Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Exemplo dos trez amigos

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131. EXEMPLO DOS TREZ AMIGOS

E desto põoe a Escriptura hum exemplo hu conta de hum homem que tiinha trez amigos, hum amava mais que sy, e outro tãto como sy, e ó outro menos que sy. E este homem foy chamado a juizo perante el rrey. E ell temendosse de morte, chegou ao primeiro amigo que amava mais que sy e diselhe que se fosse com ell ante el rrey. E ell disse que nom ousava de hir ante ell rrey, mas pois, se ell temia de morte, que lhe baratarya cinquo varas de pano que levasse ante os olhos. E des y chegou ao segundo amigo que amava tanto como sy e disse lhe que lhe acorresse e que lhe fosse boo, que nom avya em ell se nom morte. E ell diselhe que pois hy al nõ avya, que irya com ell ataa porta. E des y tornousse ao terceiro de que avia vergonça por que o amava tam pouco e disselhe que lhe accorresse, que nom avia em el vida. E ell estbrçouo e disselhe que nom ouvesse medo: que ell yria com ell ante ell rrey e rrogarya por ell que ouvesse dell mercee. E por esso diz o sabedor: «O boo amigo nõ fallece aa coyta.»

E este homem sinyfica cada hum daquelles que vivem em este mundo. E estes tres amigos, hum delles he a rryqueza que o homem ama mais que sy, aventurando a alma e o corpo a grandes perigos pollas ajuntar, e quãdo vem a hora da morte, leyxaas com grande dolor, e vaasse dellas desejoso que non leva dellas senõ hum pouco de pano em que o envolvem. E por esto diz o sabedor: «Oo mundo, quem te ama, non te conhece.» O segundo amigo he a molher e os filhos que o homem ama tãto como sy, e quando vem a hora da morte dõoesse delle, mas polla falha que lhe fara e por a pena que el avera por quanto a ca trabalhou pollos manter, des y vãa com ell ataa cova, e non curam del mais. E por esso diz Job: «Os vermens sõ aly os seus irmãoos.» E o terceiro amigo he misericordia que o homem ama muy pouco em quanto vive, en pero aa hora da morte, aparece com elle aquelle bem que faz ante Deus pollo esforçar e pollo tirar do inferno e por lhe gançar coroa de vida.

(Ms. da Livraria de Alcobaça n.º 266, fl. 147 e 148. Do seculo XIV. Na Bibl. publica de Lisboa. Vid J. Cornu, Vieux Textes portugais, p. 28.)




Notas[editar]

131. Exemplo dos tres amigos. — Acha-se no Conde de Lucanor, de D. João Manoel, cap. XXXVII, fl. 104, porém mais desenvolvido. Nas Gesta Romanorum (traducção franceza, Violier, p. 297) traz o titulo De la vraye probation d'amytié. Citam-se nas notas muitas fontes tradicionaes, entre outras o Dialogus creaturarum, cap. 56; a Disciplina clericalis, de Pedro Alfonso, cap. 2.º; e Summa Predicantium, de Bromyard, vb. Amicitia; ha uma traducção arabe de Cardone, Melanges de litterature orientale, t. I, p. 78; Apologos de Stainhoewel, fl. 88; Hans Sachs fez sobre este assumpto a comedia Der halb Freund; Granuci a novella L'Eremita; acha-se tambem na parabola dos trez amigos, da Historia de Barlaam e Josaphat.