As Vítimas-Algozes/III/XXIII

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As festas, os banquetes, os saraus não terminavam, apenas se interrompiam.

Florêncio da Silva tomara para si dois dias, os últimos das grandes comemorações religiosas, a véspera e o Dia dos Reis: os últimos e portanto os mais ardentes de alegria, os precursores da despedida dos amigos, das famílias, que se deviam separar.

A casa de campo de Florêncio da Silva estava cheia de convidados, que deviam gozar dois dias de banquetes e de saraus, e à noite da véspera do Dia dos Reis, fogo de artifício às onze horas, e mais tarde recebimento de companhia cantadora dos Reis que se anunciara.

Era geral o júbilo, e como que havia delírio de exaltação.

Entre todos, só Frederico melancólico se obumbrava, embora às vezes revolto contra a própria tristeza, em reação calculada, se atirasse com ardor não costumado às contradanças, e aos jogos espirituosos de sociedade.

A noite de 5 de janeiro se adiantava no meio de inocentes folguedos.

Anunciou-se a hora do fogo.

As janelas eram apenas suficientes para as senhoras; quase todos os ho­mens desceram para o terreiro.

As diversas peças de fogo dispostas com arte, iam arder em pontos destacados, projetando enchentes de luz sobre o jardim, o lago, os repu­xos d’água, as árvores e a relva.

Havia multidão de curiosos, enchendo as ruas da grande chácara.

Frederico preocupado e melancólico, logo que chegou ao terreiro, afastou-se dos companheiros e foi para um lado da casa, onde o isolamento era mais certo, porque dali menos se apreciaria o fogo.

Nesse lugar de passageiro retiro, viu ele grande número de carros, des­cansando no chão os varais; os cocheiros e lacaios tinham ido admirar o fogo, em ponto mais favorável; um único pajem ali se deixara; esse porém dormia profundamente em estado de completa embriaguez.

Frederico vagou pensativo por entre os carros por algum tempo: de repente a luz de brilhantíssimo fogo inundou o espaço, e o mancebo, que parecia aborrecido da festa, abriu a portinhola de uma carruagem, subiu para ela, e cerrando as cortinas, submergiu-se em suas reflexões.

Passados breves minutos, duas vozes a princípio abafadas e logo mais livres se fizeram ouvir ao pé da carruagem, e arrancaram Frederico ao seu triste meditar.

– Podemos falar...

– Vê bem...

– Todos estão vendo o fogo e eu também quero ir vê-lo: anda depres­sa: entregaste a carta?

– Entreguei.

– E a resposta?

– Minha senhora não quer escrever...

– Então sinhá-moça não gosta do francês?

– Está doida por ele: nunca se mostrou tão caída com os outros na­morados que tem tido: agora sim, creio que minha senhora caiu no laço.

– E como não escreve?

– Não tem tempo, não pode.

– Que diabo! O francês tinha-me prometido boa molhadura.

– Espera... eu tenho um recado.

– Vamos a ele, Lucinda; eu quero ver o fogo.

– Dize quanto antes ao francês, que apenas entrarem os cantadores dos Reis aproveite a confusão e vá imediatamente ao grupo de acácias do lado esquerdo do jardim, onde alguém lhe irá falar alguns instantes.

– Lucinda! – exclamou o pajem. – Isto é o diabo! Pois sinhá-moça se atreve... e depois?

– Que te importa o mais?

– E nós? Se meu senhor souber?... Se o francês...

– Guarda tu segredo: vai depressa...o francês te dará a molhadura, e eu amanhã te darei um abraço...

O pajem riu-se, fez a Lucinda um afago obsceno, e seguiu por um lado, enquanto a mucama de Cândida retirava-se por outro.

Frederico estava quase sufocado dentro da carruagem, faltava-lhe o ar, abriu a portinhola, saltou no chão, e ficou em pé e imóvel por algum tempo.

Com a mão agitada por convulsivo tremor, acudia a fronte, como querendo com o passar e repassar dos dedos, desbastar a multidão de turvas idéias que ondeavam nela.

Frederico nunca se precipitava: sentia-se possuído de indignação e de cruel responsabilidade. Acabava de testemunhar o despedaçamento da reputação de Cândida pelas línguas-punhais ervados de dois escravos: acabava de saber que a donzela que amava, e tão recatada presumira, já era conhecida por namoradeira, já tinha tido diversos namorados, já se aviltara, abandonando-se à má fama, que as bocas peçonhentas da cozinha e das senzalas sem dúvida propalavam; acabava enfim de ouvir um recado abjeto, pelo qual Cândida matara a honra de sua alma, e expunha à morte a honra do seu corpo.

O nobre mancebo descreu do brio de Cândida, e julgou-se ao menos curado de um amor imerecido e que pudera ter-lhe sido fatal. A desestima, talvez o ressentimento, aconselhavam-lhe com o desprezo o completo abandono dessa mulher indigna; essa mulher, porém, era mais do que filha de Florêncio da Silva, mais do que irmã de Liberato, mais do que afilhada de seu pai, era filha de Leonídia, a quem Frederico amava com extremo, com uma espécie de religioso culto, com aquela dedicação, com aquele devoto esquecimento de si, que acendem a flama que sublimiza a fé dos mártires: Frederico adorava em Leonídia a mãe, a bondade, e a virtude.

Só por Leonídia, ele ainda pensou em Cândida: os erros do passado da desastrada moça eram fatos e não podiam ser prevenidos: o perigo tremendo a que ia expor-se ainda felizmente estava em tempo de se atalhar; mas de que modo?... A denúncia da vergonhosa entrevista, sendo feita a Florêncio da Silva e a Liberato, chegaria a provocar imprudente desafronta; levada ao coração de Leonídia, seria horrível desencanto de sua glória maternal: nada era mais fácil do que impedir por qualquer meio o encontro escandaloso dos dois amantes nessa noite, nada mais difícil do que preveni-lo em alguma outra; falar a Cândida, esclarecê-la sobre a baixeza e o escândalo do seu proceder, fora talvez o alvitre mais sábio; repugnava, porém, a Frederico o dirigir-se àquela moça de coração estragado e de belo rosto hipócrita.

Espiar, era para o honesto e altivo mancebo ação ignóbil, e todavia nas circunstâncias em que se achava não viu expediente capaz de satisfazer seu empenho de poupar tormentos a Leonídia, desforço violento a Florêncio da Silva ou a Liberato e perdição irremediável a Cândida, senão surpreendendo os dois amantes na entrevista, punindo com a confusão a donzela e impondo a Souvanel pronta e imediata retirada da casa, que ameaçava com a ignomínia.

Tendo assim pensado e resolvido, Frederico saiu do meio dos carros, e voltou à companhia dos amigos, no meio dos quais encontrou Souvanel que lhe pareceu exaltado de júbilo.

O fogo de artifício terminou com aplausos estrondosos.

Meia hora depois a cavalgada dos cantadores dos Reis parou à porta da casa de Florêncio da Silva.

Frederico saiu desapercebidamente, foi direito ao grupo de acácias, e submergiu-se em um grupo de outros arbustos, que perto se destacavam.