Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A bengala de dezeseis quintaes

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47. A BENGALA DE DEZESEIS QUINTAES

Era uma vez um ferreiro, que tratava muito mal a mulher com pancadas, e de uma vez tantas lhe deu, que sem se importar que ella andava occupada de mezes a pôz fóra de casa. A pobre da mulher foi para os montes, e coitadinha, lá se agasalhou n’uma lapa e comia ervinhas do campo. Passado tempo teve um menino, e quando chegou á edade dava-lhe tambem a comer ervas; mas elle tornou-se muito forte, e subia ás arvores mais altas e agarrava coelhos, lebres, raposas e lobos tudo á mão. Vae de uma vez, pelas conversas que tinha tido com a mãe, pediu-lhe para ir por ahi abaixo vêr esses territorios e casarias da cidade, e foi.

Chegante lá, estava um ferreiro a trabalhar á açafra, e elle disse:

— Oh mestre! quero que me faça um bengala de ferro de doze arrobas!

— O freguez sabe o que diz? olhe que doze arrobas não é lá qualquer coisa.

O rapaz conheceu pela cara e modos do ferreiro, que elle era seu pae, mas calou-se comsigo; depois disse:

— Então se doze arrobas ainda é pouco, faça-me a bengala de dezeseis arrobas.

— Oh freguez! olhe cá para mim direito.

— Olho, sim senhor; que eu não estou a mangar; e já que você acha pouco, faça-me a bengala de dezeseis quintaes.

O ferreiro disse que sim, e não ajustou preço; o rapaz foi-se embora e contou tudo á mãe. Chegado o dia em que a obra devia ficar prompta, elle foi á porta do ferreiro e viu muitos homens e uma junta de bois a pucharem a bengala de dezeseis quintaes para a pôrem na rua. O rapaz bota logo a mão á bengala e começa a ensarilhar com ella no ár, como se fosse um junco. O ferreiro e os outros homens com medo de ficarem esborrachados, começaram-se a esconder por todos os cantos; diz elle:

— Oh mestre; quanto custa a bengala?

— Não é nada; não é nada; pode-se ir embora.

O que o ferreiro queria era vel-o pelas costas; disse o rapaz:

— Pois ámanhã cá torno para ajustarmos as contas.

Assim foi; no outro dia trouxe a mãe a casa do ferreiro:

— Oh mestre! então você não conhece esta mulher?

— Não senhor.

— Pois você atreve-se a dizer que a não conhece, tendo-a recebido, dormido com ella e sendo eu seu filho? Pois agora ahi a tem, e veja como a trata.

O ferreiro conheceu a mulher, levou-a para casa, quiz abraçar o filho, e pediu para viverem todos juntos; diz agora o rapaz:

— Eu vou por esse mundo adiante, que não me falta que fazer.

Foi-se embora; passando lá por umas matas, viu um homem a arrancar pinheiros á mão, como se fossem tremoceiros; ficou pasmado da valentia, e disse:

— Oh homensinho! você como se chama?

— Eu chamo-me o Arranca-Pinheiros; mas dizem-me que ha outro homem mais valente do que eu, que é o da Bengala de dezeseis quintaes.

— Quer você vir commigo por esse mundo além?

— Iria, mas só com homem da minha egualha.

Elle então puchou da bengala e ensarilhou-a no ár. O outro ficou pasmado, e foram-se ambos por ahi fóra muito amigos. Andaram, andaram, até que foram dar a um sitio onde estava um homem que infincava as mãos no chão, e com os pés descoroava os montes e punha-os rasos como uma cachada.

Disse o da bengala:

— Oh homem! você como se chama?

— Eu sou o Arrasa-Montanhas; mas olhe que ha um homem mais valente do que eu, chamado o Bengala de dezeseis quintaes, que eu ainda dava alguma cousa para vêl-o.

O rapaz ensarilhou no ár a bengala, e ficaram todos trez conhecidos. Combinaram ir por esse mundo, e do que arranjassem repartirem-no entre si. Foram dar a uma praia muito linda, onde estavam duas raparigas a banharem-se; ora o Bengala de dezeseis quintaes viu que ellas atiravam uma para a outra duas bolas de vidro, que se atravessavam no ár. E emquanto estavam n’este jogo, elle foi-se chegando surrateiro, estendeu a mão e apanhou de uma só vez as duas bolas de vidro. Metteu-as na algibeira, e as duas raparigas desappareceram.

Foram-se os trez amigos andando, e chegaram lá a um escampado, onde estavam umas casarias; entraram. Havia muita mobilia, camas, cosinha, mas não apparecia ninguem. Disse o da Bengala de dezeseis quintaes:

— Fiquemos aqui a descançar. Mas o melhor era irem vocês ambos apanhar alguma caça, emquanto eu vou cosinhar esta que trago aqui.

Os outros assim fizeram. Bengala de dezeseis quintaes amanhou os coelhos e lebres que trazia, pôz tudo ao lume, e emquanto foi buscar uma pedra de sal, sae-lhe debaixo de uma meza, por um alçapão, um moléquinho de bota vermelha, vae á panella, furta-lhe tudo e meija-lhe dentro. Bengala de dezeseis quintaes ainda agarrou n’uma acha para o arranjar, mas o moléquinho safou-se, que foi um alho. Quando os companheiros vieram, elle contou-lhe tudo, mas os outros não quizeram acreditar, dizendo que elle se tinha regalado com a comida. Disse elle:

— Pois fique agora o Arranca-Pinheiros cosinhando esta caca, que nós vamos apanhar mais.

Ficou Arranca-Pinheiros; veiu o moléquinho das botas vermelhas, furtou tudo e meijou-lhe na panella. Elle ainda correu atraz d’elle, mas vistel-o. Vieram os outros, mas só o Arrasa-Montanhas é que não queria acreditar. Ficou elle d’esta vez para fazer o cosinhado; mas como campava de esperto, aconteceu-lhe o mesmo. Disse agora o Bengala de dezeseis quintaes:

— Deixa-te estar, meu moléquinho, que quem te vae agarrar sou eu.

E tiraram a meza que estava em cima do alçapão, e viram um poço muito fundo e escuro lá para dentro. Elle mandou o Arranca-Pinheiros, que fosse buscar troncos de arvores e ramalhoças, que as torcesse e fizesse um calabre para um d’elles descer lá abaixo. Assim fez; quando estava tudo prompto, e o calabre chegava ao fundo do poço, disse o Bengala de dezeseis quintaes:

— Quem vae lá abaixo sou eu.

Desceu, desceu, e chegou ao fundo, emquanto os outros ficaram segurando na corda; lá em baixo era um grande alpendre com muitas portarias. Bateu a uma com a bengala, mas ninguem lhe respondeu; tornou a bater, e disse:

— Se não respondem, metto a parta dentro.

Fallaram de lá:

— Quem é que está ahi?

— É o Bengala de dezeseis quintaes; abra.

Abriram; era uma mulher que fazia de porteira:

— Oh homem, vae-te embora, que aqui mora a bicha de sete cabeças, que te encanta e nunca mais sais d’aqui.

— Deixa estar; com ella é que me eu quero.

Chega a bicha bufando toda assanhada:

— Aqui cheira-me a carne de gente.

Vae o Bengala de dezeseis quintaes, ferra-lhe tamanha estourada de meio a meio, que a deixou logo ali esborrachada. Á primeira gota de sangue que derramou desencantou-se a menina, e elle conheceu que era uma d'aquellas que vira no banho na praia do mar. Para se desenganar perguntou-lhe:

— De quem é esta bola de vidro?

— É minha; e ainda hasde ter na algibeira outra que é de minha irmã que está ali n'aquella outra porta encantada.

— Deixa estar, que eu é que vou livral-a; mas antes de tudo vou-te pôr lá em cima.

Deu signal, e os dois companheiros pucharam a corda. Emquanto elles iam subindo a menina tirou um annel do dedo, e disse:

— Toma lá a minha memoria; emquanto estiver ao pé de ti é que poderei fallar; sem tu estares ficarei muda.

O Bengala de dezeseis quintaes tornou a descer ao poço e chegou á outra porta; bateu, e só depois de muito bater, é que lhe abriram; era outra mulher, que lhe disse:

— Fuja d'aqui, homem, quando não vem o moléquinho que o mata.

— Ai o moléquinho das botas vermelhas! Com esse é que me eu quero.

— Olhe que elle não tarda, que foi buscar de comer; ainda que se lhe bata, nada lhe faz mal; só se fôr com aquella espada preta que está ali pendurada. N'isto chega o moléquinho:

— Aqui cheira-me a carne de gente.

Bengala de dezeseis quintaes tinha-se escondido detraz da porta, e assim que o apanhou a geito deu-lhe tamanha estourada, que o açapou no chão. Mas o moléquinho levantou-se como se nada fosse, e disse:

— Ah, se isso vae assim, então vamos fazer aqui rusga. Pega n'esta espada branca, que eu pego na preta.

O rapaz que já estava avisado pela mulher, disse:

— N'essa é que eu não caio; ou hade ser com a minha bengala, ou senão com a espada preta.

O moléquinho, que não queria os ossos amassados, antes quiz ceder a espada preta; vae o rapaz ao primeiro golpe, corta-lhe uma orelha, e metteu-a na algibeira. Assim que derramou sangue a menina desencantou-se, e elle mostrou-lhe a outra bola de vidro. Então ella contou-lhe que estava com sua irmã encantada, e que eram filhas de um rei, e deu-lhe tambem o annel da sua memoria, para não poder ter falla para outra pessoa senão a elle. Bengala de dezeseis quintaes metteu-se com a princeza no cesto, e deu signal para o içarem. Os companheiros ficaram muito contentes; e vae elle viu que se tinha esquecido da bengala no poço, e disse que esperassem um bocadinho emquanto a ia buscar. Assim que os outros o apanharam a meio do poço largaram cordas e tudo e elle cahiu lá em baixo; safaram-se ambos com as duas princezas. O rapaz viu-se perdido, porque não podia sahir do poço; mas lembra-se da orelha do moléquinho, e ferra-lhe uma dentada. Appareceu-lhe logo o das botas vermelhas:

— O que é que tu queres?

— Quero que me leves d’aqui para fóra.

O moléquinho transformou-se logo n’um bode e subiu pelo poço até meio caminho; depois tornou a cair:

— Só te boto lá em cima, se me deres a minha orelha.

— Pois sim.

Foi n’um prompto. Assim que Bengala de dezeseis quintaes se achou cá fóra, moléquinho a dizer:

— Dá-me a minha orelha.

— Só t’a dou, se me levares para onde foram os meus companheiros.

O moléquinho transformou-se logo n’um begueiro, e foi por ahi fóra dar ao palacio do rei. Havia lá festa, porque o rei estava muito contente por se terem desencantado as filhas, e já se tratava das festas do casamento d’ellas com os dois homens. Mas o rei tinha muita pena das filhas serem mudas. Disse o jumentinho ao da Bengala:

— Da-me agora a minha orelha!

— Só se me levares onde estão as princezas.

O begueiro, subiu pelas escadarias, e foi por corredores dar ao quarto das princezas. Ellas assim que o viram começaram logo a fallar e contaram-lhe tudo. Foram dizer ao rei que estava um homem no quarto das princezas, e que ellas fallavam. Veiu o rei, e a principio queria mandar matar o homem, mas as princezas contaram que elle é que as tinha desencantado, e que só elle é que tinha os anneis da memoria, e por isso só com elle é que podiam fallar.

Disse o jumentinho ao rapaz:

— Dá-me agora a minha orelha.

— Dou-t’a, mas só depois de ter casado com a princeza herdeira do reino.

O rei consentiu no casamento, e aconteceu que a primeira que elle tinha desencantado é que era a princeza herdeira, e por isso a outra não teve de que ter ciumes. Os dous homens que tinham fugido com ellas, tiveram medo dos poderes do Bengala de dezeseis quintaes, e não estavam para flustrias, deram á perna. Torna o moléquinho a apparecer ao rapaz:

— Dá-me agora a minha orelha.

— Só t’a dou, quando arranjares as coisas de geito que eu entre a reinar.

O caso é que o rei deu-lhe uma doença, e foi indo, a ficar chupadinho, que morreu. Bengala de dezeseis quintaes foi acclamado rei, e só depois de subir ao throno é que deu a orelha a seu dono.

(Santa Maria — Famalicão.)


Notas[editar]

47. A bengala de dezenove quintaes. — Acha-se este conto na Foz do Douro, com o titulo O homem da espada de vinte quintaes (Contos populares portuguezes, n.º XXI.) Na Revista Occidental, vol. II, p. 329, vem uma outra redacção, de Ourilhe (Celorico de Basto) a que a narradora deu o titulo de O homem da bengala de cem quintaes, ou da bengala de ferro, não reunido na collecção citada, por não ter differenças essenciaes. Ha uma versão andaluza, colligida por Fernan Caballero, Contos populares, p. 51, ed. Leipzig.) Este conto acha-se colligido por Schiefner, nos seus Awarische Texte, n.º II. (Nas Mem. de l'Academie Imperiale des Sc. de Saint Petersburg, VII serie, t. XIX.) O Conto chama-se Orelhas de Urso e é de uma grande importancia para a determinação da origem de uma grande parte das novellas populares europêas, pelas relações entre os ávaros caucasicos com os ávaros mongolicos. A traducção d'este conto acha-se na Revista Occidental, vol. II, de p. 337 a 343. Ha versões d'este mesmo conto na Russia, como se vê pelas collecções de Erlenwein e de Afanasieff, traduzido para inglez no Russian Folk-Tales by Ralston, p. 73-80; e para francez com o titulo de O monstro Norka, por Brueyre. (Contes populaires de la Russie, p. 77.) Ha elementos episodios no Koschéi o immortal. (Ibidem, p. 105.) Nos Contos populares da Servia, de Vuk Stefanovic, vem este conto com uma fórma deturpada, e uma variante colligida pela Sociedade da joven Bosnia, ambos traduzidos para inglez pela dama Mijatovies (p. 32 e 36, e p. 123.) Na collecção de Hahn, Contos gregos e albanezes, n.º 70 do I vol., e p. 294, do vol. II. Na Italia, apparece nas collecções de Pittré, n.º 80 e 83 das Ott. Fiabe, e p. 208 do vol. II das Fiabe Novelle e Raconti popolari siciliani; e nos Contos sicilianos de Laura Gonzenbach, apparece sob os n.os 58, 59, 61, 63 e 64; nos Contos populares venezianos, de Wiedter e Wolf, n.º 4, e nas Novelline popolari ilaliane, de Domenico Comparetti, n.º 19. As notas de Reinhold Köhler alargam immensamente a área das comparações na tradição europêa; acham-se nas collecções Schiefner, de Gonzenbach, Wiedter, Hahn, Vuk Stefanovic e Bladé, d'onde se aproveitam todos os criticos com leves ampliações; pertencem a este cyclo novellesco, contos magyar, slavonico e polaco, das collecções de Gaal, Vogel e Woyciki; contos allemães das collecções de Grimm,[1], Wolf, Sommer, Colshorn, Curtze e Vernalecken; Mullenhoff, Birlinger, Haltrich; conto bohemio, na collecção de Waldau, lituanico na de Schleicher, tiroleza na de Zingerle e Schneller, dinamarqueza na de Grundtvig, e slava na de Schmaler, e em suisso, de Sutterrneister, finlandez em Bertram, e gaelico em Campbell. O estudo comparado d'este conto portuguez com os elementos tradicionaes europeus colligidos pelo erudito Köhler, acham-se na citada Revista Occidental, Lisboa, 1875, vol. II, p. 239 e 245.

Gubernatis, na sua Mythologia zoologica, t. I, p. 207, traz o resumo de um conto russo colligido por Erlenwein, e no tomo II, p. 197, traz o episodio da descida ao poço e da salvação das princezas filhas do rei de Portugal, colligido d a tradição oral da Toscana. Portugal, nos contos populares europeus, é o paiz das maravilhas, e as laranjas, como pômos dourados das Hesperides são chamadas Portogalotes; uma grande parte dos assumptos novellescos narram-se como tendo acontecido em Portugal. Por ultimo citaremos ainda uma versão catalan, colligida por Maspons y Labros, nos Rondellayres, com o titulo Jean de l'Ours, e a versão franceza colhida recentemente por Emmanuel Cosquin, nos Contes populaires lorrains, com o titulo La canne de cinq cents livres. É evidente a universaliade d'este conto, e com certeza desenvolveu-se pela obliteração do seu sentido mythico primitivo. Gubernatis determina essa interpretação pelo conto IV da collecção de Erlenwein, Narodnija Sharki sabrannija selskimi ueiteliami: «os tres irmãos apparecem sob nomes mythicos interessantes; uma mulher dá á luz tres filhos; um nasce-lhe á noite, e por essa razão lhe chamam Vecernik, ou da noite; o segundo, á meia-noite, e por isso o seu nome é Polunocnik; e o terceiro ao alvorocer, pelo que o chamam Svetazor, ou o ladino.» Segundo a universalidade da tradição este é o mais esperto, e gira com uma clava de ferro de doze puds, e vae com os irmãos libertar trez princezas encantadas, que são a princeza do castello de cobre (Aurora da Tarde), a princeza do castello de prata (a Lua argentea), e a princeza do castello de ouro (a Aurora da manhã) que casa com Svetazor (o Sol.)» Op. cit., p. 209.

Nos Contos populares do Brazil, de Sylvio Romero, ha uma variante, n.º XIX, intitulada Manoel da Bengala.

  1. Na traducção franceza de Fr. Baudry, vem Os seis companheiros (p. 172) e o Gigantinho (p. 274) com analogias.