Contos Populares do Brazil/Manoel da Bengala

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XIX


Manoel da Bengala


(Sergipe)


Uma vez um rei teve um filho que nasceu logo muito grande e robusto. No fim de oito dias já o menino comia um boi inteiro. O rei ficou muito assustado e mandou chamar os conselheiros para lhe dizerem o que se havia de fazer, pois aquelle filho lhe acabava com toda a fortuna. Os conselheiros foram da opinião que o rei mandasse o filho procurar a sua vida. O principe pediu que lhe mandasse fazer uma bengala de ferro muito grossa e pesada, um machado e uma fouce tambem grandes e pesadas, e partiu.

Chegando a casa de um senhor de engenho, pediu serviço, e o dono da casa o aceitou. Foi o moço derrubar uma roça e deitou com tres ou quatro fouçadas quasi todas as mattas do engenho em baixo. O dono ficou muito assustado, e não o quiz mais no seu serviço. Além d'isto, na hora de jantar, o principe não quiz o comer que lhe deram por não chegar nem para o buraco de um dente, e pediu um boi e um alqueire de farinha. O senhor do engenho, pensando que elle não podesse comer tudo, mandou dar-lhe para o experimentar, e ainda mais espantado ficou quando o viu devorar tudo, e o despediu.

Voltou o principe para o palacio de seu pai. Ahi esteve alguns dias, até que o rei mandou de novo reunir os conselheiros, que foram de opinião que o rei mandasse o principe pegar seis leões bravos nas mattas. Isto era para vêr se os leões davam cabo d'elle. O moço pediu um carro e uma junta de bois. Chegando nas mattas dos leões passou lá seis dias. Em cada dia matava um boi do carro e pegava um leão, botava no logar, e o amansava. Depois cortou umas arvores muito grandes e botou no carro e largou-se para traz. Quando o rei o viu foi aquelle zoadão que parecia que queria vir tudo abaixo. Era o barulho das arvores e dos leões que vinham com Manoel da Bengala. Assim se ficou chamando o principe, por causa da bengala de ferro. Afinal o rei ordenou-lhe que ganhasse o mundo e não lhe voltasse mais em casa. O principe partiu.

Chegando adiante viu um homem passando um rio cheio, mas sem se molhar, e disse: «Adeus, Passa-váo.» — «Adeus, Manoel da Bengala.» — «Passa-váo, você quer andar na minha companhia?» — « Quero.» — «Apois então me passe para banda de lá.» Passa-váo o passou e seguiram juntos. Mais adiante encontraram um homem cortando muito cipó e emendando para fazer um laço, e Manoel da Bengala disse: «Adeus, Arranca-serra.» — «Adeus, Manoel da Bengala.» — «Arranca-serra, você quer andar commigo?…» — «Apois não, Manoel da Bengala!» — «Entonce vamos.» E partiram.

Cada dia um dos tres ia buscar comida para todos. Quando foi uma vez, Passa-váo foi buscar mantimento e encontrou no caminho um moleque muito preto, de carapuça de latão, que lhe pediu fogo para o cachimbo. Passa-váo não quiz dar, e o moleque trepou-lhe o cachimbo na cabeça e o derrubou no chão, como morto. D'ahi a muito tempo é que elle veiu a si, voltou e contou aos companheiros o que lhe tinha acontecido. Arranca-serra disse: «Ora, Passa-váo, você é muito mofino; ámanhã quem vai sou eu.» Assim foi. Quando andava por longe, appareceu-lhe aquelle moleque da cabeça de latão, que lhe pediu fogo para o cachimbo. Elle não quiz dar, e travaram lucta; o moleque arrumou-lhe com o cachimbo na cabeça e o deitou por terra. D'ahi a muito tempo é que elle deu accordo de si e voltou para os outros. Manoel da Bengala o debicou muito, chamando-o de mofino, e no dia seguinte quando foi buscar mantimento foi elle. Lá bem longe encontrou o moleque da cabeça de latão, que lhe disse: «Como vai, Manoel da Bengala?» «Vou bem; você como está?» — «Bom; muito obrigado, Manoel da Bengala, você me dá fogo para o meu cachimbo?» — «Não te dou, moleque; sae-te d'aqui.» E metteu-lhe a bengala e o moleque metteu-lhe o cachimbo. Travaram uma briga desesperada. Afinal Manoel da Bengala arrumou-lhe uma cacetada na cabeça, e arrancou-lhe a carupuça de latão. O moleque, então, dizia: «Manoel da Bengala, me dê minha carapuça.» — «Não te dou, moleque.» E assim foram andando, até que Manoel da Bengala lhe disse: «Só te dou a carapuça se me deres as tres princezas que tu tens presas.» Ahi o moleque, que era o cão, respondeu: «Isto não, porque não são minhas.» E foram andando até que o moleque entrou por um buraco a dentro, e Manoel da Bengala enfiou atraz. La dentro foram dar n'um palacio muito rico, onde havia um engenho em que estavam trabalhando muitas pessoas. Era o inferno. E sempre o moleque a pedir a carapuça de latão, e o principe a pedir as princezas. O cão, que conheceu que não podia com a vida d'elle, deu-lhe as moças; mas o principe lhe disse: «Agora só lhe dou a carapuça si me botar lá fora no meu caminho.» O moleque não quiz e elle metteu-lhe a bengala. Afinal consentiu. Mas os companheiros, que tinham ficado da banda de fora do buraco, logo que viram sahir as tres moças que o cão tinha levado para fora, fugiram com ellas, querendo enganar a Manoel da Bengala, que as queria para casar com uma, e dar aos outros a cada um a sua. Quando elle chegou fóra, deu a carapuça de latão ao demonio, e este sumiu-se. Elle procurou as moças, não as encontrou, e ficou desapontado. Os dous companheiros de Manoel da Bengala tinham ido com ellas, que eram prineezas, para as entregar ao rei, seu pai, e dizerem que elles é que as tinham salvado, e por isso deviam se casar com ellas. O rei ficou muito alegre com a chegada das filhas que não via ha muito tempo, mas as moças muito tristes e a chorar, dizendo ao pai que não tinham sido aquelles que as tinham salvado. Manoel da Bengala tinha tres lenços que as moças lhe tinham dado; pegou n'um d'elles e disse: «Avôa e vai cahir no collo de tua dona.» O lenço virou-se n'um papagaio e voou e foi cahir no collo da princeza mais velha e lá virou-se no lenço outra vez. A princeza ficou muito contente e disse: «Eu só me caso com o dono d'este lenço.» Manoel da Bengala pegou no outro lenço e disse: «Avôa e vai cahir no collo de tua dona.» O lenço virou-se n'um papagaio e foi cahir no cóllo da princeza do meio. Ella ficou muito contente e disse: «Eu só me caso com o dono d'este lenço.» Manoel da Bengala então pegou no terceiro lenço e disse: «Avôa e bota-me na casa das tres princezas.» De repente lá se achou. Houve muita alegria; elle se casou com a mais bonita das moças, e os outros dous foram expulsos, depois de muito castigados, e as duas princezas se casaram com outros principes.