As Doutoras/II/II

Wikisource, a biblioteca livre


Personagens: A MESMA e MARIA PRAXEDES

MARIA (Entrando.) Sim, senhora! É o que se chama o cúmulo da tagarelice. Não tens com quem falar, falas sozinha.

EULÁLIA — Deixe-me, pelo amor de Deus! Olhe que se não fosse o amor que tenho à menina, já tinha voltado para a casa da patroa.

MARIA — Continuam as brigas?...

EULÁLIA — Ora! Ora! Ainda ontem houve aqui um bate-boca tremendo.

MARIA — E sempre por causa dos chamados?

EULÁLIA — Está visto, não brigam por outra coisa. E nestas brigas sai cada nome, patroa...

MARIA — Meu Deus! Chegam então a descompor-se?

EULÁLIA — Eu não sei se aquilo é descompostura. Olhe, os nomes que eu ouço, se não são desaforos de arrancar couro e cabelo, lá muito bons para que digamos não são.

MARIA — O que é que eles dizem?

EULÁLIA — É symfostria pra lá, milogia pra cá, raboses, co­loses, futrica. A menina muito vermelha a dar com os braços, o patrão de olhos esbugalhados a gesticular...

MARIA — Ah! São discussões científicas!

EULÁLIA — Pois olhe, senhora, eu sou solteira, em tão boa hora o diga e o diabo seja surdo, mas, se fosse casada, e meu marido me atirasse à cara todas aquelas ravoses, coloses e milogias, e me chamasse futrica, sabe o que fazia a Eulália dos Prazeres da Conceição de Maria, filha da Engrácia da Porcalhota e do Manuel Tibúrcio, que Deus haja?...

MARIA — Não fazias nada, tagarela.

EULÁLIA — Arrumava a trouxa e ia procurar a minha vida.

MARIA — Mas fora destas discussões eles não conversam?

EULÁLIA — A que horas? A menina, de manhã muito cedo, vai ver doentes, o patrão mal acorda, veste-se a toda a pressa e toca pra mesma lida.

MARIA — Sim, mas quando estão em casa...à hora do al­moço e do jantar...

EULÁLIA — Quando estão em casa, se não estão brigando, a menina lê ou escreve, o patrão escreve ou lê. À mesa do almoço ou do jantar, cada um tem o seu livro. Comem de cabeça baixa. Não olham um para o outro!

MARIA — Luísa ainda toca e canta?

EULÁLIA — Qual, senhora, no outro dia fui abrir o piano para limpá-lo, estavam as teclas cheinhas de bolor. (Eulália tira o chapéu de Maria Praxedes.)

MARIA — Luísa há de vir jantar.

EULÁLIA — Certamente. E a senhora passa o dia conosco?

MARIA — Olha, Eulália, o meu desejo é que não abandones nunca Luísa.

EULÁLIA — Fique descansada, patroa. (Tocam o telefone.) É verdade, com o diacho da conversa esqueci de dar a resposta ao homem. (Batendo no telefone e falando.) Allon! Quem fala? É o Senhor Salazar da Rua do Hospício? Sim. Mas é para o Doutor Pereira, ou para a Doutora Pereira? (Fica algum tempo a ouvir, falando para Maria.) Tenha paciência, patroa. Ponha o ouvido aqui e veja se distingue, doutor ou doutora?

MARIA (Falando ao telefone.) — É Doutor Pereira ou Doutora Pereira? (Deixa o telefone.) Ouvi bem claro: doutora.

EULÁLIA — Ainda bem. Então é para a menina?

MARIA — Sim.

EULÁLIA — Vou ver lá dentro o que está fazendo a cozinheira. Nunca vi peste maior! (Maria senta-se à mesa e lê jornais.)