Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/O que Deus faz é pelo melhor

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163. O QUE DEUS FAZ É PELO MELHOR

Havia um Medico, bom homem, em côrte de um poderoso rei, sem refolho de malicia, que visitando sua alteza, ainda que o achasse affligido com qualquer trabalho ou dôr, não mostrava entristecer-se, mas, applicados os remedios que entendia lhe eram necessarios, consolava elrey dizendo: que se não agastasse, que soffresse seu trabalho com paciencia, porque tudo o que Deus faz é pelo melhor.

Aconteceu que morreu o principe herdeiro do reino, pelo que elrey esteve encerrado e muito triste; e querendo este medico visital-o e consolal-o, como todos faziam, o fez com as palavras de seu costume, dizendo-lhe:

— Senhor, não vos agasteis tanto, que seja occasião de perda de vossa pessoa; tudo que Deus faz é pelo melhor.

Elrei não teve paciencia a este dito em tal tempo, e disse:

— Que peor me podia ser a mim ácerca do principe, que, morrer-me elle! Prometto de me vingar d'este simples e vêr se lhe será por melhor a morte que lhe mandarei dar, se deixal-o viver.

E chamou dois homens, que eram para isso, e disse-lhes:

— Ide apoz foam, que agora vae d'aqui, e dizei-lhe que lhe quereis dar um recado meu, e como chegar a ouvil-o matae-o que eu o mando; não temaes a justiça.

Os quaes foram a casa do medico e acharam a porta da escada fechada, porque, como todos traziam dó pelo princepe, elle tambem quando chegou a sua casa vinha muito affrontado, e para comer despiu-se por desabafar, ficando em calças e gibão, e por não ser achado assi se alguem o buscasse, que lhe pareceu que estava deshonesto, mandou cerrar a porta da rua, e os que o vinham matar disseram que traziam recado de elrey, e o medico alvoroçado com isto lançou sobre si o capuz de dó, e quiz ir adiante dos moços a abrir-lhe elle a porta, e com a pressa ao decer empeçou no capuz e de tal maneira se atravessou na porta que quebrou uma perna pela coxa, de que dava grandissimos gritos. Accudiram os servidores de casa; tirando-o d'ali o lançaram na cama, que os brados que dava era lastimosa coisa de ouvir. Foi curado por donas de sua casa, como elle mandou, e respondido aos homens que estavam á porta que se fossem e dissessem a sua alteza o que acontecera; e elles o fizeram assi. E o medico esteve mais de seis mezes em uma cama, que cuidaram que morresse d'aquillo; porém sarou, e despois que se ergueu, coxeando da perna foi beijar as mãos a elrey, e elrey vendo-lhe o defeito que tinha e o trabalho passado, o quiz consolar com palavras meigas; mas o medico pelo costume que tinha não acceitou consolação:

— Não me pesa d'isso, porque o que Deus faz é pelo melhor.

Ouvido por elrey e visto como em cousa propria, teve-o d'ali por diante por bom homem, e perdeu o rancor que contra elle tinha; e visto na verdade ser por melhor o quebrar-lhe a perna, que se a não quebrára morrera, como elle mandava, lhe fez mercê para seu gasto, e acceitou seu conselho.

(Trancoso, Contos e Historias, Parte II, III.)




Notas[editar]

163. O que Deus faz é pelo melhor. — Acha-se no Conde de Lucanor, de D. João Manuel, n.º XVII (ed. 1642, fl. 81). Indubitavelmente esta redacção do seculo XIV tem uma fonte arabe. Sob o n.º 136 deixámos outra redacção portugueza do ms. do seculo XIV, Orto do Sposo.