Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/A princeza que adivinha

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56. A PRINCEZA QUE ADIVINHA

Havia uma princeza que adivinhava tudo, e o rei tinha promettido que se houvesse alguem capaz de lhe apresentar um caso que ella não explicasse, se fosse mulher dava-lhe uma grande tensa, e se fosse homem casaria com ella; mas tambem quando a princeza adivinhava, mandava matar as pessoas que tinham vindo á côrte apresentar-lhe o caso. Já não havia quem quizesse ir á côrte apresentar adivinhas á princeza; vae senão quando uma mulher tinha um filho que passava por tolo, e diz-lhe o filho:

— Minha mãe, eu quero ir á côrte dizer uma adivinha á princeza.

— Não sejas tolo, filho; o que é que tu lhe vás dizer que ella não adivinhe?

O tolo tanto teimou, que se metteu a caminho, e como era longe agarrou de uma espingarda velha, e eil-o se vae por ahi fóra. Andou, andou, e lá no meio do caminho viu estar um coelho n’um fraguêdo e zás, ferra-lhe um tiro. Com tanta felicidade que matou caça; pegou n’ella, e com uma navalhinha esfollou-o, e n’isto conheceu que era uma coelha, que trazia uma barrigada de coelhinhos. Não se importou com isso, e foi mais para diante e viu á beira da capellinha de um ermitão um breviario esquecido, e pegou n’elle, petiscou fogo e assou com as folhas do livro a coelha, comeu e foi andando sempre. Até que chegou á côrte; não o queriam deixar entrar, porque parecia tolo, mas elle tanto teimou dizendo que queria apresentar uma adivinha á princeza, que o deixaram entrar, na certeza de que elle iria a morrer como os outros que tinham vindo campar por espertos. Chegou a hora da audiencia, e veiu a princeza; o toleirão disse-lhe esta adivinha:


— Atirei ao que vi,
Matei o que não vi;
Antre palavras de Deus
Assei e tudo comi.


A princeza ouviu, tornou a ouvir, e pediu tres dias para dar a explicação. O tolo ficou no palacio á espera da resposta, comendo e bebendo, de perna estendida, sem se lembrar que o podiam mandar matar. A princeza por mais voltas que deu ao miolo não atinava com a adivinha, e temendo de ter de casar com o tolo, mandou uma sua aia, muito em segredo, que lhe fosse pedir que dissesse como cousa particular o sentido da adivinhação. Foi a aia, mas o tolo disse que só se ella dormisse aquella noite no quarto com elle; ella não queria, mas como a princeza lhe prometteu muitas riquezas, sempre se sujeitou e foi. O tolo teimava em não dizer, emquanto ella não tirasse a camisa, porque a queria em leitão; depois disse umas cousas que não eram a verdadeira explicação, e quando a aia adormeceu, escondeu-lhe a camisa, de modo que de madrugada, quando ella se foi, não teve tempo de a procurar. A princeza não se contentou com a explicação e mandou outra dama; aconteceu tambem o mesmo. Por fim foi a propria princeza, fiada em que a não conhecia; mas elle logo viu pela marca da camisa quem era, e escondeu-lh’a tambem, mas d’esta vez disse a verdadeira explicação da adivinha. Acabados os tres dias ajuntou-se a côrte, e a princeza veiu e disse:

— A explicação da adivinha do aldeão é: Atirei ao que vi e matei o que não vi, é porque atirou a uma coelha que achou no caminho, a qual estava prenha, morrendo por isso os coelhinhos. Antre palavras de Deus assei e comi, é porque assou tudo nas folhas de um Breviario com que fez uma fogueira.

O rei ficou muito admirado do talento da sua filha, e disse que como elle aldeão tinha perdido, já não podia pretender a mão da princeza, e que se preparasse que ia a morrer. Vae elle, que se fazia mais tolo do que era, diz:

— A princeza ainda não adivinhou tudo, porque ainda tenho a dizer outra adivinhação que, juro que ella não é capaz de dar com o sentido.

A princeza mandou que elle fallasse; e então disse:


Quando no paço fiquei,
Trez pombinhas apanhei,
E trez pennas lhe tirei;
Se fôr preciso as mostrarei.


A princeza ainda se pôz a considerar, mas elle tirou do seio a primeira camisa, e todos viram de que dama era; tirou a segunda, e ia para tirar a ultima camisa, quando a princeza, temendo a vergonha de se vêr delatada diante da côrte toda, virou-se para elle:

— Não mostres, não mostres, porque já vejo que és o homem mais ladino que tem vindo a esta côrte, e caso comtigo.

(S. João de Airão — Minho.)


Notas[editar]

56. A princeza que adivinha. — É vulgar em Hespanha (Carmona e Arahal); acha-se com o titulo Las Trez Adivinanzas, em Demofilo, Colleccion de Enigmas, p. 310. Nos Contos populares portuguezes, n.º XXXVIII, intitula-se As trez lebres, e traz os seguintes estribilhos em verso:

Comi carne sem ser caçada;
Em palavras de Deus assada;
Bebi agua que não foi do céo cahida,
Nem tambem na terra nascida.


Quando n'este palacio entrei
Tres lebres encontrei;
Todas tres esfolei,
E as pelles d'ellas mostrarei.


No Folk Lore andaluz, p. 470, cita-se uma redacção castelhana. Nos Contes populaires lorrains, de Emm. Cosquin, acha-se esta mesma tradição com o titulo La princesse et les trois frères. Nos Contos populares do Brazil, n.º XXXV, ha uma variante com o titulo O matuto João. O sr. Leite de Vasconcellos (Rev. Scientifica, p. 210) cita uma versão do Porto, com o seguinte estribilho:


Sahi de casa
Com Pita e massa;
Massa matou Pita,
Pita matou sete;
De sete escolhi a melhor;
Atirei ao que vi,
Matei o que não vi;
Com palavras santas

Assei e comi.
Bebi agua,
Que não estava no céo nem na terra;
Se bom era o fructo
Melhor era a raiz;
Já vi um burro
Com sessenta burros em cima.


Em outra versão de Vizeu, cita tambem o estribilho:


Atirei ao que vi
Matei o que não vi.


Nas Novelle populari toscane, de G. Pittré (Archivio per lo studio delle tradizioni popolari, p. 64), no conto de Soldatino, vem o estribilho:

Tirai ai chi viddi,
Chiappai chi non viddi.
Mangiai carne creata, e non nata,
Cotta a il fumo di parole.
Striccia ammazzó Paola,
Il morvido consuma il sodo.
Enne e nè,
S’indovina cosa gli é.