As Vítimas-Algozes/III/XIX

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Florêncio da Silva tinha dado a seus hóspedes um dia para descanso da viagem antes de fazê-los entrar na vida de festas e passeios; mas o jovem francês era incansável e também apressado em recomendar-se.

Acabavam apenas de levantar-se do almoço, quando Souvanel, vendo na sala um magnífico piano, correu a ele e executou de cor e com perícia magistral uma peça brilhante: depois, e enquanto o aplaudiam, exami­nou os livros de música, e exclamou:

– Quem canta estas músicas? Sem dúvida mademoiselle...

A pergunta e a observação eram como um convite para cantar: Florên­cio e Leonídia desejaram muito naturalmente, que o notável mestre apre­ciasse o talento musical de sua filha, que eles supunham cultivado com es­mero.

Cândida cantou, acompanhada ao piano por Souvanel, a ária final da Safo.

O mestre para quem todos olhavam depois dos cumprimentos de cor­tesia, ou de sincero louvor, teve de enunciar o seu juízo de autorizada competência.

– É uma voz admirável! – disse ele. – Uma suavíssima e ao mesmo tempo volumosa, extensa e afinada!

Cândida pareceu encantada do elogio.

– Não te desvaneças, Cândida – acudiu Liberato, rindo-se. – Repara que Souvanel encareceu somente a tua voz, mas deixou de elogiar teu canto: pode-se ter boa voz, e cantar mal.

A donzela olhou para Souvanel, que perturbara-se ou fingira perturbar-se um pouco.

– Fale o mestre, e não o cavalheiro, que por cortês é menos franco – disse Florêncio da Silva.

Leonídia instou, Cândida pediu; Souvanel falou.

– Com a voz que possui, e a prática severa que tem do solfejo, mademoiselle em duas horas de estudo bem dirigido, cantaria esta mesma ária de modo a fazer acreditar que é outra.

– Opera esse milagre, Souvanel! – disse Liberato.

– Se mademoiselle quer perder duas horas...

A experiência conveio a todos.

– Esqueçam-se de nós; porque o estudo é enfadonho, e esgota a paciência.

Ninguém se afastou.

Souvanel compreendeu todo o partido que poderia tirar daquela exposição viva do seu método de ensino e extremou-se na lição: fez Cândida repetir dez e mais vezes cada compasso, explicando nota por nota a idéia contida em cada uma, revelando os segredos da expressão e do sentimento, desde o gemido até o grito, desde o murmúrio e o soluçar do trêmulo até a perfeita segurança na graduação da tenuta, ensinando a respirar na ocasião competente, e encher de ar as amplidões pulmonares para o arrojo veemente das paixões em música.

A bela discípula, rica de inteligência e de voz, ávida de saber, vaidosa para mais ardentemente desejar ser admirada, absorveu-se na lição, admirou o mestre, e admirou ao mestre; porque, no fim de pouco mais de duas horas, cantou com efeito a ária quase com perfeição, e, como Souvanel o dissera, de modo a fazer acreditar que era outra.

Souvanel acabava de fundar a sua reputação de mestre exímio.

É claro que desde esse dia, sempre que as conveniências da sociedade o permitiam, antes ou depois dos passeios, na manhã, ou na tarde, que me­diavam entre as folganças gerais, Cândida tomava a Souvanel uma ou duas horas para preparar as árias que devia logo depois executar.

Mas Souvanel também cantou e fez furor.

Naturalmente as vozes quiseram combinar-se, diversas senhoras cantaram duetos com Souvanel; Cândida desejou cantá-los, e apelou para o mestre que se exaltava, achando na discípula uma adivinhadora dos segredos mais sutis da arte.

Raramente embora, Souvanel e Cândida ficavam uma ou outra vez a sós no piano.

Em uma dessas ocasiões o jovem francês disse com fingido ou real entu­siasmo.

– Que voz! Penetra e fica no coração de quem a ouve!

Cândida interrompeu o canto.

– Prossiga! – exclamou o mestre.

– Oh! Não – respondeu a moça com enlevamento. – Eu quero que a minha voz repita três vezes ainda este allegro...

E ela o repetiu três vezes requintando a doçura e o sentimento que co­movida e inspiradamente dava ao canto.

– Isto faz esquecer de que se vive na terra, e imaginar que se está no céu, ouvindo um anjo! – murmurou Souvanel.

– Anjo! – respondeu em voz baixa a imprudente donzela. – Anjo! Como, se nem tenho asas para voar e fugir?

– Oh! Mas para mim, pobre proscrito, está tão alta, que nem posso chegar com os meus lábios a seus pés!...

Nesse momento Leonídia se aproximava.

Souvanel apontou com o dedo o sinal de um compasso e disse imper­turbável:

– Perfeitamente, mademoiselle! Agora aqui a respiração, e depois o sentimento contraído pelo receio; mas transpirando no trêmulo, e prepa­rando-se para a expansão sublime...

Não havia nem receio no sentimento do canto, nem trêmulo na músi­ca, nem expansão a preparar...

E todavia Cândida não se mostrou surpreendida, e continuou a lição, improvisando um trêmulo mal cabido, que Souvanel não corrigiu.

A filha enganava a mãe.

O mestre começava a enganar a todos.