As Vítimas-Algozes/II/XXI

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Pai-Raiol tinha deixado veneno no seio da crioula, que gravou na memória as últimas palavras que acabara de ouvir-lhe.

A fraca e explicável compaixão, com que a escrava erigida em dona da casa defendera seus inocentes senhores-meninos, estremeceu ao primeiro despertar da ambição da negra próxima a ser mãe.

Com efeito, metade da fortuna de Paulo Borges pertencia já aos três filhos e herdeiros de Teresa; e da outra metade que poderia caber ao filho de Esméria?...

A crioula refletindo obumbrada e desgostosa saiu do laranjal, e encaminhou-se para a porta da cozinha, quando voltou os olhos, ouvindo a voz de alguém que lhe disse:

– Você anda enganando senhor.

Esméria parou: pareceu esquecer as idéias que a preocupavam e menos altiva com o negro que lhe falara debruçado sobre a cerca de pau que separava o quintal do campo, deu logo depois alguns passos para ele e respondeu, rindo-se:

– Fui passear, tio Alberto.

O tio Alberto representava o contraste mais completo do Pai-Raiol: era um escravo africano de trinta anos de idade, e de alta estatura; tinha fronte elevada, os olhos grandes e brilhantes, a cor preta um pouco luzidia, os dentes brancos e perfeitos, largas espáduas, grossos e bem torneados braços possantes e formas justamente proporcionais: era bonito para a sua raça, um Hércules negro em suma.

Esméria tivera sempre na fazenda muita predileção pelo tio Alberto; este, porém, se mostrava erradio e esquivo desde que se haviam tornado ostensivas as relações do senhor com a escrava.

Ouvindo a resposta da crioula, ele tornara:

– Você mente: eu vi Pai-Raiol saltar lá embaixo a cerca do quintal;desconfiei, e vim ver quem era que tinha ido falar com ele: já sei.

– Mas então você anda me espiando?

– Não: que me importa?... Mas eu não quero que você fale com o Pai-Raiol: com os outros, lá se avenha...

– E por que com ele não?... – perguntou Esméria curiosa.

– Pai-Raiol matou ontem a pobre Cativa, a minha cachorrinha coe­lheira: Cativa não atacava ninguém, e ele matou-a por maldade...

Duas lágrimas rolaram pela face do negro que prosseguiu, dizendo:

– Eu podia ensinar a Pai-Raiol; mas nunca apanhei de meu senhor, e tenho medo do chicote e... de mim... tomei o meu partido: hei de perse­guir Pai-Raiol até que ele venha tirar bulha comigo.

O raio de uma inspiração acendeu-se nos olhos da crioula.

– Escuta – continuou Alberto – , eu me vingaria de Pai-Raiol, dan­do parte ao senhor do que vi hoje; mas faria mal a você, e não quero.

– Obrigada, tio Alberto – disse a crioula abstratamente.

– Demais... a vingança com o açoite do senhor... não; hei de ser eu mesmo: o senhor... longe sempre de mim... não quero. Você dirá a Pai-Raiol que eu lhe proibi tornar a falar-lhe.

– Bem: entendo, e há de ver o que farei – disse Esméria. E mudando logo de tom, perguntou:

– E você por que me foge há tanto tempo, tio Alberto?...

O negro apontou para dentro da casa; depois respondeu em voz baixa:

– Não gosto do senhor; mas não bulo com ele.

– Espere aqui: eu volto já – disse a crioula.

Entrou apressada pela cozinha; mas passados breves minutos tornou a aparecer e aproximou-se da cerca, onde estava o negro.

– O senhor dorme ainda: conversemos...

– Não; você é do branco, nada mais tem comigo – respondeu Al­berto.

– Eu preciso falar-lhe... é sobre Pai-Raiol...

– Que é?...

– Tenho muito que dizer, e aqui a esta hora não posso; mas eu detes­to o Pai-Raiol mais do que você, tio Alberto.

Esméria falava a tremer e em tom de segredo; o negro, porém, riu-se e perguntou:

– E hoje? E ind’agora?...

– Oh! É o demônio... e eu preciso de você, tio Alberto – murmurou a crioula, olhando aterrada para todos os lados.

– Por que tem medo?

– Ele é feiticeiro,..

O negro ficou impávido; mas franziu as sobrancelhas.

Esméria continuou:

– É necessário que eu converse com você, tio Alberto; não tenha me­do do senhor... sei governá-lo: espere alguns dias... não provoque o Pai­-Raiol antes de falar comigo... fuja dele, e prepare-se; porque a nossa vingança será segura.

– Você não mente? – perguntou o negro.

Esméria desfez-se em juramentos e, melhor que seus juramentos de mulher corrompida e escrava desmoralizada, falava em seu rosto a elo­qüência do terror.

– Pois seja – disse Alberto – ; fugir de Pai-Raiol, não; deixar de persegui-lo com o meu ódio, não; mas estou pronto a entender-me com você contra ele: quando?

– Eu marcarei o dia e o lugar... há de ser muito breve... conte comi­go, tio Alberto... eu não me esqueço nunca de você. Agora retire-se; mas, pelo amor de Deus, guarde segredo.

– Descanse – disse Alberto, apertando a mão que a crioula lhe oferecera.

E seguiu logo para sua senzala.

Esméria ficou imóvel, contemplando a figura do Hércules negro que se retirava.