As Minas de Prata/III/XXV

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Apenas o mancebo suspeitou pelas confusas palavras do negro o que era passado, correu desatinado pela casa em busca de um instrumento qualquer para abrir a parede; achou-o no jardim. Enquanto ele trabalhava, Lucas batia o fuzil e acendia uma candeia.

Joaninha, sentada à soleira da porta do jardim, e alheia ao que sucedia perto, continuava a cariciar o corpo inanimado de Gil, impaciente pela demora de Estácio em socorrê-lo, mas animada com a esperança de que ele traria o necessário para salvar o mísero pajem.

— Senhor Deus, salvai-o, não para mim, que faço voto de servir-vos todo o resto de minha vida!... Intercedei por ele, que sois seu patrono, meu São Gil, e vos levantarei uma capela!

A brecha afinal deu passagem; Estácio precipitou-se dentro.

A cena era sublime.

O sacerdote, sentado nos degraus do altar, sustinha em seus joelhos o busto desfalecido da formosa Dulce; um dos braços da senhora pendia-lhe pelos ombros; e a cabeça repousava sobre o peito. O jesuíta já não se podia ter firme; era a coluna do altar que o amparava; sentindo que alguém se aproximava, sua voz débil como um soluço murmurou:

— Ela! salvai-a!... e desmaiou.

— Depressa! exclamou o cavalheiro. Vinho, Lucas!

O negro ergueu-se da terra onde jazia aos pés da senhora, e arrastou-se à copa, donde trouxe pão e vinho.

Foi tarde porém; a dama era já finada. Sem dúvida ela morrera feliz; porque sua alma, partindo-se daquele formoso despojo, deixara impresso nos lábios um sorriso de enlevo. Em uma das mãos notou-se que ela tinha fios de cabelos brancos, que pareciam arrancados em um último estertor.

Estácio cuidou de salvar o jesuíta, ao qual algumas gotas de vinho bastaram para reanimar:

— Estácio!... proferiu ele ainda com a voz sumida.

Ouvindo-se chamar e por uma fala, que vibrou dentro de sua alma, pôs o mancebo olhos de espanto no desconhecido. Aquele semblante profundamente sarjado de rugas, aquela fronte obumbrada de cãs revoltas, jamais os vira decerto, mas através da máscara de uma velhice fulminante transpareceram traços enérgicos, que ele conhecia e tinha impressos na lembrança.

Afinal exclamou o mancebo saindo de sua dúvida para um espanto maior:

— P. Molina!...

O velho quis reter-lhe a palavra com um gesto de terror e murmurou com entonação profunda:

— Não proferi este nome; ele foi profanado, filho. Já não sou o sacerdote da religião e ministro do Senhor. Estas vestes, manchei-as. Arrancai-as de mim, que me queimam e trucidam as impurezas da carne... Não as devo trazer sobre este miserável despojo, que a virtude enfim desertou... Cuidei-me forte, e poucas horas bastaram para aniquilar essa fortaleza. O passado de tantos anos, apagou-o algumas lágrimas!...

Quase não o ouvia Estácio, tão cheio estava de comiseração ante aquela grande ruína de um vigoroso organismo. O frade curvou a cabeça ao peito, e permaneceu assim vergado ao peso da dor.

— Ela vos amava, Estácio, como seu filho... Todo o mal que vos eu fiz sem querer, sua alma angélica devia reparar.

Arrastou-se a custo até o cofre que rojava pelo chão, e pô-lo entre as mãos do mancebo:

— Guardai-o. Isto vos pertence. Aí está encerrada vossa felicidade.

Estácio tomou o cofre maquinalmente, e pôs nele os olhos, sem compreender ainda todo aquele mistério. O P. Molina ajoelhou de bruços sobre o corpo exânime de Dulce, e ouviram-se os soluços abafados que lhe rompiam o seio e estalavam contra o gélido espojo.

Nesse instante um grande estrupido soou na rua; magotes de gente corriam apressados para o outro lado da cidade, deixando após o surdo rumor de passos e vozes, que no silêncio da noite incute sempre um inexplicável pavor. De vez em quando distinguiam-se nesse coro confuso falas que se destacavam:

— Fogo!... fogo!...

— Depressa!

— Aonde?

— Para as bandas da Sé!

— Acudi!...

Estas vozes sinistras ecoaram dolorosamente n'alma já tão ulcerada de Estácio.

Ainda havia naquela cidade de desolação e luto, para ele viúvo de suas mais queridas afeições, um derradeiro amigo; e esse habitava justamente aquele canto, onde lavrava o incêndio. Tomou-o tal espanto e terror, que sem volver um olhar ao oratório, da varanda em que estava, ganhou a rua e seguiu a corrente do povo.

O incêndio era por detrás da Sé, e justamente na casa de Vaz Caminha.

O advogado, depois que Gil partiu, voltara a escrever; havia tempos que ele trabalhava com afinco na sua grande obra, que a promulgação das novas Ordenações Filipinas, em 1603, modificara profundamente, exigindo grandes retoques e aumentos. Depois da morte de D. Mência especialmente essa atividade do trabalho redobrara, e tornou-se quase uma febre.

Vaz Caminha tinha um pressentimento de seu fim próximo; não queria deixar o mundo sem concluir a obra que consumira a melhor seiva de sua vida, e representava uma das duas grandes dedicações de sua alma, a dedicação da inteligência, como Estácio tinha sido a dedicação do coração. Sentia o pobre velho que exauria os últimos alentos naquele labor estrênuo; mas sorria-lhe a imortalidade de seu nome, e em holocausto a ela sacrificava de bom grado os poucos vislumbres de existência que ainda restavam.

Euquéria já estava no seu terceiro sono, e de cada vez que acordara, tinha vindo à porta do gabinete espiar pela fresta da porta o seu velhinho. Achando-o sempre debruçado sobre o telônio e a escrever e sobrelinhar o grande alfarrábio, ralhava:

— Acame-se, Sr. Vaz! Já os galos cantaram. Também é tentar a Deus!...

— Estava mesmo para isso, Euquéria. Antes que vos deiteis, ouvir-me-eis roncar.

A velha tornava resmoneando; e o bom do Vaz, sorrindo, afundava-se mais no trabalho; era já nas últimas folhas; breve veria o desejado fim, e selaria com uma cetraria a grande obra. Poderia então morrer tranquilo, legando a Estácio o cuidado de tirar da estampa o livro.

Um instante porém sua cabeça, esmorecida e pesada de sono, vergou. Era já por madrugada, e muitas noites havia que o velho passava em claro; a seu pesar pois a mão parou inerte sobre o volume, a fronte escaiu e pousou sobre o braço. A respiração doce, ainda que fatigada, resfolgando sonora, anunciou que o bom velho dormia.

De repente ele acordou sobressaltado, sentindo estranho calor no rosto; ergueu de chofre a cabeça, e ficou como fulminado.

A candeia, que alumiava o trabalho, estava mui próxima da parte já corrigida do volume; o morrão, desprendendo-se com alguns frocos de chama, caiu sobre as folhas, e as foi consumindo em mais de um terço até a capa de pergaminho.

Avaliando o estrago já produzido, vendo a obra de tantos anos de laboriosas investigações destruída por uma centelha, Vaz Caminha ficou estúpido, com os olhos pasmos e o movimento paralisado. Seguia o progresso da chama sem força nem vontade de extingui-la.

De que lhe servia que apagasse? Não estava sua obra já destruída, e com ela consumida a melhor porção de sua alma? Que ficava ele fazendo na terra depois que seu espírito, ali apurado com tanto afã, se partisse dela?

O incêndio propagou-se com rapidez. De repente Vaz Caminha recordou-se do testamento de Dulce a favor de Estácio. Ainda o tinha no bolso; era preciso salvá-lo para que chegasse às mãos do mancebo. Correu à porta, mas já o fogo a invadira de modo que não a pôde atravessar, refugiou-se então em um canto menos fustigado das labaredas.

A esse tempo era o incêndio senhor do edifício; o povo se aglomerava em torno, mas como sempre sucede, na falta de uma iniciativa, perdia-se o tempo em hesitações.

Reconhecendo que o fogo era na casa de seu velho mestre e amigo, Estácio foi presa de uma vertigem, e lançou uma pungente imprecação de angústia.

— Melhor é rir!... Já não tenho alma para sofrer!

Quis desprender dos lábios uma gargalhada convulsa, e os dentes lhe rangeram de raiva. Teve ímpetos de atirar-se contra aquela multidão que se agitava ante ele e trincar-lhe as carnes, para derramar sobre os outros essa desgraça tenaz que se lhe agarrava como uma lepra asquerosa.

Um homem veio a ele, que o avistara de longe. Era Bartolomeu Pires, o velho amigo do advogado, acorrido um dos primeiros à notícia do incêndio. Reconhecendo o mancebo, deitou-se a ele, e não só pela atração de uma dor comum; lembrou-se que pondo seus esforços à disposição de Estácio, cuja energia e decisão bem conhecia, talvez se pudesse ainda conseguir a salvação do bom doutor.

— Vinde, Sr. Estácio!... Tenho fé que chegaremos a tempo.

Foi como um impulso magnético, o que essa palavra de esperança produziu no mancebo; precipitou-se avante seguido pelo mestre de capela até a janela do edifício. Daí lançaram o olhar ansiado para a cratera de chamas que borbulhava dentro; um grito áspero de dor rompeu do seio de ambos.

No fundo do aposento já completamente invadido pelas chamas, via-se a estátua de Vaz Caminha em uma atitude eloquente e sublime. O velho erguia acima da cabeça a destra que segurava o testamento de Dulce, tentando salvá-lo em derradeiro esforço. Seus olhos cheios de angústia envolviam o papel que a chama enegrecia; impassível às torturas que sofria seu corpo já meio devorado pelo fogo, ele só lembrava-se nesse instante de salvar a herança do filho amado. Sua sensibilidade estava naquele papel mais que na sua própria carne.

Estácio se arrojara contra as chamas para salvar seu mestre; porém um bulcão de fumo e brasido, que irrompeu pela janela, o sufocou, rejeitando-o fora quase asfixiado. Mestre Bartolomeu, apoderando-se de uma lança, investiu contra o fogo para abrir caminho, enquanto o mancebo, dissipada a asfixia, voltou à carga.

Ouviu-se então um grande estrondo; o teto da casa desabou todo, e de um só jacto, sepultando sob suas ruínas os sobejos do edifício. Ao estrépito respondeu um clamor doloroso da multidão, que permaneceu estática e imóvel ante a horrível catástrofe.

Bartolomeu teve ainda resolução para deter Estácio que, não obstante o desabo do teto, se lançara entre as paredes vacilantes, pisando sobre uma grelha de brasas, para senão salvar, ao menos abraçar os restos queridos de seu mestre e amigo.

— Sr. Estácio!... Sr. Estácio!... gemeu o cantor.

— Deixai-me!... Não me impedi!...

— Mas ides matar-vos!...

— E que tenho eu mais com este mundo? replicou o mancebo em ira.

Nesse instante atravessou pelos ares um som lúgubre. Os sinos da Sé dobravam a finados, e já lhe respondiam os outros sinos das próximas igrejas.

A multidão, apenas recobrada da triste impressão de uma desgraça, era já assaltada pelo receio de outra.

Houve como um soçobro de espíritos naquela gente; imersos em si mesmos, sentindo os sons funéreos do bronze repicarem doridamente em seu íntimo, esperavam anelantes a certeza dessa outra catástrofe que estava plainando.

Súbito grupos e grupos se foram destacando da massa informe e correndo para as bandas da Sé. Após outros; afinal estabeleceu-se a corrente, que escoou ao longo da rua rumorejando:

— Tão moça e formosa!

— Nem a capela tirou!

— Que pena!

— Mais um anjo no céu!

— Castigo! Castigo!

— Não tinha que ver!

— Tão mal agouradas bodas, não podiam surtir bem.

Estácio ouvira o toque de finados e as vozes destacadas da gente com curiosidade indiferente e como uma diversão à sua angústia; mas de improviso soltou um grande gemido, e lançou-se após a turba.

Era para a casa de Cristóvão de Ávila que a multidão corria levada pela curiosidade. Ainda ali duravam as galas e luminárias da festa que de repente se trocara em luto.

A esta hora já os fidalgos presos no pavilhão tinham forçado a porta e derramavam-se pelas casas. Em vez de Cristóvão morto, grande foi a surpresa de D. Francisco encontrando sua filha a expirar.

Atravessando por entre a multidão, Estácio penetrou na câmera nupcial.

Estacou na porta.

Em frente, sobre o leito de veludo estampava-se no brocado azul da tapeçaria o formoso relevo do talhe de Inesita. Parecia que adormecera, reclinada suavemente sobre as almofadas.

O mancebo avançava, quando a figura pavorosa de D. Francisco de Aguilar assomou-lhe por diante:

— Retirai-vos, mancebo! Não insulteis minha dor!

Estácio curvou a cabeça ante aquela sagrada indignação e saiu do aposento. Alguns passos além sentiu que o estreitavam ao peito; firmou os olhos baços no vulto, e através da névoa do espírito reconheceu Cristóvão. Então com o gesto frio e compassado de um autômato desviou de si os braços do cavalheiro:

— Estácio!... exclamou Cristóvão.

— Um túmulo nos separa.

O cavalheiro sentiu o coração esmagado por esta palavra. O amigo tinha razão: ele era o assassino de Inesita; querendo salvá-la, a perdera.

— Uma graça me deveis, em paga de tanto mal. O espojo mortal de Inês vos pertence, porque enfim... a desposastes.

Esta última palavra o mancebo a arrancou do peito como uma convulsão.

— Seu esposo sois vós! exclamou Cristóvão.

— Reclamo de vossa lealdade o espojo de uma alma que me pertence.

— Tê-lo-eis.

— Quando?

— Na seguinte noite.

— Onde?

— Em São Bento.

Partiu Estácio. Na rua o Bartolomeu Pires chegou-se a ele e pôs-lhe nas mãos um objeto.

— Vossa caixa, Sr. Estácio.