Ciganinha/XII

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Já se ia a placida e calida tarde fundindo em noute, quando no ponto aprazado, ocorreu o rendez-vouz que devia ser decisivo, entre Gêgéca e Anselmo de Sá.

Fôra este muitas horas antes, o sol ainda alto no horizonte, esperal-a ardendo em febre e impaciencia, e suppondo-se a cada momento simplesmente ludibriado pela suspirada Ciganinha.

Afinal appareceu ella, como que trazendo comsigo ondas da luz que já ia faltando na terra, em derredor. Parecia descer do céo.

— Enfim! Exclamou o moço, atirando-se arrebatadamente ao seu encontro.

Repelliu-o Gêgéca com brandura.

— Não toque no meu corpo, observou grave e resoluta, venho só para ouvil-o, já que se mostra tão ancioso de conversar commigo. E será esta a ultima vez, desde já o aviso.

— Sim, sim, concordou Anselmo; nada mais quero.

Começou então uma d’essas declarações de amor como tantas no fundo ouvira ella, d’esta feita, porém, n’uma linguagem nova, sonora, arrebatada, que dolorosamente lhe acariciava os ouvidos, a deixava enleada, com a cabeça um tanto vertiginosa.

Presa de sincera paixão, foi Anselmo por vezes eloquente n’aquelles surtos de elevada e platonica poesia, que é o perfido visgo das crueis e irremediaveis exigencias physicas.

—Gêgéca, dizia elle, vejo, presinto que você deve amar-me um bocadinho, mil vezes menos do que eu, mas sempre alguma cousa, e o amor não pensa, não calcula, o amor é todo misericordia, é um sacrificio, dá vida, não mata, não extermina!

E como fogo lhe prendia as mãos frias nas pontas.

— Por certo, balbuciava ella, você não é como os outros que me falaram e sempre me falam em paixão... mas, afinal, e apezar das minhas imprudencias, sou uma rapariga honesta... tenho sabido resguardar a minha honra... que será de mim?

— Não lhe dê isto cuidado... leval-a-ei commigo...

— Sim, replicou a Ciganinha ironica e mais senhora de si, como cousa vergonhosa, não é, ás escondidas? Não chamam por ahi malas essas pobres creaturas que seguem com os viajantes? Ia eu ser como ellas, simples mala! E minha pobre mãe, que não pode mais viver sem mim?

— Ah! verberou com real desespero Anselmo, num explosão de ingenuo egoismo tão commum em quem ama devéras, você não pensa senão em si. Eu não valho nada; nasci para soffrer, para ser achincalhado, pisado aos pés, para sofrer como um miseravel... Quem me tirou o somno, o comer, o beber, quem me causou mal tão fundo e incuravel, é que lhe deve dar remedio... É de justiça, é de equidade! Isto brada aos céos...

Dubio luar clareava então um pouco os espaços, luar, porém, tão, pallido, tão desmaiado!... Se jámais D. Cula pudesse fazer de lua, havia de passear assim, desmaiada, chloro-anemica, pelo firmamento afóra.

De todos os lados tambem, como que immenso desalento na gigantesca natureza, alquebradas e inertes as forças de resistencia numa modorra lethal.

Só a Gêgéca a luctar valente com os arroubos de Anselmo e comsigo mesma.

Quis o mancebo apressar o desfecho e de subito a tomou nos braços.

Ahi, porém, surgira o instincto da revolta no peito da Ciganinha e tal empurrão deu ella, que Anselmo cahiu redondamente no chão a certa distancia.

Ah! não era o forçudo e temido José Bispo, esse bacharel; certamente não!

Rompeu elle em nervoso pranto, deixando-se ficar deitado na relva, com o rosto occulto entre as mãos. E o corpo todo estremecia com a violencia dos soluços.

Invadiu então o coração da moça sentimento tão intenso de compaixão e remorso, que, sem saber bem o que fazia, foi sentar-se junto do misero apaixonado e fez-lhe pousar a cabeça sobre um dos joelhos.

E ficaram os dous immoveis, elle a chorar em silencio, ella a acariciar-lhe os cabellos com muita meiguice, ambos num enlevo de indizivel doçura.

Ah! Ciganinha, Ciganinha, que perigo!

Que te podia salvar em momento tão extremo, quando tu mesma, a escorregar por mysterioso e irresistivel declive, te entregavas ao entontecedor esmorecimento de toda a tua energia, da tua vontade, tão imperiosa, instantes antes, quão vencida agora e conculcada? Pois, senhores, não lhes conto nada; ouçam, porém, o que succedeu.

Já quatro ardente labios bem proximos se iam abotoar, naquella suggestiva solidão, no mais sequioso beijo, quando, com bastante estrepito, um animalsinho correu alli perto, algum guaxinim ou jaguatirica, e foi quanto bastou para que Gêgéca voltasse a si e de um pulo se puzesse de pé.

Quem sabe se não lhe valera a velazinha de cêra, que, dias antes, fôr a levar e accender, na igrejinha com toda a devoção, aos pés da sua protectora, a Senhora D. Rita de Cassia, santa de muitos milagres e bondades?

Em todo o caso, estava desfeito o terrivel feitiço. Aclararam-se as posições.

— Adeus, disse a Ciganinha. Siga o seu caminho, Anselmo, parta quanto antes, amanhã se fôr possivel . É de fundo d’alma que lhe desejo todas as felicidades! Esqueça até que existo n’este mundo.

Estava o moço positivamente apavorado.

— Não, não, dizia elle agarrando-lhe nas mãos e de joelhos, mil vezes, não!

E, no auge do desespero, exclamava.

— Que fazer, santo Deus, que fazer? Você quer a minha morte, quer com certeza!...

Calava-se Gêgéca, como que a meditar.

Afinal:

— Levante-se, ordenou, e ouça-me com algum proposito e socego. Pergunta-me que fazer, não é? Pois lhe respondo: cousa muito simples, muito natural: case-se commigo.

Em qualquer outra circumstancia simples gargalhada teria acolhido semelhante alvitre; mas Anselmo estava tão atarantado e abatido que se contentou com abrir uns olhos muito espantados.

— Eu... eu? balbuciou, casar... com você?

— Por que não?

E vendo mil duvidas nos olhos desvairados do moço:

— Há de, acrescentou com altivez, achar-me digna de si... Não tenha susto...

— Mas... meus paes, você nem imagina, tão cheios de si... bons, de certo; pacificos, mas orgulhosos da sua familia, do seu nome...

— E eu, chaqueou ella ironica mas já ahi jovial, valho pouco? Minha mãe, sim, é uma pobre coitada, mas quem lhe diz que meu pae não era algum rei ou principe entre os ciganos?... Aquella gente é toda de grandes segredos... Sinto Ter jogado no Paranahyba uns papeis de familia...

— Gêgéca, implorou Anselmo, deixe de debicar-me... Responda, que dirão meus paes... vendo-me casar consigo...

— E levarei a mamãe, additou logo a Ciganinha... Não me separo della por nada d’este mundo...

— Então?

— Ora, então? Hei de enfeitiçar seu pae, sua mãe, toda a sua gente; fica por minha conta. Olhe, Anselmo, nunca lhe metterei vergonha... Você me ensinará muita cousa que não sei, e Santa Rita me ajudará.

— Casar, casar, repetia assombrado o outro. E os papeis?

— Não lhe dê cuidado. Mando um proprio chamar o meu padrinho vigario e tudo se arranja num momento. Bem, concluiu! Se você me procurar mais, há de ser para levar-me á igreja. Do contrario não lhe mais para mim. Adeus!

E, correndo para a casa, passou Gêgéca a noite em claro0, sem um momento de socego, resolvida porém de pedra e cal, como se diz, a não dar o braço a torcer.