As Vítimas-Algozes/II/XVI

Wikisource, a biblioteca livre

O Pai-Raiol não estava ocioso; mas, à semelhança do fogo da cova de carvoeiro, destruía ou conspirava para destruir em tenebroso mistério.

As relações de seu senhor com Esméria impunham-lhe a necessidade de precauções para não se expor à cólera e aos prováveis ciúmes grosseiros de Paulo Borges: com a crioula já se achava de inteligência; tratou pois de enganar àquele e aos parceiros. Com esse propósito afetou ainda mais sombria tristeza e pareceu acabrunhado: dias depois, como a procurar consolações, aproximou-se das outras escravas, pretendendo-as e perseguindo-as.

Lembrados do desprezo e do mau-trato, com que Pai-Raiol sempre os repelira e molestara, muitos dos parceiros por sua vez o desprezaram, galhofando indecentemente sobre o seu suposto infortúnio; não assim as parceiras que depravadas o aceitaram prontas pelo hábito da licenciosidade, não interrompendo com a repulsa do Pai-Raiol o quadro sórdido devassidão da desenfreada que aos olhos das famílias livres incessante, incorrigível, sem vergonha nem consciência ostenta a escravidão.

Entre tantas escravas, porém, houve uma, e foi a primeira, que resistiu ao Pai-Raiol e não quis entrar na série das fáceis conquistas deste: a oposição excitou debalde os desejos brutais do negro africano.

Era também crioula a negra que se isentava do Pai-Raiol: coabitava com um escravo da fazenda de quem tinha dois filhos; cansada das perseguições daquele, lançou-lhe em rosto a sua hediondez, enquanto o companheiro ameaçou-o e provocou-o com injúrias atiradas principalmente deformidades de seu rosto e aos seus senões físicos.

Pai-Raiol retraiu-se: sentiu-se ferido em seu grotesco melindre. Em geral o negro africano não perdoa a quem ridiculariza ou lhe lança em rosto a sua fealdade. Pai-Raiol mais que nenhum outro se enfurecia com vilipêndio, por isso mesmo que era horrível de aspecto; moderou-se, porém, fez as pazes com os dois parceiros, freqüentou-os, e uma noite levou-lhes à senzala um boião de café, e uma garrafa de aguardente.A noite estava escura e o regalo foi à porta da senzala: o feiticeiro, que não passava de envenenador, em vez de beber, despejou sorrateiramente no campo a tigela de café, que lhe tinha sido dada em partilha.

No dia seguinte havia quatro escravos doidos na fazenda de Paulo Borges, duas pobres crianças e o pai e a mãe dessas infelizes. Por celeratez requintada o envenenador lhes dera a loucura que poucos meses devia preceder a morte para arrancar à crioula doida o que ela lhe negara com juízo.

O crime ficou sepultado no mistério, e o assassino impune e incapaz de remorsos, tigre solto no meio de homens, esqueceu depressa esse episódio de sua vida malvada, e concentrou-se no empenho do desenvolvimento de vasto e truculento plano.

As visitas feitas em desoras por Esméria à senzala do Pai-Raiol tinham por cautela exagerada diminuído ao ponto de se tornarem raras: quando o terrível negro queria ou precisava falar à crioula, fazia o sinal convencio­nado e nunca em vão esperava.

Como outras vezes, Esméria acudiu à meia-noite ao convite que acha­ra em um risco de carvão traçado na porta de sua senzala.

O africano abraçou a crioula amante de seu senhor; depois disse-lhe:

– Pai-Raiol não está contente.

– Por quê?

– Esméria não entra mais na casa da família, nem chega mais à porta da cozinha.

– A senhora assim o ordenou e ela ainda é dona da casa.

– Precisa não ser: Pai-Raiol quer que Esméria vá para a cozinha.

– E como? É impossível.

– Não: Esméria conta a velho tigre, que escravos da fazenda vão de noite bater à porta da sua senzala.

– E para quê?...

– Faz ciúmes, e o velho tigre tem raiva.

– Ele quererá saber quem são esses escravos: que lhe direi?... O se­nhor não suspeitará de você, Pai-Raiol?... E depois?

– Deixa: Esméria diz que não é Pai-Raiol porque ele anda enfezado, e que não sabe quem é que vai bater. Pede para dormir em casa.

– A senhora se opõe.

– A senhora é Esméria: a crioula cortou as unhas da mulher tigre; mas precisa entrar na cozinha... precisa...

– Com que fim? Na senzala eu tenho liberdade...

Pai-Raiol quer fazer Esméria dona da casa... depois tem mais que fazer.

– Pois bem: eu direi ao senhor que sou perseguida...

O negro pôs-se a rir com o seu medonho riso: ele sabia que a crioula não era menos devassa que dantes.

Esméria, embora desbriosa e petulante, se constrangia por medo dian­te do Pai-Raiol e para escapar ao seu rir horrível, disse-lhe:

– Mas, se eu for dormir na casa, e voltar ao antigo serviço, não terei mais ocasião de vir falar-lhe e vê-lo...

– Quando Pai-Raiol quiser falar a Esméria, irá de volta da roça e já noite para as laranjeiras do quintal da casa, e há de assobiar como a cobra.

– E se eu não puder ir encontrá-lo?

– Pai-Raiol volta na outra noite e a cobra assobia.

Esméria como que refletia sobre o que mais lhe convinha, se a liberdade da senzala para a sua vida dissoluta, se o audacioso, lisonjeiro, e perverso arcar com a senhora para usurpar-lhe o governo da casa.

E, justa condenação do senhor abjeto, nem o africano, nem a crioula se lembravam um só instante de calcular com a possibilidade da sua resistência à vontade revoltante da escrava.

Mas o negro pôs termo pronto às reflexões de Esméria.

– Pai-Raiol quer – disse-lhe em tom absoluto e definitivo.

– Pois sim – respondeu submissa a crioula.