As Vítimas-Algozes/II/VII

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Esméria não era o que parecia: coagida pela força que não podia rebater a suportar a escravidão que debalde detestava, preparara com atilado juízo a sua segunda natureza, o difícil mas seguro processo, a melhor combinação de proceder para tornar menos dolorosa e torturadora a sua vida de escrava.

Refinara o fingimento.

Via nos filhos de seus senhores futuros e aborrecidos opressores, e beijava-lhes os pés que às vezes desejava morder.

Tinha para os lábios risos de falsa alegria nas horas de aborrecimento, de melancolia, e de aversão a ferver.

Luzia-lhe nos olhos o amor da senhora, que a amava e distinguia, e lhe dispensava favores, e no fundo do coração maldizia dela, só porque ela era sua senhora: espiava-lhe a vida, almejando descobrir fraquezas, erros e ofensas ao dever; invejava-lhe os vestidos, os gozos, a condição; em muda ousadia comparava-se com Teresa, e em sua louca vaidade pretendia ser mais bonita, mais bem-feita, mais sedutora que ela.

Desconfiada e egoísta, não tinha nem franqueza nem lealdade com as parceiras: de todas simulava-se amiga, de nenhuma denunciava nem es- condia as faltas; se podia comprometê-las sem comprometer-se, fazia-o para mais recomendar-se ao ânimo e ao coração da senhora.

Testemunhava indiferente, com seriedade que podia indiciar sentimento, mas sem dor e sem piedade, os castigos que as outras escravas recebiam às vezes.

Em resumo, Esméria era um composto de dissimulação profunda, de egoísmo enregelado, e de aversão abafada.

Não bebia, e detestava o fumo: escrava, desconhecia as duas repugnantes consolações da escravidão, a dupla embriaguez da aguardente e do cachimbo; mas em compensação era possessa do demônio da luxúria, que é o demônio torpe que desenfreia os instintos animais do escravo, únicos que o mantêm animal a despeito da prepotência que teima em reduzi-lo a simples coisa material.

Mas ainda nesse frenesi dos sentidos Esméria ocultava na sombra o seu vício dominante e furioso: amava os amantes de sua raça, preferia-os a to­dos os outros; mas em sua vaidade descomunal e egoísta envergonhava-se deles, desejaria sepultá-los ignotos no mistério de suas noites escandalo­sas; tomava precauções, imaginava ridículos e impossíveis segredos, e as­pirava a fortuna do amor, da posse, da paixão delirante de um homem li­vre e rico.

Como outros, Paulo Borges e Teresa se haviam enganado, dando im­portância às ligações da Esméria com o Pai-Raiol, e acreditando na in­fluência da crioula sobre o escravo africano.

Esméria fora amante de Pai-Raiol outrora, e só durante algumas sema­nas ou meses.

Um e outro separaram-se em breve sem acordo resolvido, mas de acor­do espontâneo, sem ressentimento e com a ampla tolerância e a ilimitada indiferença da sociedade escrava.

O que resultou dessa ligação efêmera foi o contrário do que imaginara a credulidade.

Não era Esméria que dominava o Pai-Raiol pelo encanto do amor, a que o refalsado negro africano nunca seria suscetível de dobrar-se; era a possessão como magnética da crioula pelo Pai-Raiol que sujeitava ela a ele.

O escravo incorrigível fatigara-se do tormento dos açoites, concentrara seus ódios a todos os brancos, e a todos os senhores, e por adotado plano se deixara acreditar sopeiado, arrependido e sujeito.

Esméria não domara a seu amante de alguns dias, e fora alheia à sua aparente resignação.

Do amor passageiro dos dois escravos, amor que por acaso renascia pa­ra tornar a morrer, como as inexpiradas e rápidas exalações elétricas que ra­diam por momentos, rasgando o espaço, o que resultou não foi a influên­cia benéfica de Esméria sobre o Pai-Raiol; foi a influência satânica do Pai-­Raiol sobre Esméria.

A crioula não amava; temia, porém, o africano: longe dele pronunciava o seu nome sempre em tom de voz respeitosa, e quando o via perto, acudia-lhe ao chamado, obedecia-lhe ao aceno, e executava pronta e como escrava a ordem que ela interpretava cintilando desconcertada nos olhos vesgos.

Donde vinha esse império do Pai-Raiol, a que tão submissa se curvava Esméria? Os escravos teimavam em dizer que os dois eram amantes, e que a crioula, embora muito infiel, se fingia dócil e sujeita ao feio negro para melhor senhoreá-lo.

O Pai-Raiol ouvia com indiferença esses juízos; mas a verdade era que Esméria com toda sua viveza acreditava nos prodígios do feitiço, e consi­derava aquele africano abalizado feiticeiro; durante sua mais freqüente ligação com ele, pudera ser testemunha de sinistros processos de feitiçaria pelos quais o mal, o dano premeditado se realizava infalível; vira em escondido depósito folhas secas, raízes, pós, penas negras, garras de abu­tres, ossos humanos e cem outros objetos de misteriosas e sempre maléficas propriedades, quando a ciência do feitiço os combinava.

Uma vez, Raiol conduziu Esméria ao bosque e parando em um lugar onde mais se cerrava o cipoal assobiou por vezes, imitando os silvos das serpentes; em breve acudiram uma depois de outra três cobras ameaçadoras; o negro fixou os olhos sobre elas, segurou junto da cabeça em uma que se enrolou em seu braço, depois deixou-a livre e assim enrolada, ameigou- a, tirou-a do braço, guardou-a no seio e por fim soltou-a no chão; e enquanto a crioula recuava tremendo de medo, repetiu o mesmo brinco, ou a mesma operação com outra cobra.

Saindo do bosque, a crioula ainda assustada perguntou:

– Para que você faz isto, Pai-Raiol?...

– Pai-Raiol pode – disse o negro com ostentação.

– Um dia alguma cobra há de mordê-lo e matá-lo.

Raiol riu-se friamente e respondeu no mesmo tom:

– Pai-Raiol é rei das serpentes.

O escravo africano visava um fim em todo esse seu proceder com a crioula: era atarantá-la, causar-lhe medo, cativá-la, prendê-la com os prestígios do seu poder, e torná-la cego instrumento de sua vontade em algum caso que premeditava.

A morte de seu senhor, e a sua subseqüente mudança de cativeiro anularam os projetos que ele concebera, e estava disposto a pôr em execução, e por isso, embora arrematado com Esméria, o Pai-Raiol dela pouco se ocupava.

Mas Esméria rendia sempre ao Pai-Raiol o culto do terror.