As Vítimas-Algozes/III/IV

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Imaginai duas hipóteses tanto mais admissíveis, que elas aí se realizam todos os dias, uma como exceção, a outra como regra.

Imaginai a hipótese que incalculadamente começara a realizar-se no seio da família de Florêncio da Silva, e que por exceção se observa realiza­da de plano em algumas casas.

Aí tendes no Brasil, na capital do Império, por exemplo, a família mais rica e mais sábia, que pela sabedoria não possui um só escravo, nem admi­te escravo algum em seu lar, e pela riqueza pode dar a mais esmerada e perfeita educação à filha querida, que é criada e cultivada como tulipa ou rainúnculo em estufa.

O sopro envenenado da escravidão não tocou sacrílego, não ofendeu o botão de rosa.

Chega um dia em que o rainúnculo sai da estufa, em que o anjo baixa ao mundo, em que a donzela entra, aparece na sociedade.

Singela, descuidosa, alegre, ávida de suaves e puros gozos a donzela procura naturais ligações, amigas da sua idade e do seu estado que nem todas, que sem dúvida bem poucas, escaparam como ela ao contacto, a companhia de escravas: ei-la pois em suas relações, em suas ligações, em suas confidências com essas amigas, exposta e sujeita à ciência do mal, às infecções sutis da escravidão, ao contacto mediato com as escravas pela inoculação irrefletida, mas indeclinável, que lhe vem da intimidade com outras donzelas, que sem má intenção e apenas por vanglória pueril e jac­tância louca de mais sabidas, lhe revelam imperfeita e obscuramente se­gredos de seu sexo, que aprenderam nas atrevidas explicações de suas mucam­as.

A curiosidade se inflama; a ignorante que começa a corar pergunta mais: as presumidas sábias doidejam, querendo adivinhar; todas sonham meninamente, mas já maliciosamente; o céu da inocência se enubla; a an­gélica pureza do pensamento bate as asas e foge, e as faces virginais se avermelham do pejo revoltado contra o desperto da imaginação, que em tresloucado e escondido arrojo mancha e atormenta, e pouco a pouco destrói a virgindade do coração.

O contágio supre o contacto imediato: a escravidão influi sempre de perto ou de longe maleficamente sobre a vida das donzelas, perturbando e envenenando a educação dessas pobres vítimas.

Agora a outra hipótese, que se realiza na regra geral.

A negra escrava que aí vai passando desapercebida, mal julgada e não temida, espanta, alvoroça, aterra, quando a reflexão pesa e avalia sua influência tenebrosa e fatal.

A regra é esta: toda família que não é indigente ou pobre possui uma, algumas ou muitas escravas, e uma dessas escravas é mucama da filha, da menina da família e companheira assídua da infeliz donzela, condenada às infecções da peste da escravidão.

Em muitas casas a escrava mucama dorme perto do leito da menina, senhora-moça, ou à porta do seu quarto. Em algumas famílias esta prática imprudentíssima é banida; mas em todo caso a mucama escrava toma conta da roupa da senhora-moça, ajuda-a a despir-se e a vestir-se, é a conselheira do seu toucador, e na costura a executora das modas dos seus vestidos, confidente obrigada dos segredos das imperfeições do seu corpo que se disfarçam, e das belezas de suas formas que se fazem sobressair.

A mucama escrava se recomenda pois à menina, e ganha toda sua confiança pela importância delicada, e até certo ponto confidencial, do mis- ter que desempenha no toucador; a mucama, embora escrava, é ainda mais do que o padre confessor e do que o médico da donzela: porque o padre confessor conhece-lhe apenas a alma, o médico ainda nos casos mais graves de alteração da saúde conhece-lhe imperfeitamente o corpo enfermo, e a mucama conhece-lhe a alma tanto como o padre, e o corpo muito mais do que o médico.

A senhora-moça torna-se por isso muitas vezes dependente e quase escrava da sua mucama escrava.

Compreendeis bem toda a extensão dos abusos, dos males, das conseqüências perniciosas e até mesmo desastrosas, e às vezes fatais e irremediáveis, que podem provir e que têm provindo da influência das mucamas escravas sobre a educação, a moralidade, a vida, o destino das donzelas?...

Educai como puderdes, o melhor e o mais santamente que é possível, vossa filha; a par dessa educação que corrige os defeitos, aprimora as qualidades, semeia e cultiva virtudes, a despeito dos mestres que ensinam zelosos, a despeito de vossa esposa que solícita vigia, estará ao pé de vossa filha uma hora só, alguns minutos apenas em cada dia, uma escrava, e de sobra uma só, a sua mucama que com a palavra, o gesto, o elogio, a lisonja, a indiscrição, a petulância, e a protérvia dos seus vícios, dos vícios próprios da sua miserável condição de escrava, comprometerá, arruinará o grande empenho do vosso amor, plantará no coração de vossa filha a ciência do mal, muito antes do prazo em que o mundo lha devia ensinar.

Embora não durma no quarto, que cumpre ser sacrário de virginal re­serva, e muito pior se aí dorme, e se é portanto a impune observadora do abandono do corpo da donzela, nas traidoras revelações do sono agita­do ou descuidoso, e a contadora de histórias e perigosa noveleira que fala e conversa enquanto ajuda a despir a senhora-moça e a distrai com a sua garrulice nas noites de vigília, a mucama escrava ganha em breve a con­fiança e a amizade da pobre inocente, e umas vezes por maldade, e em outras muitas sem consciência do mal que faz, revela-lhe mistérios cuja inciência é o matiz da virgindade, põe em tributos cruéis e vai gastando o seu pudor com explicações rudes em que não sabe medir o pudor da pala­vra, fala-lhe de namoros e de casamentos, impele-a a afeições que podem ser nocivas, leva-lhe os bilhetes do namorado, verdadeiro ou fingido amante e pretendente a casamento, serve-lhe à intriga amorosa contra a vigilância dos pais, infecciona-lhe o coração e excita-lhe os sentidos com a manifestação de idéias inspiradas pelo sensualismo brutal, em que se re­sume todo o amor nos escravos, e em alguns casos por avidez de sórdido ganho, por desmoralização, por perversidade, e até por vingança, chega ao extremo de arrastá-la à perdição, e de facilitar a mácula que para sem­pre nodoa a vida.

Portanto a mucama escrava ao pé da menina e da donzela é o charco posto em comunicação com a fonte límpida.

A mãe, que foi menina e moça solteira, sabe o que é, e como procede a mucama escrava; o pai que é senhor, sabe o que são e como procedem os escravos; mas à semelhança dos soldados que guarnecem praça sitiada, que a peste invadiu, curvam as cabeças e submetem-se à calamidade, a que não podem fugir.

E não podem fugir por quê?... Porque a escravidão existe; porque o serviço das casas e das famílias é feito por escravos, porque as amas-de-lei­te são em geral escravas e a elas se prendem agradecidos os filhos de criaçã­o, e enfim porque em país onde se mantém a escravidão, é impossível subtrair a senhora, o homem, a menina, o menino livres ao contacto ime­diato ou mediato com os escravos.

E não vos queixeis: a culpa deste grande mal é mais nosso do que dos escravos; porque nós todos reconhecemos que a escravidão produz o avil­tamento, a ignomínia, a torpeza, a corrupção do homem feito escravo, e nos países que mantêm a escravidão, os pais colocam o aviltamento, a ig­tomínia, a torpeza, a corrupção ao lado de suas filhas.