As Vítimas-Algozes/III/XXXVIII

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Em suas conferências de família, nesse dia em que Souvanel se abalan­çara a pedir Cândida em casamento, o que mais preocupou a Florêncio da Silva, Leonídia e Liberato não foi a pretensão do jovem francês, foi a evi­dente e prévia inteligência que havia entre este e a donzela.

Souvanel não vinha mais à chácara de Florêncio, Cândida não aparecia como dantes nos saraus e no teatro da cidade: como pois explicar o acordo de ambos, senão por meio de correspondência secreta?...

– Se temos inimigos de portas adentro! – exclamara Liberato.

– E quem são?

– Não se pergunta; são os escravos. Segurança e moralidade com a es­cravidão ninguém compreende.

– Mas eu trato paternalmente os meus escravos – observara Florêncio da Silva.

– Embora; nem é pai, nem eles são filhos; porque vossa mercê é senhor e eles são escravos: entre um e outros há um abismo cheio de ódio: escravos? Quem os educa?... São todos abandonados à perversão dos costumes: julga-se pai o que lhes dá pão, pano, e paciência de sobra; mas a alma e o coração desses desgraçados? Se lhes iluminassem as almas, adeus escravidão!... Nas trevas do espírito os corações escravos não podem abrir-se à virtude que é luz generosa, abrem-se à corrupção que tem embriaguez que olvida, noite que esconde gozos nefandos, consolação envenenada que é contraveneno dos martírios da escravidão. Guardamos em casa a peste, e pergunta-se donde vem o contágio?...

– Tens razão; mas esqueçamos a tese, e vamos ao fato: quem será dos nossos escravos o medianeiro atrevido?

– Lucinda talvez... a mucama...

– Lucinda não sai de casa – dissera Leonídia – , como pois falaria a Souvanel?...

– Não nos previnamos com suspeitas que podem ser injustas: cada um de nós que observe e espreite, e a verdade se descobrirá – concluíra Florêncio da Silva.

E o dia passou...

E a noite que chegara, adiantava-se...

A casa de Florêncio da Silva se fechara; as luzes apagaram-se todas... todas, exceto a do quarto de Cândida, que velava a tremer.

Todo o ruído que assinala a vida cessara, todo, exceto o tiquetaque da pêndula do relógio da sala de jantar, que marcava a marcha do tempo sempre em marcha...

O relógio anunciou três horas da madrugada...

Como um espectro a negra mucama, em camisa, avançou pé por pé pa­ra o leito da senhora, que chorava, e que a encarou tremendo e pergun­tando-lhe com o olhar desvairado o que havia...

Lucinda não falou; porém com eloqüentes gestos indicou que Souva­nel esperava Cândida no quarto do pajem...

Cândida retorceu-se desesperada no leito...

A mucama fez com as mãos sinal de fuga e de morte...

A donzela saltou do leito vestida com simples roupão finíssimo, com os cabelos soltos, com os seios a palpitar entonados sob o véu transparente...

Os brancos lábios da senhora tocaram o ouvido negro da escrava e murmuraram:

– Vamos...

Mas a dois passos Cândida titubeou e seu corpo abandonou-se inerte nos braços da escrava.

Lucinda carregou a senhora que acabava de desmaiar e a depôs no leito: logo em seguida saiu diligente, mas cuidadosa e sutil...

A mucama escrava tinha refletido: o ensejo era oportuno: por onde ela ia, alguém podia vir...

Cinco minutos depois, Lucinda tornou a entrar no quarto, trazendo pela mão Souvanel, a quem mostrou a senhora estendida no leito...

Cândida tornava então a si e, vendo Souvanel, estremeceu toda... teve instintivamente a idéia de levantar-se e fugir; fez um movimento, um es­forço, e achou-se, como paralítica... não ousou gritar... porque gritar era matar o amante... a custo dobrou os braços sobre o peito e pôs as mãos, implorando piedade...

Souvanel aproximou-se do leito virginal...

A escrava perversa apagou a luz.