As Vítimas-Algozes/III/LI

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Ao meio-dia Liberato apresentou-se a seus pais e teve com eles longa conferência particular, terminada a qual foi alegre e feliz, pela esperança do casamento de sua irmã com Frederico, abraçar a noiva.

Cândida recebeu o irmão como o seu primeiro e natural amigo e nas circunstâncias extremas em que se achava, nos confrangimentos do seu coração, procurou consolações, esperanças de comiseração e de amparo, mostrando-se leal e sincera no que podia sê-lo sem confessar a sua ignomínia. Liberato era precipitado e violento.

Ouvindo a irmã confessar que o seu casamento com Frederico não era um ajuste realmente assentado entre ambos, e que só os padecimentos de sua mãe aconselhavam deixá-la por algum tempo nessa ilusão suave, rom­peu em protestos e ameaças que revoltaram a infeliz moça tão desespera­da já.

O cuidado dos sofrimentos de Leonídia apenas conteve as explosões de Liberato fora dos aposentos de Cândida; ele, porém, declarou ali que sabia como Dermany se introduzia na casa para falar com os escravos e jurou que poria termo imediato a todos os escândalos com que a irmã infamava sua família.

Em vez de um amigo consolador, esperançoso, indulgente, dedicado, Cândida encontrara em seu irmão juiz severo, ameaçador, terrível, e, para maior mal, Liberato receoso de não poder ocultar de sua mãe doente as impressões inesperadas e acerbas que recebera em sua conversação com a irmã, saiu furioso, e não voltou à casa de seu pai senão à noite em compa­nhia de Frederico.

Vinham ambos, Liberato e Frederico, resolvidos a fazer com que Flo­rêncio da Silva tomasse providências para melhor garantir o respeito devi­do à sua família. A condenação do serviço de escravos no interior da casa, e especialmente a remoção pronta e urgentíssima da mucama de Cândida e do pajem fiel de Florêncio da Silva eram as principais exigências, ou os primeiros conselhos dos dois mancebos.

O veneno da escravidão estava prática e evidentemente reconhecido por Liberato e Frederico nas relações do fingido lacaio com os escravos da casa ameaçada de desonra; ambos vinham denunciar a traição dos escravos mais estimados da família dos senhores, a ação maléfica dessas vítimas-al­gozes, vítimas pela prepotência que lhes impõe a escravidão, algozes pelo dano que fazem, pelas vinganças que tomam, pela imoralidade e pela corrupção que inoculam.

A princípio conteve-os a presença suspeitosa de Cândida; mas em bre­ve a triste e conturbada moça deixou a sala, como se compreendesse que estava ali acanhando e impedindo expansões que urgiam manifestar-se.

Os pais e os irmãos, Florêncio da Silva e Leonídia, Liberato e Frederico aplaudiram-se da retirada de Cândida, e longamente se entregaram às mais sérias e graves combinações.

Mas a noite ia avançando e Leonídia foi chamar a filha, pois que che­gara a hora de servir-se o chá.

Florêncio da Silva e os dois mancebos conversavam ainda sossegadamente; quando pálida, perturbada, convulsa, Leonídia entra de novo na sala, e com a face decomposta, a voz surda, sepulcral e horrivelmente con­traída diz ou balbucia:

– Cândida... desapareceu

– Quê?!!! – exclamaram três vozes.

– Fugiu!!! – tornou Leonídia.

E caindo em uma cadeira a pobre mãe levou ambas as mãos ao rosto, abaixou a cabeça, e abrindo a boca, lançou uma golfada de sangue.

– Leonídia!... – gritou Florêncio da Silva, correndo a acudir a esposa.

– Minha mãe! Minha mãe!... – disse Frederico, chorando. – Minha mãe! Coragem! Eu juro que salvarei Cândida para salvar a sua vida!

E lançou-se precipitadamente para fora da sala e da casa.

– Liberato! Acompanha Frederico! – disse Leonídia nos braços do marido, e quase sem voz.

Liberato voou em seguida do irmão adotivo.