As Vítimas-Algozes/III/XLVIII

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Os amores mais profundos e santos ainda assim têm suas exigências de egoísmo: em Leonídia o amor maternal fora egoísta, abusando do poder que exercia sobre Frederico, para obrigá-lo a aceitar a mão de Cândida; ao menos, porém, Frederico reconhecia que Leonídia não tinha a idéia de sa­crificá-lo e só pensava em realizar o mais suave empenho da sua vida, em­penho que se exaltara pelas circunstâncias delicadas e apreensivas da si­tuação em que Dermany pusera sua família.

Frederico retirara-se absorvido em tristes reflexões: amara ternamente Cândida; talvez a amava ainda; mas repugnava-lhe ao pundonor tomá-la por esposa; a imagem de Dermany o perseguia insolente, levantando-se sempre ao lado da imagem de Cândida; todavia ele se prendera pela sua palavra, e pelo inesperado e inverossímil – eu quero – pronunciado pela irmã adotiva.

Além disso, o nobre mancebo desde alguns dias se preocupava da ameaça de novo e para ele mais cruel infortúnio; observava cuidadoso que Leonídia envelhecia e decaía rapidamente; notava o embranquecimento subitâneo de seus cabelos, a magreza e a palidez do rosto, a respiração opressa coincidindo com a contração ligeira da face, e com o instintivo movimento da mão, que acudia às vezes ao lado esquerdo do peito, e principiava a temer que profundo e abafado desgosto estivesse destruindo a saúde e preparando a morte próxima da extremosa e amargurada mãe, que aliás não se queixava de padecimento algum.

A idéia da morte de Leonídia apavorava Frederico.

O que pensou e refletiu o generoso mancebo, foi digno dele: resolveu consagrar-se à felicidade da família, que por morte de sua mãe o adotara filho; mas em todo caso determinou exigir explicações da decisão inexpli­cável e do desmaio de Cândida.

Voltando na tarde do mesmo dia à casa de Florêncio da Silva, encon­trou este e Leonídia radiantes de alegria.

A mãe extremosa disse-lhe:

– Nem sabes o que fizeste, meu filho; eu ia morrer, e tu me restituis a vida.

E apontou para o peito. Era a primeira vez que Leonídia confessava a convicção do mal que principiava a sofrer.

Frederico empalideceu.

– Nada receies – tornou-lhe a mãe adotiva – , tu vais curar-me.

Leonídia não calculava o poder, a influência das palavras que proferiu agradecida.

Logo depois apareceu Cândida. Florêncio da Silva tomou o chapéu e saiu; Leonídia conversou alegremente algum tempo, e deixou a sós os su­postos noivos.

Cândida não se confundiu: seus pais a entregavam sempre à intimidade fraternal daquele conselheiro dedicado e amigo.

– Minha irmã – disse Frederico – , eu tenho consciência de que não pensas que eu tivesse preparado a surpresa que te fez desmaiar esta manhã.

– Sei bem que te sacrificavas, Frederico.

– Não falei em sacrifício: tenho a dignidade da minha independên­cia; não te pedi, confesso; mas te aceito em casamento: eis a verdade...

– Tu me aceitas? Frederico! Tu me levantas?

– Cândida, eu te julgo digna de mim; sentes que te mereço?...

– Não... eu não sou digna de ti...

– Oh! E a tua decisão?

– Eu estava alucinada... respondi sem refletir... ah! Se soubesses!

– Deves dizer-me tudo, minha irmã.

– Tudo?... Oh! sim: a ti o direi... mais tarde...

– Amas pois ainda, como dantes a...

– Escuta: eu te juro, que nunca serei esposa de Dermany, nunca; ou­viste? Mas casar-me contigo, Frederico?... Tu nem sabes como eu te ad­miro hoje!... Nem sabes como eu me sinto vil diante de Frederico tão no­bre!...

– Minha irmã, tu te calunias; foste leviana, mas eu te perdoei...já não sou eu que aceito, sou eu que suplico a tua mão de esposa.

Cândida tomou a mão que Frederico lhe estendia e beijou-a.

– Minha irmã!

– Chama-me assim; é o único título que poderás dar-me.

– E nossa mãe?...

– Deixemo-la crer e viver algumas semanas... algum tempo no seu doce engano... oh!... Frederico!... Frederico!

– Cândida... fazes-me estremecer...

A pobre moça exclamou imediatamente, interrompendo Frederico:

– É loucura... mas estou louca... amo Dermany... não serei dele; mas hei de morrer solteira...

– Antes isso – disse gravemente o mancebo.

– Minha mãe está falando perto... ela vai chegar...

– Enganemos pois nossa mãe, Cândida; é preciso enganá-la... é indispensável enganá-la...

– Como? Por quê?... tu falas, tremendo...

– Cândida, nossa mãe concentra no coração desgosto assassino... o corpo ressentiu-se dos martírios da alma... e a tísica...

– Oh!... Meu Deus!

– Silêncio, Cândida; não a mates – disse Frederico.

– Como se não fosse eu que a estivesse matando!... – murmurou a infeliz moça.

Leonídia entrou na sala. Florêncio da Silva chegou de volta de seu pas­seio: a conversação tornou-se animada e amena. Frederico retirou-se às onze horas da noite.

Mas duas horas antes, às nove, e enquanto os senhores descuidosos se entretinham em amiga conversação, Lucinda, a escrava, descera ao quarto do pajem, que demorava no fundo do saguão, e ali recebera a visita de um homem vestido de lacaio.

O lacaio era Dermany.

Lucinda deu-lhe conta de quanto naquele dia se passara no seio da família de sua senhora.

Dermany, ouvindo a nova do casamento de Cândida e Frederico, disse com impassibilidade e frieza:

– Tinhas razão, Lucinda: já era tempo de jogar a última cartada; jo­guemo-la.

E tirando do bolso um pequeno embrulho que encerrava dez outros, muito mais pequenos, e todos iguais, mostrou-os à escrava, acrescentando logo:

– Como te disse, um em cada manhã...

– No café – acudiu Lucinda, rindo-se.

– Não tenhas medo; não há perigo: são doses fracas de tártaro emé­tico.

– Oh! Minha senhora já as terá tomado maiores: amanhã começarei...

– Tu és um tesouro, Lucinda! – disse o francês.