As Vítimas-Algozes/II/XXIII

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Esméria voltou para casa com o coração palpitante de assombro e com o espírito, embora perturbado, aceso em sinistras idéias e bárbaros projetos.

Só naquele dia medira toda a extensão dos planos de Pai-Raiol que, ru­de e ignorante como era, queria fazer dela o instrumento da sua fortuna e maior poder, erguendo uma e outro sobre os cadáveres da família inteira de seu senhor, que devia ser a última pedra do horroroso edifício.

A última pedra?... Esméria estremecia, lembrando-se de seu filho, em quem Pai-Raiol talvez, ou certamente, não perdoaria o sangue de Paulo Borges.

E se até então Pai-Raiol brutal e tiranicamente a dominava e lhe impu­nha sua vontade absoluta, a que extremos não se arrojaria, quando, mor­to o senhor, entrasse na casa, em cujo dono contava já erigir-se?

A crioula jurava a si mesma não sujeitar-se a tamanha calamidade, e mil vezes veio-lhe à memória o nome e a imagem de Alberto; não lhe es­capou que preparava neste um outro bem provável dominador, confian­do-lhe algum dos segredos das suas atrocidades, e encarregando-o de li­vrá-la do Pai-Raiol, o inimigo comum, dando-lhe a morte; mas entre Pai-­Raiol e o tio Alberto não podia haver hesitação na escolha, e o poderio deste sorria além disso à viciosa negra.

Esméria tranqüilava-se tanto quanto lhe era possível, contando com o braço de ferro do Hércules africano; mas adiava ainda a sua entrevista com ele, receosa de que por temor ou generosidade Alberto se opusesse ao envenenamento dos dois meninos.

Este crime nefando estava decididamente resolvido pela malvada escra­va, que ainda mais se assanhara com a perspectiva do futuro que o Pai­-Raiol mostrara em grosseiro quadro a seus olhos.

Só lhe faltava a oportunidade para o medonho atentado, e foi ainda o desmoralizado e vil senhor quem lha proporcionou.

Corria o mês de março que ardente abrilhantava os campos: abunda­vam as frutas próprias da estação e entre outras as mangas tão doces ao gosto, como suaves ao olfato: uma tarde, de volta da roça, Paulo Borges trouxe aos meninos um cestinho de mangas.

A traiçoeira crioula opôs-se, simulou reprovação a esse regalo oferecido a Luís e Inês, observando que as mangas eram muito quentes e perigosas para as crianças; estas, porém, choravam, o pai ralhou brandamente com a escrava-senhora que, não desejando outra coisa, deixou a sala de jantar, onde se passava a cena.

Os dois meninos acompanhados de alguns crioulinhos da sua idade comeram as mangas, que aliás não eram muitas; mas saltaram de conten­to, encontrando no fundo da cestinha três pequenos cachos de cocos de tucum.

Esméria, acudindo à gritaria das crianças, pôs as mãos na cabeça ao vê-las comendo cocos depois das mangas.

Paulo Borges não deu importância aos avisos da crioula. Os meninos regalaram-se, brincaram ainda, e às oito horas da noite dormiram logo depois da sua costumada ceia de simples canja de arroz.

Mas dentro em pouco estava a casa em movimento, Paulo Borges em sustos, e a crioula em desespero: terrível indigestão se declarara em todas as crianças, que em gritos, em vômitos, em convulsões e delírio, e com as mãozinhas nos ventres, que se abrasavam e se dilaceravam em fogo e em dores horríveis, avançavam depressa para a morte que se manifestava já na decomposição dos traços fisionômicos.

O sábio curandeiro, chamado imediatamente por ordem da crioula, não tardou; ouviu a história das mangas e dos cocos, notou a coincidência e semelhança dos sofrimentos dos meninos e dos crioulos, aplicou os seus meios mais enérgicos para vencer aquelas violentas indigestões; não foi, porém, feliz.

Ao amanhecer estavam mortos os dois filhos legítimos de Paulo Borges, e dos crioulinhos, três provaram a mesma sorte, e apenas dois escaparam a esse horroroso morticínio.

Paulo Borges consternado, acusava-se em altos brados de assassino de seus filhos; as três escravas, mães dos crioulos vítimas, o acusavam também chorando na cozinha. Esméria doidejando em pranto, corria mil vezes a abraçar e a beijar os pés dos dois meninos seus senhores já cadáveres, e arrancada de junto deles, ia ver as três criancinhas mortas, e os dois que gemiam ainda, mas que se consideravam salvos.

E aparentemente em aflição desmesurada, e dentro de si turbada, me­drosa. aturdida pelo próprio crime, mas ainda assim cuidosa observadora daquela cena lúgubre de assassinato de crianças, dizia entre si como admi­rada:

– Que demônio de Pai-Raiol! Que temível veneno! Só escaparam os dois crioulos que apenas ceiaram o restinho da canja que sobejou dos outros!

A história da indigestão de mangas e cocos correu pelas vizinhanças, o caso foi geralmente lamentado.

A morte dos três crioulos conjuntamente com a dos dois filhos de Pau­lo Borges, e os sofrimentos semelhantes das duas crias que sobreviveram, excluíram toda suspeita de envenenamento.

Luís e Inês foram, como sua mãe, sepultados na capela, e os três criou­los no cemitério da fazenda.

Esméria e seu filho triunfaram sobre as sepulturas das vítimas.

O tigre da escravidão já tinha despedaçado e devorado as carnes, e be­bido o sangue da mulher e dos filhos do senhor.

A vez de Paulo Borges ia chegar.