Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Dom Simão

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160. DOM SIMÃO

Deu um principe poderoso uma Commenda grande de muita renda a um fidalgo nobre, que além de a ter ganhada em Africa, segundo costume, elle a merecia por sua virtuosa condição e bons costumes. Pareceu-lhe a ElRey que Dom Simão era caçador e tinha muitos galgos e outros cães, e se indignou tanto contra o fidalgo e determinou destruil-o ou matal-o; e assi com supita menencoria, fez fazer prestes e cavalgou aforrado, e em cinco dias foi ter á Commenda donde o bom Commendador estava, bem fóra de cuidar a menencoria que el Rey trazia contra elle. E tanto que el Rey chegou, foi o Commendador para lhe beijar a mão, mas el Rey lhe mostrou no rosto a má vontade que lhe trazia, e o apartou logo, e disse-lhe:

— Eu tenho informações dos males que fazeis, os quaes determino castigar, e hade ser em todo caso amenhã; salvo se em amanhecendo me responderdes a tres cousas que agora vos quero perguntar, e acertando em todas terei para mim que acertaes no que fazeis, e senão, sois condemnado á morte.

Muito lhe pesou ao Commendador em ouvir isto, e quizera saber as culpas que lhe punham e desculpar-se d'ellas; porém el Rey o não quiz escutar, mas disse-lhe:

— Pela menhã mui cedo vinde-me aqui dizer: Em que logar do mundo é o meio d'elle? e Quanto ha de altura da terra ao ceu? e Que está imaginando o meu coração n'aquelle momento que vós me responderdes? E sem estas repostas e certas, não pareçais ante mim, nem me faleis.

E sem o querer ouvir se recolheu a uma camara a cear e dormir, e o Commendador ficou agastado imaginando no caso sem saber porque estava el Rey menencorio d'elle, nem entendia o que havia de responder a suas perguntas, e quando lhe representava a imaginação que se fosse, em tal caso tinha mór pena. E com isto se saiu a passear pola porta d'aquella sua casa, em a qual estava por hortelão um virtuoso homem, que na edade, filosomia do rosto e fala parecia muito ao Commendador, e differençava no trage sómente, que algumas vezes querendo por passatempo fazer festa, se vistia o hortelão roupas do Senhor, levemente se enganavam os creados da casa. E andando assi passeando foi vista sua tristeza pelo hortelão, que era virtuoso e de boa criação, e foi-se ao senhor, ao qual affincadamente pediu por mercê que lhe desse conta de sua paixão, que poderia ser que por seu meio lhe daria algum remedio. O senhor que sabia, que este hortelão era homem de muita habilidade e saber, lhe contou o caso todo como passava com el Rey. O hortelão que era muito sisudo:

— Senhor, tudo se remediará com uma cousa; o que he necessario fazer para remedio da affronta em que estamos, é que dispaes essas roupas e vistaes estas minhas, e eu fingirei ser vós e irei ter com el Rey, que já tenho cuidado tudo o que heide dizer e fazer para livrar a vossa vida e a minha da affronta presente.

E isto foi feito com tanto segredo e resguardo, que ninguem na casa o soube nem suspeitou. E o fingido Commendador começou passear á porta da camara donde el Rey dormia, e tanto que sentira estava vestido, lhe mandou recado, estava ali para lhe dar a reposta do que sua alteza perguntara hontem. El Rey folgou d'isso, e sahiu para fóra a hum corredor que ali se fazia, que ia ter sobre a horta, e postos ali ambos disse o hortelão fingindo ser o Commendador:

— Hontem perguntou vossa alteza tres perguntas a que respondendo digo: que quanto á primeira, que é — D'onde está o meyo do mundo? lhe affirrno que está ali. (E lançando mão de um arremessão de murtos que n'aquelle corredor estavam o pregou na horta fazendo com elle fermoso tiro.) E para provar isto digo, que o mundo é redondo, e ninguem diz o contrario, e sendo tal como é, em qualquer parte é o meio d'elle, como se pode ver em uma bola redonda, a qual donde lhe puzerem o dedo é o meio d'ella. Está vossa alteza n'isto satisfeito?

El Rey disse:

— Dizei das outras!

E elle respondeu:

A segunda pergunta é — Quanto ha d'aqui da terra ao céo? Saiba vossa alteza que isto tem medida egual e é uma vista de olhos. Abaixe os olhos ao chão, e logo alevante-os ao céo, que com uma só medida chegam, que é como digo, uma vista de olhos.

El Rey lhe disse:

— Bem respondestes; livre estaes das duas; porém a terceira, tenho para mi, que nunca acertareis.

E elle lhe disse:

— A essa, melhor; porque a terceira é que heide dizer, que é o que vossa alteza cuida no seu coração a esta hora de agora? E porque isto não tem outro juiz senão elle mesmo, eu lhe peço que o queira ser justo como o é em tudo o mais, e respondendo, digo: que está vossa alteza com todo seu coração cuidando que está falando com Dom Simão o Commendador, e fala com seu hortelão, que eu não sou elle. E se o quer vêr vestido com minhas roupas, está dando esmola aos pobres que mantém cada dia n'esta commenda.

El Rey vendo a habilidade d'este homem, e que em tudo dissera bem, quiz saber d'elle com juramento a vida do Commendador e seu exercicio; folgou muito de saber e despedindo-se do Commendador lhe mandou dar das rendas da coroa dois mil cruzados cada anno. E ao hortelão dava el Rey carregas honrosos na côrte, porque andasse n'ella, o que elle não acceitou por servir a seu senhor, que lh'o agradeceu e pagou, tratando-o d'ali por diante como a irmão carnal.

(Trancoso, Contos e Historias, P. I, conto XVII.)




Notas[editar]

160. Dom Simão. — Vid. a versão popular com a nota respectiva ao n.º 71.