As Vítimas-Algozes/I/IX

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Domingos Caetano escapara àquele assalto da morte; mas, à semelhança do soldado inválido que traz na mutilação o sinal do golpe inimigo que estivera a ponto de cortar-lhe a vida, ficou marcado com a tortura da boca e com a hemiplegia quase completa.

Se não fora católico e pai de família bem pudera preferir ter morrido.

Não houve para o pobre paralítico nem a duvidosa esperança de convalescença promissora da regeneração da saúde: nos primeiros dias houve o sofrimento incessante do homem que se reconhece metade morto para o movimento e a ação, para a atividade e o trabalho, e que não tem no futuro perspectiva menos desconsoladora, do homem que sendo esposo e pai, sabe que deixou de ser apoio e que precisa apoiar-se, que não carrega mais com a família, e que é a família que passa a carregá-lo.

E passados os primeiros dias, Domingos Caetano, que notava o cuidado com que o médico auscultava-lhe por vezes o coração e ao mesmo tempo examinava-lhe o pulso, e recolhia minuciosas informações de passageiros incômodos que ele sofrera antes do terrível ataque, parecendo de muita importância a momentos de rápida mudança da cor do rosto, acompanhada de suores e resfriamento nas mãos e nos pés, aproveitou desconfiado alguns instantes em que se achou só com o médico e disse lhe:

– Doutor, devo contas ao céu e à terra e já não posso amar a vida: fale-me franco... compreende que preciso saber tudo...

O médico hesitou.

– A verdade... e depressa, enquanto elas não voltam... é pela minha alma e por elas que eu preciso saber...

Elas eram a mulher e a filha.

O doutor murmurou voltando os olhos:

– Um pai de família prudente... deve sempre estar preparado para... mas eu ainda não desespero...

– Entendo: obrigado... vê que não tremo: o que me diz é quase uma consolação: dói-me o deixá-las; mas de que lhes sirvo eu assim?...

O médico abaixou a cabeça.

– É penar e penalizá-las; antes morrer.

E depois de breve pausa o velho continuou:

– E nestes casos e na pior das hipóteses... porque enfim o doutor ainda não desespera... na pior das hipóteses a morte aproxima-se deva­gar ou chega de súbito?...

– De um e outro modo – respondeu o médico animado pela frieza com que lhe falava o mísero doente. – O seu mal é incurável, meu pobre amigo; não me compreenderia bem, se eu quisesse explicá-lo; mas há em uma de suas artérias obstáculo já muito grande e que se tornará absoluto, impedindo a circulação do sangue que é impelido do coração... nestes ca­sos a morte, que às vezes fulmina como o raio, também às vezes se prea­nuncia àqueles mesmos que não são médicos.

Com a mão não paralítica o velho apertou a do doutor.

– E se a morte não me fulminar hoje ou amanhã, como o raio fulmi­na, diga-me, meu amigo, quais são os sinais da aproximação do termo de tanto padecimento sem remédio?

O médico tomou o pulso ao doente, e achou-o batendo com perfeita regularidade.

Não havia impostura, nem estulta vaidade na resignação de Domingos Caetano.

Era este um moribundo com quem se podia tranqüila e placidamente conversar sobre a morte.

O médico olhou admirado para o velho e não respondeu.

– Mas... conversemos, doutor; conversemos, enquanto elas não che­gam.

– Já não lhe disse bastante... talvez demais?...

– Eu queria saber tudo... – ia dizendo Domingos Caetano.

Mas ouviu-se o leve ruído de mimosos passos.

Eram elas, a esposa e a filha que chegavam.

– Silêncio, doutor... – murmurou o velho.

E sorriu-se, como podia, e ainda mais com os olhos do que com os lá­bios, a Angélica e a Florinda, que entraram no quarto.

– Como está?... – perguntaram as duas a um tempo, dirigindo a palavra ao esposo e ao pai, e os olhos para o médico.

– Muito melhor – disse o esposo e pai.

O médico não pôde falar, e fez potente esforço para conter as lágrimas.