Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Constancia de Grizelia

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167. CONSTANCIA DE GRIZELIA

Em os confines de Italia, mais á parte do ponente, região alegre e deleitosa, povoada de villas e logares, habitava um excellente e formosissimo Marquez, que se chamava Valtero, homem mancebo, dotado de grandes forças e rara gentileza. Por diversas vezes indo á caça havia visto Grizelia, que morava não longe da cidade onde o Marquez tinha seus paços, com seu pae, em um logarzinho de poucos e pobres moradores, com algum gado, que com industria de Grizelia eram governados grandemente. Era esta lavradora de bom parecer quanto á disposição e presença corporal, porém fermosa, de animo, nobre criação, raro aviso, era excellente e como era criada a todo o trabalho, não se achava em seu pensamento nenhum modo de deleite, antes um grave e varonil coração publicava em defensão de sua honestidade; era coisa de notar como estimava suas ovelhas e servia seu pae. O Marquez determinou que Grizelia fosse sua mulher; n'este comenos fez apparelhar com grande diligencia vestidos, joias e todo o mais que para tal caso convinha, os quaes vestidos mandava cortar á medida de uma criada de sua casa, semelhante á estatura de Grizelia. Vindo o dia tão desejado em que se haviam de celebrar as bodas, accudiram ao paço muitos cavalleiros e damas ricamente vestidos, e em não saber quem seria a noiva estavam todos suspensos e maravilhados. Mas o Marquez vendo que tudo estava a ponto, tomou comsigo seis privados seus e foi-se direitamente a casa do pae de Grizelia. Tomando o velho pela mão se apartou em secreto com elle, e lhe disse:

— Se assim como sou teu senhor, quererás dar-me tua filha por mulher?

— Senhor, nenhuma coisa devo eu querer, senão o que tiverdes por bem.

— Entremos, porque diante de ti tenho necessidade de fazer certas perguntas a tua filha Grizelia.

Entrados em casa, ficando os seus cavalleiros fóra, começou sua pratica amorosamente:

— Eu e teu pae somos contentes que sejaes minha mulher; creio que não sahirás de nosso contentamento; porém, eu quero saber de ti uma cousa, e é, que quando nosso casamento vier a feito, que será logo, me digas se estás prompta e apparelhada a eu fazer de ti tudo o que me bem parecer, sem por cousa nenhuma mostrares tristeza, nem em tuas palavras contradizeres cousa alguma?

A considerada donzella, cheia de vergonha e tremendo de alegria, lhe disse:

— Senhor, bem sei que este favor é muito maior que meu merecimento; porém se vossa vontade e minha ventura é tal, não digo eu fazer cousa contra vosso parecer, porém nem pensal-a no pensamento; nem do que vós fizerdes contradizer-vos cousa alguma, ainda que por isso haja de receber mil mortes.

Ouvindo o Marquez taes promessas, disse:

— Baste isso, que não se espera menos de vosso bom entendimento.

E tomando-a pela mão, a tirou fóra diante de seus cavalleiros, dizendo-lhes:

— Amigos, esta é, ainda que mal composta, minha mulher e senhora vossa; portanto amae-a e servi-a como é razão.

Entonces os cavalleiros com os chapeus nas mãos se agiolharam beijando-lhe a mão com muita cortezia cada um por si. Ella abraçando um a um os alçou do chão com toda a humildade que podia ser. N'isto mandou o Marquez que um d'elles levasse secretamente a nova Marqueza ao paço e a puzesse no aposento de uma ama sua de quem muito se fiava, pera que fosse despida dos vestidos que trazia, e vestida d'aquelles ricos, que o Marquez pera aquella hora havia feito. E despedido d'elles com a cortezia costumada se entrou em o aposento onde estavam a Grizelia vestindo e compondo pera tal effeito; a qual estava já pósta a ponto, e o Marquez lhe deu um rico anel em sinal de desposada e tomando-a pela mão sahiu com ella onde estavam já aguardando todos os cavalleiros e damas que haviam de vêr a noiva, e onde logo foram desposados por um bispo, e se celebraram as bodas, passando aquelle dia com grandes festas e prazeres.

Mostrou-se despois em pouco tempo na nobre e já feita nova Marqueza tanta graça e prudencia, que não mostrava em cousa alguma ser nacida nem doutrinada na aspereza do monte. Com tão excellente mulher vivia o Marquez em suas terras em muita paz e socego. D'ali a tempos pariu uma filha em extremo fermosa; do qual parto levou o Marquez estranho contentamento, o qual por provar sua constancia ordenou uma cousa estranha de maravilhar e não digna de louvor, que mandou a sua ama, que era mais sagaz e cautelosa, do que elle se fiava: «Que tomasse uma menina, que havia trazido do esprital fallecida d'aquella hora, e estando a Marqueza dormindo de noite na sua cama lhe tomasse sua filha e lhe puzesse aquella morta com os proprios vestidos que a sua tinha.» Feito tudo isto com a maior sagacidade, a Marqueza acordando, e achando ao seu lado a criança morta, cuidando ser sua filha começou a gritar. O Marquez que já estava sobre aviso, acudiu muito apressado, mostrando-se muito espantado do acontecido. Elle esteve recolhido em seu aposento por espaço de alguns dias, em os quaes ordenou a um criado seu mui familiar secretario de suas cousas, levasse sua filha a elrey de Polonia, pera que a criasse em toda sorte de bons e virtuosos costumes e sobretudo a tivesse tão secreta, que ninguem soubesse cuja filha era. D'ali a quatro ou cinco dias, determinou o Marquez de visitar a Marqueza, a qual achou encerrada muy triste, e entrando mandou que todos se sahissem fóra, e elle ficando só com a Marqueza lhe começou a dizer:

— Meus vassallos estão de vós mal contentes e lhe parece cousa aspera ter por senhora uma mulher baixa de rustica geração; e eu como desejo de os ter contentes e em paz, queria que vos tornasseis para casa de vosso pae.

Acabado que a Marqueza ouviu isto, nenhum sinal de turbação mostrou, antes com gentil semblante lhe respondeu:

— Não ha ahi cousa nenhuma que vos agrade, que a mi me não contente; isto é que firmei no meio de meu coração quando vos dei a palavra de ser vossa mulher.

Considerando o Marquez o animo e profundissima humildade de tal mulher, sem conhecer n'ella mudamento nenhum do que d'antes era, atalhou a pratica, dizendo:

— Abaste por agora isto; ponha-se silencio n'este negocio até vêr se meus vassallos me tornam a importunar.

Com esta dissimulação passaram doze annos no cabo dos quaes a Marqueza pariu um filho. Ao fim de dois annos, sendo já o infante desmamado, ordenou o Marquez, por lhe dar sobresalto maior e provar sua paciencia e constancia, que se fosse a Marqueza com elle á caça de monte folgaria em extremo. Ella mui contente e festejada se vestiu mui ricamente, não deixando a seu filho. Chegados que foram ao monte, mandou o Marquez que o jantar (a causa da grande calma que fazia) se fizesse junto de urna fonte sombria e deleitosa. E determinando sahir á caça com seus monteiros, encarregou muito a seu secretario que trabalhasse quanto possivel fosse por furtar á Marqueza o filho que sempre trazia comsigo, e vista a presente o levasse a elrey de Polonia, por que o criasse secretamente com a filha que lhe tinha mandado. O menino, levantando-se de apar da mãe, se alongou algum espaço a brincar com umas pedrinhas que ali achou; n'isto o secretario, que não estava descuidado, vendo que ninguem o podia vêr, apanhou o menino e levou-o onde o Marquez lhe tinha mandado.

Quando a Marqueza despertou, perguntando pelo menino a algumas mulheres e escudeiros que ahi estavam, e não lhe dando razão d'elle, cuidando que alguma féra o houvesse comido ou feito algum damno, os extremos que fazia eram tão grandes que dava lastima. Achegando o Marquez, e dando-lhe parte da perda de seu filho, foi tão grande o pesar que fingiu ter, que não quiz comer, nem beber, senão logo se partiu para a cidade, e a Marqueza tambem. Passados alguns dias, lhe disse:

— Grande desdita foi em haver-vos tomado por mulher, pois por vossa culpa hei perdido dois successores e herdeiros de meu estado; e meus vassallos vendo a baixeza de vossa linhagem e a negligencia que tivestes de guardar meus filhos, sou importunado d'elles que vos mande para casa de vosso pae, e me case com uma donzella, que dizem que é filha do Rei de Polonia. Portanto é necessario que despida de vossos vestidos reaes, conforme a vossa natureza vos vades para casa de vosso pae.

A isto respondeu a nobre Marqueza:

— Sempre eu entendi que entre vossa grandeza e meu pouco merecer não havia proporção nenhuma. Em o demais apparelhada estou a servir a vossa desejada esposa, se fôr necessario.

O Marquez como não cansado de a experimentar em diversas coisas, lhe disse:

— Já que, fermosa Grizelia, vos offereceis para servir minha esposa, eu quero que fiqueis em casa a dardes ordem ao recebimento e banquetes, que se offerecerem.

Ella foi mui contente e ficou em casa feita criada e dispenseira, e n'isto com sua boa prudencia cuidava que tinha alcançado muito. N'este tempo que isto passava, mandou o Marquez a seu secretario, de quem muito se fiava, com cartas escriptas de sua mão, acompanhado de muitos cavalleiros pedindo a el-rei de Polonia lhe mandasse a filha que lhe tinha mandado. Era tão grande a amisade que elrey tinha ao Marquez, que determinou de os acompanhar e assinado certo dia tomou seu caminho, levando comsigo a donzella, que em extremo era fermosa e levava comsigo o infante seu irmão, chegando em poucos dias em presença do Marquez.

A que sabia ser Marqueza, em figura de servidora de casa, chegou a dar os parabens á noiva e fingida desposada, sem se poder fartar de louval-a de fermosa e avisada. Determinados de se assentarem a comer, revirou-se o Marquez para sua Grizelia, meio rindo, em presença de todos, lhe disse:

— Que vos parece, Grizelia, esta minha desposada? não é muito fermosa?

— Não cuido que se ache em todo o mundo outra que mais o seja.

O Marquez vendo a generosidade com que isto dizia, e considerando aquella grande constancia de mulher tantas vezes e tão fortemente tentada da paciencia, não podendo mais dissimular a fez vir assentar a par de si, dizendo:

— Oh minha nobre e amada mulher, não cuido haver homem debaixo do céo, que tantas experiencias de amor de sua mulher haja visto como eu. Vós sois, senhora, minha mulher, nunca outra tive, nem tenho, nem terei. E esta que vós cuidaes que é minha esposa, é vossa filha, a qual fingidamente fiz que a tivesseis por morta; este é o infante vosso filho. Pois juntamente cobraes tudo, perdoae-me os desgostos que vos tenho dado, pois foram para mais fineza de vossa honra.

Ouvindo isto a nobre Marqueza, de prazer perdia o sentido, e com o soberano goso de vêr seus filhos, que tantas vezes tivera por mortos, sahia fóra de seu juizo, e querendo ir-se para elles desfeita toda em lagrimas, não se pôde escusar de os abraçar muitas vezes. Vendo isto as damas e senhoras que ali estavam, todas á porfia com muito gosto e prazer a despiram de seus fatos pobres e lhe vestiram os seus acostumados. Foi para todos um mui grande dia de alegria, e com isto viveram despois marido e mulher largos annos com muita paz.

(Trancoso, Contos e Historias, Parte III, n.º V.)




Notas[editar]

167. Constancia de Griselia. — É notavel a relação que existe entre o texto de Trancoso e a redacção castelhana de Timoneda no seu Patrañuelo, n.º II (ed. Ribadaneyra, p. 131). Ou Timoneda traduziu a sua versão da portugueza de Trancoso, ou ambos os auctores se serviram de uma lição commum. Esta ultima supposição parece inferir-se do folheto italiano sem data La Novella di Gualtieri, anterior aos dois. O conto de Griselides acha-se no Decameron, de Boccacio, X jornada. Du Méril, investigando as fontes tradicionaes do Decameron, cita os livros em que se acha este conto: Philippo Foresti, De plurimis claris scelestisque Mulieribus, p. 145; Bouchet, Annales d'Aquitaine, liv. III, citam-na com realidade historica. A tradição recebeu a fórma poetica no Lais del Freisne, de Marie de France. (Oeuvres, t. I, p. 138.) Chaucer tratou este assumpto no The Clerkes Tale, e um anonymo no Gualterus and Grisalda; acha-se em uma ballada popular The Nut-Brown; representa-se nos theatros populares da Inglaterra; ha um mysterio francez de 1395, e Hans Sachs compoz uma comedia Die gedultig und gehorsam Marggräfin Griselda. (Vid. Du Méril, Histoire de la Poesie Scandinave, p. 359 e 360.) O conto de Griselida acha-se na tradição popular da Russia, na collecção de Afanasieff, liv. 5, n.º 29, do qual Gubern. dá um resumo.