As Vítimas-Algozes/II/XX

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Saída no esquife a senhora, a escrava tomou-lhe o lugar na sala, e nada mais teve a desejar em relação ao domínio da fazenda do senhor.

A vaidade da alta posição imerecida inspirou dentro em pouco arro­gância e soberba a Esméria que, reputando já inabalável o seu poder, maltratou e tiranizou as parceiras que tarde compreenderam o que ti­nham perdido em sua boa e legítima senhora.

Todavia, em seu presunçoso e atrevido entono, Esméria quando mais se exaltava onipotente na sala, estremecia de súbito escutando o silvo da serpente no fundo do quintal.

A crioula após a morte de Teresa e a sua absoluta dominação aborrece­ra profundamente a Pai-Raiol, e daria tudo pelo golpe que para sempre a livrasse dele.

A escrava tornada senhora do desprezível senhor exasperava-se por con­tinuar escrava do escravo mais hediondo; ela, porém, não ousava arrostar Pai-Raiol o feiticeiro, o rei das serpentes, o demônio que matava de longe com os olhos: poderia facilmente conseguir que Paulo Borges mandasse vender em outro município ou em outra província o seu detestável sócio; já tinha pensado nesse recurso; mas sua imaginação lhe representava sem­pre o Pai-Raiol vivo e voltando vingativo e terrível para tomar-lhe contas e matá-la sem piedade, ou para denunciar o seu crime, como envenenado­ra de Teresa.

Assim, pois, abafando no coração a raiva, e sempre sob a influência do terror que lhe causava o negro africano, a crioula vaidosa e soberba conti­nuava a obedecer ao Pai-Raiol, que era ainda o seu amante tornado então repugnante para ela, que todavia apenas escutava o silvo da serpente, cor­ria trêmula, coagida, dentro de si revoltada, mas fingindo-se contente e afetuosa quando se mostrava ao seu único senhor.

E ainda uma vez a serpente assobiou: foi na tarde de um domingo, e Paulo Borges dormia a sesta.

Esméria encontrou Pai-Raiol no fundo do quintal e onde velhas laranjeiras desprezadas pela incúria secavam no meio de moitas de arbustos e cobertas de ervas parasitas. Era o sítio escolhido para as entrevistas dos dois.

Com a gradual elevação da crioula, dir-se-ia que fora também crescendo o amor selvagem que o Pai-Raiol tinha por ela, e a improvisada e arro­gante senhora recebia risonha, mas em fúria, donosa, mas em desespero, os afagos do antigo amante que ela então estimaria poder matar.

– Esméria está no meio do caminho – disse o Pai-Raiol.

– Como? De que caminho?

– Mas tem muito que andar ainda para chegar à cima do morro: é preciso andar; Pai-Raiol está subindo da outra banda.

O negro ria-se de modo a causar pavor; Esméria olhava para ele espantada e como se receasse compreendê-lo.

– A mulher tigre morreu na lua nova, e a lua nova já voltou.

– É verdade; está a fazer um mês.

– O velho tigre já esqueceu: agora os tigres pequeninos... depois Pai­-Raiol ensina mais.

– Pai-Raiol!... – exclamou Esméria, estremecendo. – Os meni­nos?... Isso não...

A crioula malvada era menos celerada que o negro africano; este, po­rém, fitando nela seus olhos vesgos, disse:

– Pai-Raiol quer.

– O senhor teve suspeitas de que sua mulher tivesse morrido envenenada; eu o ouvi fazer perguntas sobre isso ao cirurgião...

O negro encolheu os ombros.

– E para que matar uns meninos que ainda não fazem mal a pessoa alguma?

– Pai-Raiol sabe e quer.

– Os meninos... eu não posso

– Pai-Raiol pode matar Esméria.

– Eu pensarei nisso – disse a crioula, convulsando. – Pai-Raiol me dê alguns dias para me resolver e me preparar...

O monstro africano estava em dia de menos braveza, ou, seguro do resultado do seu plano infernal, entrava também em seus cálculos a contemporização.

– Pai-Raiol espera até a outra lua nova.

Esméria respirou desafrontada.

Daí a pouco o negro riu-se, olhando para o ventre da crioula.

– Esméria não tarda a ter filho – disse ele.

A crioula cruzou instintivamente as mãos sobre o ventre e voltou-se para um lado, como a defender o filho do olhar do feiticeiro.

O Pai-Raiol ou não percebeu o motivo do movimento que fizera a es­crava que ia ser mãe, ou não se agastou com isso, e continuando a rir, acrescentou:

– Se é filho do velho tigre, fica muito rico no fim da outra lua nova.

E sem olhar para Esméria, retirou-se vagarosa e tranqüilamente por entre os arbustos cujos galhos afastava com as mãos para abrir caminho.