As Vítimas-Algozes/III/XVI

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Não tinham faltado festas e obséquios aos dois mancebos recém-chegados da Europa que eram pelos pais apresentados com orgulho.

Liberato e Frederico deviam demorar-se apenas quatro meses com seus pais, seguindo depois para a América do Norte, onde durante dois anos estudariam com observação solícita os sistemas, processos, instrumentos, máquinas e fábricas ou engenhos de agricultura nos Estados Unidos e nas Antilhas. Eles tinham chegado em novembro, e estava marcado o mês de março seguinte para a nova viagem.

Eram pois como estudantes em férias.

Na casa de Florêncio da Silva não havia cuidado que se poupasse no empenho de tornar ameno, alegre, feliz, o curto período que Liberato ia ali passar.

E também a petulante Lucinda se esforçava por agradar ao bonito senhor-moço, e por atrair-lhe as vistas. Semelhante ousadia é tão trivial em país onde há escravos, que a ninguém mais admira.

A mucama vestida sempre melhor que as outras escravas, e ostentando faceirice tanto mais facilmente, que os vestidos ainda pouco usados de sua vaidosa senhora, passavam a pertencer-lhe, e além disso menos agreste e a desajeitada que suas companheiras, pelo muito que aproveitava servindo à engraçada e desvanecida Cândida, presumia-se de tentadora, e ardia por tentar o senhor-moço: imoral, viciosa e lasciva, apenas contida pelo medo, passava quantas vezes podia por diante dele, indo e vindo pela casa, dava-se pressa em acabar a costura que tinha em mãos para levá-la a Cândida, quando esta conversava com o irmão, e não perdia ensejo de atravessar a sala, onde por acaso Liberato se achava só.

Uma noite em que Cândida lia à sua mãe o formoso romance A cabana do Pai Tomás, Lucinda, supondo Florêncio ainda não chegado da cidade, onde às vezes se demorava, e Liberato a fumar na sala de entrada, como costumava, para não incomodar Leonídia que aborrecia o cigarro, esgueirou-se sorrateira, e dirigiu-se com sutis passos pelo corredor que ia terminar naquela sala; sentindo, porém, o sussurro de duas vozes, que em confidência se entendiam, parou à porta, e aplicou o ouvido curioso e in­discreto de escrava.

É regra que o escravo não receia expor-se, e daria alguns dias de sua vi­da para apanhar um segredo de seus senhores.

Lucinda escutou pois, tendo os olhos acesos, a boca entreaberta, e aba­fando a respiração.

Florêncio e Liberato conversavam em voz baixa sobre o desejado casa­mento de Frederico e Cândida. Entre o pai e o filho não podia haver opo­sição de idéias em matéria sobre a qual estavam ambos do mais perfeito acordo; em um ponto, porém, Liberato pareceu hesitar.

– Mas ainda faltam dois anos, meu pai! – disse-lhe.

– Que importa? Tua irmã também é ainda uma criança – respondeu Florêncio.

– Perdão; mas por isso mesmo em dois anos a cabeça de uma mulher criança pode uma dia doidejar.

O amoroso pai abaixou ainda mais a voz e disse:

– Talvez tenhas razão; mas que remédio?... O casamento, realizado já, perturbaria ou impediria o complemento dos estudos do nosso Frede­rico; porque nem era razoável que ele levasse a noiva em viagem de labo­riosas observações, nem, apartando-se dela, ainda tão recentemente casado, poderia viajar e estudar com perfeita tranqüilidade de espírito.

– É assim, meu pai: e depois... Cândida nunca olvidará a sua educa­ção e o seu dever... nunca desobedecerá...

Florêncio cortou a palavra ao filho.

– Conto com isso; mas em todo caso não admito a idéia de casamento de minha filha, sem a livre e plena determinação da sua vontade: Frederi­co seria o genro da minha escolha; terei grande desgosto se ele não for meu genro; tudo, porém, depende do coração de Cândida.

– Mas nem tudo deve abandonar-se à cabeça da mulher criança, meu pai.

– Sim... sim... e eu prevenirei riscos possíveis... tu pensas bem, e creio que não tenho sido bastante acautelado...

 – Como?...

– Desde dois anos freqüento demais o teatro da cidade, e não tem havido mês em que faltasse um baile em festejo de batizado, de casamen­to, ou de comemoração de natalício ou sob mil pretextos, para obrigar-me levar Cândida à sociedade...

– Ah! Também é preciso que ela se recreie... Cândida não é freira.

– Mas a mim me cumpre ser mais prudente: eu o serei depois que vocês partirem para os Estados Unidos.

– Meu pai desconfia de alguma inclinação?... Notou algum ato le­viano?...

– Oh! Não! Juro que não – acudiu Florêncio.

E logo começou entusiasmado a fazer o elogio da inocência e das virtudes de Cândida.

Lucinda aproveitou o fervor do elogio para retirar-se pé por pé e sem ter sido percebida por alguém na traiçoeira escuta.

A mucama estava alvoroçada pela idéia daquele casamento, furiosa contra o empenho de seus senhores, e meditando já sobre os meios de contrariá-lo.

Meia hora depois, Lucinda atravessava plácida e alegremente a sala de jantar, onde Florêncio e Liberato acabavam de ouvir com Leonídia a leitura do último capítulo da Cabana do Pai Tomás.

Leonídia e Cândida tinham lágrimas nos olhos.

Lucinda entrou no quarto de dormir de sua senhora, e dali pôde ouvir o que foi dito.

– Pois vocês choram por isso? – perguntou Florêncio.

– Meu pai – disse Liberato –, este romance concorreu para uma grande revolução social; porque encerra grandes verdades.

– Quais, meu doutor?

– As do contra-senso, da violência, do crime da escravidão de homens, como nós outros, que nos impomos senhores; as da privação de todos os direitos, da negação de todos os generosos sentimentos das vítimas, que são os escravos; as da insensibilidade, da crueldade irrefletida, mas real, e do despotismo e da opressão indeclináveis dos senhores.

– Admiravelmente, meu doutor: o tal romance, belo presente que fizeste a Cândida, e que eu já tinha lido, mostra e patenteia o mal que os senhores fazem aos escravos.

– E muito mais ainda, meu pai...

– Embora; mas demonstra isso: e tu já pensaste no mal que os escravos fazem aos senhores? Já o mediste e o calculaste?...

– Conseqüência do flagelo da escravidão: as vítimas se tornam algozes.

– E que algozes!...

– Que se quebre pois o cutelo! – exclamou Liberato.

– E como? – perguntou Cândida.

– Banindo-se a escravidão, que nos desmoraliza; que é nossa inimiga natural, que nos faz mal em troco do mal que fazemos: porque o escravo condenado à ignomínia dá o fruto da ignomínia à sociedade que o oprime, e pune a opressão, corrompendo o opressor.

– Basta – disse Florêncio.

Liberato calou-se, mas com ar de triunfo.

E Lucinda que ouvira tudo da porta do quarto, murmurou com os dentes cerrados.

– E portanto... eu sou vítima.