As Vítimas-Algozes/II/XXVI

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É de regra que a negra que foi escrava e se tornou senhora, seja a pior das senhoras: se há ou tem havido exceção, Esméria não o foi.

Arrogante, exigente e perseguidora das parceiras, desde a morte de Teresa, a crioula, vendo-se emancipada, e calculando com pujante futuro, exagerou as proporções de sua vaidade, e para impor submissão respeitosa e aniquilar as liberdades e confianças da antiga convivência e igualdade, fez-se cruel, ordenou castigos justos e injustos, e com as próprias mãos e descarregou por vezes o açoite sobre as costas de suas companheiras do tempo da escravidão e do menosprezo.

Mas também é de regra que os escravos, e principalmente as escravas, detestem ainda mais, e muito mais, a parceira que se tornou senhora.

A inveja se mistura com a desestima, e produz o rancor, rancor que tempesteia furioso, se a antiga parceira presunçosa e soberba, cruel e petulante, quer obrigar a esquecerem-lhe o passado, e exige prostrações, cultos servis e humildes de quem pouco antes a abraçara irmã pela condição, irmã pelos vícios, e sócia nas desenvolturas em que a escravidão procura lenitivo.

Na fazenda de Paulo Borges a cozinha já conspirava contra Esméria, que a cada instante a invadia, como fera embravecida.

Na manhã que seguiu à noite de sua muito dilatada entrevista com Alberto, a crioula, ou porque houvesse mal dormido, ou por assanho de maldade, atormentou as antigas parceiras, e sob o pretexto de uma resposta menos respeitosa, ou mesmo atrevida, açoitou desapiadadamente uma velha escrava, a quem Teresa tinha, com a sua bondade, habituado aos direitos de mais descanso e de certa consideração e tolerância devidas à velhice.

Lourença, escrava octogenária, sofreu o castigo sem gemer e sem chorar; quando, porém, Esméria voltou as costas, ela escancarou a boca, não tinha um único dente, e pareceu soltar uma gargalhada, ou um rouco e destemperado lamento.

As outras escravas pensaram que a velha tinha enlouquecido, e mur­murando pragas e insultos, enxovalharam a crioula-senhora.

Lourença ficou indiferente, muda, e como inerte o dia todo; mas ao ruir da tarde tomou um pau, em que costumava arrimar-se e saiu.

A velha escrava era a incumbida dos cuidados do galinheiro: as parcei­ras julgaram que ela fora assistir, como costumava, ao vespertino recolhi­mento das galinhas: ainda era um pouco cedo, mas talvez o açoite de Es­méria tivesse ativado a pobre negra.

Lourença sumiu-se entre as laranjeiras, foi até o fundo do quintal, pôs-se de gatinhas e passou por baixo da cerca, e caminhou pelo campo até chegar à cancela, junto da qual sentou-se no chão.

Era a cancela da estrada, por onde se ia à roça desse ano.

Meia hora depois a velha negra levantou-se, ouvindo os passos vagarosos de um cavalo, e abriu a cancela.

Era Paulo Borges que ia passar de volta da roça. O fazendeiro apareceu abatido e desfigurado: a negra com uma mão segurava a cancela, com a outra segurou o estribo do senhor.

– Lourença tem que contar – disse ela.

– Que é?...

– Esméria está matando senhor.

– Como? – perguntou Paulo Borges estremecendo.

– Esméria cozinha uma raiz no café que senhor bebe de noite; ela esconde muito; mas Lourença já viu...

– Já viste?

– Lourença já viu...

E a negra contou pelos dedos seis vezes.

– Tu mentes – disse Paulo Borges, que aliás começava a acreditar no que ouvia. – Tu mentes, ou então me darás prova do que dizes.

– Lourença não mente – respondeu a negra – , é velha, mas quando entra idéia na cabeça, espia, faz que dorme, mas não dorme.

– E que tens visto?...

– Às vezes a cobra assobia no quintal: é mentira, não é cobra: uma vez Lourença foi ver os pintos... a cobra era Pai-Raiol.

– Pai-Raiol!... O chamado feiticeiro!

– Esméria vai falar com a cobra...

– Meu Deus!

– Agora não vai mais ao quintal, quando a cobra assobia: Lourença reparou e não dormiu... não podia dormir... a idéia estava na cabeça de Lourença...

– E então?

– Agora senhor dorme muito...

– Sim... durmo... – disse Paulo Borges aterrado.

– De noite senhor toma café, e vai dormir, e não acorda mais: Esméria abre janela, pula, e vai... Lourença já viu.

– E onde vai ela?

– Lourença não sabe; mas Pai-Raiol tem senzala.

– É isso! – balbuciou, suspirando, Paulo Borges.

– Lourença é velha; mas não precisa dormir: vai morrer porque não dorme mais de hoje em diante... Lourença quer mostrar a senhor o crime de Esméria.

– E como?

– Senhor não toma café, deita-o fora, e faz que dorme, e pode dormir; quando Esméria salta a janela, Lourença vai acordar o senhor.

Paulo Borges aceitou prontamente a proposição da velha escrava; interrogou-a ainda por algum tempo, recolhendo cuidadoso suas informações, e seguiu depois para casa, levando no seio a raiva, e no rosto a dissimulação.

Lourença, a velha escrava, a escrava profundamente desmoralizada por longa vida de cativeiro, ensinada pela experiência traiçoeira de mais de meio século de escravidão, tinha apanhado e guardado com indiferença malvada o segredo dos crimes de Esméria, e só pelo rancoroso ressentimento do açoite rompera o silêncio imposto pelo ódio natural de escrava ao senhor.

Era talvez muito tarde para salvar Paulo Borges; mas ainda a tempo para sua vingança de velha escrava cruelmente açoitada.