As Vítimas-Algozes/III/XLVI

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A demonstração plena de que Cândida nascera com felizes disposições naturais e de que pudera ter sido exemplo de recato, de honestidade e de virtudes, se não tivesse sido sujeita ao influxo perversor da companhia fre­qüentíssima, pestilencial e depravada da mucama escrava, está em que, a despeito dessa inoculação imoral das lições de Lucinda, a despeito da consciência do aviltamento que a tornara dependente de Dermany, ape­sar do amor ardente que tributava ao seu infame sedutor, envergonhava-se enfim desse amante, procurava distanciá-lo, repugnava-o ou temia-o, desde que o soubera perpetrador de crimes ignominiosos.

Cândida tinha amado, mais do que isso, adorado Souvanel; mas recua­va aterrada diante da imagem de Dermany – o ladrão.

E concebei, se puderdes, esta contradição por assim dizer delicadíssima de sentimentos opostos, mas persistentes e simultaneamente influentes: Cândida amava sempre apaixonada a Souvanel que a ofendera, e rejeitava Dermany réu de crimes infamantes e previamente marcado com o sinal repulsivo do galé: a consciência condenando, o coração amando, e entre a consciência e o coração um abismo, em cujo fundo se levantavam a repro­vação da consciência e a tormentosa e aflitiva incandescência do amor.

Se conceberdes essa contradição ou luta de sentimentos, esse não e sim, essa desestima e esse amor, esse medo que faz arredar, e esse laço que aduna, essa convicção da indignidade do amado, e esse cativeiro da aman­te, essa repulsão e essa atração, tereis compreendido as tempestades, os despedaçamentos do coração, os transes da alma de Cândida.

O maior infortúnio, o mais chorado sacrifício, dera à infeliz moça a ex­periência do mal sofrido e com esta o cauteloso temor de outros males iguais a sofrer. O remorso de um opróbrio a fazia horrorizar-se de outros.

Cândida amava em Dermany, Souvanel; mas em Dermany inspira­vam-lhe repugnância e horror o ladrão e o galé.

Idéia talvez pueril, Cândida, amando Souvanel e esbarrando com Sou­vanel em Dermany criminoso, lembrava que a esposa toma o nome do marido, e tremeu de horror pensando que poderiam chamar à mulher do galé – galé, à mulher do ladrão – ladra.

A sociedade não impõe, não inflige a condenação injustamente exten­siva de semelhantes nomes, que indicam crime e punição; mas a esposa de tal criminoso e sentenciado punido, é em todo o caso mulher de galé, mulher de ladrão.

O crime não se estende pela punição, mas a infâmia do crime estende-se pelo nome à mulher, à esposa infeliz do criminoso.

Daí o medo e o horror que faziam Cândida recuar diante de Dermany, o novo nome com inesperada e horrível condição de Souvanel o sedutor amado.

Cândida amava sempre o antigo Souvanel; mas à força se tornava cau­telosa, prudente e sábia.

A cautela, a prudência, a sabedoria chegavam tarde para o grande erro do passado; ao menos, porém, preveniriam erros igualmente fatais no fu­turo.

Lucinda pleiteava incessante a favor da causa de Dermany, era a portadora das suas cartas, a intérprete de seus sentimentos, a eloqüente descri­tora dos seus sofrimentos e desesperos.

Cândida ouvia paciente, curiosa e comovida a mucama, inteirava-se de suas conversações com Dermany; mas suspeitosa e tomada de susto, des­confiada de Lucinda, pretextara as estreitas proporções de seu quarto, sem dúvida incomparavelmente inferior à sala em que ela dormia na casa magnífica da chácara de seu pai, para excluir a companhia noturna de sua escrava, e dormir só e trancada, livre portanto de qualquer atrevida visita, ou invasão sinistra do sedutor.

Lucinda exasperava-se, mas continha-se: ao pé do toucador, ou pen­teando sua senhora, vingava-se gárrula, impudente, venenosa, da sua proscrição noturna, insistindo sempre com a senhora para que confiasse o seu destino a Dermany, e sem dó das lágrimas que a fazia derramar, lembrava-lhe o seu maior infortúnio, e o direito e o dever que assistiam ao amante de tomá-la por esposa; outras vezes aconselhava e pedia a Cândi­da que, ainda mesmo para desenganar Dermany, concedesse a este uma hora, alguns minutos somente de conversação particular.

A mísera vítima resistia tenazmente com assombro da mucama, que esgotando em vão os esforços mais porfiados, mostrou-se em uma manhã mais séria e apreensiva que de costume, e disse-lhe:

– Minha senhora vai levar o Sr. Dermany a um excesso que certamen­te lhe custará dias de grande tormento...

– A ele ou a mim? – perguntou Cândida tristemente.

– A ele também; mas principalmente a minha senhora.

– E o excesso? Qual é?...

– Ontem o Sr. Dermany mandou-me chamar, e encarregou-me de dizer a minha senhora, que não podendo dominar sua paixão e resolvido a tudo tentar para ser seu esposo, ou minha senhora lhe irá falar esta noi­te, ou amanhã ele escreverá a seu pai, exigindo-a em casamento, e reme­tendo-lhe como prova de seus direitos sobre minha senhora, o bilhete que há três dias minha senhora lhe escreveu.

A escrava tinha os olhos embebidos no rosto de Cândida, que ao receber esse golpe inopinado, abismou as faces em ondas de sangue.

A vítima abrasou-se no fogo da vergonha e da cólera, e instantes de­pois, quando pôde falar levantou a cabeça, olhou terrível para Lucinda e respondeu:

– Dize a esse homem...

E interrompendo-se logo, prosseguiu depois de um instante:

– Oh! Não: a esse homem... doravante nem mais uma palavra...

– Minha senhora...

Cândida impôs silêncio a Lucinda.

– E tu – disse-lhe – acautela-te: se tornares a falar-me desse ho­mem, hei de acusar-te à minha mãe para que me liberte da tua compa­nhia fatal.

A mucama pôs-se a chorar.

– Deixa-me! – tornou-lhe a moça rispidamente.

E Lucinda saiu, enxugando as lágrimas.

– Que infâmia!!! – murmurou Cândida.