As Minas de Prata/I/XVII

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Cristóvão apenas quis mostrar-se no sarau, para que sua ausência não desse motivo a reparo: logo se retirou.

Embuçado no manto ganhou a Rua de Santa Luzia, estugando o passo do cavalo, como quem tinha pressa de chegar.

Essa parte da cidade, embora fossem oito horas apenas, estava completamente escura e deserta; não se via porta aberta, nem janela alumiada. Toda a população tinha-se aglomerado na Praça do Governador e Rua do Colégio, onde gozava dos prazeres e folias da noite, até que fosse tangido o sino de recolher.

O moço não deu atenção a esta circunstância, como quem tinha outros pensamentos que o ocupavam todo; continuou seu caminho; nem a escuridão da noite o fazia hesitar; adiante quebrou numa esquina, passou junto da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, e atravessando uma pequena ribeira, tomou a rua que seguia aclive.

Ao longe o Mosteiro de São Bento estampava no céu de azul-ferrete a larga claustra e os vastos dormitórios; à direita corriam as cercas das roças plantadas de mangueiras, coqueiros e outro arvoredo frutífero.

Estava tudo em sossego; apenas se ouvia o ramalhar da aragem nas folhas e o borbulhar da ribeira fugindo pela charneca; de quando em quando uns longes rumores da festa passavam como rajadas e entravam no silêncio do ermo.

Cristóvão parou à beira de um fundo e largo valado, cheio pela recente enxurrada; resfolgando da batida em que viera, enfiou os olhos pela ramagem.

Havia defronte uma cancela; e mais longe erguia-se a casa, destacando confusamente na sombra do arvoredo. Alva cinta de luz coava entre os bambolins de uma janela e resvalava trêmula pela folhagem, que agitava a viração da noite. O resto da habitação envolto nas trevas repousava da lida diurna.

Uma prancha, que servia de ponte sobre o valo, fora retirada da parte de dentro; de modo que a entrada do terreiro da casa tornava-se difícil e perigosa.

O cavalheiro volveu em torno olhar rápido e escrutador para certificar-se de que ninguém ali se achava oculto pelas árvores que pudesse espreitá-lo; feito o que apeou-se, ajustou as armas ao corpo, atirou a capa sobre o ombro esquerdo, e procurando um lugar favorável ao seu intento, conseguiu transpor o valo, graças a alguns ramos inclinados que lhe serviram de apoio. Meteu-se então por entre as árvores, onde a ramagem era mais basta, evitando que os raios da luz que filtravam da janela caíssem-lhe sobre.

Tanta precaução indicava grande receio de ser descoberto; de feito, às vezes o moço parava irresoluto se devia prosseguir no seu primeiro intento, ou retroceder enquanto era tempo; mas depois de curta hesitação, sondando de novo as trevas e certo de que tudo estava tranquilo e sossegado, cobrava afoiteza e ia por diante.

Cristóvão era um destemido cavalheiro, valente como as armas, bravo como os filhos da raça ibérica, em cujas veias girava ainda a pura mescla do sangue godo e árabe; não fora pois o receio de um perigo, por maior que se lhe afigurasse, motivo para influir no seu ânimo tal indecisão.

Era sim receio de escândalo.

Seu amor e caráter ousado o tinham lançado naquela aventura noturna; durante a festa a ausência de Elvira o contristara a tal ponto, que decidira ver a moça naquela mesma noite, para oferecer-lhe com a sua alma e vida as joias que tinham premiado sua destreza e galhardia.

Sem refletir na possibilidade de realizar esse propósito, saíra do sarau, e achava-se em face da janela de Elvira; mas aí foi que a razão lhe começou de apresentar à mente quanto havia de extravagante e desusado no passo que pretendia dar sem consentimento da moça, nem certeza de que ela levasse em bem semelhante temeridade.

Estando assim com o espírito tomado por mil pensamentos contrários, e com os olhos na janela, a luz vacilou; uma sombra ligeira debuxou-se docemente na atmosfera esclarecida, esfumando os contornos suaves e puros de um busto encantador.

Cristóvão estremeceu; porém já de prazer, não de susto.

Deu por bem paga a imprudência, pois ao menos gozava a ventura de ver a imagem da imagem que trazia n'alma. Para ele a sombra vivia e animava-se; houve momento em que lhe pareceu que ela o olhava e sorria; até chegou a acreditar, com a superstição natural do coração amante, que à força de contemplá-la, talvez Elvira recebesse a refração dos raios de tão ardente afeto.

Mas o coração é insaciável; o que a princípio lhe basta para a completa felicidade, logo serve apenas de aguçar o desejo. Sucedeu assim com o moço; a sombra de sua amante em vez de lhe dar prazer, já o torturava com a ideia de não vê-la, a ela própria, estando tão perto, que podia ouvir-lhe a voz terna e amorosa.

Mas essa voz emudeceu em seus lábios trêmulos; pois o esmorecia a só lembrança de ofender a moça e perturbá-la em seu casto repouso. Tanto bastava para quedá-lo mudo e estático em frente do balcão da janela, elevado do chão na altura de uma lança.

Se ao menos pudesse devassar com a vista o interior!...

O aposento esclarecido formava uma pequena recâmera forrada com rás simples e ornada no gosto o mais apurado da época. A um lado estava o leito de madeira embutida com relevos de metal; em volta esfraldavam-se as cortinas de seda azul suspensas do esparavel dourado; aos pés um tapete da Índia; junto da cabeceira, contra a parede, o escabelo, traste característico dos tempos de fé sã e robusta.

Do lado oposto, no estrado baixo que então fazia as vezes dos sofás e conversadeiras de moderna invenção, estava Elvira sentada; tinha o corpo escaído em frouxa atitude, os braços distendidos, as mãos cruzadas sobre os joelhos, a cabeça reclinada um tanto, os olhos fitos no relógio d’água colocado em cima do trumó, sobre o qual ardia uma vela de cera, eschamejando-se na face lisa e polida do espelho.

Os cabelos desatados pelas espáduas nuas ensombravam o perfil, amortecendo-lhe a cor; mas deixavam imergidas na claridade as evolutas suaves do colo soberbo, e dos seios que moldava o linho transparente. Traçando a curva graciosa de uma perna admirável, a roupa roçagante de fina beatilha frangia na orla, por onde escapava o pezinho nu, aninhado em um pantufo de veludo roxo.

Doce enlevo, ideal sublime de suave melancolia ou de vago cismar, quando a alma engolfada no silêncio e na soidão, partida entre as recordações que voltam e as esperanças que fogem, dói-se com a ausência do bem que fruiu, e enleva-se revivendo no gozo passado! Voluptuosidade inexprimível de mágoas doces e agros prazeres para o coração que sofre com o isolamento e praz-se nele! Hino sublime que o lábio português canta em uma só palavra — saudade!

Corriam os minutos; e ela não mudava de posição.

Os raios de luz brincavam com as gotas do róseo licor que estilavam a uma e uma do globo superior da ampulheta; a claridade decompondo-se nos rubis líquidos, formava um prisma brilhante em cujas irradiações se estereotipava a miríade de pensamentos que esvoaçavam na mente de Elvira. Cada gota era um instante que fugia, e com ele um feixe de esperanças.

Em que podia ela pensar a não ser nas festas a que não assistira, e em Cristóvão por quem mais sentia, que por ela, a privação daquele prazer?

Toda a tarde estivera triste e aborrida; chorava pensando que o lindo cavalheiro que a estremecia, pudesse no meio dos folgares ter um pensamento, um olhar, uma lembrança que não fosse dela. Cada vez que as aclamações entusiastas do povo, saudando o vencedor, mandavam-lhe um eco dos alegres arruídos, afogava-se-lhe o coração em lágrimas, que a seu pesar vinham rorejar as faces.

Mas um olhar severo de sua mãe recalcava-lhe a dor no fundo d'alma, até que depois da prece da noite, recolhendo à sua alcova, pôde desabafar a mágoa comprimida; ou antes pôde entregar-se livremente a novos pesares que lhe assaltaram o espírito. A princípio esteve numa impaciência mortal; volvia de um para outro lado, chegava à janela sôfrega e inquieta, inclinava o ouvido, e reprimia as palpitações do coração; por fim, como isto em vez de acalmá-la, a exasperava ainda mais, sentara-se no estrado e contava com ansiedade os minutos da hora que faltava para acabar o seu suplício.

A última gota vazou da ampulheta; Elvira ergueu-se de salto e correu à janela.

No horizonte, entre a escuridão profunda que plainava sobre a cidade, brilhava um frouxo clarão que ia a pouco e pouco desmaiando; sinal de que as luminárias começavam a extinguir-se. Não se ouvia mais o barbarizo que exala das grandes massas da plebe. O primeiro dobre do toque de recolher acabava de soar.

A festa popular estava terminada; mas uma branda lufada de vento trouxe uns alegres tangeres de música, como para dizer a Elvira que o sarau ainda durava e com ele seu tormento e aflição.

A pobre donzela suspirou.

— Nem mais se lembra de mim! balbuciou com a voz repassada de lágrimas.

De repente a moça, que se recostara ao balcão estremeceu.

Julgou ouvir a brisa murmurar seu nome; o primeiro movimento, depois do susto, foi recolher-se e fechar a janela; mas uma atração invencível a fez voltar; ainda trêmula e fria, teve coragem de se debruçar ao balcão para ver entre as árvores.

Quando já mais animosa inclinava a crer que tudo fora uma ilusão dos sentidos e um receio infundado, os olhos caíram sobre um vulto, que saindo dentre as sombras, foi súbito ferido pela luz da vela.

Ela quis sufocar, mas tarde, o grito de júbilo e surpresa que lhe escapou dos lábios; porque tinha reconhecido Cristóvão.

O moço adiantou-se, murmurando o doce nome de Elvira; mas ela em quem o receio tinha vindo de pronto perturbar a alegria inefável da presença do cavalheiro, suplicou-lhe com o gesto que se calasse, e foi ao corredor que passava pelo fundo da câmera, para assegurar-se de que ninguém velava na casa. Mais sossegada com a tranquilidade que reinava no interior, fechou devagarinho a porta, e voltou-se no momento em que já Cristóvão saltava pelo balcão da janela.

A moça recuou cruzando os braços sobre o seio, com sublime gesto de pudor.

— Oh! não! disse ela suplicante.

Cristóvão arrependeu-se do que tinha feito.

— Perdoai-me, Elvira! respondeu ele com respeito. O muito que vos amo fez-me esquecer o muito que vos devo. Com a mente de falar-vos, e dizer-vos quanto sofri pela vossa ausência, não me lembrei que este asilo me era vedado; mas crede-me, que não entraria em templo, com recato maior do que entrei aqui.

A moça, presa dos lábios de seu amante, comovida de tanto amar, mal sabia o que fizesse; já não era o receio que a retinha, sim o pejo.

— Bem penso, continuou o moço, que errei; sede porém benigna para esse erro de que só fostes a causa. Trouxe o que por vós e para vós ganhei; e vou-me por onde vim, para que não vos deixe maior aflição da que levo em deixar-vos.

Dizendo isto, o moço deitou sobre o toucador uma bolsa que tirou do peito do gibão, e na qual brilhavam entre as malhas de seda as joias que tivera em preço dos jogos; após fitando um longo e ardente olhar na sua amada, foi para sair.

Elvira não se conteve mais; lançou pelo colo uma manta de seda e correu à janela, ao tempo em que o moço ia saltar o balcão.

— Não ides magoado comigo, não? disse ela pousando-lhe as mãos sobre os ombros e sorrindo.

— Bem sabeis que não, Elvira minha, alma de minha alma! exclamou o cavalheiro ajoelhando a seus pés e beijando-lhe a fímbria do vestido.

— Pois então antes de partir contai-me como vos foram as festas sem mim; e se vos deslembrastes de quem não passou um instante, que não estivesse convosco em pensamento.

Cristóvão apontou para a tarja do escudo que trazia bordada no peito do saio:

— Perguntai-o à minha estrela que nunca me desacompanhou ou a estas joias que o são menos do que sois de minha vida. Elas ficam; e eu me parto.

— Não; que me haveis de dizer como as ganhastes; pague-me esse prazer tão grandes penas quais passei.

— Ah? e não me contareis que penas foram essas?

— Quando souber tudo que fizestes. Vinde; mas falai baixinho que não vos ouça minha mãe.

Elvira fez Cristóvão sentar-se no estrado, e escutando, se tudo estava em silêncio, foi sentar-se junto dele.

— Oh! que lindas galanterias! exclamou ela soltando no regaço as joias da bolsa. Que tão cobiçadas não haviam de ser pelas damas que lá estavam!... Mas quisestes guardá-las para quem menos as merecia!

— Para quem elas menos merecem, senhora minha.

— Mas falai; que não me posso já com o desejo de saber quanto fizestes!

— Não quereis que cerre aquela janela? Podem ver a luz a estas horas mortas, disse o moço erguendo-se.

Elvira corou.

Lembrou-se que estava só com seu amante, à noite calada, e na sua câmera de donzela recatada; pareceu-lhe que fechando a janela, o isolamento ainda se tornava maior; porém sua alma era tão cândida e o amor de Cristóvão tão respeitoso, que se acusou a si mesma daquele seu receio.

— Cerrai! tornou com um sorriso encantador. Não ficamos sós.

— Quem mais está aqui? perguntou Cristóvão admirado.

— Deus! disse ela apontando para o crucifixo que pendia da parede.

— Deus, vossa virtude e minha honra, Elvira! replicou o moço em tom solene, e estendendo a mão, como se fizera um juramento.

A janela cerrou-se ocultando a luz que derramava sobre a folhagem das árvores.

A fachada do edifício ficou em completa escuridão; porém minutos não eram passados que uma luz interior bruxuleou; aparecendo e desaparecendo, percorreu quase toda a casa até parar em uma sala que deitava para o nascente.

Algum tempo depois ouviu-se o ranger de uma porta baixa que abriam; um vulto embuçado apareceu no terreiro, e avançou a passo e passo como quem procurava alguma coisa.

A última badalada do sino de recolher ressoava ainda pelo espaço.