As Vítimas-Algozes/I/XIV

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Simeão detestava Hermano.

O fundamento dessa detestação era a justa e aliás moderada repressão de um atentado do escravo.

É um episódio trivialíssimo na história da escravidão.

O sítio do pai de Hermano demorava perto da fazenda de Domingos Caetano e Simeão tomou-se de amores por uma escrava daquele sítio: infelizmente a escrava era mucama de uma das filhas do velho João de Sales, e dormia recolhida.

Sabem todos o que é o amor entre os escravos: a condição desnaturada desses exilados da sociedade, desses homens reduzidos a coisas, desses corpos animados a quem se negam direitos de sensibilidade, materializados à força, materializa neles sempre o amor: sem o socorro da poesia dos sentimentos que alimenta o coração e o transporta às regiões dos sonhos que se banham nas esperanças de santos e suaves laços, os escravos só se deixam arrebatar pelo instinto animal, que por isso mesmo os impele mais violento.

A mucama muito atarefada de dia, raro da casa se escapava para encontrar-se com Simeão em rápida entrevista, e trancada à noite sob o teto da família, não tinha o recurso da senzala ou do passeio noturno para receber o amante.

A mucama não tem a educação da senhora-moça: a natureza animal é tudo nela. O escravo não crê na pureza da donzela, nem na fidelidade da esposa mais nobre; admite somente que a falta de oportunidade ou de ocasião para ser má seja o que mantém a honra das famílias; a observação é cruel e injustíssima: o juízo do escravo é infamemente torpe; mas ele julga conforme as idéias e a vida da escravidão.

O instinto impeliu e a razão abandonou o crioulo e a mucama,

Aconteceu o que acontece mais vezes e em mais casas do que se presume.

Simeão e a escrava mucama ajustaram-se: à meia-noite ela abria uma janela, e Simeão saltava para dentro da casa: depois, quando a descon­fiança de João de Sales e de seu filho tornou perigosa a entrada pela jane­la, o dinheiro, que não faltava a Simeão, abriu-lhe a porta da cozinha.

Havia no terreiro cães a velar; mas o homem compra os cães como com­pra homens; a uns, pedaços de carne; aos outros, mais ou menos moedas de ouro.

Simeão comprara os cães e um negro escravo da cozinha, e entrava to­das as noites na casa de João de Sales.

A casa de João de Sales estava pois de noite à mercê das intenções e de quaisquer projetos de Simeão; mas que casa há aí, onde haja escravos e so­bretudo escravas, cuja segurança não esteja exposta às conseqüências do instinto animal e da boa ou má vontade do elemento escravo?...

Simeão era, pois, durante duas horas em cada noite mais do que o amante da mucama, o árbitro das vidas e da fortuna de João de Sales e de sua família.

Ainda bem que Simeão, o escravo, ali ia somente como animal que o instinto arrasta em procura da sua igual; se fora ladrão ou assassino tinha tido abertas a janela da sala e a porta da cozinha.

A vida, a fortuna e a reputação dos senhores estão de dia e principal­mente de noite à mercê dos escravos.

Mas uma noite houve ruído, e Hermano de Sales que velava, acudiu com uma luz, e chegado à sala de jantar, estacou diante de Simeão.

O crioulo, atrevido e ainda mais urgido pelo risco da situação, quis fu­gir; e vendo a saída disputada, avançou ousado para o mancebo que, apertando-o em seus braços de ferro, o lançou por terra.

João de Sales acudiu, como toda a família que despertara assustada.

O caso explicou-se em breve.

Hermano ressentido do ataque de Simeão, tinha-o esbofeteado com força, recebendo na manga da camisa gotas de sangue que saltaram do rosto do escravo ofensor.

Simeão foi conhecido, e a escrava sua amásia e cúmplice castigada ime­diatamente a seus olhos.

O crioulo egoísta e altanado sentiu menos o castigo que a mucama re­cebera, do que as bofetadas que ela vira-o receber.

Entretanto a sua luta com Hermano tinha passado toda entre os dois, e Hermano o havia facilmente subjugado. Homem contra homem, ele ti­nha sido em breves momentos submetido pelo mancebo.

Era pouco mais de meia-noite, e muito tarde para Simeão ser envia­do a seu senhor: Hermano o fez trancar no quarto em que se prendiam os escravos delinqüentes, e na manhã seguinte o mandou levar a Domingos Caetano com carta de seu pai, narrando quanto se passara.

Simeão, protegido por Florinda, escapou a justo castigo, que Domin­gos Caetano devia infligir-lhe.

Para o escravo a repreensão não é pena, porque a repreensão fala ao brio, ao sentimento do pundonor, que a escravidão não pode comportar.

E Simeão foi apenas asperamente repreendido.

Desde aquela noite o crioulo detestou Hermano.

Simeão viu desde então em Hermano um homem que era melhor, mais forte, e muito superior a ele: melhor, porque era livre; mais forte, porque pudera e podia subjugá-lo; muito superior, porque o tinha esbo­feteado, prendido e mandado conduzir preso à casa de seu senhor, e a ele nem era dado pensar em vingar-se.

Não era a vergonha de suas faces esbofeteadas que o irritava, queiman­do-as; era a idéia de nunca ter sido até então castigado materialmente por1 seu senhor, e tê-lo sido sem ressentimento dos senhores, e sem o seu apoio ou proteção para tirar vingança de quem assim o maltratara.

Esse aborrecimento crescera; porque Hermano, homem bom e homem livre, nem sequer indiciava conservar lembrança do que acontecera e indi­ferente passava por diante de Simeão no campo da fazenda ou na estrada, como por desconhecido que não merecesse olhar de atenção.

O crioulo vaidoso via na indiferença de Hermano o desprezo que o hu­milhava e aviltava.

– Esbofeteou-me, e não me conhece, e não me vê e não me teme!... – dizia ele consigo, e lhe fervia a raiva no coração.

E Hermano tinha-se esquecido completamente de Simeão.

Mas a serpente lembrava o pé que lhe machucara a cabeça.

Era serpente que tem memória, a serpente escravo.