As Vítimas-Algozes/III/XXIV

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Havia luar: em falta do clarão brilhante da lua plena, o começo da fase crescente espancava as trevas. Frederico podia ver, e ávido olhava.

A música dos cantadores dos Reis soava docemente. Frederico não a ouvia, tinha então a alma concentrada nos olhos.

Uma mulher apareceu, avançou sem medo, e cruzando os braços parou atrás do grupo de acácias.

Frederico viu, distinguiu bem essa mulher: era uma negra.

Alguns minutos morosos se arrastaram, e veio vindo cauteloso, e como tomado de receios o vulto de um homem, que estacou diante da mulher de cor preta.

– Quem é?... – perguntou em voz baixa o homem que chegara e surpreendido ficara.

Frederico reconheceu Souvanel.

– Sou Lucinda, a mucama da Senhora Dona Cândida, minha senho­ra.

Frederico reconheceu também pela voz a escrava, que pouco antes dera o recado ao pajem.

– Ah! – disse Souvanel com um tom que denunciava o mais desagradável desapontamento. – Ah! Então és tu?

– Sim senhor, sou eu.

– E a que vens? Trazes-me algum recado?

– Não senhor, trago-lhe um conselho.

– Qual?

– Minha senhora o ama; mas vossa mercê a compromete, confiando os segredos do seu amor a um pajem: deve entender-se comigo, que sou a mucama de minha senhora, e a quem sirvo com a maior fidelidade...

– Mas... eu não sabia...

– Fica sabendo agora – tornou a crioula rindo-se, e aproximando-se a meios passos e com meneios lascivos do corpo à medida que falava. – Eu sou apenas um ano mais velha que minha senhora, que me confia to­dos os seus segredos, e me toma por conselheira... se, porém, o senhor prefere o pajem...

– Oh! Antes quero a ti, que és mais esperta – disse Souvanel, pondo-lhe a mão no ombro.

Lucinda recuou, como a defender-se.

– Não me toque com a mão – murmurou ela.

Souvanel chegou-se para a crioula e perguntou:

– Foi Dona Cândida que te mandou aqui para te entenderes comigo sobre a correspondência e o segredo do amor que...

– Foi... não foi... para que mentir?.,. Fui eu mesma que vim...

O jovem francês riu-se.

– Quer dar-me algum recado para minha senhora?... – disse a crioula, abaixando a cabeça.

– Quero – respondeu Souvanel. – Escuta.

E travando-a pelo braço, achegou-a mais para si.

Frederico tinha já ouvido e visto bastante, e repugnando-lhe a cena que adivinhava, recuou sutil por entre os arbustos e árvores, e foi procurar oculta retirada em rua distante, quase aplaudindo a vitória libidinosa da negra escrava pela deliciosa convicção da inocência de Cândida, naquele ajustado encontro em que ele tão injustamente a acreditara desmoralizada e voluntária vítima.

Fazendo longa volta para tornar à casa, Frederico demorava o passo meditando sobre o que se passara a seus ouvidos e a seus olhos desde a hora do fogo.

Eis aí pois, pensava ele, uma escrava perversa e devassa como todas as escravas mais ou menos o são, comprometendo o nome e a reputação de uma donzela, sua senhora, para atrair um homem branco e satisfazer seu vício escandaloso; o pajem que levou o recado a Souvanel, convidando-o para a entrevista noturna, sem dúvida imagina sua senhora-moça nos braços do sedutor, e irá murmurar do seu opróbrio, conversando com os parceiros, prontos como ele a acreditar na infâmia que pode manchar os senhores.

Mas que muito era que o pajem rude e imoral, deixando-se enganar pela mucama, tão fácil criminasse sua senhora-moça, se Frederico, o refletido e ilustrado mancebo igualmente a considerava culpada?...Que juízo estaria ele também formando de Cândida, se levado pela indignação que lhe causara o recado, que da carruagem surpreendera, houvesse logo partido para a fazenda de seu pai, fugindo à casa e à família, que iam receber a nódoa da desonra?

Frederico sentiu-se mordido pelo remorso de sua credulidade aleivosa; tremeu, lembrando que em sua alma iludida caluniara Cândida, o seu primeiro amor, a sua aspirada noiva, a filha de Leonídia: impelido pelo arrependimento para idéias suaves, risonhas, e lisonjeiras relativamente à donzela, perguntou a si mesmo, se não era possível que também se tivesse enganado, supondo-a namorada, ou apaixonada de Souvanel; se não era possível que a malvada mucama, fingindo levar a sua senhora os recados e cartas que de Souvanel trazia o pajem, inventasse respostas verbais, e entretivesse o ingrato francês em ilusões que convinham à sua depravação.

Aditado por esses pensamentos, filhos de generosa reação, Frederico subiu a escada e penetrou com dificuldade na sala da entrada que estava cheia de gente, que acompanhava os cantadores dos Reis.

Agora é indispensável dar em breves palavras a topografia de parte da casa de Florêncio da Silva.

A sala de entrada mediava entre duas outras laterais e muito maiores, para cada uma das quais abria uma porta, e no fundo comunicava-se com um corredor, que também rasgava portas para vastas câmaras, dependen­tes daquelas duas salas, terminando enfim na de jantar.

O grande salão do lado direito e suas dependências tinham sido destinados a hospedagem e defeso retiro das senhoras.

O salão do lado esquerdo pertencia à dança, à música, à reunião geral, a todos: suas dependências, suas câmaras que eram salas ornadas com ri­queza e luxo, estavam entregues ao domínio masculino.

Cada salão tinha duas câmaras, e para cada câmara uma porta.

Frederico, animado, alegre, não podendo entrar no salão do lado esquerdo, onde dançavam suas contradanças figuradas os cantadores dos Reis, avançou pelo corredor, e foi procurar o recurso da introdução pela primeira e respectiva câmara.

Tinha apenas dado um passo para dentro da câmara, e parou, anuvian­do a fronte: eis o que viu.

No salão a dança, o aperto da multidão, a hora da surdez e da cegueira de todos pelo excesso do ruído e da luz, a câmara deserta, um só ho­mem nela, Souvanel meio escondido a um lado da porta aberta por metade; na metade aberta da porta uma cadeira fechando-a, nessa cadeira Cândida reclinada negligentemente, com o rosto para o salão e para a dança, que ela sem dúvida não via, com um braço atirado para trás, descansando a axila no encosto da cadeira, e abandonando a mão a Souvanel, que a apertava entre as dele, que meio curvado a beijava e que entre os beijos lhe dizia mil finezas.

Frederico revoltou-se, vendo essa branca e mimosa mão de donzela a receber os apertos das mãos e os beijos dos lábios que pouco antes tinham apertado e talvez em transporte brutal beijado as faces da negra torpe.

O amor de Souvanel e Cândida era pois uma realidade!...

O generoso e altivo mancebo não pôde mais resistir à evidência, e pro­fundamente golpeado, despedaçado em todas as fibras do coração, ficou a olhar, e a saborear vingança naqueles fingidos extremos de paixão de Sou­vanel, que eram cansados restos da vida física, extenuada nos braços deso­nestos e negros da escrava, que era rival da senhora.

Cândida tinha os olhos na dança, e a mão febril e trêmula perdida nos lascivos beijos de Souvanel: este contava demais com a solidão da câmara, e embevecido, esquecia o mundo e a prudência a devorar aquela mão tão branca e tão cetim, e a dizer envenenadas ternuras, quando não a beijava.

Frederico ciumento, invejoso talvez, com a alma em raiva adiantou alguns passos, chegou quase ao pé das mãos, que se apertavam, e não foi sentido...

Esse abandono, essa imprudência, essa embriaguez, essa cegueira e surdez de amantes irritou-o ainda mais... inspirou-lhe ódio, furor; que lhe pareceram sinais, perdições, abismos de amor, que ele não merecera...

Sentiu um ímpeto de arrojada cólera... ia atirar-se entre aquelas mãos; de súbito porém se suspendeu...

Em frente da porta, por onde entrara na câmara, viu o desconcerto de sua fisionomia na imagem reproduzida por grande espelho, e horrorizou-se da decomposição dos traços de seu rosto...

Como endoidecido deixou-se a olhar ao espelho, e a inquirir se era sua imagem essa imagem turva e sinistra que estava vendo...

De súbito estremeceu, encontrando no espelho a figura de Liberato.. ah! Liberato era a providência que chegava para ver a loucura e a perdição de Cândida... Frederico ficou imóvel.

Mas ao lado de Liberato, o espelho mostrou dois estudantes amigos, passar além da porta da câmara...

A virtude venceu a raiva, a lembrança de Leonídia, e talvez o melindre do amor dominaram o ciúme...

Frederico deu um passo adiante, com suas mãos convulsivas separou, desenlaçou a mão de Cândida das de Souvanel, que a apertavam, e com voz comprimida disse:

– Aí vem gente.

Cândida estremeceu, recolhendo o braço.

Souvanel ficou impassível.

Frederico em pé, silencioso e aparentemente frio, salvava Cândida da mais leve suspeita ofensiva do seu recato.

– Oh! Eis aí Frederico! – disse Liberato. – Há uma hora, que te procuramos debalde...

– Cândida me prendia aqui com as suas observações sobre as contradanças dos cantadores dos Reis – disse Frederico.