Cartas de Amor ao cavaleiro de Chamilly/Carta Terceira

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CARTA TERCEIRA


III
 

¿Que será de mim?… ¿e que queres tu que eu faça?…

Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado!

Esperava que me escrevesses de todos os logares por onde passasses; que as tuas cartas seriam mui extensas; que alimentarias a minha paixão com as esperanças de ainda ver-te; que uma inteira confiança na tua fidelidade me daria alguma espécie de repouso; e que ficaria assim em um estado assaz suportável, sem extrema dôr.

Tinha até formado alguns leves projectos de fazer os esforços que me fôssem possíveis para curar-me, no caso de saber com certeza que me tinhas esquecido completamente.

A tua ausência, alguns toques de devoção, o receio natural de arruïnar totalmente a pouca saúde que me resta por cansadas vigílias e tantas inquietações, a escassa aparência da tua volta, a frieza da tua afeição e dos teus últimos adeuses, a tua partida fundada em frívolos pretextos, mil outras razões mais que bôas e demasiado inúteis, pareciam prometer-me um auxílio assaz certo, se me viesse a ser necessário.

Não tendo enfim a combater senão comigo, mal podia desconfiar de tôdas as minhas fraquezas, nem apreender tudo o que hoje sofro…

Oh triste de mim! Quanta compaixão mereço, visto não sermos ambos participantes das penas, mas eu só a desgraçada!…

Êste pensamento mata-me, e morro de susto de que jàmais tenhas sido extremamente sensível a todos os nossos prazeres.

Agora sim, conheço a má fé de todos os teus afectos…

Enganavas-me tôdas as vezes que me dizias ter sumo gôsto de estar só comigo…

As minhas importunações devo sòmente os teus desvêlos e transportes…

De sangue frio formaste a tenção de me abrasar, e consideraste a minha paixão como um troféu, sem que o teu coração jàmais fôsse comovido entranhavelmente…

¿Não deves tu ser bem infeliz, e ter bem pouca delicadeza, para nunca haver sabido colhêr outro fruto dos meus enlevamentos?…

¿E como é possível que com tanto amor eu não tenha podido fazer-te completamente venturoso?…

Lamento, por amor de ti sòmente, as deleitações infinitas que perdeste…

¿Porque fatalidade não quiseste desfrutá-las?…

Ah! se as conhecesses, acharias sem dúvida que são mais sensíveis de que a satisfação de me ter seduzido, e terias experimentado que somos mais felizes, e sentimos qualquer coisa de mais fino mimo em amar ardentemente, do que em ser amados.

Não sei nem o que sou, nem o que faço, nem o que desejo…

Mil tormentos contrários me despedaçam!…

¿Quem poderá imaginar um estado mais deplorável?…

Amo-te como uma perdida, e modero-me ainda assim contigo, até não ousar talvez desejar-te as mesmas tribulações, os mesmos transportes que me agitam…

Matar-me-ia, ou a não fazê-lo, morreria de dôr, se estivesse certa que nunca tinhas repouso, que a tua vida era uma contínua desordem e perturbação, que não cessavas de derramar lágrimas, e que tudo aborrecias…

Eu não me sinto fôrças para os meus males, ¿como poderia suportar a dôr que me causariam os teus, mil vezes mais penetrantes?…

Contudo não posso do mesmo modo resolver-me a desejar que não me tragas no pensamento, e para falar-te sinceramente, sinto com furor ciúmes de tudo quanto possa causar-te alegria, comover o teu coração, e dar-te gôsto em França.

Ignoro porque motivo te escrevo…

Vejo que apenas terás dó de mim, e eu rejeito a tua compaixão, e nada quero dela.

Enfado-me contra mim mesma, quando faço reflexão sôbre tudo o que te sacrifiquei…

Perdi a minha reputação, expus-me aos furores de meus pais e parentes, às severas leis dêste Reino contra as religiosas… e à tua ingratidão, que me parece a maior de tôdas as desgraças…

Ainda assim eu sinto que os meus remosos não são verdadeiros, e que do íntimo de meu coração quisera ter corrido muito maiores perigos por amor de ti, e provo um funesto prazer de ter arriscado por ti vida e honra.

¿Tudo o que me é mais precioso não devia eu entragá-lo à tua disposição?…

¿E não devo eu ter muita satisfação de o ter empregado como fiz?…

Parece-me até não estar contente, nem das minha mágoas, nem do excesso de meu amor, ainda que, a de mim! não possa, mal pecado, lisonjear-me de estar contente de ti…

Vivo, e como desleal, faço tanto por conservar a vida, quanto perdê-la!…

Morro de vergonha… ¿acaso a minha desesperação existe sòmente nas minhas cartas?…

¿Se eu te amasse com aquele extremo que milhares de vezes te disse, não teria eu já de longo tempo cessado de viver?…

Enganei-te… tens tôda a razão de queixar-te de mim… Ah! ¿porque não te queixas?…

Vi-te partir; nenhumas esperanças posso ter de mais ver-te, e ainda respiro!… É uma traição…

Peço-te dela o perdão.

Mas não mo concedas…

Trata-me rigorosamente.

Não julgues os meus sentimentos assaz veementes…

Sê mais difícil de contentar…

Ordena-me nas tuas cartas que morra de amor por ti…

Oh! conjuro-te de me dar êsse auxilio, para poder vencer a fraqueza do meu sexo, e pôr termo às minhas irresoluções, por um golpe de verdadeira desesperação.

Um fim trágico obrigar-te-ia, sem dúvida, a pensar muitas vezes em mim…

A minha memória te seria cara, e quiçá esta morte extraordinária te causaria uma sensível comoção.

¿E a morte não é porventura preferível ao estado a que me abaixaste?…

Adeus!

Muito quisera nunca haver posto os olhos em ti.

Ah! sinto vivamente a falsidade dêste sentimento, e conheço neste mesmo instante em que te escrevo, quanto prefiro e prézo mais ser infeliz amando-te, do que não te haver jàmais visto.

Cedo sem murmurar à minha malfadada sorte, já que tu não quiseste torná-la melhor. Adeus.

Promete-me de conservar uma terna e maviosa saüdade de mim, se eu falecer de dôr; e assim possa ao menos a violência da minha paixão inspirar-te desgôsto e afastar-te de tudo!

Esta consolação me será suficiente, e se é fôrça que te abandone para sempre, desejára muito não deixar-te a outra.

Dize, ¿não seria nímia crueldade a tua, se te servisses da minha desesperação para pareceres mais amável, mostrando que acendeste a maior paixão que houve no mundo?

Adeus outra vez…

Escrevo-te cartas excessivamente longas, o que é uma falta de consideração para ti; peço-te mil perdões, e atrevo-me a esperar que terás alguma indulgência para com uma pobre insensata, que o não era, como tu bem sabes, antes de amar-te.

Adeus.

Parece-me que demasiadas vezes me dilato em falar do estado insuportável em que estou.

Contudo agradeço-te, do íntimo do meu coração, a desesperação que me causas, e aborreço o sossêgo em que vivi antes de conhecer-te…

Adeus.

A minha paixão cresce a cada momento. Ah! quantas cousas tinha ainda para dizer-te!…