As Vítimas-Algozes/II/XVIII

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Teresa suportou paciente e silenciosa a extrema afronta: quando de manhã saiu do seu gabinete e soube que por ordem de seu marido Esmé­ria fora introduzida na casa, e nela havia de dormir, depôs sobre a mesa da sala de jantar as chaves da dispensa e dos armazéns, e recolheu-se, abandonando o governo doméstico.

Órfã, e tendo apenas parentes afastados e mais ou menos indiferentes, privada pois de protetores naturais, sem esperanças nem recurso, esperou Paulo Borges, e à noite lhe foi falar sem alteração de voz, sem azedume de queixas, sem pretensão de direitos.

– Senhor – disse ela – , não sou mais a dona desta casa; peço-lhe o retiro de um sítio isolado e a consolação da companhia de meus filhos; pe­ço isto só: quando quiser verá as crianças; oportunamente as mandará educar, e nós não mais nos veremos: isto convém a ambos.

Paulo Borges esbraveou encolerizado: Teresa insistiu com paciência e gravidade; vendo porém que o fazia debalde, retirou-se e encerrando-se no seu gabinete, não tornou mais a aparecer.

A escrava ia marchando para o apogeu do seu poder sobre Paulo Borges cada dia mais desprezível e abjeto.

Esméria assumiu efetivamente a direção e o governo da casa que pouco e pouco se foi desordenando; e nem podia ser de outro modo, porque por um lado as escravas parceiras da amante do senhor não podiam respeitá-la bastante, e por outro a crioula que não conseguia, ou não procurava vencer seus hábitos de devassidão precisava freqüentemente do segredo e da indulgência das companheiras para escapar aos furores de Paulo Borges.

O teto que abrigava a honestidade e onde a moralidade e a virtude exemplares de Teresa faziam do lar doméstico um templo de amores santos e de lições de costumes puros transformou-se em inferno de anarquia e de deboche, e em esgoto de desperdícios.

Para o vil adúltero multiplicavam-se os castigos: já tinha perdido o enlevo dos perfeitos gozos da família; já seu amor da riqueza se alvoroçava com os desbaratos da dispensa, com os furtos nos armazéns, com a eleva- ção das despesas: – como a embriaguez habitual, a que sucede a prostração, o desgosto, a náusea, o rebaixamento moral, e também a irritação sequiosa e exigente do álcool envenenador, – a turva, indecorosa e repugnante paixão que Paulo Borges tomara pela negra dava-lhe após o frenesi o remorso, o aborrecimento do seu viver, a consciência e a vergonha da sua torpeza, embora o vício informe de novo e sempre o impelisse ao abismo de perversão.

Entretanto esse sofrer do algoz não podia diminuir, antes mais agravava os padecimentos da mártir.

Teresa, que não reunia à grande soma de suas virtudes o dote precioso da energia, apenas defesava a sua dignidade no absoluto encerro do gabinete, onde em vida se sepultara, vivendo só para seus filhos cuja companhia zelava, e onde unicamente admitia uma velha escrava a que incumbira de levar-lhe as refeições diárias.

A pobre mártir só pensava nos filhos; era pelo pequenino que aleitava em seus seios, que ela comia sem fome, e pedia a Deus forças e coragem; era por Luís e Inês que não queria morrer e tinha medo da morte, ainda aborrecendo a vida.

E quando porventura se lembrava do indigno marido, do monstro que tanto a flagelava, e tão horrorosamente a supliciava, a pobre mártir, a santa mulher não maldizia dele, não tinha pragas, nem imprecações para o algoz; sentia-se pelo contrário como que apiedada do seu opróbrio sua miséria; via no pai de seus filhos não um homem corrompido, escandaloso, imoral e tirano; mas um tresvariado e louco, ou um infeliz afetado de moléstia vergonhosa e fatal.

Teresa não imaginava a hipótese de voltar algum dia ainda à simples tolerância da vida conjugal: com o coração e com a consciência tinha dito a Paulo Borges: “sou viúva”: o milagre possível que os filhos poderiam vir a aspirar em favor do pai arrependido e regenerado, se lhe passasse pela mente, lhe causaria então horror; ela porém de joelhos, prostrada ante o seu oratório aberto, rezava todas as noites longo tempo a rogar por seus três anjinhos e pela volta de Paulo Borges ao caminho do brio, do dever e da honra.

A oração, o cuidado dos filhos, a costura das roupinhas deles eram a única e nunca variada ocupação de Teresa: o marido não a ia ver, apenas mandava informar-se da sua saúde e do que ela precisava: a esposa condenada a ser mártir não se informava jamais do estado da casa e parecia indiferente ao ruído, à gritaria, e aos sinais evidentes dos deboches e da anarquia da cozinha.

Era vida esse viver?... Só a heroicidade maternal, que excede a todas as heroicidades podia explicar a paciência, a constância e a força angélica que animavam a vítima. Teresa não vivia mais para si, nem para as ilusõesdo mundo: por assim dizer suicidara-se, caindo na sepultura do gabinete escolhido: era somente o amor maternal, o seu amor d’alma túmulo que prendia sua sombra àquele retiro para velar incessante pelos filhos, que aliás nunca lhe foram disputados.

Mas, passadas algumas semanas desse viver de solitário martírio, Teresa começou a sentir-se doente: dores fortes no estômago e no ventre acompa­nhadas de sabor acre e ardente na boca e na garganta, de sede viva, de vô­mitos, e febre anunciavam-lhe perigosa enfermidade: a infeliz senhora re­sistiu silenciosa por três dias; depois não pôde mais: a agravação daqueles sintomas, os suores frios, o abatimento e concentração do pulso, a alteração profunda da fisionomia, os movimentos convulsivos, a prostração, a ansiedade extrema rapidamente se manifestavam aos olhos do marido adúltero que fora chamado para acudir à sua vítima.

Paulo Borges, nas horas supremas que precederam o último transe da esposa ao menos não a desamparou; compadeceu-se sinceramente dela, e ferido por verdadeira dor e remordido pelos remorsos, experimentou os mais cruéis tormentos na agonia daquela que o amara tanto.

Mas, em vez de um médico hábil, veio em socorro da mísera senho­ra um famoso curandeiro, o Hipócrates da fazenda, o doutor Bonifácio, como o chamavam, antigo enfermeiro de não sabemos que hospital da corte, e que retirado para o interior da província, dava-se impunemente no município de... ao exercício da medicina com a mais criminosa impu­dência.

O curandeiro, tendo examinado a pobre mártir, declarou-a atacada de febre perniciosa, e receitou estupidamente aplicações ainda mais atormentadoras à agonizante.

Que tivesse corrido a tratar da doente o mais consumado dos médicos, a sua ciência só teria aproveitado pela alta conveniência do testemunho autorizado e da declaração indispensável de um caso de envenenamento; mas para Teresa o resultado seria o mesmo.

Aos olhos do verdadeiro médico os sintomas de envenenamento por substância acre, irritante, e corrosiva seriam evidentes: impedir porém o seu efeito, a morte, era impossível naquele extremo.

Em seu padecer desesperado Teresa adivinhou, viu em lucidez de mo­ribunda a mão e o instrumento que a matavam, e, achando-se por mo­mentos a sós com Paulo Borges, estendeu para ele os braços, com as mãos agarrou-o com ânsias; e disse-lhe, retorcendo-se:

– Morro envenenada por Esméria!... Eu te perdôo, se velares por teus filhos que..

Não pôde acabar.

O envenenamento seguiu seu curso, sua obra de destruição torturadora, sinistra, execrável...

A pobre mártir subiu ao céu à luz da aurora.

Se ela sentiu dor na morte, ninguém pode dizê-lo; mas na agonia caíram-lhe sucessivamente dos olhos seis grossas lágrimas, três de cada um.

Era uma extremosa e desgraçada mãe de três filhos que morria

Deixou, coitada! duas lágrimas a cada filho.