As Vítimas-Algozes/III/XXXI

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Desde alguns dias que a vida normal recomeçara para as famílias e amigos que se tinham ido e para aqueles que haviam ficado no município e na cidade de...

Souvanel não julgara preciso voltar à Corte: na sua mala de viagem trouxera quanto possuía; neste fato denunciava a sua extrema pobreza, que aliás nem é labéu, nem motivo de favorável recomendação. Começa­ra logo a exercer o seu mister de professor de piano e canto, ganhando bastante para manter-se com decência.

Frederico freqüentava assíduo, como costumava, a casa de Florêncio da Silva, e aplaudia-se da situação que criara.

Leonídia, achando-se uma tarde a sós com o filho adotivo, dissera-lhe:

– Pensei muito na conversação que tivemos na última noite de festa, Frederico, e concluí que não quiseste ser franco, e que ao contrário procuraste esconder-me a verdade...

– Minha mãe... essa conclusão...

– Não te acuso, meu filho; agradeço-te o sentimento que te levou a enganar-me, e a criminar-te de inconstância; quero, porém, para meu sossego, que me satisfaças uma pergunta e um pedido, mas desta vez a lealdade com que me deves.

Frederico atendeu:

– O ato ou o procedimento censurável de Cândida compromete a honra?

– Juro que não, minha mãe: foi apenas uma inconsideração de na vaidosa e um pouco leviana... ela porém arrependeu-se logo.

Leonídia corou:

– Guarda o teu segredo, meu filho; agora o pedido: Florêncio e Liberato já sabem que desististe do projeto de casamento com a nossa Cândida?

– Não, minha mãe, nem eles, nem meu pai.

– Pois o que eu te peço é que deixes a todos três na ignorância dessa fatal resolução que os afligiria, como me aflige: não deve apressar-se a no­tícia do mal.

O pedido de Leonídia escondia uma esperança.

Frederico respondeu beijando a mão de sua mãe.

Cândida mostrava-se melancólica; o que se explicava pelas saudades da festa; mas parecia tranqüila, e tratava Frederico sem o mais leve indício de ressentimento e com suave afeto.

Souvanel fizera apenas uma visita de indeclinável cortesia à família de Flotêncio da Silva, e não mais voltara à chácara deste.

Frederico animado pelas aparências de precaução e recato de Cândida, embora suspeitasse que Souvanel escrevia à sua irmã adotiva por intermé­dio do pajem e da mucama, a ele vendidos, determinou entrar no desempenho do compromisso que tomara, e sob o pretexto de examinar certas máquinas agrícolas, pediu a seu pai permissão para ir passar uma ou duas semanas na cidade do Rio de Janeiro.

Na véspera da viagem foi despedir-se da sua segunda família. Leonídia disse-lhe sorrindo:

– Tenho a certeza que não deixas aqui, nem vais encontrar na Corte a tua preferida rival de Cândida.

– E onde está Cândida? – perguntou Frederico, fugindo de respon­der a sua mãe.

Leonídia mostrou a filha no jardim.

– Uma flor entre as flores; espinhou-te porque é rosa: deves perdoar-lhe... vai dizer-lhe adeus.

Frederico apressou-se a descer ao jardim para escapar às manifestas sugestões do amor maternal, que tanto nele podia.

Apertando a mão que Cândida, sorrindo meigamente, lhe ofereceu, disse:

– Parto amanhã para a Corte, minha irmã; vou servir ao teu amor, procurando informar-me discreta e solicitamente das condições e dos pre­dicados que podem recomendar o homem que distinguiste: por minha honra prometo dizer-te a verdade do que porventura souber...

– Ah, Frederico!

– Se julgar necessário, escrever-te-ei pelo correio: tantas vezes tenho-te escrito, enviando-te assim minhas cartas de irmão, que não receio que nossos pais suspeitem o motivo...

– Oh!... não ... se for preciso, escreve-me, e se não for preciso, meu irmão, escreve-me ainda e sempre como dantes.

– Confias pois em mim?

– Como em meu pai e em minha mãe.

– Pois bem, Cândida; hás de ver até onde chegará a minha lealdade cruel para qualquer de nós dois, severa contra o teu amor, ou tremenda para o meu sacrifício.

– Tu amas-me ainda, Frederico?

– Que te importa, se sobretudo quero-te feliz?... Despedindo-me de ti por poucos dias, deixo-te dois conselhos, minha irmã.

– Quais? Juro segui-los ambos.

– Não te comprometas; continua a ser prudente, e espera-me: este é o primeiro.

– No primeiro ganhei um elogio: e o outro?

– Resguarda-te da tua mucama; é uma negra perversa... capaz de infamar o teu nome.

– Como?

– Resguarda-te...

Frederico não pôde dizer mais. Florêncio da Silva, Leonídia, e Liberato estavam já bem perto dele e de Cândida, a quem vinham reunir-se no jar­dim.

Na manhã seguinte Frederico partiu para a Corte.