As Vítimas-Algozes/III/XXVI

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A soberana magnanimidade de Frederico tinha tocado a alma de Cândida: a delicadeza com que ele, de passagem somente, lembrara a inexorável leviandade para arrancá-la à confusão com o socorro de uma desculpa imerecida, a sabedoria dos conselhos suavizada pela ternura do amor fraternal, o juramento de dedicação justamente condicional à causa do próprio amor que era o desencanto e o holocausto do que ele nutrira e talvez nutria ainda, davam a Frederico a auréola esplêndida da majestade da virtude, e a magia do melindre dos sentimentos mais puros.

Cândida compreendeu bem e perfeitamente, pela primeira vez, todo o valor do tesouro que perdera, e em sua consciência esclarecida pela mais brilhante luz, reconheceu, em obrigada comparação, a desmedida superioridade que distanciava em altíssimo grau Frederico do seu amado Sou­vanel; essa superioridade, porém, era toda moral e como que fazia esquecer, ou pelo menos encadeava e submetia à virtude os instintos da natureza física, enquanto Souvanel no rojar do seu amor pela terra sabia inebriar a vaidade, falar apaixonado aos sentidos, e sorrir mais atrativo ao sensualismo, que a influência desapercebida da mucama escrava tinha inoculado no coração de sua senhora.

Aos olhos de Cândida, Frederico se afigurava mais do céu que da terra mais adorável que amável, e Souvanel homem menos anjo e mais huma­no: se ela pudesse repartir-se entre a adoração e o amor, teria dado a um a alma, ao outro o coração, mas o coração físico. Na impossibilidade da partilha, ela preferia a terra ao céu, queria ser alma e coração toda de Souvanel, aceitando porém de Frederico a dedicação-martírio.

Foi assim que Cândida raciocinou, sofismando com a consciência escusar a cegueira da paixão, mas não poupando a virtude aos sacrifícios que podiam aproveitar ao seu egoísmo.

Ela rendia a Frederico os cultos que se rendem aos santos, e todavia interesse do seu amor estava pronta a fazer mártir o santo!... No egoísmo de sua vaidade acreditava que era para ele suave consolação servir ao seu amor, que devia aditar outro homem!

Mas ainda bem que a magnânima generosidade e a terna solicitude fra­ternal de Frederico ao menos convenceram a imprudente donzela de que mais acautelada lhe cumpria ser, em suas afetuosas expansões com Souva­nel, enquanto informações abonadoras de seu caráter, não viessem sancio­nar a escolha e a bem-aventurança do seu amor.

Que tempo duraria essa convicção sábia?... Quantos dias lembraria Cândida os três beijos, em que três vezes selara na mão nobilíssima de Frederico a plena confiança do seu coração de irmã?...

Cândida recolheu-se ao seu quarto ao romper da aurora e dormiu seis horas, fiel aos três beijos de amor e confiança fraternal. A fidelidade du­rante o sono é fácil, pelo menos quando algum sonho não perturba o sono.

Cândida não sonhou.

Às dez horas da manhã de 6 de janeiro, Lucinda correu as cortinas do leito de sua senhora, e despertando-a cuidadosa, disse-lhe:

– É quase meio-dia, minha senhora.

Cândida abriu os olhos, sorriu-se, e murmurou:

– Que sono!

E preguiçosa cerrou de novo as pálpebras.

– Quer ver como abre já outra vez os olhos?... Aqui está um bilhete do bonito moço francês – tornou a mucama.

Cândida estremeceu, levantou meio corpo apoiando-se no cotovelo do braço esquerdo, e adiantando a mão direita, disse:

– Dá-me o bilhete.

Lucinda entregou uma carta a sua senhora.

– Que suave acordar! – ousou dizer a escrava.

Cândida passou duas vezes a mão pelos olhos, e, encostando-se à cabe­ceira da cama, abriu a carta e leu para si.

Coraram-lhe fortemente as faces enquanto lia.

Era suspeitoso esse pejo que se acendia nas faces de Cândida; porque enquanto as flamas do pudor nelas ardiam, a donzela se descuidava de seu corpo, deixara a gola da camisa ceder indiscreta ao declive da posição que tomara no leito, e um de seus peitos, brancos como a neve, se osten­tava abandonado aos olhos invejosos da escrava.

– Por que cora?... – perguntou a mucama.

Cândida tinha acabado de ler: puxou a camisa e escondeu o seio a des­coberto sem mostrar vexame e disse:

– Ele exige mais do que eu lhe posso conceder.

– O quê, minha senhora?...

– Uma entrevista hoje mesmo...

– Onde?... Como?...

– Não o sabe, não o indica; mas diz que o nosso amor corre perigo e que ele se acha ameaçado por odiento rival...

– O senhor Frederico, provavelmente.

– Lucinda, Frederico é o anjo da generosidade...

A mucama pôs-se a rir.

– Tu ris?... Pois escuta.

E Cândida referiu quanto se passara com ela, Souvanel, e Frederico na noite antecedente.

Lucinda riu-se ainda mais.

– De que te ris agora?...

– Da simplicidade de minha senhora.

– Como?...

– É claro que o senhor Frederico, contrariado em sua paixão, quer amedrontar o amor de minha senhora, e fingindo-se irmão dedicado, amante ridículo e impossível até a loucura de servir ao amor de outro, ar­mou um laço a minha senhora para fazê-la desconfiar do bonito moço francês...

– Lucinda!

– Pois minha senhora acredita, que o senhor Frederico que a. deseja desposar, lhe venha dar boas informações do rival preferido?... Não vê que está sendo objeto da zombaria, ou do ardil de um apaixonado?

– Ah! Tu não ouviste, como ele me falou!

– Palavreados, minha senhora; ele prestou-lhe um serviço, calculando com a gratidão. Não pensa que o senhor Frederico a ama?

– Ama-me.

– Então como combina com o seu amor, que devia inspirar-lhe vio­lentos ciúmes, essa pronta e fácil dedicação fraternal, que promete ser protetora de um outro amor, que é fatal ao dele?... Minha senhora não vê que há por força artifício e traição nesse ardor de ganhar a sua confiança, e de fazê-la desconfiar do bonito moço francês?...

– Lucinda, tu me desatinas, porque parece que tens razão!...

– Se a tenho!

– Oh! Mas Frederico é um homem honesto e bom... e o que fez por mim ontem à noite, não o esquecerei nunca! Se não fora ele, Liberato e seus dois amigos teriam surpreendido minha mão presa entre as de Sou­vanel...

– O senhor Frederico tinha interesse de noivo em não deixar efetuar-se a surpresa.

Cândida começava a gostar de ser combatida pela mucama.

– Noivo! – disse ela. – Frederico me declarou que desistia absoluta­mente das pretensões que tivera...

Lucinda fez um momo e observou:

– Era preciso que minha senhora não fosse formosa, como é, para se acreditar em desistência tão fácil.

Este argumento pareceu irrespondível a Cândida, que todavia conti­nuou dizendo:

– Entretanto o que lhe ouvi sobre Souvanel foi uma verdade, que achou eco em minha consciência. Fui imprudente, animando o amor de um desconhecido, cuja família, vida, e passado, ninguém aqui conhece.

– Como minha senhora se deixa iludir! Se o moço francês fosse desco­nhecido e dele se desconfiasse, o senhor Frederico e meu senhor-moço não o teriam convidado para passar a festa do Natal aqui com os outros seus amigos. Somente depois que minha senhora o ama, é que procuram torná-lo suspeito, e sem dúvida arredar o bonito moço.

Cândida suspirou, e sentando-se na cama, disse:

– É tempo de vestir-me.

A carta de Souvanel caiu do colo aos pés da moça.

– Impossível... – murmurou ela recebendo a carta que a mucama le­vantara.

– Impossível o quê, minha senhora?

– A entrevista.

– Talvez... não é fácil achar lugar e hora.

– Que fosse fácil: uma senhora honesta não pode conceder entrevistas secretas.

– Então as senhoras honestas não amam?

– Que pergunta estúpida, Lucinda!

– Perdoe, minha senhora – disse a mucama. – Eu pensava que o homem amado merecia sempre confiança e algum sacrifício inocente...

– Assim, no meu caso davas a conferência?

– Se eu amasse, dava-a.

– Pois eu amo, e não a dou.

Coitado do moço francês! Estava tão triste esta manhã...

Cândida guardou silêncio; mas penteou-se e vestiu-se evidentemente preocupada e absorta.