As Vítimas-Algozes/II/XII

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Esméria não era uma simples e pobre vítima do terror que a avassalava ao Pai-Raiol, nem só por obediência ia pôr em ação incentivos libidinosos para excitar a atenção e os desejos criminosos de seu senhor.

Muito antes do conselho e da ordem refalsada do Pai-Raiol ela, como tantas escravas no mesmo caso, sorrira à idéia de traição à confiança e à estima de sua senhora.

Paulo Borges não escapara ao que não escapam outros muitos senhores de escravas; todas estas calculam com a fraqueza imprudente, desmoralizadora da casa e da família, que aqueles pode abaixar ignobilmente até fazê-los ir procurá-las: Paulo Borges não escapara ao que não escapam os mais moralizados e ainda os mais severos senhores de escravas, dos meios absurdos mas sempre nojentos e asquerosos que elas estupidamente empregam para amansar e atrair: ora bebera o café feito com a água do banho da escrava, ora de mistura com a sopa e os pratos do jantar, sem o saber, sem o pensar, tomara substâncias sempre mais ou menos imundas. Não eram venenos, eram porém torpes, e, se fossem sabidas, repugnantes, e nauseabundas as aplicações para amansar e atrair, em que todas as escravas têm fé, e que quase todas as escravas fazem provar repetidamente aos senhores.

Não tendo conseguido nem uma só vez despertar a atenção de seu senhor, Esméria perdera a esperança de fazer sua fortuna, enfeitiçando-o por aqueles recursos da mais esquálida e brutal magia, e desde muitos meses que a eles o poupava pela improficuidade das aplicações.

Mas o Pai-Raiol acendera de novo no seio da crioula as flamas da luxúria excitada pela ambição e pelo prazer maligno de atormentar sua excelente senhora.

Esméria seguiu à risca as lições de Pai-Raiol: simulou-se tomada de afeição pelo menino recém-nascido que, amamentado por Teresa, não se prendera a escrava alguma pelo instintivo interesse e reconhecimento do leite nutritivo: menos agreste e mais paciente que as parceiras, parecendo amorosa, aproveitava as horas vagas do serviço para tomar nos braços a criancinha, e brincar com ela, que em breve começou a distingui-la e preferi-la às outras escravas.

O amor dos pais tem sempre raios de gratidão que refletem naqueles que lisonjeiam, afagam, e cercam de cuidados seus filhos: Teresa foi a pri­meira a fazer notar o solícito interesse de Esméria pelo seu filhinho, e a di­vertir-se com os infantis ciúmes de Luís e de Inês, e Paulo Borges de volta da roça pedia sempre o menino, que muitas vezes lhe era apresentado nos braços da crioula.

No tempo da moagem Esméria, passeando à tarde com o recém-nasci­do ao colo, ia ao engenho e lá, na ausência da senhora, procurava aproximar-se do senhor, brincando risonha com o menino, e sob pretexto de fazê-lo rir, e de alegrá-lo, dava aos olhos fogo, aos jeitos e aos meneios do corpo como que descuidada desenvoltura de movimentos.

Quase sempre o senhor a chamava para também ele acariciar o filhinho, e então menos acanhada, mas sem deixar entrever desrespeito, nem atraiçoar-se nos cálculos, se mostrava expansiva, e agradável ao pai pelos mimos com que divertia a criança.

Enfim tantas vezes em tantos dias, Esméria se insinuou ora com o pe­quenino nos braços, ora distraindo com jogos pueris os exigentes e ciu­mentos Luís e Inês, tomando sempre posições estudadas para ostentar suas proporções físicas, dando ao andar ensaiados requebros, olhando a furto o senhor, e abaixando logo os olhos com aparências de respeito pro­fundo; oferecendo-se petulante, mas dissimulando a intenção; desafian­do instintos animais em atitudes que fingia distraidamente tomadas, que acabou após insistente diligência e paciente esforço por conseguir a pri­meira vitória, aquela que prepara e facilita as outras.

Paulo Borges olhou para Esméria, e viu que, além de escrava, ela eramulher.

O Pai-Raiol forjava naquele olhar do senhor lançado sobre a escrava a tremenda chave que devia abrir a porta da perdição da família de Paulo Borges.