As Vítimas-Algozes/III/XLIII

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A viagem de Florêncio da Silva e da sua família à cidade do Rio de Ja­neiro tinha sido resolvida no dia em que o falso Souvanel pedira Cândida em casamento, mas feita precipitadamente, em conseqüência das infor­mações, que sobre o reconhecido Dermany mandara Frederico a sua mãe adotiva.

Leonídia agigantara tanto os perigos a que poderia achar-se exposta a filha, apaixonada por homem tão ousado e destemido que nem recuava diante do crime, que a partida para a capital foi imediatamente determi­nada, a fim de afastar Cândida para bem longe de Dermany.

A cidade do Rio de Janeiro oferecia para o caso a Leonídia dois grandes recursos: os teatros, bailes e passeios da Corte, poderiam levar Cândi­da a esquecer mais facilmente o seu infeliz amor, e não era presumível que o seu fatal pretendente ousasse aparecer onde mais devia arrecear-se da ação da autoridade, pois que, conforme escrevera Frederico, embora não houvesse tratado de extradição entre o Brasil e a França, o governo brasileiro se prestara ao favor que lhe requerera o ministro francês, me­diante promessa de reciprocidade.

Entretanto Leonídia cometera inocente erro, fazendo Lucinda acompa­nhar sua senhora, e por outro lado não contara com a audácia de Der­many. Lucinda era o mau gênio, era a alavanca da sedução ao pé de Cân­dida, e Dermany devia por certo pensar, que casando com a filha de Flo­rêncio da Silva, acharia neste um protetor, e talvez no socorro de sua ri­queza, meios de anular a perseguição que moviam contra ele as vítimas dos crimes que perpetrara em Marselha.

Florêncio da Silva, chegando com sua família à capital, hospedou-se em um dos melhores hotéis; mas no fim de três dias achou-se de boa casa, mobilhada com elegância na Rua do Lavradio, para viver mais ao gosto dos costumes brasileiros.

Cândida tinha feito a viagem em revolta de lágrimas, que apenas re­freava diante de olhos estranhos; chegada porém à cidade do Rio de Janei­ro, pouco a pouco deixou de chorar e caiu em abatimento e melancolia. Violentas e terríveis haviam sido as suas emoções nos três últimos dias pas­sados na chácara de seu pai: dor desesperada, hora de perdição, remorsos, extrema esperança ainda aflitiva pela ofensa ao próprio decoro e à sua família, enfim um raio fulminador na carta de Frederico, e a partida inesperada impedindo a segunda, derradeira e peremptória confidência com Souvanel ou Dermany, eram certamente de sobra para despedaçar o cora­ção da desgraçada moça.

A forçada imposição da viagem fizera Cândida duvidar ainda uma vez da lealdade de Frederico e da veracidade das notícias cruéis que este lhe mandara, e reputando inocente o seu Souvanel, chorara-o longa e teimo­samente, chorando-se também: a pobre seduzida amava sempre e perdi­damente o seu algoz.

No hotel, e logo depois na casa que seu pai tomara, retraiu-se a infeliz moça, recebendo Frederico; mas obrigada a ouvi-lo, sujeita à influência poderosa do mancebo, cuja virtude e generosidade brilhavam como os raios do sol, não pôde resistir às provas dos crimes e da identidade de Der­many, a quem não tornaremos a chamar Souvanel, e afundou-se no abati­mento e na melancolia profunda, que eram filhos da convicção da infâ­mia do seu amante, e da indignidade em que ela própria se reconhecia.

Amava ainda muito e a pesar seu Dermany, e teria vexame de ser espo­sa de um... ladrão; não amava homem algum senão ele; mas se chegasse a amar, não ousaria pensar em ser esposa: que tormento e que castigo!...

Cândida encontrava um único recurso nos imensos horizontes da vida... um único; era não casar-se nunca: era viver sem esperança da vida única da senhora honesta.

No seu meditar solitário e turvo ela às vezes dizia a si mesma, sorrindo amargurada à sua consciência, como a vítima pode sorrir ao carrasco:

– Sou... fiz-me proscrita de amor... sou... fiz-me galé perpétua do opróbrio.

Florêncio da Silva e Leonídia viviam a imaginar divertimentos e praze­res para entreter, consolar e distrair Cândida.

Frederico ajudava-os nesse empenho, estudava o ânimo da irmã, e supunha velar melhor que o cão das Hespérides por essa fortaleza que tem mil brechas visíveis e mais de mil brechas invisíveis e que se chama – coração de moça.

Liberato, o impetuoso, ficara na cidade de... dirigindo provisoriamente os negócios da casa de seu pai.

E junto de Cândida estava sempre a mucama escrava, Lucinda, a confidente, o gênio do mal, a vítima-algoz, a escrava desmoralizada, o de­mônio.