. Uma circunstância leve, e incerta, em que a vaidade se entretenha, basta muitas vezes para suspender a actividade do nosso mal, e para desviar do nosso pensamento a maior parte dele. A virtude maltratada encontra alívio na mesma persecução, porque a vaidade lhe sugere em si a imagem de um martírio: a inocência oprimida sente menos a aflição, porque se desvanece em considerar-se vítima, de que é propriedade o ser inocente; e com efeito a constância no sofrimento é um justo motivo de vaidade, porque ainda na fama de um herói não há tanta grandeza, como no silêncio de um homem aflito; por isso a paciência nunca faz rogos inúteis: um homem mudo na desgraça parece que força a providência a o consolar. O merecimento desprezado entra na vanglória de crer, que todos reparam no descuido do prémio; um facinoroso arrasta com arrogância os ferros, e vai com resolução para o suplício: a vaidade que lhe anima os passos, consiste na mesma atrocidade do delito: a mesma pobreza costuma fazer ostentação da miséria. A vaidade é de todo o mundo, de todo o tempo, de todas as profissões, e de todos os estados.

Muitas vezes obramos bem por vaidade, e também por vaidade obramos mal: o objecto da vaidade é que uma acção se faça atender, e admirar, seja pelo motivo, ou razão que for. Não só o que é digno de louvor, é grande; porque também há cousas grandes pela sua execração; é o que basta para a vaidade as seguir, e aprovar. A maior parte das empresas memoráveis, não tiveram a virtude por origem, o vício sim; e nem por isso deixaram de atrair o espanto, e admiração dos homens. A fama não só se compõe do que é justo, e o raio não só se faz atendível pela luz, mas pelo estrago. A vaidade apetece o estrondoso, sem entrar na discussão da qualidade do estrondo: faz-nos obrar mal, se desse mal pode resultar um nome, um reparo, uma memória. Esta vida é um teatro, todos queremos representar nele o melhor papel, ou ao menos um papel de circunstância, ou em bem, ou em mal. A vaidade tem certas regras, uma delas é, que a singularidade não só se adquire pelo bem, mas também pelo mal, não só pelo caminho da virtude, mas também pelo da culpa; não só pela verdade, mas também pelo engano: quantos homens tem havido a quem parece que de algum modo enobreceu a sua iniquidade!

A crueldade nem sempre vem de um ânimo bárbaro, e feroz; muitas vezes é um monstro, que nasce da vaidade; considere-se o punhal cravado em um coração, que ainda palpita, e donde o sangue que sai, e vai regando a terra, ali se congela em parte, aqui ainda corre fumando, e cheio de espírito, e calor; finalmente considere-se um cadáver agonizante, e convulsivo, e donde as feridas umas sobre as outras, apenas mostram lugar livre de golpe; tudo forma um espectáculo horroroso: o tirano que é o mesmo executor da crueldade, por mais que no semblante inculque um aspecto duro, interiormente se estremece, e se não mostra que se aflige, é porque a vaidade o anima contra o pavor que a natureza inspira. Ideou a vaidade ser a tirania um atributo do poder: que mais é necessário para que os homens, queiram medir a grandeza do poder pelo excesso, e proporção da tirania? Até nos desvanecemos da mesma barbaridade, chamamos à compaixão fraqueza, e à inumanidade valor.

Todos conhecemos os delírios, a que a vaidade nos incita, mas nem por isso deixamos de os seguir. Parece que cada um de nós tem duas vontades sempre opostas entre si; ao mesmo tempo queremos, e não queremos; ao mesmo tempo condenamos, e aprovamos; ao mesmo tempo buscamos, e fugimos; amamos, e aborrecemos. Temos uma vontade pronta para conhecer, e detestar o vício; mas também temos outra pronta para o abraçar; uma vontade nos inclina, a outra arrasta-nos; a vontade dominante, é a que segue o partido da vaidade; por mais que queiramos ser humildes, e que tenhamos vontade de desprezar o fausto, a vontade contrária sempre vence, e se acaso se conforma, a violência com que o faz, é um sacrifício. A vaidade é uma espécie de concupiscência, não se lhe resiste com as forças do corpo, com as do espírito sim; a carne não é frágil só por um princípio, mas por muitos, e a vaidade não é o menor deles.

O aplauso é o ídolo da vaidade, por isso as acções heróicas não se fazem em segredo, e por meio delas procuramos que os homens formem de nós o mesmo conceito, que nós temos de nós mesmos. Raras vezes somos generosos, só pela generosidade, nem valorosos só pelo valor. A vaidade nos propõe, que o mundo todo se aplica em registar os nossos passos; para este mundo é que obramos; por isso há muita diferença de um homem, a ele mesmo: posto no retiro é um homem comum, e muitas vezes ainda com menos talento que o comum dos homens; porém posto em parte donde o vejam, todo é acção, movimento, esforço. Nunca mostramos o que somos, senão quando entendemos que ninguém nos vê, e isto porque não exercitamos as virtudes pela excelência delas, mas pela honra do exercício, nem deixamos de ser maus por aversão ao mal, mas pelo que se segue de o ser. O vício pratica-se ocultamente, porque cremos que a ignomínia só consiste em se saber; de sorte que se somos bons, é por causa dos mais homens, e não por nossa causa; haja quem nos assegure, que não há-de saber-se um desacerto, e logo nos tem certo, e disposto para ele; a dificuldade não está em persuadir a nossa vontade, mas o nosso receio. Os agravos ocultos calam-se, não só porque em serem ocultos perdem muito da qualidade de agravos, mas também porque a queixa não publique o atrevimento da ofensa; a vaidade não sente as cousas pelo que são, mas pelo que se há-de dizer delas: mil vinganças há que se suprimem só pelo perigo de que se não perceba o desacato, pela vingança. Quem dissera, que sendo a vaidade, de si mesma uma cousa arrebatada, haja ocasiões, em que nos pacifique, e ensine a ser prudentes! Há uma espécie de arte em se disfarçar a injúria, de que não há prova; a mesma vingança leva consigo uma sorte de injúria, porque a confessa: a satisfação pública supõe pública a ofensa, que muitas vezes não o é, ou ao menos não é tanto como a satisfação a faz. A paciência é uma virtude com nota, mas raramente se arrepende quem a tem; em lugar que o arrojo costuma trazer depois um sentimento largo; em um instante nos precipita a vaidade naquilo que nos vem a servir de tormento toda a vida; mas que muito se a mesma vaidade às vezes nos faz perder a vida em um instante. Quem disse que o amor é cego, errou; mais certo é ser cega a vaidade. O emprego do amor é a fermosura, e quem nunca a viu como a há-de amar? No amor há uma escolha, ou eleição, e quem não vê, não distingue, nem elege; o amor vem por natureza, a vaidade por contágio; o amor busca uma felicidade física, e por consequência material e visível; a vaidade busca um bem de ideia, e fantasia, e por consequência cego; a estimação dos homens é o objecto maior da vaidade; objecto vago, e que não tem figura própria em que possa ver-se. Há porém na vaidade a diferença, que tudo o que se faz por vaidade, queremos que se veja, que se diga, e que se saiba; então é fortuna a publicidade, se é que nos não parece, que o mundo inteiro não basta para testemunha; daqui vem que um furor heróico até chega a invocar o Céu, e a terra, para estarem atentos a uma acção; como tudo se faz pelo estímulo da vaidade, por isso se julga perdida uma façanha, que não tem quem a divulgue; como se um acto generoso consistisse mais em se saber, do que em se obrar. A vaidade, que nos move, não é pela substância da virtude, mas pela glória dela.

No desprezo da vida, é donde a vaidade se mostra altiva, e arrogante. Os clarins, que incitam ao combate, não são vozes, que a natureza intenda, a vaidade sim; aquela sempre vai com um passo vacilante, e trémulo; esta conduz o peito ardente, e furioso: por mais que se encontrem precipícios, e que os olhos só vejam fogo, e sangue, nem por isso desmaia o coração que a vaidade anima. Aquele a quem o escudo da fortuna cobre e que marcha resoluto, já cuida que está vendo os faustos do triunfo: aquele que prostrado, já fica agonizando, parece-lhe que expira, ou nos braços da vitória, ou nos da fama. Que felicidade de morrer! A vaidade tira da morte o semblante pálido, e horroroso, e só a deixa ver ornada de palmas, e troféus.

O valor não é igual em toda a parte; porque a vaidade não é em toda a parte a mesma. Há empresas de mais, e de menos vaidade, por isso as há de menos, e mais valor. A vaidade aumenta, e diminui, à proporção do seu motivo; e da mesma sorte o valor diminui, e aumenta à proporção da sua vaidade. A razão do esforço, regula-se pela razão da vaidade; daqui vem, que em um conflito grande, os ânimos se elevam, e arrebatam; porque algumas vezes é questão do destino de um Império; em lugar que o ardor é lento, quando só se disputa um posto ventajoso. A presença de um Monarca não influi pouco na fortuna militar; então quer o Soldado distinguir-se com maior excesso, porque fica sendo memorável a acção a que assiste um Rei: aquela é a ocasião, em que cada um dos combatentes vaticina, que o seu nome há-de escrever-se nos anais da história; por isso corre a assinalar-se em um dia, que há-de servir de época aos séculos vindouros: nenhum entra na peleja indiferente, todos fazem a causa sua; uns combatem pela glória do sucesso, outros pela honra da assistência; e a todos parece que o Soberano os vê. O estrépito das armas antes que chegue ao coração, inflama a vaidade, e esta, que comummente move, então acende.

Não é isto assim na solidão de um ermo. O mesmo homem, que fez a admiração da guerra, posto em um bosque é outro. O sussurro de uma fonte, que se despenha, o sobressalta; o movimento de uma folha, que cai, o atemoriza; o ruído, que o vento faz, o altera; tudo lhe parece uma emboscada; na mesma sombra de um carvalho, se lhe figura um esquadrão armado: esta é a diferença, que vai de um homem com vaidade, ao mesmo homem quando está sem ela; na campanha domina o espírito de vaidade, no bosque não; por isso o valor sobra na campanha, e no bosque falta; e com efeito naquela parte adquire-se a fama, e nesta só se salva a vida; naquela consegue-se o aplauso, nesta só se busca a liberdade do caminho; naquela há muitos que vejam, que digam, e que escrevam, nesta não há mais do que troncos mudos; naquela fazem Corte os Soberanos, nesta só se alvergam foragidos; naquela todos se mostram, nesta todos se escondem; aquela é um teatro de acções ilustres, esta é um reduto de acções abomináveis; finalmente ali nasce a nobreza, aqui extingue-se; ali perde-se a vida com honra, aqui conserva-se a mesma vida com ignomínia. Que notáveis diferenças! Em um lugar tantos motivos de vaidade, e nenhuns em outro: por isso o valor é próprio na campanha, e no ermo é natural a cobardia. O valor falta-lhe a alma, se lhe falta a vaidade, o braço logo fica sem vigor, e sem alento o peito: no perigo em que não há vaidade, a natureza só se lembra do horror da sua ruína.

A fugida traz consigo o vitupério, por isso muitos não fogem, porque os vêem; e fugiriam, se os não vissem; muitos se retiram enquanto os não conhecem, mas não depois de conhecidos; como se a desonra não estivesse na retirada, mas na notícia dela: ninguém se quer expor, se a vaidade o não expõe; e ainda que a vaidade não tira o medo, contudo esconde-o; e assim vimos a ser destemidos, não só porque a vaidade nos obriga, mas também porque nos engana: no meio do precipício, não nos deixa ver toda a extensão dele, e por mais que seja certo o nosso estrago, sempre a vaidade para animar-nos, o mostra como duvidoso; e sempre nos inspira que aos ousados a fortuna favorece. A vaidade não nos deixa, senão depois que nos entrega à morte, e só a morte que nos acaba, é a que acaba também a nossa vaidade.

O facinoroso é tímido, porque o crime que envilece, acobarda. A vaidade, que também interiormente acusa, assim como aumenta as forças, donde vê alguma ocasião de brio, também as debilita, donde encontra uma aparência de desdouro: no crime o ânimo se abate, menos pelo medo do castigo, que pela qualidade dele; daqui vem que há mais resolução no delito, que não irroga infâmia; e de tal sorte que o delinquente às vezes declara por vaidade a culpa; a mesma vaidade lhe serve de tormento, e o obriga a confessar. As leis conheceram bem este princípio, por isso imaginaram penas vis: puseram distinção no modo de as executar; e sabiamente introduziram nobreza, até no modo de morrer.

Há crimes, cuja atrocidade exige uma pena ainda maior, isto é, uma pena permanente, sucessiva, indelébil; que compreenda culpados, e inocentes; que induza infecção fatal, não só no sangue dos que estão, mas também no sangue dos que hão-de vir; e que faça detestável, não só o autor do crime, e a sua descendência, mas ainda a mesma lembrança do seu nome. Quantos há que não temem o castigo, pelo que este tem de insuportável, mas pelo que tem de infame; e que o não receiam pela que toca a si, senão pelo que há-de tocar aos seus? A corrupção da natureza, chega neles a desprezar a sua própria conservação, mas não a sua reputação; desatendem ao seu opróbrio pessoal, mas não àquele que há-de ficar, e continuar nos que hão-de vir depois: este resto de vaidade é unicamente o que os reprime. A malícia lhes ensina, que o perder a vida não é grande pena; porque esta verdadeiramente não assenta em se perder a vida, mas em a perder anticipadamente; e com efeito não é grande o mal, que sempre é infalível por outra parte, e que por ora só consiste na circunstância do tempo; isto é, em ser com antecedência, e ser já, aquilo que certamente há-de vir a ser daqui a pouco: por isso o preso, que se mata, é como um preso que foge; um, e outro, iludiu o castigo, porque este devia consistir na duração, e não na extinção. Daquela sorte ficou impunido o crime? Não, porque suposto se ausentasse o delinquente, cá deixou o nome, e a memória; e nesta ainda tem lugar a pena; contra ela se fulmina a condenação de um labéu perpétuo: o que acabou com a fugida, ou com a morte, foi a pena temporal, e por consequência pena curta, porque acabava com a vida; mas fica subsistindo a pena da ignomínia, pena quási sem fim, porque a tradição, e a história a fazem renascer a cada instante. A vaidade faz-nos adorar o respeito, e a estimação dos homens; por isso o desprezo aflige, ainda só considerado em um cadáver, em uma posteridade, em um nome; a pena vil imposta em uma estátua faz pavor, não pelo que é, mas pelo que representa; o criminoso, que de longe a considera, se estremece; por via do pensamento se lhe comunica de alguma sorte a dor, e assim nem por fugir ao castigo, fica livre dele. A vaidade entende que tudo quanto é nosso, é susceptível de aflição, e de prazer, de respeito, e de vitupério; e assim nos persuade, que para as razões da mágoa, e do contentamento, a nossa semelhança tem ser, a nossa sombra vida, e a nossa estátua sentimento.

A falta de Religião, e de bons costumes, faz cair o homem no estado total de perversidade; a falta de Religião consiste em se não temer a Deus, a falta de costumes resulta de se não temer os homens; e verdadeiramente quem não temer a Lei de Deus, nem as leis dos homens, que princípio lhe fica por onde haja de obrar bem? A nossa natureza propende para o mal, por isso foi preciso prescrever-lhe um certo modo de viver; vivemos por regras. No exercício do mal achamos uma espécie de doçura, e de naturalidade, as virtudes praticam-se por ensino: o vício sabe-se, a virtude aprende-se. Miserável condição do homem! O que devia saber, ignora, e o que devia ignorar, sabe: para o que nos é útil, necessitamos de estudo, e para o que nos é pernicioso não; para o bem necessitamos de lembrança, e para o mal de esquecimento. É necessário que nos esqueçamos do mal, que já sabemos, e que nos lembremos do bem, que devemos saber; uma cousa custa-nos a lembrar, a outra custa-nos a esquecer. O vício sabemos sem arte, sem tempo, sem mestre, e sem trabalho; a virtude não vem comummente, senão como fruto da experiência, da meditação, dos preceitos, e dos anos: para o vício não necessitamos de conhecer, nem saber nada; para a virtude é-nos preciso conhecer, e saber tudo. Dificultosa empresa! Exercitamos o vício, ficando da mesma sorte que somos; em lugar que as virtudes, não as praticamos, sem que nos mudemos; toda a vida levamos nesta emenda: feliz o que a consegue! Um homem às avessas seria um homem perfeito. Para obrarmos bem, não temos mais do que consultar a natureza, e fazer o contrário; se este documento fosse universal, e não tivesse alguma, ou muitas limitações, estava achado o meio de abreviar uma das ciências que nos é mais importante; então cada um de nós tinha em si o caso, e a lei; só com a diferença, de que por obrigação da mesma lei, se havia de seguir a disposição, que lhe fosse mais contrária; a sua observância devia consistir na inobservância, e a obediência na desobediência; e com efeito há muitas cousas, que as não vê quem está no mesmo lugar, mas sim quem está em lugar oposto; outras conhecem-se melhor por aquilo que lhe é desconforme; e outras, para serem vistas como são, não se hão-de ver direitamente. Há muitas partes donde se não pode chegar, se logo no princípio se não toma uma derrota falsa; e ainda nas verdades há algumas, que se não podem alcançar, senão pelo caminho do erro; para acertar também é necessário ver primeiro o desacerto; a qualidade da luz distingue-se melhor pelos efeitos da sombra: quem olha para os montes do Ocidente, vê primeiro nascer o Sol, do que quem inclina a vista no Oriente. E assim vimos ao mundo para fugirmos de nós, isto é das nossas paixões, e entre elas das nossas vaidades; destas porém não devemos fugir sempre, porque a vaidade às vezes é um vício, que serve de moderar, ou impedir os outros; e com efeito quem não tem vaidade alguma despreza a reputação, e por consequência a honra; esta constitui uma religião humana, que se não pode desprezar sem crime; por isso o homem de iniquidade é a quem desemparou não só a virtude da razão, mas também o vício da vaidade. Daqui vem que é útil o ter alguma tintura de vaidade, a substância não; não há-de ser o corpo, mas a superfície.

Nos contratos tem pouca parte a boa fé; as obrigações não bastam, e as cláusulas, por mais que sejam fortes, todas se controvertem, e pervertem: as condições, por mais que sejam claras, escurecem-se; nunca faltam pretextos para duvidar, nem meios para se fazer questão daquilo, em que a não pode haver. Da falta da boa fé nasce a dúvida, da dúvida nasce o argumento, do argumento a desunião, e desta a dissolução do contrato, ou a acção para o desfazer. No princípio das nossas convenções ninguém adverte por onde possa nelas entrar a controvérsia, depois de celebradas em cada ponto se acham mil motivos de disputa; uma vírgula de menos, ou de mais, é bastante fundamento para uma larga discussão. Quando se não pode negar o ajuste nega-se-lhe o sentido; e este quando se não pode mudar, interpreta-se, e vem a ser o mesmo: o que não tem interesse em cumprir o ajuste é o que descobre nele as implicâncias, e defeitos, que os outros lhe não vêem: não há cousa mais subtil do que a malícia; a sinceridade é simples, grosseira e inocente: o engano todo se compõe de arte; por isso a perspicácia nos homens é qualidade suspeitosa, e que tem menos valor, que o que comummente se lhe dá; porque se não é sinal de um ânimo dobrado, e infiel, ao menos é prova de que o pode ser. Quem sabe o como o mal se faz, está mui perto de o fazer; e quem sabe o como o engano se pratica, também não está longe de enganar. A ciência do engano é já um princípio dele. Que lhe falta a ocasião, e a vontade? A ocasião pode oferecer-se, e a vontade poucas vezes resiste à ocasião. Por isso nos contratos é mais perigosa a fé nos que sabem mais; o arrependimento é certo, quando em um ajuste, ou não há conveniência, ou esta já passou: queremos afastar-nos do contrato; o ponto é saber o como; e assim para a infidelidade só nos falta o modo, a resolução não. O nosso cuidado todo está em descobrir o expediente, e isto em ordem a mostrar, que se mudamos, é por vício do contrato, e não por nosso vício. A repugnância voluntária, queremos fazer passar por necessária: o violar a boa fé nunca nos serve de embaraço, contanto que a violação se atribua a outrem; e o ser a culpa nossa não importa, contanto que pareça alheia; aquilo em que ontem não havia nada de impossível, porque era questão de receber, hoje é todo impraticável, porque é questão de dar; ontem parece que os montes se reduziam a planícies, hoje as planícies se reduzem a montes. Qualquer cousa é um obstáculo intratável: assim devia ser, porque o prometer é fácil, o cumprir dificultoso; para prometer basta a intenção. Quem promete, exercita um acto de liberdade, por isso pode haver gosto na promessa; quem cumpre, já é por força da obrigação, por isso em cumprir há uma espécie de violência: a ninguém se obriga a que prometa, a que cumpra sim; no prometer fazemos nós, no cumprir fazem-nos fazer; em uma cousa nós somos o que obramos, na outra não; para aquela vamos, para esta levam-nos; no tempo de prometer, o que vemos, são agrados, no tempo de cumprir, o que achamos, são durezas; uma cousa nos inclina, a outra ofende-nos; quando prometemos, ficamos bem connosco, porque nunca faltam agradecimentos, e lisonjas, e por consequência vaidades; quando havemos de cumprir, ficamos mal connosco, porque comummente nos arrependemos. Que cousa é o arrependimento, senão uma ira contra si próprio? Estes são os motivos de que nasce a deslealdade nos contratos; e que poucos se haviam de observar, se a vaidade que em tudo nos governa, não nos obrigasse a guardar a fé nas nossas convenções! Estas, quando se cumprem, não é por vontade, mas por vaidade; como o nosso empenho é conservar a estimação, e opinião dos homens, por isso tememos que alguém diga, que mudamos, que faltamos ao ajuste, e à palavra, ou que enganamos: todas estas expressões infamam, porque contêm um carácter de reprovação universal, trazem o desprezo em consequência, e se se justificam, fazem perder o nome, e o respeito, à maneira de uma proscrição, ou anátema civil; por isso a vaidade se estremece, e nos obriga a ser leais, por força da nossa mesma vaidade. É justiça rigorosa: de sorte que a vaidade sendo uma parte de nós mesmos, contra nós mesmos se revolta, e se dirige; e assim são poucas as cousas, que fazemos só pela obrigação, que temos de as fazer; é necessário que outro maior motivo nos incite; o que não fazemos pela verdade, fazemos pela vaidade, e desta sorte tudo quanto obramos, é por um princípio vicioso: o bem muitas vezes desce de uma origem má; a razão no homem é como um licor precioso em um vaso impuro; o licor sempre se contamina com a infecção do vaso; este em nós é a vaidade.

São raras as acções, que sejam ilustres por si mesmas; apenas haverá algumas, que não deixem conhecer que vêm do homem. As mais das cousas admiram-se, porque se não conhecem; e juntamente porque nelas há um rico véu, que as cobre: vemos um exterior brilhante, que muitas vezes serve de esconder um abismo horrendo; a mesma luz arma-se de raios, para que não possa examinar-se de donde lhe vêm os resplendores: a fermosura em tudo nos atrai; a nossa admiração não pode passar além; donde a encontra, aí fica suspensa, e cega. Isto sucede nas acções dos homens; as mais sublimes, parece que nos cegam, e suspendem; e talvez seriam detestáveis, se lhes não ignorássemos as causas. Tudo o que tem ar de grande prende a nossa imaginação de sorte, que não fica livre para discorrer na cousa, senão no estado de grandeza em que a vê, e não para indagar de donde veio, nem como veio. As águas que saltam de um rochedo, e que correm velozmente para o mar, antes que lá cheguem, vão passando por lugares diferentes; em uns alargam-se, em outros cabem mal; em uns acham fundo, e caminham docemente, em outros só vão lavando a branca areia; em uns murmuram, em outros precipitam-se; em uns não encontram embaraço, correm facilmente, e com sossego, em outros detêm-se, porque passam por penedos desiguais; em uns parece que fogem, em outros também parece que descansam; em uns vão sem rodeio, em outros retrocedem, e se quebram em mil giros; aqui vão regando a flor do campo, ali vão banhando o junco humilde; aqui correm transparentes, e ali vão turvas, e limosas. Estas são todas as mudanças por onde passam as águas de uma fonte, desde que deixam o rochedo donde nascem, até que entram no mar adonde morrem: confundidas hoje as suas águas, já não são águas de uma fonte; já não são aquelas, que vieram de um rochedo sombrio, e cavernoso; mudado o nome, e o teatro, agora estão formando a imensidade do Oceano, já não servem de animar o prado, nem de triste companhia a um amante solitário; já não servem de espelho às verdes ramas, nem o seu sussurro serve já de líquido instrumento ao canto singular das aves; finalmente já não são cristais as suas águas, são ondas. Desta mesma sorte são os homens: assim saem, assim buscam, e assim chegam ao estado da grandeza; a vaidade, que os leva, e acompanha, logo lhes tira da memória o lugar de que vieram, e os que andaram, e só lhes mostra aquele adonde estão: há muitas cousas que não queremos, ou não podemos ver nem na sua origem, nem no seu progresso; a excelência do fim nos ocupa inteiramente, e impede, que vejamos a fatalidade, ou indignidade dos seus meios; até o nosso pensamento parece que se deixa penetrar de atenção, e de respeito; a fortuna não escolhe os homens, favorece ao primeiro que encontra, porque todos para a fortuna são iguais, e valem o mesmo; por isso o império do destino é absoluto, sem regras, nem preceitos; a vaidade nos insinua, que todos os meios, e caminhos são bons, quando se alcança: a glória do sucesso regula-se pela qualidade da vitória, e não pela qualidade do vencedor; importa menos saber, quem é o que venceu, ou como venceu, do que saber somente quem venceu: os homens só na razão de homens têm igual direito uns para subirem, e outros para descerem; o merecimento só se pesa naqueles que caem, e não nos que sobem. Os caminhos examinam-se aqueles por onde se não chegou, e os meios são desaprovados, quando por eles se não conseguiu; a fortuna costuma haver os merecimentos por justificados; a desgraça não é assim, porque os deixa duvidosos, e sujeitos ao exame: as acções, que conduziram a algum fim grande, ainda que injusto, são menos aborrecidas; e isto à imitação da luz, que introduz a claridade na mesma escuridão das trevas. Na parte em que domina algum usurpador, para ele é que se olha, e não para a usurpação; vê-se a altura do trono, e não se vêem os degraus por onde se subiu a ele; os meios por mais que sejam horrorosos, não se consideram porque são como degraus, que se pisam; o ponto é que o fim seja feliz. Se a vaidade fosse uma virtude, só nos havia de inspirar meios virtuosos; mas como é vício, tudo nos ensina; por isso o ser cruel, traidor, tirano, não faz horror a quem necessita da traição, da tirania, e da crueldade. O estado da grandeza poucas vezes se adquire justamente, a fortuna parece que se irrita de que a não busquem por todos, e quaisquer modos: não há cousa que nos faça buscar a fortuna tanto como a vaidade.

A ambição dos homens por uma parte, e pela outra a vaidade, têm feito da terra um espectáculo de sangue: a mesma terra, que foi feita para todos, quiseram alguns fazê-la unicamente sua: digam os Alexandres, os Césares, e outros mais conquistadores, heróis não por princípio de virtude, ou de justiça, mas por um excesso de fortuna, de ambição, e de vaidade. Esses mesmos, que tomados por si sós cabiam em um breve espaço, medidos pelas suas vaidades, apenas cabiam em todo o mundo: que mais podia excogitar a vaidade, do que fazer que alguns se lamentassem de ser o mundo estreito, e limitado! Já lhes parecia que o tinham todo debaixo do seu poder; que tudo estava já sujeito, e que ainda assim era curto império todo o circuito da terra, e toda a vastidão do mar. Aquela vaidosa infelicidade de que se lamentavam, consistia em não haver mais mundos que pudessem invadir, devastar, vencer; era desgraça neles o não poderem fazer mais desgraçados. Uma conquista injusta sempre começa pela opressão dos homens conquistados, e pelo destroço de uma terra alheia, por isso as façanhas que só têm por princípio a vaidade do valor, reputam-se grandes à proporção da impiedade, com que o mesmo valor as executa; fazem-se famosas pela mesma impiedade; daqui vem que nos anais da História, a parte que se admira mais, e que mais se imprime na lembrança, é aquela em que a narração se compõe de sucessos mais cruéis; e em que os campos, que foram de batalha, cobertos ainda hoje de esqueletos informes, e partidos, conservam certo horror; esses campos fatais, em que se observam espectros, debaixo da visão de umas luzes voláteis, em que se ouvem ainda hoje, entre o rouco som de caixas, e trombetas, vozes mal articuladas, alaridos confusos, e lamentos tristes; esses campos, que depois de muitos séculos, ainda trazem à memória representações funestas, e em que as plantas, parece nascem com medo, e que o humor, que recebem da terra, é sensitivo; esses campos finalmente foram os mesmos, em que a vaidade vencedora, arrancou os louros para coroar as suas empresas. Que monstro inspiraria a regra de medir-se a glória dos combates, menos pela consequência deles, que pelo estrago; menos pela utilidade, que pela ruína; menos pela fortuna de uns, que pela desgraça de outros? Quanto maiores são os ais, os gemidos, e os clamores, tanto maior é a acção, e a vaidade de quem os move. Que imaginação bárbara, e fèroz, seria a que ideou no vencimento o ser superior aquele, de que resulta uma desolação universal? O ser causa de que o mundo tome outra figura, outra ordem, outro movimento; o ver perturbadas as gentes, cheias de aflição, e espanto; o achar todos os caminhos humedecidos com lágrimas, rubricados com sangue, e impedidos com os despedaçados corpos de mil agonizantes; o ouvir no ar em ecos entercadentes uma multidão de soluços, e suspiros; o abater impérios, e fazer deles desertos solitários; tudo forma um objecto agradável, pomposo, e ilustre, em que a vaidade se inflama, se estende, e ensoberbece. A vaidade de um entusiasmo heróico consiste em querer reunir em um só braço toda a força, que a Providência repartiu por muitos, e em querer reduzir a um só homem toda a natureza humana.

Nascem os homens iguais; um mesmo, e igual princípio os anima, os conserva, e também os debilita, e acaba. Somos organizados pela mesma forma, e por isso estamos sujeitos às mesmas paixões, e às mesmas vaidades. Para todos nasce o Sol; a Aurora a todos desperta para o trabalho; o silêncio da noite, anuncia a todos o descanso. O tempo que insensivelmente corre, e se distribui em anos, meses e horas, para todos se compõe do mesmo número de instantes. Essa transparente região a todos abraça; todos acham nos elementos um património comum, livre, e indefectível; todos respiram o ar; a todos sustenta a terra; as qualidades da água, e do fogo, a todos se comunicam. O mundo não foi feito mais em benefício de uns, que de outros: para todos é o mesmo; e para o uso dele todos têm igual direito, ou seja pela ordem da sua natureza, ou seja pela ordem da sua mesma instituição; todos achamos no mundo as mesmas partes essenciais. Que cousa é a vida para todos mais do que um enleio de vaidades, e um giro sucessivo entre o gosto, a dor, a alegria, a tristeza, a aversão, e o amor? Ainda ninguém nasceu com a propriedade de insensível; a vida não pode subsistir, sem estar subordinada às impressões do gosto, e do sentimento. Todos nascemos para chorar, e para rir; a circunstância de chorar mais, ou menos, resulta de cada um de nós. A violência, e a vaidade das nossas paixões nos faz apetecer, e quem apetece, já se expõe aos delírios do riso, e às amarguras das lágrimas; esse mesmo apetecer ainda só por si, é uma espécie de sentimento, e de prazer; a imaginação nos anticipa tudo, por isso o nosso contentamento, ou a nossa pena, chegam primeiro do que o seu objecto; e esse quando vem, já nós estamos, ou abatidos de tristeza, ou cheios de alegria: somos tão sensíveis, que os sucessos para nos moverem, não é necessário que estejam em nós, basta que os vejamos de longe; a nossa sensibilidade tem maior força na nossa mesma apreensão; daqui vem que no mal, que se espera, ou se receia, não pode haver alívio, porque o pensamento lhe dá uma extensão maior; em lugar, que o mal que já se sente, pode consolar-se, porque então se vê que tem limite. As cousas parece que se espiritualizam para se entregarem a nós assim que as imaginamos; ou ao menos para que a eficácia delas se incorpore em nós, muito antes que elas cheguem; e deste modo as cousas antes que as tenhamos, já são nossas; e quando a causa se apresenta, já temos sentido os seus efeitos; por isso desconhecemos tudo o que vimos a alcançar, e nos parece que há falta naquilo que vimos a conseguir: as cousas, quando chegam, já nos acham saciados; porque o desejo é uma espécie de gozar mais activa, e mais durável, mais forte, e mais contínua; daqui procede o ser tão deleitável a esperança, porque é uma espécie de possessão daquilo que se espera. Quem imagina o que deseja, tudo pinta com cores lisonjeiras, e mais vivas; por isso a verdade é grosseira, e mal polida; tudo o que descobre, é sem adorno; antes faz desvanecer aquela aparência feliz, com que os objectos primeiro se deixam ver na ideia, do que se mostrem na realidade. Todas estas propensões, e inclinações se encontram em cada um de nós; e assim devia ser, porque as variações do tempo, da idade, da fortuna, e dos sucessos, a todos compreende[m], e a todos iguala[m] ; só a vaidade a todos distingue, e em todos põe um sinal de diferença, e um carácter de desigualdade, e por mais que a terra fosse feita para todos, nem por isso a vaidade crê, que um homem seja o mesmo que outro homem. É subtil a vaidade em discorrer; por isso nos inspira, que há desigualdade no que é igual; que há diferença no que é o mesmo; e que há diversidade donde a não pode haver; mas que importa que a vaidade assim discorra, se sempre é certo, que os homens todos são uns, e que os não há de diferente fábrica; e que tudo quanto a vaidade ajunta ao homem, é emprestado, fingido, suposto, e exterior. Tirada a insígnia, o que fica, é um homem simples; despida a toga Consular, também fica o mesmo. Se tirarmos do Capitão a lança, o casco de ferro, e o peito de aço, não havemos de achar mais do que um homem inútil, e sem defesa, e por isso tímido, e cobarde. Os homens mudam-se todas as vezes que se vestem; como se o hábito infundisse uma nova natureza: verdadeiramente não é o homem o que muda, muda-se o efeito que faz em nós a indicação do hábito. Debaixo de um apresto militar, concebemos um guerreiro valeroso; debaixo de uma vestidura negra, e talar, o que se nos figura, é um Jurisconsulto rígido, e inflexível; debaixo de um semblante descarnado, e macilento, o que descobrimos, é um austero Anacoreta. O homem não vem ao mundo mostrar o que é, mas o que parece; não vem feito, vem fazer-se; finalmente não vem ser homem, vem ser um homem graduado, ilustrado, inspirado; de sorte que os atributos, com que a vaidade veste ao homem, são substituídos no lugar do mesmo homem; e este fica sendo como um acidente superficial, e estranho: a máscara, que encobre, fica identificada, e consubstancial à cousa encoberta; o véu que esconde, fica unido intimamente à cousa escondida; e assim não olhamos para o homem: olhamos para aquilo que o cobre, e que o cinge; a guarnição é a que faz o homem, e a este homem de fora é a quem se dirigem os respeitos, e atenções; ao de dentro não; este despreza-se como uma cousa com~ua , vulgar, e uniforme em todos. A vaidade, e a fortuna são as que governam a farsa desta vida; cada um se põe no teatro com a pompa, com que a fortuna, e a vaidade o põem; ninguém escolhe o papel; cada um recebe o que lhe dão. Aquele que sai sem fausto, nem cortejo, e que logo no rosto indica, que é sujeito à dor, à aflição, e à miséria, esse é o que representa o papel de homem. A morte que está de sentinela, em uma mão tem o relógio do tempo, na outra tem a fouce fatal, e com esta de um golpe certo, e inevitável, dá fim à tragédia, corre a cortina, e desaparece: a fortuna, e a vaidade, que vêem desbaratada a cena, caídas por terra as aparências, prostrados os actores, emudecido o coro, trocados os clarins em flautas tristes, os hinos em trenos, os cânticos em elegias, e em epitáfios os emblemas; as rosas encarnadas convertidas em lírios roxos, os girassóis em desmaiadas assucenas, entrelaçados os louros no cipreste, os cajados confundidos com os ceptros, e com o burel a púrpura; a vaidade pois, e a fortuna, que em menos de um instante viram desvanecidos os triunfos da vida pelos triunfos da morte, precipitadamente fogem, e deixam um lugar cheio de horror, e sombras, e donde só reina o luto, a verdade, e o desengano. Assim acaba o homem, assim acabam as suas glórias, e só assim acaba a sua vaidade.

A fraqueza dos nossos sentidos nos impede o gozar das cousas na sua simplicidade natural. Os elementos não são em si como nós os vemos: o ar, a água, e a terra a cada instante mudam, o fogo toma a qualidade da matéria que o produz, e tudo enfim se altera, e se empiora para ser proporcionado a nós. A virtude muitas vezes se acha com mistura de algum vício; no vício também se podem encontrar alguns raios de virtude; incapazes de um ser constante, e sólido, apenas se pode dar em nós virtude sem mancha, ou perfeito vício: a justiça também se compõe de iniquidade, semelhante à harmonia, que não pode subsistir sem dissonância, antes com correspondência certa, a dissonância é uma parte da harmonia. Vemos as cousas pelo modo com que as podemos ver, isto é, confusamente, e por isso quási sempre as vemos como elas não são. As paixões formam dentro de nós um intrincado labirinto, e neste se perde o verdadeiro ser das cousas, porque cada uma delas se apropria à natureza das paixões por onde passa. Tomamos por substância, e entidade, o que não é mais do que um costume de ver, de ouvir, e de entender; a vaidade, que de todas as paixões é a mais forte, a todas arrasta, e dá ao nosso conceito a forma, que lhe parece; o entendimento é como uma estampa, que se deixa figurar, e que facilmente recebe a figura, que se lhe imprime. A vaidade propõe, e decide logo, de sorte que quando as cousas chegam ao entendimento já este está vencido; o que faz é aprovar a preocupação anterior, que a vaidade lhe introduz, e assim quando a vaidade busca o entendimento é só por formalidade, e só para a defender, e autorizar, e não para aconselhar. O discorrer com liberdade, supõe uma exclusão de todas as paixões; que os homens se possam isentar de algumas, pode ser, mas que de todas fique isento ao mesmo tempo, é mui difícil. Tudo quanto vemos, é como por uma interposta nuvem; o que imaginamos, também é como por entre o embaraço de mil princípios diferentes, incertos, e duvidosos; e quando nos parece que a nossa vista rompeu a nuvem, e que o nosso discurso desfez o embaraço, então é que estamos cegos, e então é que erramos mais. A vaidade nos tem em um contínuo movimento, e como é paixão dominante em nós, a todas as mais sujeita, e prevalece a todas: semelhante ao impulso das ondas, a que não resiste o frágil de uma nau, quando o mar embravecido a faz correr com a tormenta; o navegante parece que busca o perigo, porque não se opõe à corrente das águas, antes as segue, e só assim escapa ao naufrágio. Quantas vezes o buscar o precipício é o único meio de o evitar! A vaidade é a tormenta, ou o mar tempestuoso, que nos move; o deixar de a seguir, nem sempre pode ser, nem é acertado sempre; porque a vaidade é um mal comum, e entre os homens é culpa o não participar de um contágio universal; é crime o conservar-se puro no meio da impureza; essas mesmas águas nos ensinam: todas se movem; o furor, com que se quebram, as conserva; o seu repouso seria o mesmo que a sua corrupção.

Em nada podemos estar firmes, pois vivemos no meio de mil revoluções diversas: as idades, e a fortuna continuamente combatem a nossa constância; tudo consiste em representação que começa, não para existir, mas para acabar; menos para ser, que para ter sido. Vimos ao mundo a mostrar-nos, e a fazer parte da diversidade dele; as cousas parece que nos vão fugindo, até que nós vimos a desaparecer também. Somos formados de inclinações opostas entre si, e temos em nós uma propensão oculta, que sobre a aparência de buscar os objectos, só procura neles a mudança. A inconstância nos serve de alívio, e desoprime, porque a firmeza é como um peso, que não podemos suportar sempre, por mais que seja leve; e com efeito como podem as nossas ideias serem fixas, e sempre as mesmas se nós sempre vamos sendo outros? Tudo nos é dado por um certo tempo; em breves dias, e em breves horas se desvanece a razão da novidade, que nos fazia apetecer; fica invisível aquele agrado, que nos tinha induzido para desejar. Quantas vezes esperamos as sombras da noite com mais fervor do que as luzes do dia; não por vício do desejo, mas porque não temos forças para suportar o bem, nem para conservar o mal? Tudo nos cansa: não só nos é preciso constância para sofrer; também necessitamos paciência para gozar; a mesma delícia nos importuna. Perdemos as cousas, primeiro pela nossa indiferença, que pelo fim delas; primeiro porque se acaba em nós o gosto, do que nelas a duração; unicamente sensíveis quando começamos a ter, ou a alcançar; então gozamos, depois só possuímos. Os objectos depois de vistos muitas vezes, ficam como diferentes da primeira vez que os vimos; perdem todo o nosso reparo, e atenção: os olhos facilmente se esquecem do que sempre vêem; não porque o costume nos tire a admiração, mas porque a fraqueza dos nossos sentidos a não pode conservar. Oh quão diversos são em si os princípios de que se compõe o homem; primeiramente terra, e ultimamente racional! Começa a melhorar-se desde a sua primeira origem, até que vem a tornar àquilo de que procedeu. Infeliz metamorfósis! Tudo o que nasce é para não ser firme, nem constante: a terra apenas alenta as suas produções, quando logo as deixa, e desanima; o mesmo firmamento, com giro rápido, esconde pela tarde os Astros que amanheceram com a Aurora. Só a vaidade é constante em nós; em tudo o mais a firmeza nos molesta: com o tempo, e a razão vimos a perder uma grande parte da sensibilidade no exercício das paixões; porém o exercício da vaidade não se perde com a razão, nem com o tempo. O nosso gosto debilita-se, altera-se, muda-se, e também se acaba; a vaidade sempre persiste, e dura; isto deve ser, porque os nossos sentidos usam-se; a vaidade não: naqueles o costume os enfraquece, nesta o costume a aumenta, e aviva. A jurisdição dos sentidos é muito limitada, porque os olhos só vêem, os ouvidos só ouvem, e o tacto só sente; e para haver ainda menos firmeza nos sentidos, estes quási sempre estão enfermos; e não pode haver constância, donde pode haver enfermidade; de sorte que a inconstância não é mais do que enfermidade dos sentidos. As nossas acções dependem mais da constituição do nosso corpo, que da estabilidade da nossa vontade; o estado do nosso ânimo depende da nossa disposição; por isso a inconstância é natural, porque logo que nascemos, entramos em um estado contínuo de mudar. O tempo não conta a nossa idade pelos anos, mas sim pelos instantes, e cada instante de mais também é de mais em nós uma mudança. Caminhamos com pressa, e com gosto para o fim; semelhantes aos rios, que apressadamente correm para o mar, donde perdem a doçura, e acabam. Não há imagem mais própria da vaidade humana, do que esses mesmos rios; nem todos têm o nascimento em um profundo lago; nem todos trazem do monte Olimpo a origem; nem todos correm por entre flores, por entre plátanos, e cedros; nem todos trazem ouro nas areias, porque nem todos vêm de donde vem o Tejo; uns assim que nascem, logo formam um dilúvio de água, inundam a campanha, e com violência, e peso, tudo abatem, forçam, levam; o leito que os sustenta, em partes se abre, se rompe, e se desfaz. Outros rios mais pequenos no princípio, depois se fazem caudalosos, no caminho engrossam com emprestadas águas, que recebem: uns correm por cima de esmeraldas, outros não têm no fundo mais do que humildes conchas, pardos seixos, verdes limos; uns nascem entre cristais claros, outros entre rocha escura; uns passam escumando, e com estrondo, outros só murmuram; uns acham campo largo, em que as águas se dilatam, e em que o Sol se vê, outros correm presos, e oprimidos por entre serras agrestes, e sombrias; uns têm alto o nascimento, porque este é no cume de altos montes, por isso ainda quando descem passam com estrépito, e furor; outros têm o mesmo nascimento baixo, porque este é na parte mais remota de um vale inferior, por isso correm mansamente, e sem ruído, só se deixam ver, e não se ouvem; finalmente uns são frios com excesso, outros têm calor; uns servem de remédio, outros de mal; de uns sabe-se o princípio, de outros não; uns têm nome famoso nos anais da história, outros apenas se conhecem. Todas estas diferenças, encontram-se nos rios; uns pequenos, outros grandes; uns elevados, outros abatidos. Parece que também nas águas há fortuna, e vaidade. Mas que importa? A diferença dos lugares, não faz que as águas sejam diferentes: que umas nasçam nos montes, e outras nos vales; que umas venham das nuvens, e outras da terra; que umas corram claras, e outras turvas; nada disso faz nas águas diversidade alguma; todas são as mesmas na razão de águas; o que sucede é passarem por lugares diferentes; a natureza, o princípio, e o fim é o mesmo; todas vêm do mar, e tornam para o mar; o serem as águas muitas, de sorte que cheguem a formar um rio, ou serem poucas, de sorte que só formem uma fonte, não introduz nelas diferença. Quem há-de dizer, que muitos homens juntos na razão de homens, sejam diferentes daqueles que estão sós? O mar é o centro de donde as águas saem, e para donde tornam; os meatos da terra em umas partes são estreitos, e em outras largos; daqui vem que quando as águas chegam à superfície do globo, sucede saírem com mais, ou menos abundância, e assim não diferem os rios das fontes, senão no diâmetro do canal, e em esse se terminar em algum monte, ou algum vale; e nesta forma, de que se desvanecem esses rios? Será de passarem por caminhos mais, ou menos largos? De se juntarem uns com outros, e fazerem mais volume? De encontrarem diamantes? Ou de acharem um campo mais, ou menos dilatado? Nada disso é seu. Que lustre pode resultar do encontro de uma cousa alheia, distinta, separada, e estranha? As águas passam como são, e por passarem por rubins, não se convertem neles; nem se dignificam pela qualidade do caminho; o correrem mais juntas, não lhes muda a natureza; a substância de uma pinga de água, é a mesma que a de um rio inteiro; o tamanho é circunstância exterior, e independente. Na criação do mundo não houve nas águas diferença, só houve divisão; a diversidade só foi no nome, e no lugar, mas não na matéria original: o Espírito vivificante, e eterno, em todas infundiu um movimento próprio, circular, fecundo, e sujeito às leis do peso, e do equilíbrio. Há pois nas águas o mesmo nascimento em todas, a mesma propriedade, e o mesmo fim. Assim são os homens; no seu género, têm com as águas um paralelo, ou figura igual. Nem todos nascem na abundância; nem a todos a fortuna lisonjeia; uns parece que nascem para o descanso, outros para o trabalho; uns para a grandeza, outros para a humildade; uns para a opulência, outros para a miséria; uns para o respeito, outros para o desprezo; uns para a memória, outros para o esquecimento; uns para a bonança, outros para a tormenta; uns para venturas, outros para desgraças; uns para as atenções, outros para os descuidos; a uns vemos subir, a outros descer. Mas que importa que no exterior do homem haja tanta diferença, se no seu interior não há nenhuma? Que importa que sejam diversos os lugares, se nos sujeitos não há diversidade? Quem há-de haver que diga, que o homem que está posto no elevado de uma torre, seja mais homem, que aquele que está posto em campo raso? O homem muda de lugar, mas não muda o ser de homem; em toda a parte é o mesmo, e em nenhuma é mais, nem menos; pode parecer maior, mas ser, não. O Sol no meio-dia brilha mais, não porque deixe de ser o mesmo, nem porque então tenha mais luz, mas porque esta faz mais efeito em um lugar, que em outro: no Ocaso, e no Oriente é o mesmo Sol, e a mesma luz, mas não parece o mesmo. Assim são os homens; em qualquer parte que os ponham, todos são iguais, e uniformes; a diferença, que há entre eles, não tem outro fundamento, que o que vem da preocupação, e do conceito; são duas cousas, e ambas vãs, porque nenhuma tem realidade. A fortuna pode armar o homem com jeroglíficos, e adornos figurados, mas não o pode armar senão por fora; quem levantar as roupas, há-de ver o engano, e a suposição, e não há-de achar mais do que um homem como os outros, cujo ornato é de pura fantasia, arbitrária, artificial, e separável; a fortuna pode vestir, não pode formar; sabe fingir, mas não sabe fazer. O mesmo obséquio todo se compõe de um ceremonial imaginário, mudável, de instituição nacional, e variante. O incenso que algumas vezes é símbolo da vaidade, e da lisonja, primeiro que exale o seu perfume, arde, e no ar se extingue, e se consome. Tudo o que nos recreia, e nos atrai, é exalação, e fumo; por isso o emprego da vaidade todo consiste em dar substância às vozes, entidade ao modo, e corpo ao vento.

A vaidade satisfeita, ou ofendida, é a que nos faz buscar a solidão, e o retiro; como temerosos de perder a tristeza, em que achamos um agrado de género diverso. Há muitos males, em que a vaidade parece se deleita; e ainda sem vaidade a alegria muitas vezes nos soçobra; não só o excesso, mas ainda a mediocridade dela; porque nunca a gozamos sem alguma perturbação: um receio insensível de a perdermos, basta para oprimir-nos, e por mais que o contentamento nos extasie, nunca nos deixa em estado de não sentir. A vaidade satisfeita não nos entrega à alegria, sem primeiro a temperar, com a mesma equidade com que nunca nos entrega todos à tristeza. A união do gosto com o pesar não é incompatível, por mais infinita que nos pareça a distância de um a outro extremo. Também a vaidade, e a humildade muitas vezes se encontram, se unem, e se conservam.

A mais pura alegria é aquela que gozamos no tempo da inocência; estado venturoso, em que nada distinguimos por discurso, mas por instinto; e em que nada considera a razão, mas sim a natureza. Então circula veloz o nosso sangue, e os humores que em um mundo novo, e resumido, apenas têm tomado os seus primeiros movimentos. Os humores são os que produzem as nossas alegrias; e com efeito não há alegria sem grande movimento; por isso vemos, que a tristeza nos abate, e a alegria nos move: o sossego ainda que indica contentamento, contudo mais é representação da morte que da vida; e a tranquilidade pode dar descanso, porém alegria não a dá sempre. Mas como pode deixar de ser pura a alegria dos primeiros anos, se ainda então a vaidade não domina em nós? Então só sentimos o bem, e o mal, que resulta da dor, ou do prazer; depois também sentimos o mal, e o bem da opinião, isto é, da vaidade; por isso muitas cousas nos alegram, que tomadas em si mesmas, não têm mais bem, que aquele com que a vaidade as considera; e outras também nos entristecem, que tomadas só por si, não têm outro mal, que aquele que a mesma vaidade lhes supõe. A vaidade naturaliza em nós as opiniões do mundo; e de tal sorte, que o conceito, que formamos das cousas, por mais que nos seja indiferente, ou incerto, sempre faz em nós uma verdadeira impressão de alegria, ou de tristeza. Tudo o que sabemos, é como por tradição; porque sucessivamente imos deixando uns aos outros as inteligências, em que se fundam as nossas vaidades, e as imos passando como de mão em mão; as que recebemos dos que já vieram, essas mesmas havemos de deixar aos que hão-de vir; é uma herança, que se distribui igualmente a todos, e que todos largam, e entregam na mesma forma que recebem; por isso as ideias novas reputam-se como partos ilegítimos, e supostos, porque lhes falta a autoridade do tempo, que as devia autenticar. Tudo envelhece no mundo, e a velhice em tudo imprime um carácter venerável; a antiguidade enobrece as vaidades, e opiniões, e destas as modernas são menos singulares, porque têm a desgraça de começar: daqui vem que não temos alegria, senão enquanto não temos vaidade, e não temos vaidade, senão enquanto não temos ciência dela. A entrada da vida é inocente, por isso então é pura a alegria; a continuação da mesma vida é vaidosa, por isso a alegria então é imperfeita. Nos primeiros anos vemos as cousas como elas são, depois vemo-las, como os homens querem, que elas sejam; em um tempo a alegria só depende de nós: depois também depende dos outros; naquela a alegria vem de uma natureza ainda ignorante, e sem vaidade; depois procede de uma natureza já instruída, e por consequência vaidosa. Que cousa é a ciência humana, senão uma humana vaidade? Quem nos dera, que assim como há arte para saber, a houvesse também para ignorar; e que assim como há estudo, que nos ensina a lembrar, o houvesse também, que nos ensinasse a esquecer.

Somos compostos de uma infinidade de paixões diversas, e entre elas a alegria, e a tristeza são as que se manifestam mais, e as que são mais difíceis de ocultar: o semblante reveste-se do estado do nosso ânimo, e a alma, que em qualquer parte do corpo nos anima, ou se mostra prostrada e sem acção, ou cheia de uma justa desordem, e de alento; se se vê aflita, nos desempara, e se retira ao fundo mais interior de nós mesmos; contente, procura aparecer, e se faz visível debaixo da forma do nosso riso. Isto mesmo sucede à vaidade; não se pode esconder, por mais que tome a figura de humildade, de submissão, e de reverência; a mesma vaidade quando está contente, logo se descobre, e se deixa ver debaixo de um ar altivo, e arrogante; se está menos satisfeita, então é que toma um ar de devoção, e desengano; contudo a hipocrisia da vaidade pode durar muito; porque como os homens de tudo se intumecem, em tudo acha a vaidade um exercício essencial; por isso não só há vaidade na alegria, mas também na tristeza: o homem não só se desvanece da fortuna, mas também da desgraça; de sorte que a vaidade é o mesmo que uma consolação universal.

A fortuna nos dispõe para a alegria, mas não é só o que causa; a desgraça conduz para a tristeza, porém não é só, o que a motiva; antes parece que há uma certa porção de alegria, e de tristeza, que há-de passar por nós precisamente; a fortuna, e a desgraça não a produz, só a desperta. Tudo nos é dado como por conta: a vida, a fortuna, a desgraça, a alegria, e a tristeza; em tudo há um ponto certo, e fixo; a vaidade que governa todas as paixões, em umas aumenta a actividade, em outras diminui; e todas recebem o valor, que a vaidade lhes dá. Estamos no mundo para ser alvos do tempo; e deste todas as mudanças não se dirigem a nós, dirigem-se à nossa vaidade: os sucessos fazem efeito em nós, porque primeiro o fazem na nossa vaidade; de sorte que um homem sem vaidade seria o mesmo que um homem insensível; o prazer, e o desgosto, que não vêm das primeiras leis da natureza, são vãos em si mesmos, de instituição política, e unicamente criaturas da vaidade.

As virtudes humanas muitas vezes se compõem de melancolia, e de um retiro agreste. As mais das vezes é humor o que julgamos razão; é temperamento o que chamamos desengano; e é enfermidade o que nos parece virtude. Tudo são efeitos da tristeza; esta nos obriga a seguir os partidos mais violentos, e mais duros; raras vezes nos faz reflectir sobre o passado, quási sempre nos ocupa em considerar futuros; por isso nos infunde temor, e cobardia, na incerteza de acontecimentos felices, ou infaustos; e verdadeiramente a alegria nos governa em forma, que seguimos como por força os movimentos dela; e do mesmo modo os da tristeza. Um ânimo alegre disfarça mal o riso, um coração triste encobre mal o seu desgosto: como há-de chorar quem está contente? E como há-de rir quem está triste? Se alguma vez se chora donde só se deve rir, ou se ri por aquilo por que se deve chorar, a alma então penetrada de dor, ou de prazer, desmente aquele exterior fingido, e falso. Só a vaidade sabe transformar o gosto em dor, e esta em prazer, a alegria em tristeza, e esta em contentamento; por isso as feridas não se sentem, antes lisonjeiam, quando foram alcançadas no ardor de uma peleja, esclarecida pelas circunstâncias da vitória; as cicatrizes por mais que causem deformidade enorme, não entristecem, antes alegram, porque servem de prova, e instrumento visível, por onde a cada instante, e sem palavras, o valor se justifica; são como uma prova muda, que todos entendem, e que todos vêem com admiração, e com respeito; a tristeza, que devia resultar da fealdade, confunde-se, perde-se, e se muda em alegria, por meio das aclamações do aplauso; a dor do golpe também se converte em gosto, por meio do remédio, e simpatia do louvor; este atrai a si toda a nossa sensibilidade, e deixa a natureza como insensível, absorta, e indolente; assim se vê que a vaidade nos livra de uma dor como por encanto; por isso nos é útil, pois serve de acalmar os nossos males; e se os agrava alguma vez, é como a mão do artista, que faz doer para curar; e com efeito a vaidade não persiste muito em fazer sensível a razão que nos molesta; na mesma injúria do desprezo sabe descobrir algum motivo, que ou diminui a pena, ou totalmente a tira; lá vai buscar a Religião para fazer da paciência o maior merecimento; outras vezes faz que achemos nos exemplos um alívio constante; e que o mesmo vitupério, visto em sujeitos grandes, não só desfaça o nosso pela imitação, mas que também o autorize, e ilustre pela razão da semelhança. A vaidade não consente, que a nossa presunção fique abatida, antes para a conservar, lembra mil interpretações, e aplicações forçadas; daqui vem o excogitar a vaidade a regra, de que um dos privilégios da grandeza, é ser superior às máximas do vulgo, e que nela o descrédito não desacredita, a desonra não desonra, e a infâmia não infama. A vaidade da grandeza parece que é mais subtil, e mais vã do que as outras vaidades, pois introduz o poder, e a autoridade, até no modo de pensar. Mas que importa, que a vaidade estabeleça regras, se estas sempre ficam dependentes da aprovação dos homens; e se estes não sabem sujeitar os seus conceitos, senão àquilo que é comum, que toca a todos, e que a todos compreende? Por isso assim como em todos pode ter lugar a causa da ignomínia, também em todos pode ter lugar o efeito dela. A vaidade pode enganar a cada um, pelo que respeita a si, mas não pode enganar a todos, pelo que respeita a cada um. Contra a imaginação não há poder, contra as acções, sim; o pensamento enquanto não sai da sua esfera, tem uma liberdade inteira, impenetrável, e muitas vezes invencível. Creia pois a grandeza o que quiser de si, porque também nós havemos de crer dela o que quisermos. A sua vaidade poderá prometer-lhe, ou fingir-lhe várias isenções, porém fundá-las, não; poderá querer introduzir, mas fazer reconhecer, de nenhuma sorte. O labéu para todos é o mesmo, e se há nele diferença, é que nas pessoas eminentes fica sendo mais reparável, e maior. Em uma pedra vil não há imperfeição a que se atenda muito; em uma pedra preciosa qualquer defeito lhe faz perder a estimação; as manchas de um Planeta são imperceptíveis; no Sol qualquer vapor o ofusca; o menor eclipse é de todos conhecido; todos o calculam, todos o vêem, e o medem! Nas sombras não há que distinguir, na luz qualquer alteração é reparável.

A nossa tristeza nos faz parecer tudo o que vemos triste; a nossa alegria tudo nos mostra alegre; e o nosso contentamento tudo nos mostra com agrado: os objectos influem menos em nós, do que nós influímos em nós mesmos. Vemos como de fora as aparências de que o mundo se compõe, por isso não conhecemos o seu verdadeiro ser, nem gozamos delas no estado, em que as achamos, mas sim naquele em que elas nos acham. A delícia dos olhos, e do gosto, depende mais da nossa disposição, que da sua eficácia; o mesmo, que ontem nos atraiu hoje nos aborrece; ontem porque estava sem perturbação o nosso ânimo, hoje porque está com desassossego; e tudo porque não somos hoje, o que ontem fomos: o mesmo que hoje nos agrada, amanhã nos desgosta, e os objectos, por serem os mesmos, não causam sempre em nós as mesmas impressões; por motivos diferentes recebemos alterações iguais. O pouco que basta para afligir-nos, ou para contentar-nos, bem mostra o pouco constantes, que são em nós a aflição, e o contentamento; por isso uma, e outra cousa nos deixa com a mesma facilidade com que nos penetra. Como a maior parte das cousas, que sentimos, é sem razão, também nos não é necessário razão para deixarmos de as sentir; há espaços de tempo, em que nos esquecemos de sorte, que ficamos indiferentes para tudo, e que tudo nos fica indiferente. A mesma natureza a cada passo equivoca: com ais denota o contentamento, e explica com gemidos o alvoroço; as ânsias e suspiros, que acompanham o tormento, também são do gosto a imagem, e a expressão mais viva. A vaidade, que comummente produz as nossas alegrias, e tristezas, umas vezes tudo nos representa alegre, outras tudo nos oferece triste. Também na vaidade há horas; em umas ocupa-se em objectos de grandeza, em outras toda se entretém em ideias de opulência; umas vezes realiza a nossa fantasia em forma, que tudo nos propõe já conseguido; então é que a vaidade nos enche de alegria; e é também quando a alegria é vã, porque o seu motivo não tem corpo, e só se compõe de uma visão, ou sonho; outras vezes a vaidade nos enfeita com adornos tão ricos, e sublimes, que não podendo suportar, nem o esplendor, nem o peso da figura, ela mesma se desvanece; então é que a tristeza nos combate, porque então nos vemos como somos. O homem em si, é obra de uma inteligência inexplicável. Os seus adornos é que são materiais; a mesma grandeza e fausto, só consta de um aparato superficial, risível, e que não tem mais valor, que o que a vaidade, e o costume lhe têm dado: o costume é tudo; as cousas não são nada; o de que fazemos tanto caso, não é mais, do que o modo com que os homens significam, ou explicam o respeito; o mesmo costume faz, que buscamos umas cousas, e fugimos de outras; e que umas nos entristecem, e outras nos alegram; e como um mesmo objecto pode ser considerado por modos mui diversos, por isso alguns há que ao mesmo tempo nos alegram, e entristecem; ao mesmo tempo nos fazem chorar, e rir; amar, e aborrecer; por isso os nossos afectos mudam-se, encontram-se e variam. Somos os instrumentos da vaidade; ela nos tempera, e põe no tom, que lhe parece: umas vezes nos levanta, outras nos abaixa; umas vezes é um tom subtil, delicado, e agradável; outras é um tom áspero, duro, e pouco harmonioso. A sociedade dos homens forma um concerto de infinitas vozes, e de infinita diversidade. Todos choram, e todos cantam; a vaidade a todos dá por que cantem, e por que chorem; todos entram como partes principais; ninguém fica destinado, somente para ouvir, e ver: enquanto dura a acção (isto é, a vida), todos falam, depois todos emudecem; a estátua, que a vaidade enchia de ardor, e movimento, depois fica imóvel, e insensível; o mesmo homem, que atraía tudo a si, depois tudo faz fugir de si: que notável diferença! O mesmo que se via com gosto, e com respeito, depois se se vê, é com horror; e isto porque finalmente veio a desfazer-se o edifício mais nobre, mais regular, e mais soberbo; a melhor arquitectura jaz por terra; os mármores ficaram sem lustro, as colunas sem força, os pórticos sem ordem, os ornatos sem graça: já se não vêem senão torres abatidas, muros arrancados, frisos rotos, bases despedaçadas: não há parte, por mais mínima que seja, em que a ruína não seja universal; é ruína, em que não pode haver reparo; é templo, cuja destrução não se pode reedificar por arte: os materiais confusos, inúteis já, perdida a proporção, a medida, a correspondência, o polimento, e ainda a mesma substância da matéria, tendem desordenadamente a uma transformação fatal, impura, fétida, verminosa, e horrenda; a terra piedosamente se abre, como para recolher, ou esconder em seu seio, o mesmo que tinha saído dele; com a diferença lastimosa de receber em um cadáver, símbolo do espanto, e da tristeza, aquilo mesmo que havia entregue em um homem, símbolo da alegria, e da vaidade.

Os tempos, e as ocasiões, tiram, ou dão valor à vaidade dos homens; e ainda que neles se vejam as mesmas vaidades, contudo há vaidades predominantes, que se mostram mais em certos tempos, e que em certas ocasiões se encontram mais. Assim como nas outras cousas, também na vaidade algumas há, que são como filhas de um lugar, e que em um país têm mais reputação que em outro. Os vícios lá parece que dependem da fortuna; porque as ilusões que os homens idolatram, não têm igual estimação em toda a parte. Assim como mudamos de destino, também mudamos de vaidades, não porque deixemos totalmente umas, para seguirmos outras; mas porque há vaidades, que em certos tempos têm mais culto. Ainda que a terra seja o primeiro móvel da vegetação, contudo, nem toda a terra é própria para todo o vegetal; aquela em que nasce a rosa, muitas vezes se nega ao lírio; ali donde o jasmim se cria, dá-se mal a assucena; lá donde o urmo reverdece, não pode tomar alento a hera: a mesma terra, base de todo o sensitivo, só na África é pátria do Leão, na América do Leopardo, na Ásia do Elefante; o Cisne só canta nas ribeiras do Meandro; a Fénix só na Arábia se diz que sabe renascer das suas cinzas; a Águia não remonta ao Sol em qualquer parte. Isto mesmo se vê na vaidade: umas nascem com o homem; essas são vaidades universais; outras resultam das opiniões, que são próprias, e particulares a cada uma das nações; essas são vaidades locais, e territoriais: e nesta forma governa a vaidade o mundo, dividida em muitas classes, ou em muitos géneros de vaidades. Em uma região a vaidade dominante consiste no valor, em outra no luxo, em outra na origem; muitos homens há que fazem vaidade de alguns vícios, a que os inclina a qualidade do clima, e necessidade do terreno; de sorte que aquilo mesmo, que em um lugar se faz por vaidade, em outro por vaidade não se faz; aquilo, que em uma parte se estima por vaidade, em outra por vaidade se despreza: como a vaidade depende da opinião das gentes, por isso é tão mudável como a mesma opinião; e com efeito a vaidade é cousa essencial no homem; a espécie dela não. Vivemos continuamente em esperanças, e quando alguma nos deixa, e nos engana, logo nos deixamos enganar por outra; não podemos viver sem aquele engano. A vaidade que nos anima primeiro, anima todas as paixões, só com a diferença de que esta nossa terra, ou esta terra do homem, naturalmente produz esperança, e vaidade, e tudo o mais vem por força da cultura, e do artifício. O mesmo amor está sujeito às leis da vaidade. Quem dissera, que o amor, que é como a alma de toda a natureza, tenha na vaidade o seu princípio, e algumas vezes o seu fim. Nascer o amor da vaidade, e morrer por ela, isto é amar por vaidade, e também por vaidade não amar, ou deixar de amar, parece difícil de entender; contudo a proposição é certa; mas como havemos de mostrá-la, sem entrar ao mesmo tempo em uma sucessiva progressão a respeito do amor, a respeito da fermosura, e por consequência a respeito das mulheres? Sim, faremos alguma digressão; mas que importa, em tudo havemos de encontrar a vaidade. Deixemos por um pouco a vaidade só; não sejam tudo reflexões sobre o fim do homem, sejam algumas sobre o seu princípio; não o busquemos naquele estado, em que ele acaba, mas sim naquele, em que começa; larguemos um instante aquele assunto triste, e busquemos no amor um mais alegre; façamos da mesma digressão, divertimento, depois sempre acharemos vaidade na fermosura, no amor, e nas mulheres.

O amor não se pode definir; e talvez que esta seja a sua melhor definição. Sendo em nós limitado o modo de explicar, é infinito o modo de sentir; por isso nem tudo o que se sabe sentir, se sabe dizer: o gosto, e a dor, não se podem reduzir a palavras. O amor não só tem ocupado, e há-de ocupar o coração dos homens, mas também os seus discursos; porém por mais que a imaginação se esforce, tudo o que produzir a respeito do amor, são átomos. Os que amam não têm livre o espírito para dizerem o que sentem; e sempre acham que o que sentem é muito mais do que o que dizem; o mesmo amor entorpece a ideia e lhes serve de embaraço: os que não amam, mal podem discorrer sobre uma impressão, que ignoram; os que amaram são como a cinza fria, donde só se reconhece o efeito da chama, e não a sua natureza; ou também como o cometa, que depois de girar a esfera, sem deixar vestígio algum, desaparece.

Conhecemos as cousas, não pelo que elas são em si, mas pela diferença, que entre elas há; e esta diferença consiste em não serem umas o mesmo que outras são; a essência das cousas nos é totalmente oculta; e assim conhecemos os objectos, pela diversidade das figuras, e não pela substância deles; a nossa notícia, toda se compõe de comparações; por isso aquilo que não tem cousa, que lhe seja em alguma parte semelhante, fica sendo inexplicável: isto sucede ao amor; ninguém o pode explicar verdadeiramente, porque não há cousa, a que seja verdadeiramente comparável, o mais a que o conceito chega, é a servir-se de expressões opostas entre si; como quando se diz, que o amor é fogo, que é neve, que é alívio, que é pena, que é luz, que é sombra.

O amor distingue-se das mais paixões, em ter por objecto um fim corporal, sujeito à saciedade; por isso dura por intervalos. A Providência para conservação do mundo, suscitou o amor, não só nos homens, mas em toda a natureza: ainda os insensíveis, parece que amam, e que sentem; a diferença deve de estar no modo de amar, e de sentir. As criaturas são mais perfeitas, à proporção que são capazes de mais amor; e assim o amor não só é o princípio da vida, mas também é um sinal de perfeição.

Dizer que o amor procede de uma certa conformidade de humores, e de génio, mais é subtileza, que verdade; a filosofia nesta parte não foi mais feliz que em outras, donde a ciência consiste em saber mais termos, e palavras, e não em saber mais cousas. Digamos antes, que o amor procede da fermosura; que origem lhe havemos de dar mais nobre? A razão mais fácil costuma ser às vezes a mais certa; duvide-se embora da origem da fermosura, porém não se duvide da do amor.

Cada cousa tem um limite certo, entre cuja extremidade se deve conter, e regular; porém esse tal limite não é fácil de se achar, e no amor é quási impraticável, porque é uma paixão que não tem limite, e que só no excesso se mostra, e se acredita. Não há delírio, que os homens não desculpem, quando vem de um grande amor; há delitos em que o perdão se alcança em favor do mesmo crime; então aborrece-se o efeito, mas a causa admira-se; ninguém quisera o sucesso em si, mas todos invejam o Motivo.

Um amor medíocre, e vulgar só se ocupa no deleite dos sentidos, e dele faz a maior felicidade; um amor sublime alimenta-se em contemplar o objecto que ama; este é o amor humano, de quem se diz, tem semelhança com o amor divino. Há vícios, que de alguma sorte, parece que dão documentos para a virtude. O amor ordinário é impulso da natureza; o amor subido é como uma emanação da alma; aquele é sujeito à saciedade, e por consequência à dor; porque a saciedade é uma espécie de dor, e de tormento, porém este não é susceptível de algum desassossego; aquele busca fora de si o alívio; este acha em si mesmo o contentamento; um é como dependente da vontade de outrem; o outro é isento do arbítrio alheio. O nosso bem só deve depender de nós; por isso nos fazemos infelices, à proporção que buscamos a nossa felicidade em outra parte. Mas como pode deixar de ser assim? O nosso desejo não se pode conter dentro de nós, porque os seus objectos todos são exteriores; a cada instante envelhecemos, porém os nossos desejos a cada instante se renovam, e renascem: vivemos no mundo rodeados de uma imensidade de cousas diferentes, e estas sucessivamente vão sendo o emprego do nosso cuidado, e das nossas atenções; todas acham em nós uma certa disposição, que faz, que a umas queremos, e a outras não; as nossas paixões são as que escolhem, ou reprovam; as cousas já vêm configuradas em tal forma, que assim que nos encontram, logo acham, ou um lugar proporcionado, ou incompatível; tudo aquilo em que há grandeza, e pompa, a vaidade o recebe, e guarda; tudo o em que se mostra fermosura, o amor o abraça, e se suspende. Tudo entra em nós, ou por força de amor, ou por força de vaidade: a quem a vaidade não vence, vence o amor.

Não temos liberdade para deixar de amar a fermosura do mundo, e das suas partes; não temos livre o alvedrio para resistir ao encanto, que a natureza esconde nas suas produções. A variedade das cores, o movimento dos brutos, o canto das aves, o elevado dos montes, o ameno dos vales, a verdura dos campos, a suavidade das flores, e o cristalino das águas, tudo atrai a nossa admiração, e tudo nos infunde amor. A fábrica do universo é como um retrato da Omnipotência; a grandeza do efeito indica a majestade da causa; por isso o amor, ou o louvor da obra, cede em honra do artífice.

Esta insigne máquina serve de delícia aos nossos olhos, e de pasmo ao nosso entendimento; toda se compõe de partes agradáveis, como se inteiramente fosse tirada de um fundo, ou princípio imenso de fermosura. A mesma desordem, e confusão das cousas nos recreia; o furor dos elementos forma um espectáculo perfeito: o ar com os seus bramidos, a terra com os seus tremores, a água com os seus combates, e o fogo com os seus incêndios. No vento admiramos um ar, ou espírito invisível, cuja força se emprega na ruína de muitas cousas sólidas; os terremotos já reduziram em montes as planícies, e fizeram planícies dos montes, como se o mundo não tivera o seu assento firme; as águas entre si se quebram, e despedaçam, e quanto mais horríveis, e agitadas, tanto mais nos mostram em líquido teatro mil vistosas aparências; o fogo ainda quando parece raio nos diverte, e ainda quando abrasa alumeia; a fermosura até se sabe introduzir na fealdade, no horror, no espanto.

Vemos a perfeição dos objectos, mas ignoramos a qualidade deles, por isso os amamos, porque o amor quási sempre foge, assim que conhece a natureza do que ama. Os antigos pintaram ao amor cego, talvez para mostrar, que o amor para ser constante, é preciso que seja incapaz de ver, e que a falta de luz lhe sirva de prisão. Muitas cousas estimamos somente porque as não conhecemos, e outras porque as não conhecemos, as não estimamos; tanto é certo que não há nada certo no mundo; nos mesmos princípios se fundam muitas cousas contrárias, e opostas entre si.

A primeira cousa, que a natureza nos ensina, é amar; e assim o primeiro afecto, que sabemos, é aquele mesmo por onde a nossa existência começa a ter princípio. Novos no mundo porém não no amor, esse se manifesta em nós logo no berço; ali mostramos para alguns objectos desagrado, e inclinação para outros; a uns buscamos com riso, e de outros fugimos com medo; uns nos servem de espanto, outros de divertimento choramos por alcançar uns, e também choramos por evitar outros; como se o ódio, e o amor naquela idade não tivessem outro modo de explicar-se, nem soubessem mais idioma que o das lágrimas: também não é novo o chorar-se de gosto, do mesmo modo com que se chora de pena.

Nos primeiros anos da vida toda a variedade nos atrai; entramos neste grande teatro cheios de gosto, e contentamento, sem experiência das impressões da dor, e ignorando os efeitos da vaidade; por isso não temos então, nem pensamentos que aflijam, nem cuidados que mortifiquem; não nos combatem as lembranças da morte, e se vemos os seus triunfos, ou já nos epitáfios, ou já nas pompas fúnebres, parece-nos que está tão longe de nós aquele estrago, que na mesma distância, em que a nossa ideia o considera, se confunde e desvanece o horror. Que feliz ignorância, e que venturoso descuido! Em contínua travessura passamos aqueles anos, em que os nossos espíritos, ou por mais vivos, ou por mais alegres, apenas cabem em nós. Os campos, as flores, as aves, os rios, tudo nos serve de jogo inocente, e de festiva ocupação: estes são os ensaios, e prelúdios, com que o tempo dispõe a nossa dócil inocência, e com que um amor universal a tudo quanto vemos, depois só se reduz àquele amor, que tem por objecto a duração do mundo, ou a nossa mesma reprodução; por isso a poucos passos começamos a sentir um novo impulso; aquele agrado comum, com que víamos as cousas, já se distingue, olhando com especialidade para algumas, e com indiferença para as mais; como se estas fossem destinadas para entreter as nossas primeiras atenções, sendo só umas o para que nos dirigia o fim da natureza.

Esses primeiros anos todos se compõem de amor, e de esperança: estes dous afectos tomam a melhor parte de nós, ou escolhem para si aquele tempo em que vivemos com mais vida; no seu princípio, e no seu progresso é o amor uma paixão cheia de entusiasmo, e de furor, depois perde totalmente a violência; por isso amamos mais, quando sabemos amar menos, isto é, quando amamos quási por instinto; e com efeito o amor não se introduz por discurso, e se alguma vez discorre, é sinal que está perto de acabar; porque o amor só é prudente quando acaba, não porque então o seja em si, mas porque então amamos como nós queremos, e não como o amor quer.

Culpa-se o amor de vário, e de inconstante, sendo que as mais das vezes seria maior a sua culpa, se fosse constante, e firme: o amor só quando deixa de amar se emenda, só quando é vário se justifica, e só quando é inconstante se desculpa: quando começa, parece que não é erro o amor; porque mal se pode evitar aquele primeiro instante que nos atrai; aquela primeira luz que nos assombra; aquele primeiro agrado que nos engana; o nosso arbítrio, ou a nossa reflexão, vêm depois, como remédio que sempre supõe sucedido o mal: não se pode fugir do raio despedido de uma nuvem; o amor ainda nos alcança com mais pressa, e mais vigor, porque é raio, que se forma dentro de nós mesmos: o valor consiste em arrancar a seta, por mais que fique despedaçado o peito.

Não somos firmes no amor, porque em nada podemos ser constantes: continuamente nos vai mudando o tempo; uma hora de mais é mais em nós uma mudança. A cada passo que damos no discurso da vida, imos nascendo de novo, porque a cada passo imos deixando o que fomos, e começamos a ser outros: cada dia nascemos, porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos desta sorte, tanto mais nos fica perto o fim, que nos espera. A inconstância, que é um acto da alma, ou da vontade, não se faz sem movimento; a natureza não se conserva, e dura, senão porque se muda, e move. O mundo teve o seu princípio no primeiro impulso, que lhe deu o supremo Artífice; a mesma luz, que é uma bela imagem da Omnipotência, toda se compõe de uma matéria trémula, inconstante, e vária. Tudo vive enfim do movimento; a falta de mudança é o mesmo que falta de vida, e de existência, e assim a firmeza é como um atributo essencial da morte.

Se em nada pois há permanência, e se o estado da firmeza é contrário às leis da vida, como pode ser que haja amor constante? Isso é um impossível desejado. Não há nada isento das revoluções, e alterações do mundo; tudo nele se muda, porque tudo se move; por isso a firmeza é violenta, ao mesmo tempo que a inconstância é natural. Para sermos firmes, é-nos necessário força, porque temos que vencer a economia, e ordem, que não permite repouso em cousa alguma; para mudarmos a mesma natureza nos inclina, e guia; semelhante a qualquer peso, que sobe com violência, e desce por si mesmo. O movimento, e a mudança, de que depende o ser das cousas, também é princípio do fim delas; sem mudança, e movimento, nem se pode existir, nem acabar; a mesma origem da vida também é da morte a causa; por isso é tão certa a morte, e tão curta a vida; porque um, e outro extremo, nascem do mesmo modo, e se criam no mesmo berço.

O amor é um influxo da beleza, por isso esta raras vezes anda solitária e quási sempre a acompanha o amor: agradável mas louca companhia; apetecida, mas traidora felicidade! Compõe-se a fermosura de uma certa modulação das partes; obra mais do acaso, que de um cuidado especial da natureza; mas porém deve admirar-se um instrumento, cujas cordas só produzem harmonia; assim é a fermosura; e é pouco de estimar aquele, de donde só resulta dissonância; assim é a fealdade. A fermosura reside em uma forma exterior; o amor parece que é um efeito da vontade, ou do desejo; aquela mostra-se, porém este esconde-se; este é invisível, porém aquela vê-se: a fermosura pode dizer-se o como é, porém o amor não; porque quem o tem, sente sem saber o quê, e quem o não tem, ainda o conhece menos.

O amor nasce da fermosura, e com ela morre; e assim como pode haver amor constante, se é tão pouco constante a fermosura? E se esta muda tanto, como pode ser que o amor não mude? Há três progressos em tudo quanto a natureza abraça: o primeiro é de crescer, o segundo de estar e o terceiro de diminuir; nesta lei também entra a fermosura: cresce, está e diminui. O amor fielmente segue a fermosura: não muda quando a fermosura cresce, não foge quando ela está, mas com ela diminui, e acaba. O tempo com um passo subtil, e disfarçado lentamente imprime na beleza o seu carácter; já começa a ser tíbia a luz dos olhos; já se mostra sem sabor o agrado, e já fica sem alma a mesma graça; acabou-se pois a fermosura, e apenas pode descobrir-se a sua ruína entre os mesmos sinais do seu estrago: tudo são riscos donde se vê como em padrões fatais escrita a impressão dos dias; tudo são concavidades, donde se mostra como em funesto exemplo gravado o rigor do tempo; essa imagem, desvelo que foi da idolatria, cuidado de atenções, e finalmente emprego que foi de tantos votos, já se vê sem altar, e sem veneração; e trocado o culto em vitupério, só ficou para objecto do desprezo; como se a idade fosse algum delito, ou fosse culpa o número dos anos: assim acaba a fermosura, assim acaba o seu império, e também assim, acaba o amor. O Sol nascendo no Oriente, vem cheio de beleza, e resplendor; por isso tudo são tributos, tudo admirações, e tudo amores: as fontes o festejam murmurando; as aves o anunciam com requebros, e as flores com o riso o lisonjeiam; mas depois de ter corrido (qual gigante) um caminho imenso; e depois que os resplandores se mudam no ocaso em pálido semblante, logo acabam os amores, as admirações e todos os tributos; na mesma tumba, em que se apaga a luz, também se extingue o aplauso; na mesma sombra, em que se encobre o dia, também se esconde o obséquio; e o respeito acaba nas mesmas ondas, em que faz naufrágio o Sol.

Sucede muitas vezes mudar o amor, primeiro que a fermosura mude; isto dizem que faz o amor ingrato; porém a mudança quási sempre é culpa da beleza, e não do amor. Naturalmente e fermosura é soberba, vaidosa, ímpia, e arrogante; não só refusa, mas despreza; não só desdenha, mas injuria. Um objecto amável basta para produzir amor, mas não basta para o conservar; o amor nasce facilmente, mas dura com dificuldade; porque o império da beleza sempre foi tirano, e sem brandura, não há domínio permanente. O amor é acto de um movimento repentino; a conservação dele vem por discurso, por isso a primeira cousa é fácil, e dificultosa a outra. Não há encanto perpétuo; o do amor também tem fim, e enquanto dura, é por intervalos; e ainda que o amor seja pronto, e arrebatado em conquistar, por isso mesmo nada tem seguro; porque o que se toma precipitadamente, precipitadamente se larga; daqui vem que um moderado amor costuma ser durável; o que é excessivo, a sua mesma violência o acaba; a tormenta forte nunca dura. Mas não sei se pode haver moderação no amor. Há muitas cousas, em que a moderação é contrária à natureza delas, e em que a abstinência custa menos do que o uso limitado. O amar uma cousa só parece que é mais penoso, que o não amar nada; porque com efeito o abster é menos dificultoso, que o conter; por isso a prisão de algum modo molesta menos, que uma liberdade restrita: o usar das cousas com regra, traz consigo uma espécie de aflição; o não usar de nenhuma sorte, o que traz é esquecimento. Podemos fazer hábito de não ter, ou de não amar, porém não o podemos fazer de amar, ou ter debaixo de algum preceito: tudo o que recebemos, ou se nos dá com condição, parece-nos violento: olhamos menos para a parte, em que a cousa é livre, que para aquela, em que o não é; a proibição sempre nos deixa suspensos, e como magoados; porque o nosso desejo não tem actividade naquilo que é já nosso, mas sim naquilo que o não é, e que não pode, ou não deve ser; o que se permite não parece tão bem como o que se nega; o muito que se concede, não consola do pouco que se proíbe; por isso o alheio nos agrada, porque nele achamos uma negação, ou limite do que é nosso. Vemos com saudade o tempo, que passou; esperamos o que há-de vir com ânsia, e para o presente olhamos com desgosto: assim devia ser, porque o tempo, que passou, já não é nosso; o que há-de vir não sabemos se será; e só o presente, porque é nosso, nos aborrece. O amor está seguro, enquanto dura a pretensão; o que o perde, é a propriedade: sustenta-se mais na dúvida, que na certeza; qualquer cousa, que procure, o anima, e desfalece, se lhe não falta nada. Isto não é só no amor; em tudo sucede o mesmo: todas as paixões se acabam, assim que se satisfazem; conseguido o fim de cada uma, logo ficam sem vigor, e amortecidas: ninguém espera o que possui, ninguém deseja o que já tem, e ninguém se desvanece muito daquilo que logra há muito tempo; e desta sorte o amor, o desejo, a esperança, e a vaidade acabam-se, quando alcançam; e deste modo perdemos as cousas todas as vezes que as chegamos a ter; ou ao menos perdemos o gosto, que nos vinha do desejo, do amor, da vaidade, e da esperança. Daqui vem, que para reprimir as paixões, nem sempre é bom meio o reprimi-las; na resistência parece que se formam, e fortificam mais; algumas nascem só da resistência, e não podem existir sem ela. Da dificuldade das cousas inferimos a excelência delas; o fazê-las fáceis, e sem oposição, é o mesmo que tirar-lhes a graça, que as fazia apetecíveis. Em todas as paixões se encontra a vaidade de querer vencer; não há vitória sem combate, e se a há, é sem glória, e sem merecimento. Contra um campo aberto não há desejo, nem ardor; a vaidade tem repugnância a entrar pacificamente, armada sim; a muralha incita, porque impede.

A vaidade, ou a soberba de uma mulher fermosa, é quási insuportável; ainda o amor mais fino se revolta, porque o amor ainda que jure escravidões, nem por isso consente nelas; e quando é bem entendido, não costuma ser vil, reverente sim; a submissão por degenerar em baixeza não faz ao amor menos inconstante; a firmeza não se fez para obstinação. Não é suave o jugo da beleza; apenas se lhe pode sustentar o peso; a arrogância, que a acompanha sempre, exige condições tão fortes, que o mesmo afecto, que por força as aceita no princípio, depois as desvanece; porque o amor se busca a fermosura, também foge da aspereza; um génio severo, e duro, não pode inspirar constância, retiro sim: por mais que estejam preocupados os sentidos, nem por isso estão sempre dispostos para sofrer; e com efeito o amor fez-se para delícia, e não para castigo; fez-se para alívio, e não para tormento; para gosto, e não para martírio. Não há encanto que não possa desfazer-se; por mais fortes que sejam os laços com que o amor nos prende, muitas vezes um discurso os rompe; um pensamento os desfaz; uma reflexão os desata; e pela maior parte esse discurso de que nasce a inconstância, procede da aspereza, da vaidade, e da condição da fermosura.

A natureza que na produção da fermosura se empenha em formar um encanto, deste não quer que seja invencível o poder; por isso na mesma fermosura inclui logo a tirania, o engano, e a vaidade, para que estes feios atributos, expostos à nossa vista, ou sirvam de quebrar a força a esse mesmo encanto, ou ao menos possam limitar-lhe o efeito; e assim temos o remédio na própria origem da ruína, e no mesmo mal achamos o defensivo dele: se a beleza nos atrai a imperfeição do génio nos desvia; se nos enleva uma imagem viva, donde em justas proporções, a natureza mostrou os seus primores, também uma condição áspera, e desabrida nos afasta; e finalmente se a nossa própria inclinação nos tira a liberdade, o nosso entendimento nos resgata. E assim não se queixe a fermosura, nem do amor, nem da inconstância; veja primeiro se acha a culpa em si; quanto mais que o amor, ainda que cego, nem por isso se obriga a estar sempre em um lugar; a inconstância ainda que odiosa, nem por isso lhe faltam os motivos, que a fazem justamente ser precisa. Quantas vezes a virtude depende unicamente da mudança! Nem sempre é traição a falta de firmeza; nem sempre o ser vário é ser infiel; e nem sempre o ser inconstante é ser ingrato. As sem-razões da fermosura autorizam o nosso esquecimento, o ser sensível é o que faz ser amante; e quem tem sensibilidade para amar, também a tem para sentir; porque se a formosura nos recreia, também a injúria nos irrita; se o agrado nos convida, o desprezo nos magoa; e se o amor enfim nos chama, também a ofensa nos retira.

Sim é soberba a fermosura, mas não é para admirar, pois é grande o seu império; é vaidosa, mas como pode não o ser? É presumida, mas que muito se em se vendo, a sua mesma vista a lisonjeia? É tirana, que importa, se é virtude esse defeito, e se nela a bondade é culpa? Na fermosura acha-se a circunstância mais essencial da luz; esta ilustra, e faz claros os objectos, que estão perto dos seus raios; assim a beleza, pois parece faz fermosos aqueles vícios que a acompanham; essa fereza, essa arrogância, e essa mesma condição altiva, sim são imperfeições grandes na beleza, mas são como as sombras, que um delicado pincel debuxa, e representa, não para desluzir o primor da arte, mas para realçar a fineza da pintura. Uma estrela brilha mais no espantoso silêncio de uma noite escura; a mais perfeita luz é a do Sol, contudo a sua actividade nos molesta, e escandaliza: as cousas nem por mais perfeitas nos agradam mais; antes alguma imperfeição as modifica em forma que ficam proporcionadas ao nosso gosto; aquilo que é perfeito em um certo grau, excede a nossa esfera, e por isso nem o podemos gozar, nem entender, porque o desejo não se estende adonde a compreensão não chega. O entendimento, ou a alma é o que primeiro move, e assim tudo o que excede a nossa inteligência, fica sendo impenetrável ao nosso afecto. Mil cousas há perfeitas no seu género, por onde continuamente passamos sem reparo; a mesma perfeição nos cega, e nos faz incapazes de admirar; tudo o que distinguimos, ou sabemos, é por comparação; de sorte que em não podendo comparar, também não podemos conhecer: a diferença das cousas entre si, é a que desperta a nossa atenção, e dá lugar ao nosso conhecimento; por isso tudo o que é formado como de um só rasgo, de uma só linha, ou como de um só alento, logo nos fica sendo incompreensível; o discurso não pode entrar naquilo em que tudo é um, igual, ou uniforme; porque a unidade não admite combinação, e o pensamento não pode introduzir-se facilmente donde tudo é o mesmo, e donde não há nem diversidade de substância, nem desigualdade de matéria. Podemos dizer, que a nossa capacidade só tem por objecto aquilo que é composto; porém tudo o que é simples absolutamente fica sendo mistério para nós, e por isso sempre oculto, e escondido; e assim a divisão, e variedade de partes, ao mesmo tempo que indica um ser imperfeito, também serve de meio, que nos facilita a inteligência das cousas, e nos conduz ao conhecimento delas; e desta sorte alguma imperfeição na fermosura, faz-nos ver melhor o que ela tem de raro, e de admirável; algum defeito, mostra-nos o que por outra parte ela tem de singular; e finalmente algum vício, faz-nos reparar o que se encontra nela de virtude; e assim serve-nos de guia essa imperfeição, esse vício, e esse defeito.

Mas que poucas vezes se encontra na beleza aquele certo grau de imperfeição, que à maneira de uma sombra leve só sirva de realçar-lhe a luz! A repartição do vício sempre é larga, e abundante, e o defeito não se comunica escassamente, com profusão sim: o que vemos de imperfeito na beleza raras vezes é como um sinal, ou mancha breve, de que o alinho se adorna por arte, e por estudo; antes essa imperfeição se estende, e cresce tanto, que abraça o objecto inteiro, e o escurece: qualquer mistura em pouca quantidade contamina a pureza de um licor; uma grande porção o absorve, e compreende todo. Esse caudaloso Tejo não o turva um só regato imundo, porém muitas torrentes de água impura, fazem-lhe perder o nome, e semelhança de cristal; uma só nuvem não faz sombria a claridade do horizonte, mas muitas nuvens juntas fazem de um belo dia, uma noite escura; assim a beleza: o vício nela não costuma ser como um regato, mas como torrente; o que tem de imperfeito, não é como um sinal (efeito enfim da meditação) mas como uma mancha verdadeira; o seu defeito raramente é leve; antes quási sempre pesa mais do que a mesma fermosura. Infeliz concórdia, cruel sociedade! Quem dissera que um mesmo objecto seja capaz de inspirar amor, e aborrecimento! Tão pouca distância há entre o mal, e o bem? Entre a aversão, e o afecto, entre o perfeito, e o defectuoso, que em um mesmo sujeito se possam encontrar, e unir?

A vaidade da fermosura é a mais natural de todas as vaidades, é vaidade inocente; a natureza em nada se recreia tanto, como em contemplar-se a si na sua obra, e em rever-se na sua mesma perfeição; por isso a fermosura é um encanto, a que não resiste, nem ainda quem o tem; ela a si mesma se namora, a si se busca, ama-se a si, e de si se rende; é como um efeito, que vem a retorquir-se contra a sua causa, ou contra o seu princípio; é como um movimento, que retrocede, e se dirige contra o seu mesmo impulso; a fermosura, pelo que sente sabe o que faz sentir; e pelo que se ama, conhece que se faz amar; daqui vem que a vaidade, e a altivez, são partes de que a fermosura se compõe; a mesma tirania, e rigor atrai; e que haverá na fermosura, que não sirva de laço, de prisão, de amor?

É propriedade do amor o ser violento; e é propriedade da violência o não durar. O amor acaba-se em nós, não por nossa vontade, mas porque tem por natureza o acabar; e ainda que tudo há-de acabar connosco, nem tudo espera por nós. Quando amamos, é por força, porque a fermosura que nos inclina, nos vence; e também é por força quando não amamos; porque uma vez rotos os laços, ficamos de tal sorte livres, que ainda que queiramos, não podemos tornar a eles; e assim não está na nossa mão o não amar, nem também o amar; o coração, por si mesmo se acende, e entibiece; nós, não o podemos inflamar, nem extinguir-lhe o ardor; aleguem os amantes esses mesmos ardores indiscretos; façam deles merecimento para o favor; imaginem embora, que os soluços, e gemidos, fazem ser devida a recompensa; exagerem penas, e martírios, e finalmente tenham a ventura de que uma beleza tímida, inocente, e incauta, creia que verdadeiramente está obrigada, e que deve atender, e corresponder: ambos se enganam; o amante em supor que por amar, merece; e a beleza em crer, que o amor é merecimento: não é tal; porque o amor vem da fermosura, e não do amante; este não faz mais que receber uma impressão a que não pode resistir: nada merece um bronze, por receber em si a figura de uma Vénus; a maravilha não está no bronze, que recebe, mas no braço que imprime; a arte não se mostra no metal, mas na mão que conduz o buril, e abre; o bronze não pode deixar de consentir a estampa, porque não tem mais do que um modo passivo, e material; só o braço obra activamente, daqui vem que quando amamos, é porque a fermosura nos obriga a amar; e assim que merecimento pode haver em pagar um tributo natural, forçado, e inevitável? Por isso o amar, ou não amar por razão, por discurso, ou ainda por interesse, não pode ser; porque os sentidos, não se deixam cativar por argumento; daqui vem que muitas vezes se ama, o que se não deve amar; isto será porque o coração não pode resistir à fermosura; o mais que pode fazer, é calar, dissimular, esconder: podemos não confessar, mas deixar de cair, é muito dificultoso; podemos sofrer, mas deixar de sentir, também não; podemos não seguir, mas deixar de apetecer é impossível; antes o sofrimento aviva o amor, a resistência o fortalece; porque tudo o que se reprime, se esforça; um arco comprimido adquire mais vigor para quebrar a corda. O mesmo é não querer, ou não dever amar, que amar. Não temos domínio no nosso gosto; as cousas agradam-nos, porque nos parecem agradáveis; como havemos de impedir que as cousas nos pareçam o que são, e ainda o que não são? Se os sentidos nos enganam, quem nos há-de desenganar, ou como havemos de emendar esses mesmos sentidos enganados? A razão, e o discurso não valem, ou não sabem tanto como se diz; porque o que julgam, é por meio de algum sentido enganador: se os olhos, e os ouvidos se distraem, e alucinam, que outros sentidos temos nós, que os hajam de conter, ou os façam retratar? Julgamos pelo que vemos, e pelo que ouvimos: estes sentidos são em nós, como dous relatores injustos, falsos, infiéis; daqui resulta, que quando o querer é culpa, essa culpa não é nossa, mas sim da fermosura que nos move, e que nos prende. Que culpa pode ter a cera, por receber em si o carácter de uma imagem? O mármore que culpa tem, por conservar a forma que o artífice lhe deu? Que culpa tem o pano por servir de campo, ou de teatro às obscenidades do pincel? E finalmente, que culpa tem o ferro, por ser instrumento dos golpes, e da morte? As cousas em si, são inocentes; o erro é exterior, e vem de fora; o mal parece que não nasce, nem se cria em nós, comunica-se a nós. Infelizmente o nosso coração, não é firme como o ferro, nem duro como a pedra; antes é mais tratável do que o pano, e mais brando do que a cera; é como uma lâmina original impolida, informe, e ainda sem configuração, e donde não há nem amor, nem ódio, nem culpa, nem merecimento, nem virtude, nem vício; mas é o donde tudo aquilo se põe, se faz, se introduz, se esconde.

Em todo o tempo prevaleceu nos homens o poder; eles arrogaram a si toda a jurisdição legislativa; a sujeição em que ficaram as mulheres, foi a pena da sua primeira culpa. Aquela sujeição, que não devia exceder as regras da equidade, veio a degenerar em tirania, e a introduzir nelas uma espécie de escravidão. O ciúme dos homens fabricou os ferros, e a fermosura das mulheres foi o crime original, que nunca puderam expiar, nem remir: a mesma fermosura com que as dotou a natureza, lhes tirou a liberdade; alcançaram na beleza o maior favor, mas comprado por um custo imenso, isto é à custa da liberdade; ficaram sujeitas aos homens por força, e os homens a elas por vontade. Infeliz, e estudada consolação! O cativeiro costuma ser à medida da fermosura; quanto mais belas, mais presas: para terem alguma liberdade é preciso que não tenham nenhuma fermosura. Cruel situação! Quem há-de trocar uma cousa pela outra, ou quem sabe qual das duas é melhor? Ter liberdade, e fermosura juntamente, é muito; ter uma cousa, e perder a outra, é pouco. Quem há-de resolver-se a perder a liberdade, e também que mulher se não há-de afligir na falta de fermosura? As diferenças são, que a liberdade em quem a tem, dura sempre, a fermosura não; naquela não tem domínio o tempo; nesta até se conhecem os instantes; semelhante à gala de uma flor, que não tem mais duração que um dia; e assim se vê que nas mulheres, a injustiça dos homens lhes tira a liberdade assim que nascem, e pouco depois lhes tira a fermosura o tempo, e de tal sorte, que nem restos lhes ficam do que foram, para se consolarem do que são; nem pode deixar de ser: porque o tempo não só desconserta, mas destrói, e arruína; cada hora deixa o seu sinal; e os instantes que diminuem a vida à proporção que passam, também diminuem a fermosura, até que a gastam, e desfazem; semelhante a uma exalação, que em breve espaço se dissipa. Os anos sim deixam a regularidade das feições; mas de que serve uma regularidade usada? O que nela se vê é como um debuxo, que não foi feito para imagem, mas para semelhança. Uma representação do que foi sempre é triste; por mais, que a consideração se forme uma ideia agradável de um monumento destroçado, e antigo, sempre o que se admira é com lástima: a imaginação fervorosa, e forte, pode de algum modo fazer presente o que não é, mas não pode fingir tanto, que se não percebam as ruínas; os vestígios trazem à memória a grandeza do edifício, mas sempre o mostram desfeito. Isto sucede na beleza, acaba-se em se lhe acabando a graça: esta continuamente foge; passa insensivelmente, e o que fica, é uma estátua, uma sombra, uma figura.

Ama-se por vaidade, e também por vaidade não se ama. Diga-o aquela fermosura a quem um voto poderoso fez perder a liberdade. Não foi inspiração celeste a que a fez buscar a solidão de um Claustro; talvez foi um infeliz amor, a quem se opôs a vaidade. Cruel destino! Havemos de amar à vontade da vaidade, e não à vontade do amor? Mas que pouco dura o amor, quando não nasce do amor! Não há maior combate, que o que se dá entre a vaidade, e o amor; se este fica vencido, a mesma vaidade chora, e se arrepende; é vitória, que se forma do estrago do vencedor. Um amor desconsolado, em nada pode achar compensação; porque esta só cabe, quando há outra cousa, que valha o mesmo; ao amor não há cousa, que o iguale, nem valha tanto. Aquela mesma fermosura, a quem a vaidade dominante fez deixar o mundo, para a livrar de algum amor humilde, sim vive retirada no limitado espaço de uma prisão santa: mas que importa que essa prisão lhe tire a liberdade das acções, se lhe não há-de tirar a liberdade do desejo? Assim como não há ferros para o entendimento, também os não há para o coração; este ainda no meio da violência, e da tirania, sempre se conserva isento, e livre. Um véu preto sempre esconde, mas não muda, nem desfaz nada do que esconde; antes tudo aumenta mais, e tudo mostra ainda maior, e mais claro do que é. Uma Comunidade Religiosa coberta de véus, o que faz imaginar é que cada véu encobre uma beleza, e muitas vezes o que encobre, é uma fealdade enorme; o pensamento nesta parte é sempre favorável, porque debaixo daquelas sombras nunca supõe outras sombras, luzes sim: há cousas, que de se ocultarem, resulta o verem-se melhor; em vingança de um manto escuro, tudo o que está debaixo dele, se nos representa perfeito, e singular; aquela espécie de rebuço o de que serve é de avivar a imaginação, de a desanimar não: tudo o que se esconde, parece-nos admirável, só porque se esconde; de sorte, que o ocultar, é o meio de acreditar as cousas, e de dar-lhes mais valor. O mesmo é pôr-se aos olhos um obstáculo, que fazê-los penetrantes, e pô-los em uma actividade, que eles não têm naturalmente: a vista, que se embaraça, adquire maior força, à maneira de uma corda, cujo vigor aumenta à proporção, que a fazem fugir do arco; a mesma distância em que algumas cousas se põem, as fazem estar mais perto; e por este princípio, tudo o que se esconde, se mostra. Quem dissera, que o recato, e a modéstia, mais chamam do que desviam, mais servem de convidar, que de afastar! Quem foge, parece que quer que o sigam; quem deixa, parece que quer que o busquem: o mesmo é cobrir o rosto, que incitar mil vontades de o descobrir; a desconfiança faz nascer a instância, e o cuidado; o engano muitas vezes se evita só com não o presumir; e com efeito o retirar-se, e pôr-se em defesa, é o mesmo que dar um sinal de guerra; o que se guarda, e se esconde, é a primeira cousa, que se assalta; a liberdade do porto é o que o conserva livre de invasão.

O estimarem-se as cousas, que não têm valor, é o mesmo que fazê-las estimáveis: o que se busca com ânsia, não é o que se dá, mas o que se nega; o que se permite desgosta, o que se refusa, atrai: o amor não tem seta mais aguda, que aquela que se armou de proibição; no tomar, parece que há mais gentileza, que no aceitar; a dificuldade incita: muitas cousas não têm outro algum merecimento, que o serem dificultosas; a resistência é o que move a vontade; tudo o que se concede, é sensabor; a impugnação faz a cousa considerável, porque lhe dá um ar de empresa, e de vencimento: os mais altos montes são os que se admiram, só porque custam a subir; a facilidade é aborrecida em tudo; o lustre do argumento vem da contradição. Isto sucede à fermosura, a quem a vaidade prendeu só por livrá-la do amor; mas que pouco conseguiu a vaidade! Contra o amor não há poder, apenas se pode impedir algum dos seus efeitos: a causa, isto é, o amor, sempre permanece constante; a dificuldade, o retiro, e a prisão fazem, que a fermosura seja mais bela, e mais amante; a natureza por achar desvio, não se despersuade; a nossa indústria não a pode vencer; antes o mesmo é impedi-la, que enchê-la de estímulo, e de alento; quanto mais a abatemos, mais a fortificamos; é engano parecermos, que podemos tirar-lhe os meios; por um que lhe tirarmos, ela se há-de formar mil; primeiro se há-de acabar em nós o modo de embaraçar, que nela o modo de conseguir; quanto mais a queremos ter adormecida, mais a despertamos; o buscar artifícios para a sossegar, é o mesmo que chamá-la para o conflito; o mesmo é reprimi-la, que irritá-la. As águas de uma fonte correm mansamente, e sem ruído, apenas humedecem as flores, que lhe bordam o caminho; mas se neste encontram embaraço, ou se algum penedo, que o tempo arrojou do monte, se foi atravessar, e impediu o passo; então se vê que aquelas águas, vão crescendo sobre si, e juntas se acumulam tanto, que ou rompem, e arrastam tudo o que as comprime, ou subindo se elevam de tal sorte, que chegam ao lugar, de donde por mil partes se lançam, e precipitam. Isto vemos nas águas de uma fonte, donde não concorrem mais motivos, que aqueles que em um corpo fluido procedem do peso, e do equilíbrio. Só nas mulheres não queremos achar naturalidades; prendem-se porque são mulheres, como se quando vêm ao mundo, trouxessem na razão do sexo escrita a condenação; e que a fermosura só lhes fosse dada para regular-lhes os graus de desventura. Quem diria aos homens, que as mulheres sendo compostas de uma matéria frágil, e propensa, podem espiritualizar-se em forma, que todas se convertam em discurso racional? Trabalhe embora o ciúme, e juntamente a vaidade; o ciúme em procurar que a mulher se não incline, e a vaidade em prescrever documentos à beleza, para que não ame sem certas proporções, e identidades; nem o ciúme, nem a vaidade hão-de alcançar aquele intento; o amor não admite força, nem império; ninguém ama, nem desama por preceito. Quem há-de tirar o gosto, que a alma sente, quando os olhos, ou o pensamento lhe mostram um objecto lisonjeiro, e agradável? Como se há-de fazer, que a boca seja insensível ao sabor de um manjar delicioso; e os ouvidos como podem deixar de suspender-se ao som de uma voz sonora, e cheia de harmonia? As primeiras qualidades não se podem mudar. Não podemos dar leis às cousas, ao exterior delas, sim; as palavras, e as acções admitem composição, e fingimento, a substância delas, não; por isso não é fácil desaprovar, o que os sentidos aprovam. Quem há-de reduzir a fermosura a crer, que deve fugir de quem a busca, e que deve querer mal a quem lhe quiser bem?

Oh quantas vezes um pretexto divino serve para autorizar humanos interesses! As cousas mais santas sabem os homens aplicar a fins os mais injustos: qualquer sem-razão para ser permitida, basta que seja necessária; o ponto é, que haja quem saiba introduzir a necessidade dela: os princípios mais inalteráveis se alteram; o ponto é que o interesse, ou a vaidade sejam partes. As regras não governam aos homens, estes é que governam as regras. As leis não compreendem ao legislador, nem aos que estão junto dele; as prerrogativas do poder parece, que são comunicáveis até uma certa distância; daí para baixo ficam sendo como uma luz, de que se acabou a esfera. Só nos efeitos visíveis da Omnipotência não vemos, que nenhum se mude, nem altere; o movimento dos astros, o progresso do tempo, a regularidade das águas, tudo guarda uma ordem certa, e infalível: o Artífice supremo não comunica o seu poder, mais do que a si mesmo, isto é, à sua providência; por isso as leis, que ele ideou no princípio, e antes dos séculos, são as mesmas que subsistem hoje. Quem viu ainda, que houvesse dia em que as águas não crescessem, e baixassem? Que o Sol se apartasse do Zodíaco, que a Lua deixasse as suas fases, que as Estrelas fixas variassem e que o firmamento não circunvolvesse em vinte e quatro horas o universo? Quem há que não admire as sucessões do tempo nas estações do ano, a vegetação da terra, a produção dos animais, a dureza das pedras, a virtude das plantas, a variedade das cores, o cheiro dos aromas, o encanto das vozes, os impulsos da atracção, do repouso, e do movimento? Finalmente todas as cousas ainda observam o mesmo ser original, a mesma correspondência, e a mesma economia, com que o Autor do mundo as fez: tudo o que foi de instituição divina, e que não depende da execução dos homens, permanece sem alteração; aquilo porém, que tem com os homens alguma relação, ou dependência, ficou, e está sujeito a uma contínua mudança, e contrariedade. As leis primitivas, que ainda antes de serem gravadas em mármore, e em tábuas, foram, e estão escritas nos corações, essas são as primeiras, que segundo as contingências, para se não guardarem, se interpretam. Daqui vem que nascendo todos livres, a liberdade é contra quem os homens têm conspirado mais. As Clausuras, que foram santamente instituídas, e praticadas prudentemente, depois não sei se vieram a degenerar em um modo de tirar-se a liberdade aos homens, e às mulheres, e nestas veio a cair o rigor do excesso; não falo das que por desengano, e conhecimento próprio, buscam aquele estado de virtude, mas sim daquelas a quem se fez tomar aquele estado, ou por castigo do que fizeram, ou por castigo do que poderiam fazer; e com efeito o poderem algum tempo delinquir, já lhes serve de delito; nelas o mal futuro, e incerto já se supõe presente; o poder algum dia suceder, vale o mesmo que o sucesso; a disposição para ser, é o mesmo que ter sido; a possibilidade é o mesmo que realidade; e desta sorte, aquele castigo, chega primeiro que o pecado, e aquela pena vem primeiro do que a culpa; o suplício antecede o crime. Cruel cautela, vingança premeditada! A vaidade, e ciúme dos homens, parece que acusam as mulheres, ainda antes de nascerem; as mesmas partes são juízes; por isso logo vão prevenindo os cárceres, para donde destinam aquelas infelices, e para donde as conduzem, antes que elas se conheçam, e poucos anos depois que nascem: assim devia ser, porque sempre foi propriedade da vítima o ser inocente; ali se vão costumando aos ferros, à maneira de uma fera presa, que já não sente o peso da cadeia, antes com ela joga, e se diverte, à proporção que a arrasta, e move. Prendem-se as feras, e também se prendem as mulheres; aquelas por causa da braveza, estas por causa da mansidão; aquelas porque se enfurecem, estas porque se enternecem; aquelas porque assustam, estas porque agradam; umas porque é necessário fugir delas, outras porque é necessário que elas fujam; e finalmente umas porque matam, e outras porque dão vida. A prisão, com pouca diferença é a mesma, os motivos são contrários. Do fundo de um deserto inculto se vão desentranhar as feras; prendem-se para que não façam mal; este é o pretexto, porém a verdade é que se prendem as feras, para que sirvam de recreio, e também de lisonja à vaidade em ver sujeito por indústria, e arte, aquilo que senão sujeita por força, nem vontade. As mulheres que foram encaminhadas para os Claustros, é para que sigam neles o exercício das virtudes; este é o pretexto, porém a verdade comummente é para que as mulheres não se inclinem, nem amem desigualmente. O interesse é da vaidade; por isso as mulheres, que se oferecem a Deus por aquele modo, não se oferecem mais do que à vaidade. São, como oblações de engano, que sendo a aparência uma, o objecto é outro; e são como o incenso, que se faz arder em uma parte, para que o ar divirta o fumo para outra. Imaginam os homens, que hão-de enganar a Deus, e para isso, entram primeiro a enganar-se a si; começam a querer persuadir-se que obram bem, e se a consciência os contradiz, e inquieta, para a sufocar não faltam opiniões, doutrinas, e conselhos; tudo em ordem a que proposto o caso revestido de certas circunstâncias, fique parecendo lícita a impiedade, a transgressão, e a violência. A regra de que um mal é permitido para evitar-se outro maior, têm os homens estendido, e subtilizado tanto, que de ilação em ilação vêm a chegar ao ponto, que não há mal por maior que seja, que não seja tolerável; e da mesma sorte, de consequência em consequência vêm a concluir, que não há iniquidade que não seja às vezes necessária, nem injustiça, que não seja justa. Prendam-se pois as mulheres para que se evite o mal de que elas amem; sejam conduzidas por força para os Claustros, para que não suceda que as amemos nós; saiam do berço para aquelas sepulturas, porque pode haver perigo na demora; e assim conheçam a morte, antes de conhecerem a vida; e saibam como é a prisão, antes de saberem como é a liberdade.

O nosso engenho todo se esforça em pôr as cousas em uma perspectiva tal, que vistas de um certo modo, fiquem parecendo o que nós queremos, que elas sejam, e não o que elas são. O discurso é como um intrumento lisonjeiro, por meio do qual vemos as cousas, grandes, ou pequenas, falsas, ou verdadeiras. O nosso pensamento não se acomoda às cousas, acomoda-se ao nosso gosto. O amor, a vaidade, e o interesse são os moldes em que as cousas se formam, e configuram para se apresentarem a nós; e com efeito nenhuma cousa se nos mostra como é, contra nossa vontade. Nunca estamos tão indiferentes, como nos parece; as paixões não consentem neutralidade; aquilo que entendemos, que nos não importa, costuma levar consigo um interesse oculto, por onde nos importa mais. O amor, e a vaidade às vezes se concentram, e disfarçam tanto, que nós mesmos dentro de nós, os não podemos descobrir; apenas se fazem visíveis pelas obras, semelhantes ao fogo escondido na pederneira, que se não deixa ver, se não é incitado pelo impulso do fusil: daqui vem que tudo o que fazemos, é sem perceber o princípio por que fazemos; por isso o que se faz por amor, ou vaidade, parece-nos que é feito por zelo, ou por virtude. Qual é o hipócrita, que conhece a sua hipocrisia? Qual é o vanglorioso, que conhece a sua vaidade? Qual é o amante, que conhece o seu delírio? Que fácil cousa é o distinguir tudo nos outros, e que dificultoso o distinguir alguma cousa em si! Qual é o pai, a quem o filho parece enorme? Não só há geração de filhos; também há geração de acções: as nossas maldades não nos parecem mal, porque são nossas, nós fomos os que as produzimos; a natureza não só é mãe do que faz perfeito, mas também do que faz defeituoso; é piedosa ainda com um monstro, não por ser monstro, mas porque ela o fez; a terra não só cria a rosa, mas também os seus espinhos; não se empenha em produzir o bom, mas em produzir; a perfeição de alguma sorte não se compreende na ordem da maternidade, mas é cousa como adventícia, estrangeira, e acidental. Nas acções dos homens também deve de haver alguma espécie de fecundidade; esta fica satisfeita só com as acções, contenta-se com ser progenitora; a qualidade do que produz fica sendo como matéria separada; por isso a nossa inclinação toda se dirige a obrar; a qualidade da obra, é eleição do amor, do interesse, e da vaidade. Origem depravada, péssimos consultores! Que pode obrar o amor, senão desvarios? Que se pode esperar do interesse, senão injustiças; e a vaidade que pode fazer, senão tiranias? Estas são as que guiam para os Claustros tantas fermosuras desgraçadas: não são desgraçadas por irem para os Claustros, mas pelo modo com que vão. Que maior desgraça do que deixar o mundo por força, e ficar nele por gosto? Como há-de chegar à terra de promissão, quem leva o Egipto na memória? Quantas estátuas de sal se haviam de ver, se as mulheres se convertessem nelas por olharem, para o século que deixam! As galas com que vão ornadas, é o encanto que lhes vai suspendendo, e enganando a dor; semelhantes ao cordeiro manso, que primeiro o cobrem de flores, para o irem entregar às chamas: ornatos alegres, e luzidos, mas funerais! Quais são as mulheres que não choram ao proferir das palavras fatais, por que se obrigam até à morte? Esta sentença irrevogável elas mesmas são as que cantando em altas vozes a publicam; mas que pouco pode encobrir o fingimento do canto a verdade da lamentação! Que doçura pode haver em uma voz agonizante? A consonância sempre se vem a terminar em pranto; aquilo não são vozes, são ecos do coração; o eco é o fim da voz que acaba; por isso todo o eco é triste, porque é fim; e com efeito o que se vê naquela hora, é o fim de uma mulher que acaba: o mesmo véu que a cobre, é luto; tudo nela são sinais de aflição, e de tormento, por isso leva os olhos abatidos, errantes, e confusos, os passos mal seguros, o aspecto vacilante, e tímido, e assim mais parece, que caminha para o túmulo, que para o tálamo: as lágrimas, fiéis intérpretes da alma, são as primeiras que reclamam tudo quanto ali se diz, e se promete; elas negam o que as palavras afirmam; a quem havemos de crer mais? Pelas lágrimas se explica a alma, pelas palavras muitas vezes se explica o engano: quem chora certamente sente, quem fala só se exprime; por força podemos dizer o que não queremos, nem sentimos, mas não se pode sentir, nem querer por força, aquilo que na verdade nem se sente, nem se quer: a língua sabe mentir, os olhos não; por isso os votos, que se fazem com violência, sempre se fazem com lágrimas, e também por isso raras vezes se cumprem; porque o coração, e a vontade não prometeram nada; aquilo que só exteriormente se promete, só exteriormente se guarda; as palavras sem tenção não formam Sacramento, o que se faz por temor, não obriga: um sacrifício involuntário, é sacrifício de sangue, e Deus não se agrada já dos holocaustos.

Mas que grande diferença vai de uma mulher, que professou por força, a uma que professa por vontade! Esta deixou verdadeiramente o mundo; a outra apenas mudou nele de lugar; ambas entraram no Templo, porém uma só entrou para o profanar; uma foi chamada por Deus, a outra foi mandada pelos homens; uma foi para achar um Esposo divino, a outra foi porque não achou um esposo humano; ambas foram para a Religião, porém só uma ficou sendo Religiosa; ambas professaram, porém cousas contrárias; porque o que uma professou, não quis professar a outra; ambas disseram o mesmo, porém uma só disse de boca, o que a outra também disse do coração; uma fez o sacrifício, a outra só fez a ceremónia; uma fez o que a outra representou; uma fez o que mostrava que fazia, a outra só fez a forma, ou a figura; ambas se obrigaram aos três votos, porém uma foi com tenção de os observar, e a outra foi sem tenção nenhuma de os cumprir; e isto é porque uma deixou os seus pensamentos fora, e a outra nem os deixou, nem os levou; ambas iam para jurar guerra ao amor, e à vaidade, porém uma ainda queria paz com a vaidade, e com o amor; esta ainda tinha os ídolos inteiros, e a outra, ou os não tinha, ou os tinha já quebrados; finalmente ambas estavam no caminho da virtude, mas nem por isso eram ambas virtuosas; por um mesmo caminho iam a partes diferentes; o mesmo vento serve para muitos rumos; a mesma estrela serve de guia, para os que navegam encontrados; às vezes a origem do bem produz o mal: no mesmo lugar em que nasce a vida, se cria a morte; as cousas que são contrárias no fim, às vezes são as mesmas no princípio; de um mesmo tronco nascem ramos opostos; por uma escada sobem uns, e descem outros; a Religião é a escada por onde se sobe ao Céu, mas a ninguém se há-de fazer subir por força; porque então há o risco de cair. Muitas mulheres entram nas Clausuras, porém umas vão ser pedras de escândalo, e outras vão ser imagens de uma alma santa; umas vão perverter, e outras edificar; estas são as que estando ainda na terra, já estão vendo os Céus abertos: almas ditosas, pois que do instante em que foram buscar a Deus, logo começaram a ser bem-aventuradas! E que bem vieram a saber, que para achar a Deus, basta o buscá-lo: unidas em espírito a um Esposo eterno, cujo amor é divino, cujo poder é supremo, e cuja misericórdia é infinita, já parece que vivem transformadas nele. Feliz semelhança de uma transubstanciação prodigiosa! E quem duvida que é celestial uma alma em quem Deus vive, e que vive em Deus? Por isso nela pode pouco a humanidade, porque a mesma graça que a anima, também a exalta, e fortifica; a mortificação não lhe serve de tormento, de alívio sim; o seu martírio é a sua glória. Que meio admirável de converter em gosto as penalidades da vida; e que remédio infalível, para que a dor sirva de delícia!

Que se enfureça o mar, que o universo trema, e que as nuvens chovam raios, nada atemoriza a uma consciência justa: a virtude leva consigo a tranquilidade; esta é semelhante a um dia sereno, e claro, em que todo o horizonte se cobre insensivelmente de uma luz brilhante, e igual; e em que toda a natureza se alegra, e enche de vigor, e alento; então se vê que os campos variamente matizados, mostram a verdura mais viçosa, e que de mil produções diversas formam um labirinto fácil, vivo, e agradável; então o ar puro, e imóvel, faz que as fontes corram, e não murmurem; que as aves cantem com mais suavidade, e mais ternura, e que as flores cresçam livremente; assim devia ser, porque em um belo dia, não há vento que encrespe as águas, que perturbe as aves, e que desfolhe as flores; só então é que os montes são anfiteatros, que servem de decoração aos vales; e estes pelo seu silêncio, são os que despertam na memória, uma contemplação activa, cheia de fervor, e saudade; finalmente em uma alma virtuosa tudo é descanso, e paz. Neste estado vive aquela que foi ser Religiosa verdadeira; a outra que só o foi no modo da ceremónia, vive aflita, arrependida, e embaraçada; tudo parece que lhe foge; nada alcança, sempre traz oprimida a vontade, o desejo ansioso, a esperança cansada, os passos irresolutos, e o pensamento ocupado em ambições, amores, e vaidades. Não pode haver maior desassossego porque a ambição, por mais que consiga, nunca se contenta, e a inveja que a acompanha, só lhe faz notar com aversão os bens dos outros; a vaidade em presunções, e altivezes, se consome; a arrogância que lhe assiste, para sua confusão, faz acordar nas gentes a notícia de uma origem miserável, e por consequência de um injusto, e mal fundado orgulho. O amor todo se compõe de ânsias, e suspiros; um amante, só enquanto chora, é firme; ama enquanto tem de que se queixe; o que faz acabar o amor, é a ventura; rigorosa felicidade, pois que para existir, é necessário que não chege, e para durar, é necessário que a não haja! Sempre o amor dependeu de contradições, e de implicâncias: e assim se vê que a vaidade, o amor, e ambição, são os verdugos de uma alma pecadora; por isso vive em sobressaltos, e vive cuidadosa sem saber de quê, e inquieta sem saber porquê. O encanto da culpa, por mais que lhe tire a lembrança dos motivos, não lhe pode tirar a angústia deles; a cada passo lhe parece que a terra se subverte, ou que se abre o abismo; o ruído de uma folha que cai, a suspende; em cada voz cuida que ouve a fatal sentença, que sendo dada condicionalmente no princípio do mundo, só se publica no fim dele. O sábio que comparou o ciúme ao Inferno, talvez que melhor fizera, se ao Inferno comparasse a fealdade do pecado; e com efeito se há cousa que se pareça ao Inferno, certamente é o pecado, e a este só o Inferno pode ser de algum modo comparável; assim devia ser, porque uma cousa foi feita para a outra. Entre tudo o que causa espanto, só o horror de uma noite escura é semelhante à culpa; e na verdade que maior horror do que ver a terra coberta de sombras, e combatida de uma tormenta furiosa? As pedras parece que se quebram, as torres que se precipitam, os edifícios que se abatem, e as árvores que se arrancam: a força da tempestade, tudo o que encontra desfaz, e despedaça tudo o que resiste; o que é sólido, e seguro, está mais exposto, e arriscado; na fortaleza consiste o maior perigo; já não é um, mas muitos ventos que entre si pelejam; as gentes umas assombradas, buscam nas planícies um amparo menos duvidoso; as mesmas feras deixam as cavernas; a todos parece que é menor o mal, entregando-se a ele sem abrigo, e sem defensa; outros com súplicas, com votos e protestos, recorrem ao favor da Omnipotência, e procuram achar nos templos um asilo sagrado; a luz dos relâmpagos repentina, e pálida, a cada instante se mostra, e os olhos tímidos, e assustados, também a cada instante se fecham; alguma vez havia de fazer pavor a luz. Segue-se depois um dilúvio de água; abrem-se as cataratas do Céu; os elementos se unem, como para destruir a habitação, e habitadores da terra; mil inundações conduzem para o mar os sinais lastimosos das ruínas; alguma vez havia de ser o mar quem recebesse em si os restos do naufrágio. Esta pintura que a imaginação dibuxa, e que a experiência mostra, é o retrato de uma alma em culpa; esta debaixo de um semblante alegre, encobre sustos, temores, e agonias; o pecado tem horas em que dentro de nós mesmos nos acusa, e estas são as horas por onde começa a pena do pecado; o conhecer o crime é por onde começa o castigo dele; e quem há que não conheça a sua culpa? Esta o que a faz criminosa, é o conhecê-la; a inocência não é mais do que uma falta de saber; a ignorância faz os brutos impecáveis. Todas as mulheres sabem que o buscar a Clausura por Vontade, é o meio de evitar o vício; mas que importa? Nem por isso vão por aquele caminho, se as não levam; não basta que as guiem, se também as não arrastam. Cruel condição da natureza humana! Que oculta simpatia terá connosco o mal, que antes o queremos seguir por entre espinhos, do que ao bem por entre rosas? O caminho, que conduz para as felicidades do Céu, por mais que seja largo, e alegre, parece-nos estreito, e triste; e aquele que conduz para as felicidades da terra, por mais que seja triste, e estreito, parece-nos alegre, e largo; mas que há-de ser, se somos terra. Compramos o vício à custa de trabalhos, e aflições; a virtude não a queremos de graça; ao vício estimamos, porque depende de objectos exteriores, e estes muitas vezes custosos, incertos, e arriscados; desprezamos a virtude, porque só depende de nós; bons podemos ser sempre, porque basta que o queiramos ser; para sermos maus, necessitamos de ocasião. Quantos danos traz consigo a facilidade! Os três votos, que se julgam tão pesados quando se professam, são os mesmos com que todos vêm ao mundo; todos nascem pobres, castos, e obedientes; a pobreza, e a obediência quem as conserva é por força; a castidade só por vontade se pode conservar; e com efeito quem há-de segurar um voto, que se quebra só com o desejo? A castidade do corpo dificultosamente se guarda, a da alma, ainda com mais dificuldade; não sei em qual das duas consiste a castidade verdadeira; se consiste na do corpo, essa é material, e está sujeita a mil enfermidades, e acidentes, e talvez pode perder-se sem consentimento de quem a perde; e seria injusto, que uma qualidade tão bela, e em que se funda a virtude mais superior, ficasse dependente da força, do tempo, da opinião, e também de algum sucesso involuntário; é pois na alma o donde consiste a castidade mais perfeita, e verdadeira; mas sendo assim, donde se há-de achar a castidade, pois para corromper-se, basta um instante de vontade, de inclinação, de pensamento, de amor?

Na república das letras não há menos vaidade que na república das armas; sim é uma vaidade metafísica, espiritual, e que na sua origem tem uma existência vaga, e inconstante; mas por isso mesmo é mais vã do que outra nenhuma vaidade. O seu objecto, são os discursos, e a disputa, objectos sem corpo, vãos por natureza, e por instituto. O campo desta vaidade é a imaginação: campo vasto ainda quando é infecundo; e que brota lírios, e violas, quando não produz rosas, e assucenas. Assim que entramos no mundo, entramos também a defender a nossa opinião; neste combate se passa inteiramente a vida: a guerra do entendimento não tem fim senão connosco; guerra feliz em que ninguém fica vencido, ou ao menos em que ninguém crê que o foi, e em que cada um pela sua parte canta a vitória! A razão nos arma contra a razão mesma; cada um cuida que a tem por si, que a vê, que a toca, e que a conhece; sendo que quási sempre, o que temos por razão, não é mais do que uma sombra dela, e ainda essa mesma sombra é tão escura, e escondida, que quando a encontramos, é mais por sorte que por experiência, e mais por acaso que por estudo. O ter ou não ter razão, é verdadeiramente a guerra em que se passam os nossos dias, e os nossos anos. O não ter razão argue vício na vontade, ou erro no entendimento: que defeitos estes para que a vaidade os reconheça?

Contra o nosso parecer, nunca achamos dúvida bastante, contra o dos outros sim. A vaidade é engenhosa em glorificar tudo o que vem de nós, e em reprovar tudo o que vem dos outros: nas produções do engenho há uma espécie de criação; daqui procede que ninguém se desdiz sem repugnância, porque a natureza é inflexível no intento de conservar aquilo que produz, e a vaidade nunca renuncia ao lustre da invenção; queremos produzir muito, e meditar pouco, por isso erramos; mas depois que o erro se naturaliza em nós, já o não vemos, senão com a figura de razão.

É mais fácil sustentar uma opinião má, do que escolher uma boa; porque o erro é como um edifício, cuja fábrica exterior é composta de uma infinidade de ângulos; com algum destes encontra o discurso facilmente, porque são muitos, em lugar que o acerto é como um ponto fixo no meio de uma esfera; o discurso que anda vagando à roda, não vê o ponto, porque este é só um; do mesmo corpo nasce a sombra que o encobre: são inumeráveis as linhas, que se podem lançar de uma circunferência para um centro comum; alguma linha há-de ver-se, porque são muitas, e o centro não, porque é único: a superfície do globo impede o poder ver-se a sua concavidade; ou se há-de ver uma cousa, ou outra; ambas ao mesmo tempo não pode ser.

Sobre o mesma caso, há muitas opiniões más, e só uma é boa; por isso esta acha-se com trabalho, e a outra com facilidade. Há mil caminhos que vão ter a uma má opinião, e só um conduz para a que é boa. A rectidão de uma linha só se faz por uma forma, por isso é dificultosa; a obliquidade faz-se por muitos modos, por isso é fácil. Cada cousa que vemos, é por entre uma infinidade de outras cousas; a opinião também se mostra por entre uma infinidade de outras opiniões; e da mesma sorte a razão, que se oferece, é por entre uma infinidade de outras razões; neste labirinto nos perdemos. Cada cousa tem tantas partes por onde se considere, que de qualquer modo que a imaginemos, sempre achamos argumentos, que ou nos persuadem o erro, ou nos confirmam o acerto; daqui vem que há opiniões para tudo, assim como para tudo há exemplos. Aquilo, que nos parece que é sem dúvida, é donde às vezes a há maior. As águas do Oceano, por mais que sejam cristalinas, nem por isso deixam ver o fundo que as sustenta; que importa que sejam claras, se são profundas? Recebemos as ideias, que o entendimento nos propõe, ou certas, ou duvidosas; e assim as conservamos: o emendá-las é difícil, porque a emenda depende do mesmo entendimento, que erra. A vaidade faz a obstinação, porque é como um juiz inexorável, que nunca muda, nem reforma; se é que o amor da produção não concorre ainda mais.

A vaidade de adquirir nome, é inseparável de todos os que seguem a ocupação das letras; e quanto maior é a vaidade de cada um, tanto é maior a sua aplicação: não estudam para saberem, mas para que se saiba que eles sabem; buscam a ciência para a mostrarem; o seu objecto principal é a ostentação, e assim não é a ciência que buscam, mas a reputação; esta é como as outras, em que o adquirir é mais fácil que o conservar; e verdadeiramente o conseguir-se um nome, pode ser obra de um dia, ou de uma hora; o conservá-lo é empresa de toda a vida. Do acaso de um sucesso pode resultar um nome grande, mas de um acaso, não pode resultar a conservação dele. Bem se pode ser feliz por acaso; mas não se pode por acaso ser sempre feliz. A fortuna não só governa as armas, mas também as letras; porque a memória, se uma vez se permite com abundância, nega-se mil. Em qualquer estado, se tem a reputação por felicidade; porém esta é difícil conservar-se à proporção que é grande. Algumas vezes pode depender de nós o buscar uma ocasião favorável, de que venha a proceder um grande nome; porém não está na nossa mão o fazê-lo durar. Um merecimento, ou um saber pequeno, pode fazer adquirir uma grande fama, e o maior merecimento junto ao maior saber, não basta para a conservar. Por mais bem fundada que seja uma grande reputação, nem por isso é possível o ter segura a opinião das gentes. Os homens cansam-se de admirar; passados os primeiros movimentos em que as cousas raras atraem, como por força, o nosso louvor, e aprovação, depois, a vaidade de quem admira, é a primeira que se desgosta; irrita-se contra tudo o que é superior. Uma qualidade eminente que vemos nos outros, fica-nos sendo como uma qualidade adversária, e oposta. A vaidade, ou a inveja, que ela produz, não só se dirige contra a opulência alheia, mas também contra a alheia sabedoria; a ciência não tem maior inimigo, que a ignorância: tudo o que está em lugar alto molesta-nos a vista e a atenção; só o que está no lugar em que nós estamos, não nos ofende. A igualdade, e uniformidade é natural em tudo; por isso os que se afastam desta lei universal, ficam sendo odiosos aos que se conservam nela. Há muitos meios para subir; a vaidade é a que guia a todos; e com efeito sem vaidade ninguém sobe, nem procura subir; estes sim ficam confundidos em uma vulgaridade escura, mas ninguém lhes examina se os passos com que sobem, são justos, ou injustos; as asas da vaidade também se derretem. Quem não tem vaidade não desperta a dos outros contra si.

Os que crêem que sabem mais que os outros, ou se enganam, ou se persuadem bem: se se enganam, o mesmo engano lhes serve de ludíbrio; se se persuadem bem, a vaidade da ciência os faz tão ferozes, e severos, que ficam sendo insuportáveis. A ciência humana comummente se reveste de um ar intratável; imagem tosca, desagradável, e impolida. A especulação traz consigo um semblante distraído, e desprezador; quanto melhor é uma ignorância civil. Toda a ciência se corrompe no homem; porque este é como um vaso de iniquidade, que tudo o que passa por ele, fica inficionado: as cousas trabalham por se acomodarem ao lugar donde estão, e por tomarem dele as propriedades, só com a diferença, de que as cousas boas fazem-se más, porém estas não se fazem boas. Nas sociedades, o mal é mais comunicável; a perdição é mais natural; o que é bom, mais depressa tende a perder-se, que a melhorar-se; os frutos da terra quando chegam ao estado de madureza, nem persistem nele, nem retrocedem para o estado de verdura; antes caminham até que totalmente se arruinem; por isso o último grau de perfeição, costuma ser o primeiro na ordem da corrupção. Naquilo em que a Providência não predefiniu um ser permanente, e inalterável, a natureza não cessa de mover-se enquanto não desfaz, enquanto não corrompe, e enquanto não acaba. A ciência acha no homem propensão para a vingança, para a ira, para a ambição, e para a vaidade; nenhuma destas inclinações lhe tira, antes as conforta; porque a ciência não vem fazer um homem novo; assim como o acha, assim mesmo o deixa. As notícias, que alguns foram alcançando pela sucessão dos tempos, e que para as fazerem respeitáveis, e as conservarem em uma majestade primitiva, as foram caracterizando com nomes pomposos, e pouco inteligíveis, uns Latinos, outros Gregos, outros Arábicos, como Filosofia, Geometria, Álgebra, essas tais notícias a que chamam ciências, não se adquirem brevemente, nem é trabalho de um dia, mas de muitos anos, e de toda a vida; e desta sorte antes que qualquer ciência se introduza em nós, tem tempo para se adjectivar, e familiarizar connosco, e para se consubstanciar com todos os nossos vícios, e com todas as nossas inclinações; e nesta forma quando as ciências chegam, não é para nos emendar, porque já vêm tarde; e se então nos emendamos, essa emenda não é efeito da ciência, mas da nossa debilidade. Os homens mais facilmente se mudam, do que se emendam; quem muda é o tempo, a ciência não. Comummente o que nos faz deixar os vícios, é a impossibilidade de os conservar; e ainda então o que perdemos, é o uso deles, e não a vontade; largamos o exercício, e não o afecto; desistimos da ocupação, e não da inclinação; e finalmente nós não somos os que deixamos os vícios, eles são os que nos deixam; nós os seguimos de longe, e por mais que os sigamos cansados, nunca os perdemos de vista; quando não podemos ir, os objectos nos arrebatam; a memória dos nossos vícios passados, nos está servindo de vício presente ; e quem sabe quais são os que obram com mais vigor, e mais activamente? A imaginação não é cousa tão sem corpo como nos parece; talvez que não tenha de menos que o ser mais subtil, e desta qualidade o que pode resultar, é o ser mais durável. Não sei se houve já quem reparasse, que o gosto dos sucessos são menos atractivos na realidade, do que são depois lembrados; a complacência não é tão forte, quando a primeira vez se mostra na verdade, como quando se repete na lembrança, e se representa sempre; o susto do perigo não é tão grande no instante que sucede, como é depois que se recorda, e isto é porque o corpo é susceptível de um pasmo tal, que fica como absorto, imóvel, e insensível; só a imaginação não se entorpece facilmente, por isso recebe as impressões do gosto, e do pesar, em toda a sua força, e em toda a sua extensão; o pensamento é o lugar em que a natureza se concentra, e fortifica; daqui vem que tudo quanto se sente, ou se vê com o pensamento, fica sendo mais visível, e mais sensível. Não é pois a ciência a que nos ensina, o tempo sim; a ciência é como um cristal claro, que posto sobre uma má pintura, sim lhe dá lustro, mas não a faz melhor, nem de mais valor; a luz que é símbolo da perfeição, não faz mais perfeito nada do que alumeia; cada cousa guarda o seu defeito original; e assim devia ser, porque a natureza de cada cousa também se compõe do seu defeito, e este quem lho tira, desmancha a mesma cousa, porque a desune, e a separa: em qualquer composto não só é parte principal o que há nele de excelente, mas também aquilo que tem de inferior; o dividi-lo ou emendá-lo seria o mesmo que perdê-lo: em um medicamento também entra o simples amargoso, e este se se tira, fica o remédio sem virtude. Tudo é singular na sua espécie: o verdadeiro ser das cousas não depende da aprovação do nosso gosto; de parecer mal, não se segue que o seja; as cousas menos estimáveis, e ainda as mais aborrecidas, tiveram famosos Apologistas; nós regulamos tudo pela nossa sensibilidade, e nesta é que costuma haver o engano; isto vem a ser o mesmo que pesar por um peso falso; medir por uma medida errada; e calcular por um compasso incerto; a infidelidade está no instrumento que pesa, e que mede; tudo o que julgamos, é segundo a nossa razão, e segundo, a nossa ciência: miserável instrumento, mil vezes falso, e enganoso! A ignorância tem produzido menos erros que a ciência; esta o que tem de mais, é que sabe introduzir, espalhar, e autorizar; e segundo a nossa vaidade o errar importa pouco; o ponto é sustentar o erro; e nesta forma o que a ciência nos traz, é sabermos errar com método.

E com efeito em que se acordam os sábios? Qual é a doutrina em que todos concordam, qual é o sistema em que todos convêm, ou qual é o princípio em que todos se fundam? Só a vaidade é certa em todos. Não há furor a que um homem se não entregue, só pela vaidade de ser cabeça de um dogma, ou de uma opinião. Vejamos qual tem sido o destino da Filosofia, que se diz ser a primeira das ciências. Os discípulos de Aristóteles dividiram-se em duas seitas, ou em duas parcialidades; uma foi a que chamaram Nominais, e outra a dos Realistas; os Nominais diziam, que as naturezas universais não eram outra cousa mais do que nomes; os Realistas, seguindo opinião contrária, afirmavam, que aquelas naturezas eram verdadeiramente cousas que existiam na realidade. Ocão, Frade Inglês e discípulo de Escoto, foi o cabeça dos Nominais, e João Duns o era dos Realistas; estes seguiam a Aristóteles mais literalmente; os outros não admitiam nenhuma entidade supérflua, tendo sempre por infalível o axioma do Filósofo, quando diz, que a natureza nada faz em vão. Estas duas seitas fizeram em Alemanha um tal progresso, que uma matéria inútil, indiferente, e puramente de opinião, veio a parar em fazer-se dela um ponto de honra; a vaidade de discorrer melhor animava com tal excesso a todos, que os argumentos só se decidiam pelas armas; os combates particulares vieram finalmente a reduzir-se a uma guerra viva. Introduziu-se aquele mesmo fanatismo em França, e chegou a tanto extremo, que Luiz XII, para o evitar, determinou, que em todas as livrarias se fechassem com cadeias os livros dos Nominais, para que ninguém os pudesse abrir, nem ler. Daquela sorte veio a ficar a doutrina de Aristóteles tão desfigurada, pelas subtilezas com que cada um queria sustentar a vaidade da sua opinião, que essa foi a causa principal de desprezar-se a Filosofia, e ficar parecendo odiosa a todos. Os livros de Aristóteles foram levados a França no século treze pelos Franceses, que tinham ido a Constantinopla; Amauri, que entrou a sustentar os seus erros pelos princípios daquele Filósofo, foi condenado como Herege por um Concílio de Paris celebrado em o ano de 1209. Este Concílio proibiu totalmente a leitura de Aristóteles, e condenou os seus livros ao fogo; a mesma proibição se tornou a renovar por um Legado, somente a respeito da Física, e Metafísica. Gregório IX diminuiu a proibição do Concílio de Paris por uma Bula expedida em 1231, proibindo a leitura das obras de Aristóteles, somente enquanto se não extirpavam os erros, que resultavam, ou podiam resultar da sua doutrina. Em 1366 os Cardeais João de S. Marcos, e Gil de S. Martinho delegados por Urbano V para reformarem a Universidade de Paris, concederam, que se pudessem ler várias obras de Aristóteles, exceptuando a sua Física. O Cardeal de Estoureville em 1452, fazendo vários regimentos para a mesma Universidade por mandado de Carlos VII, ordenou que os Estudantes, e Bacharéis fossem examinados pela Metafísica, e Moral de Aristóteles. Em 1601, concedeu à Universidade de Paris o uso, e lição das obras daquele Filósofo, e juntamente da sua Física; e à imitação da Universidade começaram todos os estudos públicos a seguirem a Filosofia Peripatética; esta foi combatida em 1624, por Conclusões; porém a faculdade de Teologia de Paris tomou a sua defesa: a Sorbona fez um Decreto, pelo qual censurou aquelas Conclusões, e o Parlamento por um Acórdão ordenou três cousas: a primeira que aquelas Conclusões fossem laceradas; a segunda, que todos os que as tivessem defendido, fossem riscados dos livros das matrículas; a terceira, que todos os que ensinassem algumas máximas, que fossem contrárias aos Autores antigos, e aprovados, incorressem em pena de morte. Em 1629 declarou o Parlamento, que se não podiam impugnar os princípios da Filosofia de Aristóteles, sem se impugnarem também os da Teologia Escolástica recebida na Igreja; porém não obstante todas estas proibições, e declarações, entrou Gassendo a escrever contra aqueles princípios; e Cartésio fez-se cabeça de um novo sistema, ou nova seita. Depois destes começou a Filosofia de Aristóteles a perder muito do seu primeiro lustre: hoje as Filosofias todas se compõem de Matemáticas; de sorte que já não há silogismo, que conclua, se não é fundado em alguma demonstração geométrica; na Física não se está pelo que se diz, senão pelo que se vê; pouco importa que se afirme que este, ou aquele Meteoro procede desta ou daquela causa, se isso se não mostra por meio de alguma experiência, ou instrumento. A formação das nuvens, do vento, da chuva, dos raios, e terremotos, e de outros muitos efeitos naturais, a Química não só ensina como se produzem, mas também os imita; e isto sem ser necessário saber se o silogismo está em Barbara, ou em Celarent. Um lambique, um Eolípilo, uma máquina Pneumática, e a mistura de vários corpos explicam mais em uma hora, do que um professor de Filosofia em muito tempo; o entendimento percebe melhor sendo ajudado pelos olhos, do que só por si. Nas mais ciências também tem havido fortunas, e desgraças: todas encontraram um tempo feliz, e outro infausto; a vaidade dos primeiros Mestres, continuada em seus sucessores como herança, foi a fonte, em que nasceram as ciências; destas a Monarquia principal, é a Europa; na maior parte do mundo, o desprezo das ciências passou à Religião; assim devia ser porque a vaidade, que resulta das ciências, é vaidade de homens livres, e estes só os há na Europa: o Despotismo reduziu as outras partes a escravidão. Que vaidade pode haver em um escravo? Este ou seja valeroso, ou sábio, nada disso é seu: o valor, e sabedoria também entram na escravidão; a vaidade que o escravo pode ter, também pertence ao Senhor; o edifício, a carroça triunfal, o alfange, a pêndula, são instrumentos incapazes de vaidade em si; da bondade deles só o Senhor se desvanece. Assim são os escravos; se há Autómates no mundo, são eles.

A vaidade das letras é maior do que a vaidade das armas; estas sim têm ocasiões de maior pompa, de maior grandeza, e de maior admiração; mas tudo nas armas é semelhante ao raio, cuja luz, e estrépito se extingue em um instante. Os Heróis nunca chegam a durar um século; as suas acções não duram mais, se a fortuna lhes não dá na república das letras alguma pena ilustre, que conserve a vida daquelas mesmas acções, já sucedidas, já passadas, e já mortas. A vaidade das ciências por ser uma vaidade pacífica na aparência, não deixa de ser altiva, e arrogante. As águas, que vão fazendo escumas, e que correm com ruído, não são as que assustam mais; aquelas que parecem negras, que passam em silêncio, e que apenas se movem, essas são donde o perigo é certo: nas praias é donde o mar se levanta mais, e faz estrondo; donde é pego verdadeiro, em que as ondas como em campo largo em si mesmas se abrem, se suspendem, e revolvem, não tem o mar bramidos, nem furor, mas é lá donde o risco é grande. O dano não costuma estar tanto, donde se mostra, como donde se esconde: assim são as letras, e assim são as armas; estas fazem o rumor, aquelas o estrago; as armas fazem o mal, mas acabam com ele, as letras o mal que fazem, dura; as armas cansam, as letras não; a espada nem sempre pode usar de força, e de traição; a pena sempre pode ser traidora, e aleivosa; é arma que não pode acautelar-se; quanto mais leve, e mais subtil, mais perigosa; daqui vem o serem as letras de algum modo inexpugnáveis, e por consequência vaidosas, porque o ser invencível precisamente influi vaidade; o combate das ciências entre si, são combates invisíveis, em que ninguém se rende; e o render-se valeria o mesmo, que uma confissão expressa de ignorância; e com efeito, de quem cede, nunca se presume haver cedido, porque conheceu a razão alheia, mas por falta de saber sustentar a sua; a fraqueza não se atribui à proposição, mas a quem a defende; de sorte, que a ciência não consiste em saber conhecer, mas em saber responder, e arguir; por isso quem mais disse, é quem mais soube: as letras não se costumam tomar pelo peso, mas pelo volume; fazem-se recomendáveis pela extensão; o ponto é que cresçam na quantidade, a qualidade é matéria indiferente; elas não avultam pelo que são, mas pelo que soam; regulam-se pelo aparato, e não pela substância; estimam-se pelo que parecem, e não pelo que valem; o que importa nelas, é ter no exterior um brilhante falso, cujo resplendor furtado escandalize os olhos de quem o quiser ver de perto; basta que a atenção fique assombrada com o aspecto de uma imagem nova, ainda que na verdade não seja mais que uma fantasma; a superfície deve estar coberta de uma claridade intensa, e forte; o fundo seja embora confusão, cegueira, caos. Só o que é precioso, é todo o mesmo em si, e o mesmo em todas as suas dimensões: o diamante não tem parte em que não seja diamante; a roda que o pule, por mais que lhe multiplique as faces, em todas o acha igualmente duro; não é mais sólido em um lugar, que em outro; a porção, que o engaste cobre, não é inferior àquela que se mostra; a luz por toda a parte encontra nele a mesma resistência, por isso retrocede reflectida, como em vibrações de várias cores. Não são assim comummente as letras; o que há nelas de agradável, é o que fica exposto à vista, e por isso ornado de emblemas, de proporções, de correspondências, e figuras; o mais é um labirinto informe, rude, e indigesto; o metal burnido aplicado fora, não deixa ver por dentro o pau sem lustro, nem valor.

São raros os que nas letras buscam a ciência; o que buscam, é utilidade, e aplauso; este é objecto da vaidade, aquele da ambição; outros há, que quando buscam as ciências, nelas buscam tudo; não só interesse, louvor, e aprovação dos homens, mas também um quási domínio deles; as letras são armas com que querem adquirir sobre os mais homens um direito de conquista: esta ideia ou esperança, parece que nasce com eles e com eles cresce; ainda estão nos primeiros elementos das primeiras artes, quando logo se propõem aquele intento; para este se encaminham todos os seus passos; das virtudes, e dos vícios seguem aqueles, que conduzem para aquele fim; e assim não são virtuosos, nem viciosos por natureza, mas por ocasião: a natureza não os fez maus, nem bons; eles é que se fazem a si, por seguirem o que a ocasião pede. Sempre estão prontos para deixarem a virtude, e abraçarem o vício, e também para deixarem este, e abraçarem a virtude, contanto que disso dependa a sua elevação. Deslealdade, fé, religião, hipocrisia, tudo para eles vale o mesmo; olham para os vícios, e virtudes, como para vários instrumentos de que um artífice perito se sabe servir a tempo, não segundo o que a razão pede, mas segundo o que pede a obra; para que ninguém os siga, nem conheça, vão desfazendo, ou escondendo os degraus por onde sobem, e só no último se mostram, mas então já têm na mão o raio, já não são imagens de pequena consequência; são constelações formidáveis e funestas; àquela altura nenhum incenso chega; o respeito mais profundo, é vulgar; o que exigem, é silêncio, e adoração; e ainda esta há-de ser de longe, porque o chegar a eles de algum modo, é sacrilégio. Os sábios venturosos, de tudo fazem asas, até das cousas mais impróprias para voar; por isso qualquer crime neles fica sendo uma acção justa; nos outros uma culpa leve é delito atroz: para tudo têm uma multidão de aplicações, e inteligências; estas são as que dão ser a todas as suas cousas; e todas nas suas mãos mudam totalmente de figura; nada lhes parece como parece aos outros; querem reformar o mundo, pouco reformados em si; soberba, ambição, grandeza, são os três pólos, em que se estabelecem, e se fundam; aqueles são os ídolos, a quem unicamente sacrificam, e de quem eles são ao mesmo tempo, retratos, e originais, ídolos, e idólatras; Narcisos das suas acções, e sobretudo das suas letras, eles são os primeiros que se admiram, e se aplaudem; e tudo com tal arte, que aquela admiração sem fé, por ter neles mesmos um princípio errado, e suspeitoso, eles de tal sorte a espalham, que depois de introduzida, vem a servir-lhes de título legítimo; e se há por acaso quem duvide, já é tarde, porque na fama também cabe prescrição; é como uma posse, que fica sendo prova do domínio. O vulgo tudo o que recebe, é sem exame, e depois, antes quer permanecer no erro, do que entrar a examinar; e com efeito é mais fácil ir com os que vão, do que parar para os suspender; por isso os que adquirem opinião de sábios, ficam graduados por aclamação, mas essa opinião devem à fortuna, e não a si, porque as mais das vezes apenas saudaram de longe as letras; e assim se verifica, que a quem tem fortuna, basta o saber pouco; se é que para fortuna o saber não basta. Tanto é certo que as cousas se implicam, e confundem tanto, que nas mesmas razões, em que se funda a razão que afirma, também se pode fundar a razão que nega; daqui vem, que é motivo de uma grande vaidade, o saber retorquir a força do argumento contra quem o faz, à maneira de um guerreiro, que desarma outro, para o deixar sem defesa, e para o render com as suas próprias armas; também com o discurso fabricamos armas contra nós, e essas são as mais fortes, porque é como um mal que se forma dentro em nós, e que é maior à proporção que é nosso: o dano exterior admite mais reparo.

Não são as ciências as que costumam pacificar o mundo; desordená-lo sim. O exercício, ou a vaidade das letras, toda se compõe de discussões, objecções, e dúvidas; a disputa em si é cousa mais principal do que a matéria da questão: alteram-se os ânimos, mas não se persuadem, porque não disputam pela razão, mas pela disputa; e esta se se acaba, é porque acaba o tempo dado para disputar; o relógio aparta os combatentes; estes separam-se, porém nenhum vai sabendo mais; porque como no argumento não buscavam a verdade, por isso esta sempre fica ignorada, oculta, e desconhecida; o ponto é, que fique satisfeita em um a glória de arguir, e em outro a vaidade de responder; e assim não se tratam as cousas, tratam-se as palavras delas; daqui vem, que o ficar vencido na forma, é o mesmo que ficar vencido em tudo; porque a substância é como cousa estrangeira, e indiferente. De dous textos contrários a fadiga que resulta, é ver, se há meio de os poder unir, e conciliar; que a razão esteja em um, e não em outro, isso importa menos; a arte está em subtilizar de sorte, que ambos os textos fiquem conservados, e que a nenhum se tire a sua autoridade magistral; tire-se embora a fé à verdade, e à justiça; porém não ao texto; este sempre deve servir de regra, por mais que seja regra errada, e não direita; o empenho da vaidade não está em descobrir a verdade, mas em ostentar v. g. uma erudição Rabínica, e mostrar que na língua Hebraica, a palavra alma nunca significou outra cousa senão virgem. Como a vaidade das ciências traz consigo um desejo imenso de adquirir nome, este parece que se adquire à força de vozes, e estas devendo ser de fora, costumam sair do mesmo sábio pretendido; ele é o que entoa o cântico, e sempre acha na turba quem o siga; na confiança de começar, encontra-se uma espécie de valor de que a fortuna se namora; a resolução de pegar nos louros, e nas palmas, faz parecer que são suas; há muito que as ciências têm o privilégio de poderem elas mesmas coroar-se a si; e com efeito o saber na realidade mais, ou menos, é segredo, que fica escondido; estamos pelo que indicam as insígnias; e nas letras, uma parte do que vemos, são edifícios vãos, compostos somente de soberbo frontispício; e este, por mais que inculque um fundo grande, quem lho busca, não o acha; por isso tem fechadas as portas; e se algum entra, é daqueles, que sabem o defeito, e têm interesse nele; os mais todos são profanos. A sabedoria humana é como a cortina do teatro; nela se vêem pintados primorosamente jeroglíficos, medalhas, inscrições, e atributos; e nesta variedade de acções, e de sujeitos, se suspende a vista; e o coração que admira, todo se deixa penetrar de um respeito, ou medo venerável; mas se algum impaciente, e indiscreto força a cortina, e entra, o que vê, é um lugar escuro, embaraçado, sem ordem, nem asseio; vê Actores ainda cobertos de roupas miseráveis; alguns, vestida a gala, e empunhado o ceptro (adornos alheios e supostos), vê chegados a uma luz desanimada, recordando de um papel imundo as palavras de que a memória se encarrega com trabalho; outros defronte de um espelho sombrio, exercitando a cadência dos passos, das acções, do gesto, e revestindo os semblantes de um aspecto alegre, ou triste, e de um ar de soberania, de valor, e de justiça; vê as Actrices, que não menos cuidadosas, ali mesmo se ajustam, e preparam; e que algumas apesar do tempo, e a milagres do artifício, cuidam que reparam em brevíssimos instantes, a ruína que fizeram muitos anos, semelhantes às serpentes quando se renovam, mas não tão felices; todas em um espelho portátil estudam amor, desdém, severidade, contentamentos, lágrimas; tudo aprendem no cristal, mestre mudo, e fiel, e que mudamente ensina a propriedade, o ar, a graça; mas que importa, o ar é vão, a graça é enganosa, e a propriedade é falsa; o representar é mentir; desde que a cena começa, até que acaba, não se vê mais do que um fingimento de acções, e de figuras; quem mais se distingue, é quem melhor exprime o que não sente, e quem parece melhor o que não é: a arte não está em imitar, mas em contrafazer: as sombras substituem o lugar das cousas; e a relação da história, fica sendo a história mesma; o mentir por aquele modo, é um meio fácil para imprimir facilmente na memória os sucessos passados; é uma tradição, que se comunica agradavelmente, não só pelo que se ouve, mas também pelo que se vê: alguma vez havia de ser útil o engano; e com efeito daquela sorte vemos os combates sem perigo; as virtudes vemos com gosto; e se vemos também os vícios, é sem entrar neles, para os aborrecer, pela fealdade com que se mostram, e não para os seguir. Em teatro maior, e em maior cena se passam, e representam as vaidades do mundo, e entre elas a vaidade das ciências; o homem não se entende a si, e cuida que entende a fábrica dos Céus; ignora a ordem da sua própria composição, e crê que não ignora o de que se compõe a terra; não sabe a economia dos seus mesmos movimentos, e julga que sabe o como se move o Universo; finalmente não se conhecendo a si, presume que tudo o mais conhece. A vaidade do saber parece que arrebata o homem, e que em espírito o faz circular os orbes celestes; lá conta o número dos cristalinos, vê a esfera do fogo, e mede a distância, o giro, e grandeza dos Planetas; porém assim que torna a si, nada do que tem em si sabe, nem conhece: vê um corpo sabiamente organizado, e nele acha vontade, inteligência, ira, aversão, vaidade, desejo, esperança, amor; acha um sangue que se move, e um calor que o anima; tudo distingue com nomes diferentes: paixões, sístole, diástole, espíritos vitais, húmido, radical; estes são os nomes, a que erradamente chamam das cousas, não sendo senão nomes dos efeitos; o que se conhece, ou sabe, é o efeito das cousas pela distinção dos nomes; mas o conhecer o nome, não é conhecer a cousa. Todos sentimos a impressão do ardor, mas ninguém sabe, o como essa impressão se faz; e desta sorte o que conhecemos, é o efeito do frio, e não o frio; vemos a determinação da vontade, mas não sabemos o como a vontade se determina. Quem é que sabe de donde vem o agrado da harmonia, nem o desagrado da dissonância? Uma voz suave nos encanta, um som áspero, e agudo nos molesta; mas quem há-de dizer o donde procede no som a suavidade ou a aspereza? Os efeitos mais sensíveis, e mais certos, são os da dor, e também do gosto; mas quem é o que conhece, de que se origina o gosto, nem de que se forma a dor? Ainda os efeitos das cousas conhecemos mal, só os sentimos; parece que só temos sensibilidade, e não conhecimento; aquilo que conhecemos, é porque o sentimos; do nosso sentir resulta o nosso modo de conhecer. Os primeiros princípios, e os primeiros movimentos reservou-os para si a Providência; o homem só ficou exposto a eles, para os admirar, e não para os saber. A vaidade das ciências toda se cansa em conjecturas, que faz passar por demonstrações; quando supõe, que encontra a parte, em que pode desatar o nó, então o aperta mais: os discursos perdem-se na imensidade vaga de uma matéria impenetrável; a natureza sabe eludir todos os nossos estudos, e conceitos; não é mais fácil no que mostra, do que no que esconde; não é menos reservada no que produz à superfície da terra, do que naquilo que forma no seu centro; só ela conhece as suas leis, e os seus segredos: vemos nascer a flor, cresce à nossa vista; mas nem por isso sabemos o como a flor nasce, nem o como cresce: a dificuldade sempre fica sendo a mesma; o nosso engenho todo se evapora, em belas fantasias, e em razões notáveis; mas estas só servem de enganar, ou de entreter a mocidade que começa, e que ainda não sabe por experiência, que a maior parte das cousas de que o mundo se compõe, nem se podem ensinar, nem aprender. A vaidade da sabedoria humana não se funda na certeza da ciência, mas na certeza da cadeira; esta à maneira de uma torre inexpugnável infunde terror; e o discípulo dócil, e inocente, recebe como de um oráculo as decisões do Mestre: os que estão debaixo da disciplina, vêem o barrete doutoral, como se fosse um resplendor, de cuja luz se não duvida; por isso a vaidade do Mestre exige respeito, e credulidade: esta é a primeira lição; a verdade sempre nos parece que está no lugar mais alto, e que brilha mais; e se a buscamos em outra parte, é sem ânsia, nem cuidado; o aparato exterior não só nos dispõe, mas também nos persuade; os olhos assombrados, não deixam o ânimo livre para resistir; a singularidade da pompa, não só autoriza, mas autentica; não só leva a si a nossa atenção, mas também a nossa submissão; não só nos faz obedecer, mas crer.

Os sábios da terra não são os mais próprios para o governo dela. As Repúblicas, que se fundaram, ou se quiseram governar por sábios, perderam-se, acabaram-se; temos notícia delas pelo que foram, e não pelo que são. Roma, essa ilustre capital do mundo, ou ao menos da maior República, que o mundo viu; essa universal conquistadora, para cuja glória concorreu a fortuna mais constante, e cujo poder se manifesta ainda, ou já referido nos seus Fastos, ou já representado nos vestígios preciosos das ruínas, como em obeliscos, arcos triunfais, colunas, circos, aquedutos, urnas sepulcrais; essa Cidade altiva em que o mundo se quis resumir, e abreviar; ela mesma conta a decadência do seu esplendor nativo, do tempo em que as ciências chegaram ao maior auge. Júlio César, famoso Herói, e sábio Capitão, foi o que nos campos de Farsália cortou de um golpe inevitável a liberdade à pátria, e se fez ao mesmo tempo senhor dela. Quem dissera a Roma, que no seu próprio seio se haviam de forjar os seus primeiros ferros; e que as fachas para a abrasar, se haviam de acender dentro dos seus muros! Roma, sempre vencedora, e invencível, cessou de o ser, assim que achou em um filho ingrato um sábio armado. As maiores crueldades, ou foram feitas, ou aconselhadas pelos Sábios; estes quando persuadem o mal, é com tanta veemência, e tão eficazmente, que as gentes na boa fé, buscam, e praticam esse mal, como por entusiasmo, e sem advertirem nele. A impiedade, é uma das cousas que a ciência ensina; não porque esse seja o seu objecto, ou instituto, mas porque quando a impiedade é útil, à força de a ornar, se lhe tira o horror. A vaidade das ciências não consente, que haja cousa de que ela não possa, nem se saiba aproveitar. Os erros comummente são partos da sabedoria humana; o errar propriamente é dos sábios, porque o erro supõe conselho, e premeditação; os ignorantes quási que obram por instinto; a ciência sabe legitimar o erro, a ignorância não; por isso nesta não há perigo de que niguém o aprove; em lugar que naquela há o perigo de que a multidão o siga. O erro na mão de um sábio é como uma lança penetrante, e forte; na mão de um ignorante, é como uma arma quebrada, sem uso, nem consequência. As cousas parece que recebem mais da forma, que se lhes dá, que da natureza que têm; não se atende à substância do mármore, ao polido sim; a dureza importa menos que a figura. As ciências são as que dão o lustre às cousas, e sempre dão o lustre que lhes parece; ou duvidoso, ou falso, ou verdadeiro; a vaidade, é o artífice.

Os Heróis são os que combatem, os que vencem, e conquistam; porém os sábios são, os que de algum modo reinam, e governam. O trabalho, e o perigo é dos Heróis; dos sábios é o fruto; aqueles contentam-se com a glória do vencimento, estes o que querem, é a utilidade da vitória; uns reservam para si a vaidade do nome, outros não querem mais do que servir-se da autoridade dele; o guerreiro semeia sangue, para o sábio colher flores. É certo, que cada Potentado não é mais do que um só homem; na campanha sim pode comandar a muitos mil: uma voz, um sinal, um clarim basta para fazer mover um corpo formidável; porém na paz não é assim, porque nela o governo é como uma guerra civil, que se faz entre os mesmos Cidadãos, e entre os mesmos naturais; então mandam os sábios; por ser guerra sem estrondo, não é menos arriscada; nela se vêem traições, ataques, subtilezas; aquilo que em guerra viva decide a espada, na paz decide a pena; esta também corta, ainda que não tão depressa, e nisto mesmo consiste um dos seus modos de cortar; a lentidão aflige à maneira de um martírio, que para ser maior, se faz por arte vagaroso; e com efeito a morte parece que não é morte quando chega, mas sim quando está para chegar; o último instante é insensível, porque é como um tempo, que se não compõe de tempo; a dor para se fazer sentir, necessita de espaço; por isso a agonia não é quando alguém acaba, mas quando está para acabar. Assim são as dilações, de que no ócio da paz se formam os conflitos; estamos vendo acabar-se a nossa vida, sem que se acabe a nossa dependência; esta vai ficando como herança; e para ser herança infeliz, sem estimação, nem preço, sempre passa com a qualidade de incerta, e duvidosa, porque sempre fica dependente da inclinação, do arbítrio, e do juízo humano: isto é o mesmo que não ficar sujeita a cousa nenhuma certa, mas a uma pura sorte. A fortuna, o tempo, a ocasião, o humor, a hora têm mais parte nas decisões, do que a lei, a verdade, e a justiça; esta, ou a sua imagem simbólica, em uma mão tem a balança e na outra a espada; mas que pesa na balança? Ponderações, discursos, e argumentos são as partes por onde o direito se governa; mas são partes, que se não podem pesar, porque não têm corpo, nem entidade; e assim já temos a justiça imprópria, até na mesma ideia da sua representação, e se a quisermos defender pela sua antiguidade, convenhamos em as as razões se pesem; mas em que mãos há-de a balança estar para ser fiel? Nas dos homens, certamente não; nas de uma Deusa sim. A espada tem mais exercício na justiça; por isso sempre está em acção, isto é, levantada; e com efeito o ferir é mais fácil, porque é mais fácil também o descarregar o golpe, que o suspendê-lo: a força que suspende, é violenta, a que descarrega, é natural; mas como pode a justiça ter na espada um exercício justo, se a balança na mão dos homens não tem uso, e se o tem é somente imaginário, e na realidade impraticável? A espada depende da justeza da balança, e assim vem a depender de instrumento inútil; sim depende de uma balança certa, para saber o como, o quando, e em que caso há-de ferir; mas para nosso mal, a balança na mão da Justiça, pintada é que se vê; não porque deixem de haver homens justos, mas porque a justiça verdadeiramente não se pode pesar; é um acto de discurso, e este em cada homem, é sempre incerto, vago, e vacilante. Para dar a cada um o que lhe toca, não basta ter uma vontade perpétua, e constante; nessa mesma vontade é donde o erro se introduz. Finjamos que o discurso é como um campo largo, em que a verde Primavera faz nascer aquela multidão de belas flores, mas entre estas, quem impede que não nasça alguma flor com vício, ou alguma planta agreste, inferior e errante? As flores nascem no campo, os discursos em nós; felices são as flores, pois foram produzidas na terra humilde, e por isso mesmo incapaz de vaidade, e ainda cheia de simplicidade virginal; infelices os discursos, pois nascendo em nós, nascem de um limo pecador, e por isso terra ingrata, impura, e adulterada.

Só Deus governa só. Os Potentados não podem governar, sem terem várias jerarquias, ou ordens de Magistrados; nestes delegam o poder; os Magistrados subdelegam aquele mesmo poder em outros, e estes o tornam a subdelegar; assim se forma um corpo vasto, composto de muitos membros, e todos animados por um mesmo, e único poder; este visto, e tomado na sua primeira origem, é justo, pio, verdadeiro, generoso, legítimo, protector, paterno; é um poder, em que parece está depositado ou delegado o poder de Deus; depois que sai daquele centro para dividir-se, ou repartir-se, logo se altera; enquanto está no trono, é puro; se se afasta dele, degenera; é como uma árvore, que se transplanta para um terreno impróprio; as águas são limpas quando nascem; depois fazem-se imundas, segundo os lugares por onde correm; o espírito não anima as partes, que estão fora do seu corpo, e a alma que parece, que habita em os membros todos, foge, e se retira, dos que foram separados; a claridade da luz não se comunica bem, se a distância em que está é excessiva; o fogo não tem calor, senão dentro da esfera da sua mesma actividade; as cousas postas fora da sua região tomam uma natureza contrária, e ficam outras. Que cousa pode haver, que pareça estar mais fora da sua região, da sua esfera, e do seu centro, do que o exercício do poder, e da justiça na mão dos sábios? Estes são pródigos daqueles atributos, usam deles como cousa emprestada, e alheia; a ciência que os fez subir, é o que desprezam mais; não porque totalmente desprezam a ciência, mas porque esta prescreve certos modos, e limites, que se não podem passar, nem deixar de chegar a eles; esta necessidade serve de angústia: é aperto o haver de seguir precisamente um caminho prescrito, e determinado: a vaidade da ciência não se acomoda em seguir, o que quer é que a sigam; não quer observar a regra, quer fazê-la. Os sábios sofrem mal o serem executores, e não legisladores; e com efeito a execução, soa uma espécie de servidão pública; por isso cada um se forma uma ciência particular, e esta é que propriamente é sua; daqui vêm os diversos pareceres; nem pode deixar de ser, porque nenhum sábio se governa pelos princípios comuns a todos, mas por aqueles que só a eles são comuns; e quando recorrem aos princípios dos outros, é para confirmação dos seus; mas como pode não ser assim, se é regra, que em certos casos não deve a regra servir de regra, nem o princípio de princípio, nem a lei de lei? Então vem a consistir a observância da lei, na transgressão dela, a conformidade com o princípio, consiste em se afastar dele, e a sujeição à regra, consiste em a violar; desta sorte vem a ciência a ser uma faculdade arbitrária, e fundada mais no conhecimento dos casos, do que no conhecimento das leis: estas são as que se aplicam, e na ocasião de serem aplicadas, é que têm o perigo de se quebrarem, ou torcerem; elas se quebram, e se torcem, ainda sem ser por fraqueza de quem as aplica, mas por culpa da mesma cousa. Vemos aqueles sábios, quási sempre desunidos; todos estudam as mesmas leis, mas no modo de as praticar, nenhum concorda; não só disputam quando aprendem, mas também quando sabem; em disputar passam todo o tempo de aprender, de ensinar, e de usar; o que argumenta, e duvida mais, é o que dá melhor sinal de si; o saber embaraçar mais, é o mesmo que saber mais; o aplauso não segue a quem tirou a dificuldade mas a quem a pôs; nem também a quem a desfez, mas a quem a fez; a ostentação não está em fazer assentar no que a cousa é, mas em arguir, e destruir tudo aquilo em que se assentar: célebre ciência, em que os ignorantes, parece que estão de melhor partido que os sábios! Estes vêem tanto, que a multidão das cousas que vêem, os confunde, e cega; aqueles vêem menos, e por isso vêem mais: a abundância de ciência faz aos sábios pobres de saber; neste caso a sabedoria está em poder tornar para o estado de ignorância; à maneira de alguém, que retrocede para buscar o que perdeu; alguma vez sucede a quem caminha, o passar além do lugar para donde vai; então quanto mais caminha, mais se perde; porque busca adiante aquilo, que já lhe fica atrás: tanto erra quem anda menos, como quem anda mais; e tanto se desvia quem não chega ao lugar, como quem o passa. Um vento muito forte ainda que seja favorável, é tormenta; a luz nem por ser muito intensa, é mais clara; as águas, que correm precipitadas, para pouco servem; a grande velocidade as faz inúteis, e incapazes; o peso não só fica sendo errado, por ter de menos, como por ter de mais; as cousas não só se arruínam por fraqueza, mas também por fortaleza; a saúde demasiada passa a enfermidade; o preceito não só se quebra pela diminuição da observância, mas também pelo excesso: algumas virtudes há, que são vícios moderados; a temperatura é como uma raia, que está entre o vício, e a virtude, e que distingue o bem do mal; nas ciências também se peca, por se saber nelas mais do que se deve saber: a nossa compreensão não é infinita; depois que recebe uma certa porção de inteligência, fica sem poder receber mais, e se se lhe quer introduzir com violência, cansa, e fica como imbecil, e enervada. Depois que um vaso está cheio de licor, o que se lhe deita mais perde-se, e muitas vezes do seu mesmo fundo se faz levantar uma poeira subtil, que o turva; daqui vem, que os sábios são confusos comummente, embaraçados, e irresolutos, à maneira de quem leva sobre si um grande peso, que sempre vai com medo, e devagar: a imensidade de regras, de opiniões, e de doutrinas, de tal sorte os ocupa, que ficam como presos, e imóveis: a variedade de razões, e de razões contrárias, que um sábio acha em qualquer cousa, o suspende em forma, que fica sem saber, qual razão há-de seguir; em todas considera fundamentos admiráveis para serem aprovadas, e para o não serem, também em todas considera fundamentos grandes; daqui vêm as dilações, irresoluções, e perplexidades; este é o caso em que aquilo, que não decide a inclinação, decide a hora; a fortuna é a que move a pena, que absolve, ou que condena. O sábio que flutua no meio de razões, e oposições iguais, finalmente lá se deixa levar por alguma razão exterior, e indiferente; as cousas remotas, que não têm relação alguma, nem conexão com a matéria, entram em concurso, com as que formam o corpo, e substância dela: o litigante a quem o Juiz viu, ou falou ultimamente; aquele, que sabe ser mais cortesão, cuja voz é mais sonora, e cujo nome é fácil de pronunciar, ou de escrever, esse é o que vence, e a quem se julga a palma; esta não foi tirada do campo da peleja, mas de outro lugar estranho, o independente. Assim governam os sábios, por isso há tanta incerteza, e mudança nas suas decisões; o que um disse, outro reprova; o que um fez, outro emenda; e muitas vezes na emenda é que está o erro; semelhante ao mal, que procedeu unicamente do remédio; cada um defende a sua opinião, e persiste nela; e cada um se persuade, que o erro não esteve na decisão, mas na reformação; em todos fica constante a vaidade da ciência; e algum que se retracta, também o move a vaidade de não ser, nem parecer-se com os outros: uns fazem vaidade de serem infalíveis, outros também se desvanecem de mostrarem, que o não são; deste género são poucos; porque a vaidade de desprezar a vaidade é muito rara, e em si mesma é estimável. A virtude, ainda que venha de um princípio vicioso, sempre é virtude de algum modo, ou mais ou menos qualificada; o obrar bem por qualquer motivo que seja, é bom; as nossas acções, não se determinam pela causa que mostram, mas por outra que se não vê; e entre todas as causas, aquela que consiste em uma vaidade inocente, é menos má. Que importa, que a vaidade seja a que incite o exercício do valor, da constância, da ciência, e da justiça? O impulso, que move, fica separado da cousa movida: dous licores contrários, por mais que se misturem, sempre parece que um foge do outro, e se separa; o artífice, o instrumento, a obra, tudo são partes distintas; a vaidade pode incitar a virtude, mas não incorporar-se a ela; pode juntar-se, mas não unir-se.

A ciência de fazer justiça é verdadeiramente ciência de Deus, e dos seus substitutos na terra, que são os Soberanos; é impossível dar-se injustiça em Deus; nos Soberanos, não é impossível, mas é impróprio; nos mais homens a injustiça é quási natural. Quais são aqueles de quem se possa dizer exactamente, que não têm interesse, inclinação, ou dependência? Qualquer destas circunstâncias serve de impedir o exercício, e ciência da justiça. Só os Reis relevam imediatamente de Deus, e só de Deus dependem: os mais homens todos dependem uns dos outros, porque há mil modos de depender: aqueles mesmos, a quem a altura do lugar faz parecer totalmente independentes, são os que muitas vezes dependem mais: aqueles a quem o merecimento, ou a fortuna, pôs em um certo grau de autoridade, necessitam de adquirir nome, e reputação; necessitam da opinião, e aprovação dos outros homens. Que maior necessidade de dependência! A opinião, e aprovação comua, não se forma do parecer de um só, nem ainda do parecer de muitos, mas do parecer de todos; e desta sorte os mesmos de quem todos dependem, são também os que dependem de todos. A opinião das gentes não é cousa tão pouca, que dela não dependa a conservação do lugar, e da autoridade: o receio de que o poder se perca, ou o respeito diminua, é o que ocupa cruelmente aos que estão em lugares eminentes; nestes ninguém está seguro, nem ainda os mais felices, porque se uma mão poderosa os sustém como elevados no ar, pode largá-los, e quando crêem que estão em assento firme, não estão senão suspensos: as asas de uma boa fama são as que os sustentam; se elas faltam, o mesmo braço, que os suspende, os precipita: o favor supremo, raramente é indiscreto, e se acaso se inclina sem razão, isto é, se alguém por engenho, e arte, se fez injustamente amar de um Soberano, este no dia do seu furor castiga aquela usurpação, e subrepção de amor; castiga o crime de quem se fez amar por artifício. A inclinação dos Reis costuma fundar-se em merecimento, e virtudes; destas se compõe o encanto mágico, que atrai a si um favor prudente; mas se foram fingidas as virtudes, e se os merecimentos não foram verdadeiros, irrita-se aquele mesmo favor, à proporção que tem pejo da sua preocupação, e credulidade: nenhum engano é mais sensível, que aquele que se dirige a roubar o afecto; a alma, que amou, não só sente o ter amado injustamente, mas sente também o não dever amar mais, porque a impressão, que o amor fez, não se pode tirar sem estrago, e dor da parte adonde está: o que foi gravado profundamente, não se desfaz sem ruína, e perda: para aniquilar-se a forma de uma estampa, é necessário perder-se a estampa toda; não só a figura, que ela representa, mas também o corpo, em que a representação está. Aqueles pois, que devem às letras a sua exalação, e que entendem, que feitos árbitros do mundo não dependem dele, são os que na verdade estão mais dependentes, porque a fama da ciência, que os conserva, também é mudável, e inconstante, e o mesmo favor que os fez subir como sábios, pode fazê-los descer como ignorantes. A ciência não é qualidade tão certa, e permanente que não possa sofrer alteração. Tudo em nós tem decadência, e só a ciência a não há-de ter? Nem é preciso, que concorra alguma causa natural; as paixões bastam para perverterem as ciências; não tomadas universalmente como elas são em si, mas tomadas como são em cada um de nós. Uma pequena nuvem basta para escurecer a luz do Sol; as paixões são como muitas nuvens juntas. Aquele, em quem a ira não pode encobrir a luz do entendimento, e da ciência, a ambição há-de encobri-la, e se o não fez, poderá fazê-lo a grandeza do respeito, e na falta deste, lá vem o amor, não só armado de setas, mas de lágrimas; não só fiado no seu império, mas também na sua submissão; não só com ânimo de render, mas de render-se; fatal combate, em que a maior força consiste na falta de fortaleza, e em que o ficar vencido, é o meio por onde a vitória se segura; mas se nem o amor, nem a ambição, nem a grandeza puderam conquistar um peito heróico, lá vem finalmente a vaidade, e esta sempre vem feita invisível, e acompanhada de todas as paixões, mas disfarçadas: o desejo, a dissimulação, a preguiça, e a inveja, vêm cobertas de um saial modesto, e trazem no semblante um ar composto, e humilde; a vingança, a soberba, a rapina, e a altivez, vêm cobertas de fumos de várias cores, e de diferentes formas. Assim se introduz enganosamente a vaidade, e assim vive em nós sempre escondida, como inimigo oculto, e traidor; ela transfigura os vícios para os fazer apetecíveis, e quando os deixa ver, é por algum interposto meio, por onde eles mostrem o contrário do que são. Havendo tantas ciências, apenas há alguma que faça, que nos conheçamos a nós, nem aos nossos vícios, nem à nossa vaidade. As ciências humanas, que aprendemos, comummente são aquelas, que importava pouco que soubéssemos; devíamos aprender-nos a nós, isto é, a conhecer-nos; de que serve o saber, ou pretender saber, como o mundo se governa, ao mesmo tempo que ignoramos, o como nos devemos governar? Para tudo somos sábios, só para nós somos ignorantes. Falta-nos o conhecimento próprio; não porque nos faltem regras, e preceitos para que possamos conhecer-nos, mas porque a vaidade se opõe a uma ciência, que faz humilde a quem a sabe: é arte mui dificultosa de aprender aquela que nos tira a presunção. Que inútil cousa é um espelho para quem sabe que se há-de ver nele horrendo, disforme, e macilento! Por isso fica sendo como uma alfaia sem uso, e desprezada: o ser fiel, e verdadeiro, é crime, quando a verdade molesta, e abate; o espelho que não lisonjeia é prejudicial.

A ciência de fazer justiça é donde a vaidade é mais perniciosa. Quem dissera, que também há vaidade em se dar o que é seu a cada um! Não só há vaidade nisso, mas essa mesma vaidade é a que faz muitas vezes, que a cada um se não dá, o que é certamente seu. A corrupção das gentes está tão espalhada, que faz parecer virtude, uma obrigação que se cumpre, uma dívida que se paga, ou uma verdade que se diz. As cousas não se regulam pelo que deviam ser, mas pelo que poderiam ser; isto é, o depósito que se entregou, podendo-se negar; a dívida que se podia não pagar, e se pagou; a verdade que se disse, podendo-se esconder; e assim a privação do vício serve de virtude actual; e de alguma sorte, para ser um homem virtuoso, não é necessário que faça algum acto de virtude, basta que não faça algum de vício; e de algum modo também, o ser leal não depende do exercício da lealdade, basta que se não exercite alguma aleivosia. O mundo está tão pervertido, que a bondade dos homens não se tira da razão de serem bons, mas da razão de não serem maus: o nome da virtude, não vem da virtude presente, mas do vício ausente; o merecimento das cousas, não se toma pelo que são, nem pela forma que têm, mas pelo que não são, e pela forma contrária que não têm. Daqui vem que uma acção é louvável, só porque não é repreensível. Aquele meio de não ser, nem uma cousa, nem outra, parace que o não há já; ficaram os extremos, e extinguiu-se o meio. Tudo propende para o que não deve ser, por isso não sei se podemos admirar-nos, de que as fontes ainda corram para o mar; de que o fogo ainda abrase; de que o ar ainda se mova; e de que a terra ainda fertilize. Os elementos não se mudam, mas é, porque estão subordinados às primeiras leis, que lhes deu o autor do mundo; temos o uso deles, o domínio não; devem servir-nos, e não obedecer-nos: a nossa prevaricação estende-se a tudo quanto foi, ou é obra nossa; por isso a vaidade se comunica, e tem jurisdição em tudo aquilo em que nós a temos. Daqui procede, o ser a ciência da justiça humana, uma ciência mudável, inconstante, e vária; porque as leis da vaidade sabem confundir-se com as leis verdadeiras da justiça. A vaidade também tem regras, e Doutores. Quantas injustiças não terá feito a vaidade de fazer justiça! A mesma vaidade que inspira a rectidão, a embaraça. Revista-se embora o soberbo Magistrado de um semblante rugoso, implacável, adverso, e truculento; faça-se irrisível totalmente, áspero, severo, e desabrido; mostre um aspecto sombrio, terrível, taciturno, e intratável; fale de um ar, e tom de soberania; tenha sempre o pensamento distraído, como que o tem todo ocupado em Ulpiano, e Bártolo, ou que está combinando na memória algum ponto de grande consequência, de que talvez depende a economia do Universo; nada disso pertence à natureza do Magistrado, à natureza da vaidade sim. Um jurisperito incivil quer que até na gravidade do seu vulto se conheça a inflexibilidade do seu ânimo; e que se veja até na sua forma exterior, uma forma judicial. Aquele frontispício, cujo ornato consiste na desordem, é a primeira cousa que a vaidade expõe, como em espectáculo, quando quer alcançar uma aclamação de justo. Mas quantas injustiças não produz o desejo, ou a vaidade de adquirir aquela aclamação! Não pode haver justiça, quando esta se exercita por algum fim, que não seja por ela só; nem pode ser justo nunca, quem tem por objecto principal, a glória de o parecer. Tudo o que se busca por ostentação, busca-se por qualquer meio que for, isto é, ou justo, ou injusto; quem procura a voz da fama, que lhe importa a figura do instrumento que há-de fazer aquele som; o que o fizer mais espantoso, e o espalhar mais longe, esse é o que convém; nem importa que a voz seja sonora, e certa, o ponto é que seja forte. Quem é muito sensível à vaidade do nome, e à vaidade da opinião, comummente é insensível à realidade da cousa; esta fica desprezada, se se pode desprezar com segurança, e sem receio; quando só se quer o efeito, não se procura, nem atende a causa; por isso a quem deseja o aplauso da virtude, esta fica sendo indiferente; e a quem deseja o aplauso da justiça, também esta fica sendo menos importante. Daqui vem, que a justiça costuma fazer-se para soar: aquela que soa mais (ou pela grandeza da matéria, ou do sujeito), essa é a mais agradável a quem a faz; porque dela se forma a voz da fama, e juntamente nasce dela o nome, e reputação de justo. A vaidade não se contenta, com o que as cousas são, mas com o que parecem, contanto que pareçam grandes; nem faz caso do que a cousa é, mas do que se diz que é: estima o merecimento não segundo a qualidade dele, mas segundo o efeito, que faz na estimação das gentes: não faz distinção entre o louvor extorquido, e o louvor merecido justamente, basta-lhe que seja louvor; e isto é porque a vaidade não se formaliza da verdade do princípio; o que quer é, que os homens se admirem; que tomem uma exalação por um estrela, importa pouco; daqui vem, que uma acção ilustre, mas feita em segredo, a vaidade a tem por infeliz; a virtude escondida, e que não se sabe, a vaidade a julga por uma virtude perdida, e morta.

O juiz, que decidiu contra um litigante poderoso, e a favor de um litigante humilde, logo atraiu a si todo o sufrágio popular; a multidão o canoniza sem exame, e o faz passar por justo, inteiro, e sábio. Assim se engana, ou se deixa enganar aquela multidão cega, e sem experiência; presume no juiz um espírito de justiça, firme, e incontrastável, só porque o viu julgar contra a grandeza do poder; mas não vê que nisso mesmo quis o juiz astuto, fundar a sua grandeza própria; oprimiu injustamente ao grande (porque nem sempre a razão, e a justiça estão da parte dos humildes); aquele foi o meio que buscou para fazer-se admirável entre todos, e adquirir reputação em poucas horas: uma só injustiça lhe deu a opinião de justo; uma só iniquidade o fez ilustre; talvez que uma vida longa, e cheia do exercício da justiça verdadeira, não fizesse tanto; isso mesmo previu o maligno julgador; por isso quis anticipar-se aquela glória, ou vaidade, por meio de um crime, que o vulgo comummente não supõe; daquela sorte conseguiu um alto nome; mas que importa, ele mesmo o desconhece; todos o têm por justo, e só ele não se tem a si; o engano produziu o efeito para os mais, para ele não; todos o estimam porque o crêem justo, e só ele se repreende, porque interiormente sabe que o não é; a todos pode enganar, só a si não; a consciência, que não teve para julgar a outrem, tem-na (a seu pesar) para julgar-se a si; em si mesmo tem um Tribunal, que o acusa, e que conhece claramente o seu delito; aquele conhecimento é o por onde começa desde logo a sua pena; a sentença contra um julgador ímpio, ele mesmo a pronuncia; e por mais que a vaidade (depois que o fez errar) o ponha em um perpétuo esquecimento do seu erro, contudo lá vem algum tempo em que parece, descansa a vaidade, e desperta a consciência; esta nem sempre vive em um letargo, às vezes se levanta como estremecida, e assombrada; então a ouvimos suspirar dentro de nós, à maneira de um gemido queixoso, ou eco triste, que sai do fundo interior de um ermo solitário; o coração se sobressalta, e enternece; um horror gelado, e frio, parece que o cobre, e lhe suspende o movimento; só então podemos ver aquela luz serena, e pura, luz da justiça, e da razão; então se vê, que a vaidade é de todas as ciências, e que ainda aquela, que tem a justiça, e a razão por instituto, nessa mesma se introduz a vaidade. Quem dissera, que a escuridade das trevas pode ter lugar na mesma parte em que a luz preside! Que à vista da fermosura, pode ter veneração a fealdade! Que uma voz irracional, e rouca, pode entrar sem desordem no concerto da harmonia! Que entre as pedras preciosas pode ter valor a pedra tosca! Que o metal grosseiro tem um preço igual ao metal brilhante! E finalmente quem dissera, que no templo da divindade, pode ter algum culto, o ídolo! Entre extremos tais, a distância que há, é infinita; e com efeito entre o vício, e a virtude; entre o engano, e a verdade; e entre a injustiça, e a justiça, não há caminho certo, nem proporção, que se conheça; o mesmo meio parece que é injusto, e vicioso. Mas que importa: a vaidade faz, que não seja excessiva a distância dos extremos, porque quando os não pode chegar, e unir, faz com que ao menos se possam ver de longe; é o que basta para de algum modo os concordar, e tudo sem mais força, nem trabalho, que o de dar à verdade alguma sombra, algum pretexto ao vício, e alguma cor à injustiça; e assim enquanto houverem cores, sombras, e pretextos, hão-de padecer a verdade, a justiça, e a virtude.

Na ciência de julgar, alguma vez é desculpável o erro do entendimento, o da vontade nunca; como se o entender mal não fosse crime, erro sim; ou como se houvesse uma grande diferença entre o erro, e o crime: o entendimento pode errar, porém só a vontade pode delinquir. Assim se desculpam comummente os julgadores, mas é porque não vêem, que o que dizem procedeu do entendimento, se bem se ponderar, procedeu unicamente da vontade. É um parto suposto, cuja origem, não é aquela que se dá. Querem os sábios enobrecer o erro, com o fazer vir do entendimento, e com lhe encobrir o vício que trouxe da vontade; mas quem é que deixa de não ver, que o nosso entendimento quási sempre se sujeita ao que nós queremos; e que o seu maior empenho, é servir à nossa inclinação; por isso raras vezes se opõe, e o mais em que se ocupa, é em conformar-se de tal sorte ao nosso gosto, que ainda a nós mesmos fique parecendo, que foi resolução do entendimento aquilo que não foi senão acto da vontade. O entendimento é a parte que temos em nós mais lisonjeira; daqui vem que nem sempre segue a rãzão, e a justiça, a inclinação sim; inclinamo-nos por vontade, e não por conselho; por amor, e não por inteligência; por eleição do gosto, e não por arbítrio do juízo: as paixões que nos movem, nos inclinam; a todas conhecemos, isto é, sabemos que amamos por amor, que aborrecemos por ódio, que buscamos por interesse, e que desejamos por ambição; mas não sabemos sempre, que também a vaidade nos faz amar, aborrecer, desejar, buscar; daqui vem que o julgador se engana, quando se presume justo, só porque não acha em si, nem amor, nem ódio, nem ambição, nem interesse; mas não vê, que é vaidoso, e que a vaidade basta para o fazer injusto, cruel, tirano. Não vê, que se não tem amor a outrem, tem-no a si; que se não tem ódio ao litigante humilde, tem-no ao poderoso, só porque na opressão deste quer fundar a sua fama; não vê, que se não tem interesse de alguns bens, tem interesse de algum nome; e se não tem ambição das honras, tem ambição da glória de as desprezar; e finalmente não vê, que se lhe falta o desejo da fortuna, sobra-lhe o desejo da reputação. Que mais é necessário para perverter um julgador? E com efeito que importa, que a corrupção proceda de um princípio conhecido, ou de um princípio oculto, isto é, de uma vaidade, que o mesmo julgador não conhece, nem percebe? O efeito da corrupção sempre é o mesmo. Que importa que o julgador se faça injusto, só por passar por justiceiro? A consequência da injustiça também vem a ser a mesma; o mal que se faz por vaidade, não é menor, que aquele que se faz por interesse; o dano que resulta da injustiça, é igual; o juiz amante, ou vaidoso, sempre é um juiz injusto.

Não é assim o Magistrado, ou o julgador prudente: este é severo sem injúria, nem dureza; inflexível sem arrogância, recto sem aspereza, nem malevolência; modesto sem desprezo, constante sem obstinação; incontrastável sem furor, e douto sem ser interpretador, subtilizador, ou legislador; o seu carácter é um ânimo cândido, sincero, e puro; é amigo de todos, inimigo de ninguém; é alegre, e afável por natureza, mas reservado por obrigação do ofício: é sensível ao divertimento honesto, mas sem uso dele por causa do lugar: em tudo é moderado, civil, circunspecto, diligente, laborioso, e atento; a ninguém é pesada a sua autoridade, e quando foi promovido a ela, todos conheceram que foi justa, e acertada a eleição; todos viram que tinham nele um protector seguro da verdade, e um medianeiro discreto, e favorável para tudo o que fosse favor, clemência, generosidade; chegou àquele emprego por meio das virtudes, e não por meio da fortuna; um alto merecimento o fez chamar; e as gentes se admiraram, não de que fosse chamado, mas de que o não fosse mais cedo; a ele não assombra nem a grandeza dos sujeitos, nem dos lugares, nem das matérias; não atende mais do que à justiça; a esta tem por objecto singular, para esta é que olha; a razão é a sua regra, ele a segue, e a aclama em qualquer lugar que a ache: no seu conceito não valem mais, nem o pobre por humilde, nem o grande por poderoso; distingue as pertensões dos homens, pelo que elas são, e não por de quem são; não atende à qualidade dos rogos, mas à qualidade das cousas; uma vida sem reparo, nem desordem, foi um dos requisitos por onde se habilitou; outros há a quem não é ventajoso, que se vejam os passos, que já deram, mas somente aqueles, que vão dando; e a quem não será útil, se ponderem as acções antecedentes; e ainda as presentes, não passam sem murmuração, e queixa. O julgador benigno não receia, que se saiba a sua vida, que se diga, e que se escreva; o seu panegírico só depende da verdade, do encarecimento, ou da lisonja, não; ele mesmo é o seu elogio. Finalmente o julgador sincero tem das ciências o que basta para saber julgar, e não o que basta para saber embaraçar; alguns há, que fazem do conhecimento da razão uma ciência imensa, como se fosse necessário arte para se conhecer o Sol. O caminho da justiça (para quem tem vontade de andar por ele) é um caminho direito, espaçoso, claro, fácil, e aprazível; as flores, que o bordam de uma, e outra parte, todas são perpétuas, porque nunca murcham; uma Primavera constante as reverdece, e alenta; o caminho porém das injustiças é um caminho difícil, espantoso, e escuro; umas vezes é por cima de rochedos escarpados, por onde a cada passo se encontra um precipício; outras vezes é por vales estreitos, sinuosos, e profundos, e donde as árvores são todas infecundas, têm pálidas as folhas, e nascendo desordenadas, e confusas, fazem o lugar seguro, e próprio para traições, aleivosias, furtos, assassínios; as mesmas sombras infundem pavor, e fingem vultos enormes; um ar caliginoso, e denso, apenas pode alvergar aves nocturnas de presságio infausto; os rios, que ali se vêem, são negros, e têm no abismo o fundo, apenas podem criar monstros anfíbios, o silêncio, com que passam, os faz ainda mais fúnebres, e tristes, como se nascessem do Estige, do Averno, ou do Cocito. Esta figura representa o caminho da injustiça, caminho, que não se sabe sem estudo, porque todo se compõe de circuitos, rodeios, e desvios. Mas que infeliz estudo é este, em que se aprende muitas vezes o caminho por onde se vai ao Inferno! Por isso aquele digno Magistrado, de uma fiel jurisprudência, só quis saber, o como se deve julgar, e não o como se pode julgar; e da mesma sorte só quis saber, o como se devem fazer as cousas, e não o como se podem fazer; daqui lhe procedeu o serem justas as suas decisões, e ser o seu voto acertado sempre; nunca teve por objecto, senão a justiça, e a razão, e estas só consideradas em si mesmas, sem alteração, e no seu primeiro estado de inocência, e de pureza; nas leis nunca viu mais nem menos do que aquilo, que elas têm, nem as soube acomodar a algum sentido esquisito, e raro, por onde viesse a ter lugar a inveja, a ambição, e a vingança. Finalmente aquele julgador é verdadeiro só por amor da verdade; é justo só por amor da justiça; ele conhece os seus próprios movimentos, e entre estes segue unicamente aqueles, que têm por princípio a justiça, e a verdade. Não se desvanece das virtudes, que conhece em si; o aplauso só quer, que seja da virtude, e não seu; o louvor quer, que se dê à razão, e não a ele; parece-lhe, que em obrar como deve, não merece nada; não se admira da justiça, que exercita por força da obrigação; das acções memoráveis, em que tem parte, ele se supõe um instrumento necessário; sendo assim, não o pode vencer a vaidade. Esta, que em todos os homens é como um afecto ou paixão inevitável, só naquele julgador fica sendo como afecto sem vigor, desconhecido, e estranho, mas por isso mesmo, e sem cuidado, conseguiu, e tem um nome venerável, e com circunstância tão feliz, que esse mesmo nome, que conserva, contém em si uma ilustre, e saudosa recordação.

A vaidade da origem, é uma seita, que se fundou na Europa da decadência de outras da mesma espécie, ou semelhantes: aquela parte por onde o mundo se começou a polir, foi o donde os homens descobriram a invenção maravilhosa da nobreza. A sucessão dos séculos tinha feito perder a inteligência, e usa de muitos artifícios úteis, e admiráveis; mas em recompensa fez achar no sangue muitas diferenças, que ainda se não tinham advertido. Os homens bárbaros não puderam ver no sangue outras cousas mais, do que aquelas de que consta um corpo físico; e naquele humor, o mais que viram, foi a razão de mais, ou menos líquido, e a razão de mais, ou menos cor; destes dous princípios fizeram resultar todas as mudanças de que o sangue é susceptível, e por causa dele, o homem. Averróis, Avicena, Hipócrates, e Galeno; uns, famosos Médicos e Filósofos Arábios; os outros, também famosos Filósofos, e Médicos Gregos, não conheceram (segundo se diz) a circulação do sangue. Os que lhes sucederam depois, não só fizeram aquela grande descoberta, mas também entraram a seguir a ideia de aplicar, ou considerar no sangue muitas razões, e substâncias importantes, de que a natureza, que o faz, e cria, não tinha, nem ainda tem, notícia alguma, de sorte, que nesta parte pode dizer-se, que a natureza não sabe o que faz; e com efeito o que sabe é, que o sangue é uma entidade material, sujeita a todas as leis da hidrostática, e do equilíbrio, e que forma um líquido espirituoso, vital, universal, e igual em tudo quanto respira, e é sensitivo; o mesmo modo, a mesma arte, os mesmos ingredientes, de que a natureza se serve para fazer o sangue de um Leão, de um Elefante, ou de uma Águia, são os mesmos de que se serve também para formar o sangue de uma Pomba rústica, ou de um Cordeiro manso; as produções são diversas, a fábrica é a mesma; não há diferença nos princípios, nas figuras sim. Se o Leão se desvanece, é porque tem a força, e não porque tem o sangue de Leão; e ainda se se desvanece pela força, é quando se compara ao Cordeiro débil, e não se é comparado a outro Leão. Se o Elefante fosse presumido, seria por ter a corpulência, e não por ter o sangue de Elefante; e ainda no que toca à corpulência, a presunção seria a respeito de outros animais de menos estatura, e não a respeito de outros Elefantes. Se uma Águia se jactasse, havia de ser de subir mais alto, e não de ter o sangue de Águia; e ainda a jactância do subir, só seria a respeito do Cisne húmido, e pesado, e não a respeito de outras Águias. Não é assim o homem; porque o seu desvanecimento, a sua presunção, e a sua vaidade é dirigida sempre a respeito dos mais homens. O sangue é o lugar em que fazem consistir a singularidade, ou superioridade de uns a outros; naquele licor é o donde consideram como ocultas, e invisíveis todas as razões de diferenças; ali puseram o assento da Nobreza, e dali a fazem sair como de uma fonte original, e composta de infinitas distinções, qualidades, graus, quilates. Os homens das outras regiões não distinguem os sangues, senão pelas suas proporções elementares; isto é pela proporção dos elementos, ou partes, de que os mesmos sangues se compõem; a diversidade que notavam, consistia, em ser um sangue mais, ou menos cálido; mais ou menos denso; mais ou menos subtil: não viram aquelas nações remotas, o que com mais engenho, e estudo chegaram a ver as nações da Europa; isto é, que há um sangue humilde, vil, abjecto, e baixo; e que há outro nobre, ilustre, preclaro, esclarecido; mas se se perguntar a um sangue, quem o fez humilde, e a outro, quem o fez nobre, o primeiro há-de dizer, que uma pobreza cruel, e dilatada, o invileceu; e o segundo dirá, que uma pomposa, e dilatada riqueza o ilustrou. Quem dissera, que a fortuna faz o sangue! Não bastava, que essa mesma fortuna tivesse poder nas cousas, que nos rodeiam, sem o ter também naquilo, que está dentro de nós? Parecia-nos, que só a natureza dava o sangue, e que este só da natureza dependia; mas agora vemos, que a fortuna o muda.

Muda a fortuna o sangue, ou ao menos parece, que o muda; e com tal variedade, e força, que aquele sangue, que algum dia foi humilde, hoje é generoso; àquele que foi esclarecido, é humilde; o que agora é abatido, tempo há-de vir em que o não seja; e o que está sendo ilustre já também algum dia deixará de o ser. Deste modo vem a depender o sangue, não só da fortuna presente, mas da passada, e da futura: não só lhe prejudica a miséria actual, mas também aquela que passou; faz-lhe mal o mal que sente, e também aquele que não pode sentir; costuma vir-lhe de longe o abatimento, ou a grandeza; por isso depende menos do estado presente em que se acha, que do estado passado em que outros se acharam; e com efeito a fortuna dos passados faz a Nobreza dos presentes, e a fortuna destes faz a Nobreza dos futuros; assim se faz a Nobreza, e se desfaz sucessivamente. A mesma fortuna prepara a Nobreza em uns, isto é, começa-a; em outros a aperfeiçoa; até que finalmente vem a acabá-la em outros; o acabá-la, é desfazê-la; todas as cousas tendem naturalmente para o seu princípio. A indigência é mais natural, ou mais certa que a abundância; esta que ilustra o sangue, é menos permanente do que a pobreza, que o abate; a decadência é mais comua, e menos inconstante; a prosperidade é a que faz a Nobreza, enquanto dura; e também é a que a desfaz, quando se aparta. A Nobreza segue os passos da fortuna; se esta é dilatada, e grande, então se forma uma Nobreza esclarecida; porque os séculos lhe escondem a sua primeira, e limitada origem. A luz, quando nasce, é débil; porém insensivelmente se fortifica; nenhum rio se mostra logo como mar; e dos que são mais celebrados, ainda se ignora o donde vêm; talvez que seja de alguma fonte humilde, e desprezada; mas como vêm de longe, a distância os enobrece, só porque oculta a tosca rocha, ou a brenha sem nome donde nascem. As cousas vãs necessitam de uma certa escuridade, que as esconda, porque como se estimam, só porque se imaginam estimáveis, se se deixam conhecer, perdem-se; a ignorância do que elas são, é o que as conserva, e atrai a si um respeito religioso. São poucas as vozes, que não sejam imprudentes; e pelo contrário, todo o silêncio é discreto, e sábio; as cousas que não se estimam por não serem conhecidas, são raras: o merecimento transpira por toda a parte, e por mais que se queira esconder, não pode; é como a claridade, que sempre busca, e acha caminhos invisíveis por onde passa: uma chama activa não se pode conter; ela se descobre, o mesmo fumo lhe serve de indício. Não é isto assim na vaidade da Nobreza, porque a esta o que convém é ter um princípio impenetrável, e que esteja involvido em sombras tais, que o exame as não possa romper; e que esse mesmo exame, já confuso, e embaraçado, não chegue senão até àquela parte, donde a Nobreza está mais brilhante, e clara; e se lhe fosse fácil andar mais, de sucessão em sucessão, lá havia de encontrar os sinais, ou vestígios da miséria, e junto a esta inseparável a vileza; assim, bem podemos assentar, que a vaidade da Nobreza é uma introdução supersticiosa, a qual nasce da vaidade do luxo, da vaidade da arrogância, e da vaidade da fortuna.

Era preciso com efeito, que muitas vaidades concorressem, para poderem formar a vaidade da Nobreza; era preciso, que muitas vaidades se ajuntassem (todas subtis, e especulativas), para fazer que os homens cressem, que os acidentes do tempo, da fortuna, e da desgraça, se podiam de tal sorte infundir no sangue, que a um constituíssem sangue nobre, e a outro fizessem sangue vil. A Nobreza, e a vileza, são substâncias incorpóreas, porque são vãs; e se é verdade, que podem estar no sangue, será talvez por algum modo intelectivo, imaterial, e etéreo; mas parece que nem assim podia ser, porque aquilo que é vão, de nenhuma sorte existe. A inexistência da Nobreza ainda é menos, que a inexistência de uma sombra, porque esta ao menos é um nada que se vê; a imaginação pode fingir uma quimera, porém dar-lhe corpo, não; pode imaginar a quimera da Nobreza, porém introduzi-la nas veias nunca pode ser. Os homens enganam-se com o que imaginam; parece-lhes que o mesmo é imaginar, que formar, e que é o mesmo idear, que ser. O engano, ou a vaidade da Nobreza poderia ter lugar, se os homens assim como a quiseram pôr interiormente em si, se contentassem com a pôr de fora; isto é, se a fizessem consistir nas acções exteriores; perderam-se em buscar o sangue para assento da Nobreza; aquele engano ficou visível, e fácil de perceber. Todos sabem, que a imaginação não pode dar, nem tomar corpo: a ilusão do pensamento nunca pode ser mais do que ilusão. O sangue não está sujeito à opinião, só depende das leis do movimento, e da matéria; as distinções, que o pensamento considera, não passam do pensamento, nele ficam, só nele podem existir, no sangue não. A Nobreza, e a vileza, são nomes diferentes, mas não fazem diferentes sangues; estes são iguais em todos; e por mais que a vaidade finja, invente, e dissimule, tudo são imagens supostas, e fingidas; tudo são opiniões, que todos sabem que são falsas; tudo são sonhos de homens acordados. A verdade se ri de ver a gravidade, o gesto, e circunspecção com que as gentes tratam a matéria da Nobreza; e de ver que saibam como o sangue se enobrece, ao mesmo tempo que não sabem o como ele se faz; de sorte que ainda não conhecem, nem hão-de conhecer nunca a fábrica daquele líquido admirável, e presumem conhecer-lhe as qualidades; ignoram as qualidades certas, e visíveis, e cuidam que não ignoram as que são de um fantasia irregular, e que não constam mais que de uma ficção civil. Daqui veio o reduzir-se a arte àquele mesmo conhecimento, arte rara, e vasta, e que tem por objecto, não só o estado da sucessão dos homens, mas também o estado, ou situação da Nobreza deles. Em um breve mapa se vê facilmente, e sem trabalho, o que produziram muitos séculos; ali se acham colocados (como se estivessem vivos) os ilustres ascendentes da Nobreza humana; e tudo com tal ordem, e repartição tão clara, que em um instante se compreende a arte; e só com se ver, se sabe; no mesmo mapa, ou globo racional, se encontram descritas muitas linhas, e distintos lados; e nestes introduzidos subtilmente outros lados errantes, desconhecidos, vagos, e duvidosos; as regiões, que ali se consideram, têm aqueles frutos, que o tempo consumiu; as árvores, os troncos, e os ramos, são de donde estão pendentes Varões ilustres, armas, escudos, títulos, troféus, mas tudo sem acção, nem movimento; tudo ali se pôs, menos para exemplo das virtudes, que para delícia da vaidade; menos para incitar o desejo de merecer, que para servir de lisonja à ociosidade da memória; menos para estímulo da imitação, que para despertar o desvanecimento. Nunca a vaidade achou em um espaço tão pequeno, maior contentamento. Aquele é o lugar mais próprio, em que a Nobreza se mostra vestida de pompa, e de aparelho, ali é finalmente donde a vaidade como em um labirinto famoso, e agradável intenta medir o ar, pesar o vento, apalpar as sombras.

Mas por que razão poriam os homens no sangue a qualidade da Nobreza? Seria por ser aquela a parte de que a vida está mais dependente? Não, porque a vida não depende mais do sangue; que de outros muitos líquidos do corpo. O sangue tem na cor mais elegância, move-se, e existe em porção maior; mas disso não se segue, que a vida dependa mais do sangue, ou tenha dele maior necessidade. A cor é efeito da transposição da luz; a porção muitas vezes faz o nosso mal; e na formação dos mistos é menos importante aquilo, que entra neles em mais larga quantidade. Move-se finalmente o sangue; mas que parte haverá no corpo, que não tenha um movimento próprio? O que o sangue parece tem de mais, é que não necessita da nossa intenção para mover-se; mas isso mesmo tem o corpo em outras partes; e a depravação do movimento de que resulta a convulsão, procede de um movimento involuntário. Não achamos pois o fundamento por onde os homens quiseram, que fosse o sangue a fonte donde a Nobreza se imprime, e de donde sai. Só nos falta ver, se será talvez por entenderem, que as sucessões se continuam pelo sangue, e que este derivado de uns a outros, sucessivamente continua em uma mesma descendência, conservando nela um carácter particular, distinto, e determinado; e com efeito em cada árvore há um tronco cômum, de donde nascem muitos ramos, muitas folhas, muitas flores, muitos frutos; estes, ainda quando são muitos no número, sempre conservam a mesma ordem, e a mesma identidade na figura; a qualidade é a mesma, e igual em todos; e todos reconhecem uma mesma, e universal origem; ali se vê, que as produções são separadas, e diversas; mas o tronco progenitor é um. Muitas rosas brotam de uma só roseira; porém todas são rosas; a espécie é a mesma em todas; e por mais que cada uma esteja em diverso ramo, a árvore que as sustenta, é uma só. Assim é, e já parece, que aquela paridade tomada no reino vegetal, tem justa aplicação para o caso da Nobreza infundida no sangue, e na sucessão; mas não sei se a mesma paridade pode servir de aniquilar inteiramente, ou ao menos de embaraçar o sistema da Nobreza de geração. (A maior parte dos sistemas comummente está sujeita à variedade do discurso; ainda aqueles a que a prescrição do tempo tem feito adquirir um direito de certeza). O caso é, que o sangue dos animais é como o humor nas plantas; estas por meio das raízes atraem a si a humidade fecunda, que as faz reverdecer, e é a mesma de que se forma o tronco, os ramos, as folhas, e os frutos; de sorte que o humor da terra é o que anima a planta, é o seu sangue; este sangue pois, ou este humor, será porventura sempre o mesmo em uma planta? Não; porque a terra a cada instante recebe dos outros elementos uma nova vida, isto é, uma humidade nova: as águas, que a regam, nunca são as mesmas; daqui vem, que o sangue de uma planta sempre é outro, comparado ao que foi primeiro; e por isso sempre muda de sangue, porque sempre muda de humor; aquele com que nasceu, não é o mesmo que hoje tem: o primeiro parece se extinguiu por uma transpiração lenta, e insensível; e assim o sangue, com que está, não é o que já teve, porque já não tem o humor que tinha: a conservação das plantas, e animais, depende de uma contínua mudança de alimento, e por consequência de sangue; este sofre uma dissipação precisa; é preciso, que um sangue acabe, para dar lugar a outro; nesta renovação, ou reformação de sangue, consiste a vida; a morte vem de ser o sangue o mesmo; a falta de mudança, é o que o perverte; a constância, e estabilidade, serve-lhe de ruína.

E com efeito se se não perdesse o sangue, que se faz nos animais, e o humor, que as árvores atraem, donde era possível que coubesse tanto humor, e tanto sangue? Que outra cousa é a enfermidade, senão um sangue, ou um humor, que se não dissipa, e está como suspenso? O calor vital, que expulsa um, fabrica outro; algumas cousas há, que para acabarem, basta que subsistam no que são; daqui resulta uma espécie de pasmo: a corrupção do sangue vem de não acabar um para que outro comece; a força do remédio consiste na virtude de expelir, e dissipar; a superfluidade procede de se haver o sangue conservado; a conservação o perde, não só pela razão de ser pecante, mas pela razão de ser o mesmo. Os poros são como infinitas portas, e quási imperceptíveis, por onde o sangue, e todos os humores passam continuamente, e sem interrupção; a saúde consta de exalação, e deperdição, persiste uma substância, porque outra se desvanece: se acaso aqueles poros se constipam, isto é, se aquelas portas se apertam, ou se fecham, e que o sangue fique como preso, e sem sair, então se vê, que o sujeito se aflige, e desfalece; e se dura, ou permanece a reclusão, a morte chega em poucas horas: a arte, que conhece a causa da desordem, só cuida em relaxar, e abrir os poros comprimidos, e cerrados, para que o sangue posto em liberdade se possa livremente perder, dissipar, fugir. A natureza ambiciosa em conservar fica inábil para adquirir; a vida não depende tanto do sangue, que está feito, como daquele que se vai fazendo: rotas as veias, por elas sai em horrível, e espantosa quantidade; debilita-se a natureza, mas se lhe acodem, não acaba; porém se fica sem acção para fazer de novo, entra em agonia, e se extingue totalmente; naquela elaboração está a vida, neste descanso a morte.

Ainda as partes sólidas do corpo de alguma sorte mudam de substância, e se regeneram. O osso duro, parece que todo em si é compacto, e imutável; mas contudo, a sua contextura é composta de folhas aderentes, separadas, e sobrepostas; por entre vários interstícios circula nele um líquido untuoso, este serve-lhe de alimento, e sangue; e é também o que sendo mole, faz que o osso seja forte, e firme; dali vem a nutrição, e por consequência a mudança de matéria; porque tudo o que alimenta, trabalha em se transformar, ou converter na cousa alimentada; aquela conversão procede lentamente, e apenas se imagina em um corpo duro; nos líquidos é visível, e se percebe facilmente. Mas haverá quem diga, que ainda que o sangue mude, e se renove, basta que fique dele um átomo fermentativo, ou ideia primogénita, para assim se conservar perenemente a qualidade da Nobreza. Isto há-de dizer o defensor do sangue antigo, não por defender o sangue, mas por defender a Nobreza incorporada. (Sempre é mau que o argumento chegue a tal extremo, que seja forçoso recorrer aos átomos, aos fermentos, e às ideias: em cousa física não sei se é permitido o recurso para cousas imperceptíveis, e invisíveis). Em o nascimento de uma fonte quem lançar qualquer porção de água diversa, esta há-de sair em brevíssimos instantes; porque aquelas águas continuamente estão mudando de si mesmas; elas são o sangue da terra, assim como o sangue são as águas do corpo: todas se mudam, e sucessivamente se renovam; as que vêm depois são outras, sem impressão alguma das primeiras; nem se pode imaginar, que cada porção de sangue vá deixando (como em memória, e penhor de si) alguma porção, ainda que pequena infinitamente; as partes não são extensíveis, ou divisíveis em infinito; assim que chegam a uma tal tenuidade, acaba-se a divisão. A subsistência tem fim no sangue, porque este transpira por uma imensidade de caminhos; nem é compreensível, que na massa de um fluido subtil, haja alguma parte, que tenha o privilégio de ser intranspirável, e que isenta das leis universais, vá ficando só para servir de gérmen qualificador. Quanto mais um licor se move, mais se diminui: naqueles que têm um movimento perpétuo, regular, e próprio, a matéria se dissipa, à proporção que se subtiliza; nem ainda em um tubo de cristal se pode algum licor conservar inteiro; e apenas se faz crível a quantidade de humor, que o corpo exala em poucas horas. Concluamos pois, que o sangue não é donde a Nobreza assiste; é um líquido incerto, e vago para ser o assento de uma vaidade tão constante. Haja embora no mundo uma Nobreza, contanto que não imaginemos, que ela tem dentro dos homens uma parte distinta donde habita; seja um íodolo , mas ídolo sem templo; basta supor, que o Simulacro é certo, sem entrar no empenho sobre o lugar da dedicação; seja a Nobreza como a sombra; esta, bem se vê, mas não se pega; sempre está fora do corpo, dentro nunca: tenha a vaidade um culto exterior, contanto que ela seja exterior também. Deixemos finalmente o sangue em paz; ele não descansa, e todo o seu trabalho é para ser sangue, e não para ser este, ou aquele sangue; de que serve a arte de introduzir naquele líquido admirável, qualidades arbitrárias, e civis, se a verdade é, que ele só tem as qualidades naturais? Para que é fazer ao sangue, autor daquilo, de que só é autor a vaidade?

A História é uma das provas, com que a vaidade alega, e de que mais se serve na autenticidade da Nobreza: prova incerta, duvidosa, fingida, e também algumas vezes falsa: nela se vêem muitos sucessos famosos, acções, combates, vitórias; muitos nomes a quem essas mesmas acções enobreceram, ilustraram. Mas de quantas acções fará menção a história, que jamais se viram? De quantos sucessos, que nunca foram? De quantos combates, que nunca se deram? De quantas vitórias, que nunca se alcançaram? E de quantos nomes, que nunca houveram? Não é fácil, que pelas narrações da história se possa descobrir a verdade dos sucessos; ela comummente se escreve, depois de terem passado alguns, ou muitos séculos; de que se segue, que a mesma antiguidade é uma nuvem escura, e impenetrável, donde a verdade se perde, e esconde. Se a história se escreveu ainda em vida dos Heróis, o temor, a inveja, e a lisonja bastam para corromper, diminuir, ou acrescentar os factos sucedidos; por isso já se disse, que para ser bom historiador, é necessário não ser de nenhuma Religião, de nenhum país, de nenhum partido, de nenhuma profissão; e mais que tudo, se se pudesse, não ser homem. E com efeito se alguém se persuade, que há-de saber a verdade dos sucessos pela lição da história, engana-se: quando muito o que há-de saber, é a história do que os Autores escreveram, e não a verdade daquilo que escreveram.

Os historiadores no que mais se esforçam, é em pintar cada um a si, e introduzirem no que escrevem as suas profissões, e inclinações. O Orador todo se ocupa em Declamações, e Panegíricos, ainda que os objectos do louvor sejam totalmente indignos dele. O Militar não faz mais que buscar ocasião para descrever empresas, muralhas, ângulos, ataques, sítios: uma batalha, que nunca houve, ele a faz tão certa, que até relata a hora em que começou, o como se prosseguiu, o tempo que durou, os incidentes que teve, os nomes dos Generais, a forma do combate, os erros, ou acertos de uma, e outra parte; e finalmente dá a razão por onde se veio a conseguir o vencimento; ainda em um combate verdadeiro, só o historiador teve notícia de infinitas circunstâncias, que tendo sido momentâneas, nenhum dos mesmos combatentes as puderam distinguir, saber, nem ver; se o autor da história é Jurisconsulto, logo faz menção de leis, legisladores, direito das gentes, e da guerra; a cada passo acha matéria própria para uma larga discussão, e deixando o que pertence à história, ele mesmo se incorpora nela, e entra a mostrar o seu carácter; daqui vem, que Salústio, sendo historiador, todo se cansa em moralidades, Tácito em políticas, Tito Lívio em superstições. O desejo de contar cousas admiráveis, e a vaidade, que o historiador tem de manifestar que as sabe, é o que fez sempre inventar, e escrever sucessos fabulosos. O inventor de cousas raras, extraordinárias, e maravilhosas, atribui a merecimento seu, a admiração que faz nascer no ânimo do leitor crédulo, e inocente. A variedade de opiniões na matéria da história, faz que esta parte da literatura, seja a mais incerta, duvidosa, e composta muitas vezes de enganos, e imposturas. A Heródoto (que passa pelo melhor historiador) chama Cícero autor de fábulas; Diodoro trata de fabulistas aos Escritores, que lhe precederam, e a ele mesmo trata da mesma sorte Vives. Os Comentários de César não são mais acreditados: Pollio Asínio os tem por pouco verdadeiros, e Vóssio faz lembrado um Escritor, que pretende mostrar com provas invencíveis, que César nunca passou os Alpes, e que tudo quanto diz da guerra dos Francos, é falso.

Os Historiadores, não somente são opostos entre si, mas cada um a si mesmo muitas vezes é contrário. Procopo na sua história, dá louvores imensos ao Emperador Justiniano, e à Emperatriz Teodora, sua mulher, a Belisário, e a Antonina; e nos seus Anecdotos os critica excessivamente. Os mármores, e bronzes, não servem na história de provas infalíveis: os monumentos mais antigos têm dado ocasião aos mais celebrados erros: as primeiras conjecturas (bem, ou mal fundadas), adquirindo com o tempo a autoridade da história, foram passando à posteridade como cousas certas; temos exemplo na memorável inscrição posta no arco do triunfo de Tito; a qual dizia, que antes daquele Emperador ninguém tinha tomado, nem ainda emprendido o sitiar Jerusalém, sendo que (sem recorrer à história sagrada, que ainda então poderia ser menos bem sabida dos Romanos) aquela Cidade foi uma das conquistas de Pompeu, de donde procedeu o chamar-lhe Cícero, o seu Jerosolimário. Acresce a isto, que os mais notáveis acontecimentos são os em que as histórias mais variam, e em que os Autores concordam menos. Quantos pareceres tem havido sobre a guerra de Tróia? Uns querem que ela fosse verdadeira, outros dizem que não foi mais do que uma bem composta fábula.

Dion Crisóstomo, na fé das tradições Egípcias, diz que Helena sendo pedida pelos maiores Príncipes da Ásia, e Grécia, casara por ordem de seu pai Tíndaro com Alexandre, filho de Príamo; e que aqueles Príncipes irritados da preferência, fizeram guerra a Tróia; e que enfraquecidos depois pela peste, e fome, e juntamente pelas suas mesmas dissensões, concluíram a paz com os Troianos, em cuja memória tinham feito fabricar um cavalo de madeira, donde se escrevera em grossas letras, a forma do Tratado; e que finalmente não podendo o cavalo entrar pelas portas da Cidade, se havia aberto um pedaço de muralha por onde ele passasse. Porém Pausânias diz o contrário; e segura que o cavalo de Tróia não fora mais do que uma máquina de bronze, que ele vira em a Cidadela de Atenas; e que tinha servido naquela guerra, como de instrumento bélico, para arrombar, e destruir os muros.

Muitos escreveram, que Helena nunca fora a Tróia: que Páris, e Helena foram levados por uma tempestade a uma das bocas do rio Nilo, chamada Canope, e de lá conduzidos a Mênfis, donde Proteu reinava, este abominara a aleivosia daquele Príncipe; e que lançando-o fora do seu Reino, retivera a Helena com todas as riquezas, que ela tinha; que então Páris se retirara a Tróia, e que sendo seguido pelos Gregos, dali se originara uma grande, e cruel guerra; e que indo depois Menelau ao Egipto, lá lhe entregara Proteu a Helena, e juntamente as riquezas todas.

A diversidade de opiniões não é menor em tudo o que respeita à história de Eneias. Alguns Escritores dizem, que aquele Príncipe fora o que entregara a sua pátria, abrindo uma das portas de Tróia aos Gregos; outros escrevem, que a viagem do mesmo Príncipe à Itália era duvidada por Denis de Halicarnasso, e entre os Modernos por Justo Lípsio, por Filipe Cluvier, por Samuel Bochart, e por outros muitos. Metrodoro de Lampsaque não faz dificuldade em crer, que os Heróis de Homero, Agamémnon, Aquiles, Heitor, Páris, e Eneias nunca existiram no mundo.

A história não é menos incerta, a respeito da fundação de Roma: uns dizem, que os Pelasgos, depois de subjugarem nações várias, fundaram na Itália uma Cidade grande, a que chamaram Roma, em sinal, ou significação da sua força; porque Roma em Grego, quer dizer, força. Outros contam, que no mesmo dia, em que se tomou Tróia, alguns dos naturais entraram nas embarcações, que acharam naquele porto; e que sendo lançados pelos ventos sobre a Costa de Toscana, desembarcaram junto ao Tibre; e que entre as mulheres, que não podiam suportar os incómodos do mar, havia uma chamada Roma; e que esta aconselhara as outras pusessem fogo às embarcações, e que sendo executado aquele arbítrio, e conhecendo os maridos a bondade do país, se resolveram a ficar nele; e fundando uma Cidade, lhe puseram a nome da mulher, que os obrigara a estabelecer-se ali.

Também há quem diga, que Telefo, filho de Hércules, tivera uma filha chamada Roma, a qual casara com Eneias, ou com seu filho Ascânio, de donde procedera o nome da Cidade; outros querem que Roma fosse edificada por um filho de Ulisses, e de Circe, chamado Romano; outros dizem que Romo, Rei dos Latinos, fora o primeiro que habitara, depois de vencidos os Tirrenos. Antíoco de Siracusa, que vivia cem anos antes de Aristóteles, escreve que muito antes da guerra de Tróia, já havia na Itália uma Cidade chamada Roma. Sempre é digno de reparo, que entre todos os Autores, que atribuem a Rómulo a fundação de Roma, nenhum concorde com o nascimento, e educação daquele fundador.

A mesma diversidade de opiniões se encontra a respeito das Sabinas, de Licurgo, e das Amazonas. Destas fala Heródoto, Diodoro, Trogo-Pompeu, Justino, Pausânias, Plutarco, Quinto Cúrcio, e outros. Estrabão nega, que as Amazonas fosse uma nação, que existisse nunca. Paléfato é do mesmo parecer. Arriano tem por muito duvidoso, tudo quanto se escreveu das Amazonas. Outros tomam por Amazonas uns exércitos de homens comandados por mulheres; e disto há muitos exemplos na história antiga. Os Medas, e os Sabianos, obedeciam a Rainhas. Semíramis dominava os Assírios, Tomíris aos Citas, Cleópatra aos Egípcios, Baudiceia aos Ingleses, Zenóbia aos Palmirénios.

Apião crê, que as Amazonas não era uma nação particular, mas que assim se chamavam todas as mulheres de qualquer nação que fossem, e tivessem por costume o ir à guerra. Outros pertenderam que as Amazonas não eram outra cousa mais do que uns povos bárbaros, vestidos de roupas longas, e que tinham na cabeça ornatos de mulher. Diodoro de Sicília diz, que Hércules, filho de Alcmene, a quem Euristeu pedira lhe trouxesse o talim de Hipólita, Rainha das Amazonas, ele com efeito as combatera junto às margens do Termodon, e destruíra aquela nação guerreira; porém os sucessos mais famosos da história das Amazonas são menos antigos que o Hércules Grego, filho de Alcmene. Tudo isto relata o Tratado singular sobre a opinião, e juízo humano.

Não há pois certeza alguma em nada. A história profana (porque esta é somente a de que falamos) parece que não foi feita para instruir, senão para enganar. Os Autores não se contentaram com enredar o mundo enquanto vivos; quiseram ter o maligno divertimento de deixar na história uma ocupação de estudar enganos; nem todos o fizeram por malícia, mas por simplicidade. Essa mesma história é donde a vaidade da Nobreza toma o seu princípio, e donde tira as provas de que mais se desvanece; quanto mais antiga a história é, tanto é mais esclarecida a Nobreza, que se funda nela. Esta sorte de vaidade é universal. As ideias quiméricas sobre antiguidades, não só é própria a cada um dos homens, mas a todas as gentes, e nações; e com tal fatuidade, que algumas vão buscar a sua origem, antes que o mundo habitável tivesse a sua, e daquele modo eles começaram primeiro do que o mundo. Neste delírio de antiguidade, e por consequência de Nobreza, entraram os Citas, os Frígios, os Persas, e os Egípcios; estes não pretendiam menos do que sessenta mil anos de antiguidade; e nesta forma, que nação poderia competir com ela naquela parte? Nem os Chinas, excessivos em tudo, deitam as suas pertensões tão longe. Assim são os delírios que os homens excogitam: uns para se enobrecerem a si, outros para enobrecerem os seus. Não há meio algum de que aquela vaidade se não sirva; ou seja imaginário, ou falso, tudo serve a quem se quer fazer ilustre; porque crê que o ser ilustre é ser muito mais que homem, ou ao menos alguma cousa mais. O segredo consiste em saber introduzir o engano, e sobretudo em defender o erro, e prevenção, de que os homens podem ser diversos, ainda na mesma razão de homens.

Os grandes da antiguidade, ou a Nobreza dos antigos, ainda era mais forte, e singular, que a que se ideou depois; uma, e outra têm de comum o serem efeitos da vaidade, e consistirem na imaginação de quem não cabe em si; a Nobreza porém do tempo heróico era em tudo mais subida; nem é para admirar, porque hoje nada é comparável à grandeza Esparciata, e ao esplendor Latino. Os séculos foram desfazendo todos os portentos; a variedade de sucessos, e fortunas também foi reduzindo o mundo a um estado de mediocridade; a mesma vaidade da Nobreza teve decadência; acabou-se a ficção, e desvario em que aquela sorte de Nobreza se fundava; ela foi um dos ídolos que caíram. Quando a luz da verdade desterrou as trevas do Paganismo, cessaram os Oráculos, não responderam mais, emudeceram. A Grécia, pátria comua dos Heróis, e donde estes nasciam como em terra fecunda, e própria, foi donde a vaidade da Nobreza quis elevar-se ainda acima das Estrelas. E com efeito Eneias dizia ser filho de Vénus, Aquiles de Tétis, Faetonte de Apolo, Alexandre, e Hércules de Júpiter. Estes, e outros muitos pretendiam não menos nobre origem, que a celeste, como descendentes dos Deuses imortais; esta fábula não durou um dia só; e é para admirar, que ela tivesse autoridade no conceito de homens polidos, sábios, e prudentes, e com tanta força que chegassem a fazer das fábulas, religião. Aquela foi a Nobreza dos antigos; Nobreza, que tinha por princípio, um engano introduzido, e respeitado. Via-se nas mãos de Júpiter o raio, nas de Marte a espada, e nas de Apolo as setas; Tétis dominava as ondas, Vénus a fermosura: quem havia resistir por uma parte à força do poder, e por outra ao encanto da beleza? Ainda quem conhecesse a fábula, se havia de namorar do aparato dela. Todos sabem que os homens são iguais, enquanto homens; mas nem por isso deixam de entender, que há uma nobreza que os distingue, e que os faz ser homens melhores.

Ainda a Nobreza dos antigos (depois de acreditado o erro) tinha mais corpo; porque os ilustres iam buscar os seus ascendentes nos seus Deuses; e desta sorte ficavam os homens meios humanos, e não inteiramente. Só assim podiam ser distintos, e desiguais na realidade. As distinções permaneceram, enquanto duraram as suposições da origem. Conheceu o mundo a impostura, e logo os Deuses se acabaram, deixando os seus descendentes, feitos homens como os outros; e com a circunstância, que por haverem tido progenitores altos, ficaram sem nenhuns. Depois daquele catástrofe fatal, parece que devia extinguir-se a vaidade da Nobreza; mas não foi assim, porque aquela vaidade só mudou de espécie, e o engano, de figura; a Mitologia converteu-se em Genealogia, humanizou-se. A igualdade sempre foi para os homens uma cousa insuportável; por isso entraram a forjar novos artifícios com que se distinguissem, e ficassem desiguais; e não tendo já Deuses de donde tirassem o princípio da Nobreza, entraram a tirá-la de outras muitas vaidades juntas; compuseram uma Nobreza, toda humana; então nasceu aquela tal Nobreza, como parto do poder, da pompa, e da riqueza: acidentes na verdade exteriores, mas que servem de incrustação no homem, e esta ainda que composta de fragmentos, sempre forma um ornato matizado, e agradável; bem se vê que a viveza dos esmaltes, e das conchas, não penetra a substância interior, e que o muro tosco não fica mudado, coberto sim; mas que importa, se a gala frágil que o reveste, o enobrece?

Na propagação dos animais observa a natureza a mesma ordem; desta sempre vem a resultar a mesma forma, e as mesmas circunstâncias; os indivíduos porém de cada espécie não são tão uniformes, que não tenham entre si um carácter particular com que se distinguem uns dos outros. Nas famílias se notam feições determinadas, pelas quais são conhecidos os que vêm da mesma parte; o mesmo ar no gesto, ou na figura persiste em muitas linhas descendentes; e de tal sorte que algumas são reconhecidas por uma fermosura sucessiva; e outras também o são, por uma fealdade hereditária. As mesmas nações se mostram diferentes por um aspecto, ou semblante próprio, que a natureza afecta em cada uma delas. A cor é um sinal demonstrativo, regular, e indelébil, que a mesma natureza imprime nas gentes de cada clima, ou região; e dessa cor procedem outras cores mistas, ou modificadas, que indicam o grau, e concorrência de nações diversas, mas unidas; de gentes separadas, mas juntas; de famílias estranhas, mas naturalizadas. Aquela é a marca, que a Providência pôs nos homens; marca perpétua, enquanto eles se perpetuam dentro da sua mesma esfera, mas temporal, e extinguível por meio de uma nova composição. Até nas plantas se encontra a mesma economia; elas têm sinais por onde se distinguem; uns perseverantes, outros mudáveis. A arte, que concilia entre si plantas diversas, ou as conserva, e faz permanecer no estado primitivo, ou as altera, e muda para outro; ela força o tronco a sustentar ramos alheios, a vestir-se de folhas desconhecidas, e a produzir frutos adulterinos. Ainda nas cousas insensíveis, tem às vezes lugar a violência. Assim se constrange a natureza a que siga um caminho errado, e que em certos casos não siga as suas leis, mas as leis da indústria, e do artifício; daqui vem, que é útil que a nossa inteligência seja limitada; se o não fosse, apenas teria a terra liberdade para fazer nascer, como quisesse, a menor flor do campo. Quantas vezes não se faz o mal, porque se não sabe fazer? Aquela ignorância nos preserva; mas nem por isso valemos mais, porque o merecimento é da ignorância, e não de nós.

Já vimos que os homens, quando vêm ao mundo, já trazem um sinal de distinção, e diferença, e que esta os faz distinguir, e conhecer. Daqui parece que resulta uma indução forte a favor da Nobreza originária; mas que argumento débil é aquele que se tira de uma distinção visível, constante, e material, para outra que é somente imaginária; de uma que se faz naturalmente para outra que civilmente se fabrica; de uma que é da instituição do mundo, para outra que é da instituição dos homens; de uma que é totalmente independente, para outra que é arbitrária; de uma que tem por princípio a mesma Providência, para outra que procede da fortuna; e finalmente de uma que é fundada em regras infalíveis, para outra que somente é fundada em vaidade? Nesta parte a razão tirada da semelhança não convence. Com um só carácter se podem formar letras infinitas, todas iguais, e semelhantes, mas nem por isso as letras têm nada do carácter impressor. Este imprime, mas não se comunica; dá a semelhança, a sua substância não; o metal de que é composto, não dá de si mais do que a figura. Muitas estampas vêm de um mesmo molde; todas são iguais, e parecidas, mas nenhuma tem do molde mais do que o contorno. A sombra vem de um corpo que tem oposta a luz, de sorte que não há sombra donde não há luz, e corpo; mas nem por isso a sombra recebe em si propriedade alguma, nem do corpo, nem da luz. O produzir uma cousa, não é o mesmo que reproduzir-se.

A vida, ou espírito vital, que passando de uns a outros vai fazendo a descendência dos mortais, parece que indica de algum modo a existência da Nobreza originária; e com efeito se a vida se transfere sendo mais, porque não há-de transferir-se a Nobreza sendo menos? A vida é transmissível, e assim deve ser também a Nobreza que a acompanha. Porém não tiremos erradas consequências. A vida não se pode dizer que é transferível, e ainda que o fosse, nem por isso ficava sendo transferível a Nobreza: só o que existe fisicamente se transfere, mas não aquilo que só tem uma existência mental. Tudo o que consta de imaginação unicamente, nem se passa, nem se dá, nem se transmite. A vida com que vive um, não é a mesma com que outro vive; a imaginação de um, não é a mesma que outro tem. A vaidade desperta a imaginação, ou ideia de Nobreza, esta não vem como imaginação herdada, mas adquirida; e ninguém sabe que a tem, ou que a não tem, senão depois que o imagina; naquela imaginação o que se ganha, ou perde, é um pensamento; e este quando é falso, não tem menos entidade, que quando é verdadeiro; porque nas cousas vãs, a verdade não vale mais do que a mentira.

A vida consiste no movimento; quem primeiro o causa, é o que se diz ser princípio dele, mas não se segue daqui, que a cousa que depois se move, fique com alguma porção do princípio, que a moveu. O braço quando move um corpo não se comunica a ele, e esse corpo não recebe em si, mais do que um impulso; o braço não põe mais do que a força, que serve de princípio ao movimento, mas nem por isso fica o corpo, que se moveu, com alguma parte do braço, que o fez mover. Em uma mesma luz se podem acender muitas mil luzes, mas nenhuma destas participa, ou tem em si nada da primeira; cada uma arde em substância própria, distinta, e separada; o que as distingue, é a matéria, que lhes vai servindo de alimento, e não a primeira luz de donde começaram. O incêndio não é menos activo, ou menos nobre aquele, que nasceu de uma faísca errante, do que aquele que viria de um fogo guardado no templo das Vestais. Quem há-de intitular ilustre a chama, porque veio de outra que diziam consagrada? E humilde aquela que procedeu de outra, que não tinha circunstância? Uma pedra preciosa regula-se-lhe o valor pela perfeição que ela mostra em si; a que nasceu no monte Olimpo não é por isso mais esclarecida, do que aquela que se achou em um vale rústico, e profundo. Só para o homem estava guardado o serem distintos uns dos outros, e o distinguirem-se, não pelo valor de cada um, mas pelo valor das cousas que os distingue. A Nobreza foi a maior máquina, que a vaidade dos homens inventou; máquina admirável, porque sendo grande, toda se compõe de nada. As outras vaidades, parece que são menos vãs; porque sempre têm algum objecto visível, e manifesto; mas por isso mesmo a vaidade da Nobreza é uma vaidade sem remédio; mal incurável, porque se não vê.

Assim é, mas quem há-de haver que negue, que a Nobreza, ou essa cousa vã, é útil, necessária, e bem imaginada? Que importa que uma cousa seja na realidade nada, se os efeitos que produz são alguma cousa? Os efeitos da Nobreza são muitos; ela dá merecimento, valor, saber, a quem não tem nem ciência, nem valor, nem merecimento; ela serve, para fazer venerado, a quem o não deve ser; ela faz que o crime fique muitas vezes impunido; que a desordem se encubra, e se disfarce; e que a soberba, a arrogância, e a altivez, fiquem parecendo naturais, e justas; finalmente a vaidade da Nobreza, até se desvanece com a vileza das acções; estas ainda quando são vis, infames, torpes, e odiosas, nem por isso envilecem, ou infamam a quem as faz; antes da mesma enormidade das acções se tira um novo lustre, ou nova prova da Nobreza: o ponto é contar uma longa série de ilustres ascendentes para que um nobre fique dispensado das leis da sociedade, e de formalidades civis; e também habilitado para que possa livremente, e sem reparo, perder o pejo, a honra, a verdade, e a consciência. Desta sorte vem a Nobreza a ser um meio por onde o vício se autoriza, o crime se justifica, e a vaidade se fortalece. Cuidam os Nobres, que a Nobreza lhes permite tudo, mas cuidam mal; porque o certo é, que a Nobreza bem entendida, não se fez para canonizar o erro; ela foi sabiamente achada para servir de estímulo, e companheira das virtudes; para enobrecer as acções ilustres, e não para ilustrar as viciosas; para ser atendida pelo que obrasse digno de atenção, e não pelo que fizesse indignamente; para servir a razão, e não para a dominar; para ser exemplo, e não regra; para fazer os homens bons, e não para os perverter; para os distinguir pela Nobreza do espírito, e não pela Nobreza da carne; para os fazer melhores de uma melhoria de ânimo, e não de corpo; finalmente para fazer mais clara a luz, e não para fazer clara a sombra. Por isso o sábio Rei (que ainda há pouco perdemos, e de quem a feliz memória a cada passo renova em nós a mais entranhável dor) nunca olhou para a Nobreza enquanto a via só, mas sim quando a via acompanhada de acções nobres; nunca atendeu à Nobreza das origens, mas sim à Nobreza dos sujeitos; considerava os homens primeiro pela qualidade das virtudes, e pelas outras qualidades, depois; o conceito, que fazia, foi, que a Nobreza não era no homem parte principal, mas sim parte ajuntada, que só servia de o ornar, e não de o fazer. Aquele mesmo Rei foi o terror da Nobreza arrogante, e destemida; esta sempre tinha os olhos assombrados de ver a cada instante fuzilar o raio, e de ver armado sempre o braço poderoso; mas armado ao mesmo tempo de justiça, e de piedade, de furor, e de compaixão. Deste modo governou em paz, e nos deixou a paz; por isso a mágoa de o perder, foi, e há-de ser infinita em nós; e as nossas lágrimas apenas poderão mitigar-se alguma vez, suspender-se, nunca. Acabou aquele Monarca Augusto, e parece que não tanto pela fatal necessidade de acabar, como para que trocado em altar o trono, o respeito em culto, e o obséquio em adoração, o pudéssemos invocar. Subiu ao estado de imortal para ser numen tutelar do Império Português; e em um Príncipe (o mais prudente, e moderado que o mundo viu) nos deixou um Rei benigno, pio, generoso, justo, protector; assim ficou disposta a nossa consolação, e seria menos forte a nossa pena, se pudesse ser o haver remédio para a saudade.

Um dos abusos, que o tempo, e a vaidade introduziu, foi a Nobreza; esta porém sendo tomada nos termos da sua primeira infância, ou na ideia com que foi criada, é verdadeira, e útil; e nestes mesmos termos ninguém lhe pode disputar, nem a utilidade, nem a verdade da existência. Por Nobre, entendiam os antigos um Herói, isto é, um homem distinto dos mais homens, e distinto por si, e não por outros; pelas suas próprias acções, e não pelas acções alheias. O Heroísmo, e a Nobreza eram qualidades pessoais, e não hereditárias; uma, e outra dependiam de acções heróicas, e em ambas era necessário o requisito do poder; se este cessava, extinguia-se a Nobreza. Deste modo é, que antigamente haviam Nobres, porque em todo o tempo houveram poderosos; estes ficavam distintos por grandeza, e não por natureza; passava a Nobreza de uns a outros, quando o poder também passava; de uma, e outra cousa se formava uma herança indivisível. Acabada a Nobreza por falta do luzimento, se este depois tornava, não fazia ressuscitar a Nobreza já perdida; compunha-se outra nova, e esta não era de menos entidade, ou menos Nobre que a primeira. O tempo não é o que enobrece. Os séculos que envelhecem tudo, só a Nobreza não haviam de fazer caduca? Os anos tudo diminuem, e só a Nobreza haviam de fazer maior? Uma flor moderna não tem menos graça do que uma flor antiga. A verdura com que a Primavera se reveste, já no Outono fica prostrada, e macilenta. As Estrelas começaram com o mundo, e nem por isso brilham mais; aquilo que depende de mais, ou menos tempo é frágil. A vaidade até se quer aproveitar das horas, e dos dias, que passaram. Por aquele modo de entender, cresce a vaidade, a Nobreza não. Que pouco cuidam os homens em que há uma eternidade, e que a duração do mundo, não é mais do que um instante!

Se há nos homens diferença, esta só se acha nos Ceptros, e Coroas; os que dominam a terra, têm a semelhança dos humanos, mas não sei que têm de mais; têm o mesmo ser para serem homens, mas não para serem como os mais homens; quem os fez maiores, foi a Providência; só esta podia influir diversidade no que é o mesmo; podia fazer que uma identidade fosse diferente de outra da mesma espécie; e podia, debaixo da mesma forma, e dos mesmos acidentes, fazer uma natureza desigual. Deus é a origem do poder dos Reis, estes são independentes da fortuna; porque o poder supremo, só Deus que o dá, o tira. As revoluções particulares parece que resultam de uma economia certa; as dos Monarcas não sucedem sem decreto especial. Aqueles a quem a Providência fez árbitros do mundo, a mesma Providência os distinguiu: os outros homens fazem-se distintos à proporção do favor supremo que os distingue. Assiste pois a distinção dos homens só na vontade, ou coração dos Reis; esta é a origem verdadeira da Nobreza. Os Reis são os que glorificam os homens, isto é os que os enobrecem; e desta sorte recebem a Nobreza por graça, e não por sucessão; por favor, e não por herança; permanecem Nobres, enquanto permanece a graça que os ilustra; persiste aquela prerrogativa enquanto o favor existe; se este se retira, logo a Nobreza acaba. A luz toda se emprega nos objectos, estes ficam claros, mas é por força de uma luz, que não é sua. Se o Sol se esconde, ficam os objectos escuros, e escondidos. As cousas não nascem com as qualidades que se vêem; os homens não vêm ao mundo sábios, justos, prudentes, virtuosos, bons; e do mesmo modo não vêm Nobres; cá acham a Nobreza como uma parte posterior, e auxiliar, que se pode unir, e agregar depois; acham muitas vaidades, e entre elas uma ocupada em crer, que a Nobreza é qualidade fixa, própria, interior, e inseparável; e por mais que os sentidos, e a razão mostrem o contrário, nem por isso aquela vaidade se deixa convencer. Tiremos por um pouco aos homens a faculdade que eles têm de se explicar; suponhamos que não falam, talvez que então se vejam iguais todos; a incapacidade, e o silêncio, sabem mais; tiremos também por um instante aos homens a alma racional, e então veremos a Nobreza com que ficam. Esta tal Nobreza, ou a sua vaidade negando as suposições, fica livre do argumento.