As Vítimas-Algozes/III/XVIII

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Tinham chegado as festas do Natal, os dias de jubilosa comemoração católica, em que com as solenidades da igreja docemente se apadrinham os regozijos profanos, que principiando a 25 de dezembro vão até 6 de janeiro, e ligam assim em laços de flores o ano que cai no passado e o avança que para o futuro, o ano velho que deixa desenganos e o novo que favoneia esperanças.

Esses dias do Natal marcam a época mais alegre, e as festas por excelência da roça: quem pode foge das cidades; as povoações do interior e principalmente as fazendas e habitações rurais, abrem o seio hospitaleiro e amigo às famílias que vão gozar os encantos, beber o ar puro da natureza campestre e esquecer por breve prazo o burburinho, a etiqueta fatigadora, a vida artificial, a que têm de voltar logo depois.

É na roça o tempo das cavalgadas e das romarias de fazenda em fazenda, para, em série de banquetes e de funções, ser satisfeito o empenho de obséquios, que os fazendeiros disputam entre si, repartindo os dias para repartir a glória da hospedagem festiva.

Florêncio da Silva e Plácido Rodrigues receberam, um em sua casa de campo, o outro na sua fazenda, famílias amigas, vindas da Corte a convite de ambos. Liberato e Frederico tiveram em alguns antigos companheiros do colégio seus hóspedes especiais.

Com três estudantes do curso jurídico de São Paulo convidados de Liberato viera também um jovem francês de nome Alfredo Souvanel.

Como que a fatalidade, ou o destino, aproximavam Souvanel de Liberato e Frederico: os dois mancebos tinham-se encontrado com ele pela primeira vez, havia dezoito meses, em uma breve excursão que os levara à Suíça, a visitar alguns asilos agrícolas, e separando-se no fim de três dias quando apenas se conheciam, de novo, passadas algumas semanas, se achavam reunidos com Souvanel no mesmo alojamento em Stuttgart, Alemanha, onde seguiam os estudos teóricos e práticos do Instituto Agrícola de Hohenheim.

Aí, na capital do Wurtemberg, estreitaram-se naturalmente as relações dos dois brasileiros com Souvanel, que se dizia proscrito político, e que viv eu vida vadia e alegre com os estudantes da escola agrícola, até que ao cabo de alguns meses, e de repente, despediu-se dos amigos na mesma hora em que se partiu, sem dizer para onde.

De volta da Europa chegando ao Rio de Janeiro em novembro, Liberato e Frederico esbarraram com Souvanel em companhia de amigos e anti­gos colegas seus, estudantes que vinham de São Paulo em férias.

Alfredo Souvanel devia contar cerca de vinte e seis anos; de estatura regular, louro, de olhos cintilantes, era de aspecto agradável, bem talhado de corpo, apurava-se no trajar tanto, quanto lho permitiam seus fracos recursos. Dizia-se bacharel em letras; tinha instrução superficial, mas inteligência fácil, espírito, e gênio alegre; jogava com destreza o florete e a espada, atirava com admirável precisão a pistola, e, melhor que tudo isso, era habilíssimo pianista, dispunha de excelente voz de barítono, tocava e cantava como tocam e cantam os mestres, que além do perfeito conhecimento da arte, têm o segredo do sentimento que a sublimiza.

Pretendia ele ser uma das vítimas do despotismo de Luís Napoleão, e amigo particular de Louis Blanc; dizia ter sido ativo colaborador de mais de uma gazeta em Paris, e falava com entusiasmo da França, e da repúbli­ca socialista; adorava Lamartine poeta, e detestava o político, porque em sua opinião Lamartine sacrificara a revolução de quarenta e oito.

Souvanel se apresentara em São Paulo a procurar discípulos de música, e das línguas francesa e inglesa; ganhou, porém, muito mais com a reco­mendação de proscrito político na sociedade dos estudantes, de quem as­tuto se aproximou.

Quem diz estudante, diz generosidade. Os acadêmicos de São Paulo protegeram Souvanel, a vítima do despotismo perseguidor e cruel, o mártir das idéias liberais; estenderam-lhe as mãos da mocidade crédula, mas ainda nobre e grandiosa nessa credulidade, que testifica a majestosa inca­pacidade de hipocrisia e de perfídia, na insuspeita da hipocrisia e da per­fídia: a mocidade; e na mocidade principalmente os estudantes acadê­micos manifestam a nobreza e altitude de seus corações nas belas ilusões, em que se enganam com os homens e o mundo. Eles se enganam, porque ainda são melhores do que os homens e o mundo que os enganam.

Os acadêmicos de São Paulo adotaram Souvanel: para disfarçar a benificência, deram-se a aprender o jogo do florete e da espada, pagando as li­ções que recebiam, e em breve entusiasmaram-se pelo jovem francês, que era o mais alegrão, travesso, original, espirituoso e endiabrado compa­nheiro de folganças.

Em poucos meses Souvanel falou português, como se vivesse há vinte anos no Brasil, e chegadas as férias, deixou São Paulo, e acompanhou os es­tudantes que vinham e lhe pagaram a passagem para o Rio de Janeiro, em cuja capital esperava melhorar de fortuna, como professor de piano e canto.

Os estudantes, amigos de Liberato, exaltaram os merecimentos de Souvanel, que além disso recomendado pelo infortúnio, pela pobreza, e pela jovial convivência de alguns meses em São Paulo, recebeu com aqueles convite para passar as festas do Natal na casa de Florêncio da Silva.

O jovem francês não se fizera rogar.

Bastaram poucos dias para que Souvanel se tornasse a alma das funções do Natal, na companhia em que se achava; jucundo, condescendente, in­fatigável, era o vivificador dos saraus, o ordenador de contradanças varia­das, o rei do piano, o intérprete fiel das músicas de Bellini, de Donizetti e de Verdi, nas árias e duetos de suas melhores óperas; nas caçadas brilha­va como o primeiro atirador; nas cavalgadas ostentava habilidade ginástica, fazendo prodígios de equilíbrio em pé sobre o selim, ou aos saltos ao pescoço e à garupa do cavalo; à noite nos salões inventava jogos, lia a buena-dicha nas mãos das senhoras, e com um baralho de cartas realizava proezas de empalmação, e de resoluções de problemas de cálculo, que pa­reciam inexplicáveis.

Souvanel eclipsou os próprios estudantes: onde ia, entregavam-lhe a direção do banquete, do sarau, de toda festança: as senhoras o lisonjeavam para que ele as fizesse dançar, cantar, brilhar; os estudantes o atrope­lavam, exigindo os entretenimentos que mais lhes convinham; os anfi­triões o tomavam por árbitro e animador das amenas funções; em suas mãos enfim estava o fio de Ariadna daquele labirinto de ruidosos mas inocentes prazeres.

Dir-se-ia que Souvanel, o indômito traquinas, o espirituoso e alegrão francês, sempre tão atarefado, tão exigido, tão distraído, e por assim dizer multiplicado para atender e servir a tantas senhoras e senhores, não poderia ter tempo, olhos, contemplação, e talvez cálculo para ver, distinguir, amar, ou fingir amar, alguma das muitas belas jovens, que se reuniam naquela sociedade festiva e ambulante, que andava de romaria de fazenda em fazenda.

Entretanto não era assim: logo nos primeiros dias, depois da sua chegada à casa de Florêncio da Silva, Souvanel encetara amoroso enleio que se foi entretecendo imperceptivelmente para todos.