As Vítimas-Algozes/I/XII

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À noite, mas um pouco tarde, Simeão corria à venda para compensar­-se da tarefa diária junto do velho paralítico.

Depois das dez horas da noite a venda achava-se sempre fechada; a porta, porém, abria-se pronta à voz de freguês conhecido. Dentro era cer­ta a reunião de escravos e da pior gente livre da terra.

Simeão preludiava com a conversação e com o jogo devassidões subse­qüentes. A conversação era animada: na venda sabia-se de tudo, e a vida íntima das famílias se despedaçava ali aos dentes ferozes dos escravos, os atraiçoadores e caluniadores das casas.

A moléstia de Domingos Caetano e suas inesperadas melhoras tinham sido por muitas vezes discutidas.

Muitos lamentaram Simeão pelo adiamento da sua alforria: os escravos zombavam dele.

Um só homem soube consolá-lo com um raio de esperança: foi o ho­mem de imensa barba que vimos dormindo no banco da venda no dia em que Simeão fora mandado a chamar o médico.

José Borges, que aliás era mais conhecido por José Barbudo, ou simplesmente por – Barbudo – tinha dito a Simeão:

– Ataque de cabeça, quando deixa sinal, não tarda a voltar.

O aforismo popular, que José Borges repetira, ficou na memória do crioulo que depois por mais de uma vez consultou o seu aforista.

E o Barbudo começava a interessar-se muito por Simeão, com quem estreitara amizade, acompanhando-o em suas excursões noturnas, e parti­lhando seus deboches.

O companheiro não podia ser pior: José Barbudo era uma celebridade turbulenta e suspeitosa; mais de uma acusação de crime pesava sobre sua cabeça, e pretendiam que havia em sua vida nódoas de sangue.

Nenhum freguês da venda se atrevia a negar um copo de aguardente ao Barbudo e menos ainda exagerar com ele a disputa no jogo. O Barbudo tinha sua fama.

Até então quase indiferente a Simeão, tornara-se em poucos dias seu íntimo camarada, e sempre que estavam juntos embebia nele seus olhos de tigre como serpente a magnetizar a presa.

Era fácil de explicar aquela súbita amizade do Barbudo.

O escravo é a matéria-prima com que se preparam crimes horríveis que espantam a nossa sociedade. No empenho de seduzir um escravo para torná-lo cúmplice no mais atroz atentado, metade do trabalho do sedutor está previamente feito pelo fato da escravidão.

Não há, não pode haver escravidão sem a idéia da vingança, sem o sentimento do ódio a envenenar as almas dos escravos, e a vingança e o ódio têm sempre chegado de antemão à metade da viagem, quando soa a hora infernal da marcha pelo caminho do crime.

Mas o Barbudo não deixava entrever projeto algum criminoso: bom amigo de Simeão, apenas manifestava por ele afeição e interesse.

Uma noite, por exemplo, levou o crioulo a conversar no terreiro da venda.

Depois de fácil ajuste para um de seus freqüentes deboches em senzalas de escravas e sítios ocupados por gente depravada, o Barbudo perguntou:

– Simeão, donde diabo veio o favor que conseguiste de teus senho­res? Olha que deveras eles te estimam!

– Minha mãe foi ama-de-leite da menina – respondeu o crioulo.

Fora de casa Simeão mudava o tratamento que por costume e lição re­cebida prestava a seus senhores: a Domingos Caetano, em vez de meu se­nhor, chamava – o velho – , a Angélica, em vez de minha senhora, cha­mava – a velha – , a Florinda, em vez de sinhá-moça, chamava – a me­nina.

O Barbudo tornou dizendo:

– Ah! Era de razão; mas com os diabos! Se morrer o velho, a liberda­de que ele te vai deixar tem ares de benção seguida de pontapé!

– Como assim?

– Não te mandaram ensinar ofício, fizeram de ti um famoso vadio, como eu, e agora se vieres a ficar forro, escorregarás da alforria para a mi-

séria... hem?...

– Penso às vezes nisso, Barbudo; mas...

– Mas o quê?...

– E que a liberdade sempre é a liberdade! No dia em que me achar forro, cresço um palmo.

– Boa consolação! Não serás capaz de viver liberto, como vives escra­vo: tu passas um vidão.

– Talvez; mas sou escravo; este nome quando soa, fura-me os ouvi­dos, como se fosse um estoque envenenado...

– Não me venhas com essa; eu sei o que esperas: o velho é rico a abar­rotar, e sabes e contas que te deixará com a liberdade dinheiro bastante para o princípio de algum negociozinho.

Simeão sacudiu a cabeça tristemente e disse:

– Liberdade sim... dinheiro não: é certo que o dinheiro anda lá em sacos; mas o velho é unha-de-fome, e nunca falou senão em ajuntar for­tuna para a menina...

– Com os diabos! Olha, Simeão; acabas em cachorro leproso se ficares forro sem dinheiro... coitado do Simeão! Que injustiça! Quando pouco te bastava, e há tantos... tantos sacos...

– Muitos... – murmurou o crioulo com voz surda.

– Que lorpa de velho! Com os diabos! E o sovina não tem medo dos ladrões?

– Ladrões? Que iriam lá fazer?... A casa da fazenda é uma fortaleza.

– Só assim; mas não há fortaleza que não se renda.

– Aquela somente por traição.

O Barbudo sorriu-se sinistramente; mas o crioulo não lhe viu o rir me­donho; porque a noite era escura.

– Que nos importa a fortaleza?... Que o diabo a leve e também ao velho contanto que ele te contemple com algum dinheiro no seu testa­mento; do contrário manda-o pinotear no inferno pela liberdade miserá­vel em que te abandonará.

– Com efeito, eu tenho necessidade de dinheiro: já fiz meus planos; negociarei em bestas e cavalos... ganha-se muito nisso

– Mas para principiar o negócio?

– É isso: preciso ter algum dinheiro.

– Olha, Simeão, criado como filho adotivo, tens direito a herdar um pedacinho da fortuna do velho, e eu no teu caso... queres um conselho de amigo?

– Quero, sim.

– Eu, no teu caso, herdava por minhas mãos: morrendo o velho, tira­va o meu quinhão; não sejas tolo; se puderes, e há muitos meios, faze-te herdeiro sem te importar o testamento: ninguém sabe quanto o sovina aferrolha, e os mortos não falam. Não sejas tolo.

Simeão não respondeu; mas o Barbudo tinha adivinhado a sua íntima e decidida resolução.

Os dois passearam ainda ao longo do terreiro; mas não conversavam mais. Meditavam ambos, e as almas de ambos banhavam-se em inunda­ção de idéias criminosas.

– Vou-me embora – disse de repente o crioulo.

O Barbudo apertou-lhe a mão, e murmurou-lhe ao ouvido:

– Se em qualquer dificuldade precisares de um companheiro seguro, que valha como dez, lembra-te de mim, e conta com o Barbudo, Simeão.

Q crioulo afastou-se sem dizer palavra.

A venda já estava deserta.

Simeão esperou na estrada o Barbudo, e vendo-o sair logo atrás, deixou-o aproximar-se e perguntou-lhe à meia voz:

– Então é certo que o ataque de cabeça, quando deixa sinal, volta sempre?...

– É de regra.

– E demora-se muito a voltar?...

– Quase nunca.

– Leve o diabo o teu quase, Barbudo!

O Barbudo soltou uma gargalhada cínica.