As Vítimas-Algozes/III/XXXIX

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No dia seguinte Cândida não ousou afrontar os olhos da mucama e para escapar ao castigo da sua voz, às torturas da sua companhia, acolheu-se à sombra de sua mãe, a quem não deixou um instante.

Leonídia pensou que a filha procurava interessá-la pelo seu amor, e preparar nela uma protetora de Souvanel, fazendo-se tão branda e amiga, e mais do que assídua, inseparável de seu lado: pobre mãe! Pobre mãe!

A desgraçada filha já estava à mercê de Souvanel.

Cândida temia então, mais que nunca, ver fugir-lhe o amante; mas não era, como nos últimos dias, por ímpetos de amor ainda puro, era pelo abandono em que poderia esquecê-la o sedutor feliz.

Criminosa em sua consciência, a mísera lisonjeava com suave e triste agrado os seus juízes naturais em seus pais, e buscava refúgio em sua mãe, para evitar o seu remorso vivo, que era Lucinda.

Cândida perseguida pela memória algoz, Cândida a seus próprios olhos indigna, não pôde levar até a noite o seu tormento abafado, e sem o socorro das válvulas das lágrimas: tinha o seio ofegante de angústias, e ao cair da tarde trancou-se no seu quarto.

Vendo-se enfim só, a desgraçada moça desatou frenética os cabelos e correu a atirar-se no leito... mas recuou horrorizada e foi cair em uma ca­deira, da qual se levantou agitada para passear com arrebatamento ao lon­go do quarto.

Tendo entre os dentes o lenço dobrado, Cândida chorou desesperadamente amarguíssimo pranto, que fazia lembrar doces, as mais aflitas lágrimas que até então derramara.

Cândida rememorou toda sua vida; lembrou-se dos risos, da angélica pureza da infância, do amor de seus pais, dos extremos de sua querida ama, a virtuosa Adeodata, que tão suave e honesta lhe ensinava sempre somente as noções do dever e santas lições de religião e de virtudes, e por natural contraste viu diante de si, no seu quarto, a seu lado, no posto da ama livre, a mucama escrava, Lucinda!...

E na mucama escrava, na influência da companhia da escrava, da negra condenada à escravidão, desleixada, desnaturada, corrompida na escravidão, nessa peste animada, que invadira o seu aposento, ela encontrou, um por um, todos os princípios maléficos que a tinham levado à perdição.

Fora a escrava que a arrancara das risonhas e serenas ignorâncias da inocência, ensinando-lhe rudemente teorias sensuais da missão da mulher.

Fora a escrava que destruíra com escandalosas explicações a virgindade de seus ouvidos e de seu coração.

Fora a escrava que lhe desmoralizara, aviltara, e estragara o sentimento, levando-a pouco e pouco à prática de namoros multiplicados e vergo­nhosos.

Fora a escrava a subserviente de todos os seus namorados, a declarada inimiga de Frederico, o mais nobre dos mancebos, e enfim a cúmplice da sedução, a traidora que se vendera a Souvanel.

Cândida lembrava Lucinda a lutar pertinaz com ela, para que concedesse conferências secretas no quarto do pajem ao jovem francês.

Cândida via finalmente Souvanel, trazido pela mão da escrava até o seu leito, e via ainda a escrava chegar-se à vela... estender o pescoço... retraí-lo depois... voltar o rosto e com olhos ardentes, com dois braseiros nos olhos contemplar Souvanel e a vítima indefesa... e imediatamente es­tender de novo para a vela o pescoço negro, e, malvada, apagar a luz!...

A escrava! A mucama escrava!...

Cândida lembrava-se com horror de Lucinda, e em seu tormentoso me­ditar e padecer, em sua evidência tarda, serôdia, esbarrava com uma Lu­cinda em cada escrava.

E embebendo sua alma na imagem de Souvanel, a infeliz moça tremia, corava, chorava, argüia o amante de abuso, de crueldade, de violência; mas, impudica, revoltante e – , só materialmente explicável contradição, – não odiava, amava ainda mais Souvanel, e desfazia-se em pranto que era revolta da consciência; porque ela perdoava a Souvanel, e, o que é mais, o que assinala a baixeza, a miséria da humanidade, Cândida abrasa­da de paixão no meio das angústias do remorso, perdia-se em confusão, jurando não sacrificar-se outra vez, e desejando todavia Souvanel!...

O remorso dormitava com o desperto do amor, e então, pensando na negativa que seus pais tinham oposto ao seu casamento com o amado francês, na sua situação de dependência extrema do noivo rejeitado, na necessidade de conservar esperançoso, animado, veemente o amor de quem já podia zombar dela, no concurso indispensável de Lucinda para manter e ativar sua correspondência com o homem que a seduzira e que já era seu senhor, Cândida obrigada à abjeção pela lógica da ignomínia, imaginava desculpas para inocentar a escrava, que poucos momentos an­tes lembrara com ódio, mas de cujos serviços precisava ainda.

E, confessemo-lo, se Cândida não podia desculpar justificadamente a criminosa mucama, pudera aos menos lançar culpas iguais às da escrava sobre o monstro da escravidão; porque se uma era algoz, o outro a armara com o cutelo.

Fora Lucinda que desvairara Cândida e a arrastara à degradação; mas que era, que é Lucinda? Uma escrava, mulher sujeita à condição opressora e fatal, escrava, e portanto mulher condenada à licença impune dos vícios, proscrita da educação moralizadora, criada na depravação dos costu­mes, entregue à inoculação dos vícios: que podia pois Lucinda ensinar, senão a imoralidade e o vício?...

Lucinda não é que tem a maior culpa: ela é o que a fizeram ser, escrava, e conseqüentemente foco de peste; porque não pode haver moralidade, honra, culto do dever na escravidão, que é a negação de tudo isso. Que importa ao escravo o dever, se ele não tem direitos?... A escrava que vive, que tem uma segunda natureza tolerada e adotada nela, pela socie­dade escravagista, no gozo sensual, na depravação dos sentidos, como há de respeitar, aconselhar, e crer o recato, a honestidade, a pureza da don­zela?... A escrava é o que a fazem ser: a sociedade escravagista se envene­na com o veneno que prepara e impõe. Lucinda, pelo menos, não é a úni­ca criminosa: é escrava; procedeu como as escravas procedem, conforme as condições de sua condição: a maior criminosa é a sociedade cega e louca que põe a desmoralização junto da inexperiência, a escrava junto da menina donzela.

Oh! Pensem, meditem os pais, uma hora somente, nos perigos que ameaçam suas pobres filhas, condenadas, sujeitas à influência de muca­mas escravas!!!