Contos Tradicionaes do Povo Portuguez/Advertencia Preliminar

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No plano do nosso vasto inquerito das tradições portuguezas, que temos realisado archivando-as em collecções impressas sob o titulo de Cancioneiro e Romanceiro geral portuguez (1867), entrava como parte integrante um outro corpo contendo o Novellario e Adagiario nacional. Nos Estudos da Edade Media (1870), iniciámos pois esta ordem de investigações, com os contos das Trez Cidras do Amor e Cacheirinha, embora com o defeito dos arrebiques de phrase romantica; continuámos trabalhando, e já em 1871, nas Epopêas mosarabes (pag. 96) promettemos o livro das Lendas, Tradições e Contos portuguezes do seculo XII a XIX. Em um artigo sobre a litteratura dos contos populares em Portugal, publicado em 1877 na Rivista de Letteratura Popolare, de Roma, e na Evolução, de Coimbra (n.os 10, 11 e 12), tornámos a alludir á nossa collecção: «Este bréve estudo servirá de introducção a uma serie de contos que temos colligido das ilhas dos Açores, nas provincias da Extremadura e do Minho, e que publicaremos mais tarde.» Fixamos estes dados para deixar bem patente que nos não atravessamos no caminho de outros collectores, e que obedecemos a um plano fundamental que, uma vez terminado, constituirá a Bibliotheca das Tradições portuguezas, base organica sobre que fomos creando a Historia da Litteratura portugueza (1871 a 1881). Por estes estudos da tradição popular preparámo-nos para a comprehensão do genio nacional e para a posse de uma disciplina de critica. A mutua relação entre as concepções anonymas e a obra individual existiu vagamente entrevista no nosso espirito, antes de chegarmos á comprehensão do seu alto valor scientifico. Todo o nosso progresso litterario deriva d’esta comprehensão.

A demora da publicação dos Contos tradicionaes do povo portuguez fez-se sentir como uma lacuna na ampla investigação a que pertenciam o Cancioneiro e Romanceiro. (Carta do sr. Sylvio Roméro.) Obedecemos ás condições da nossa livraria, e em parte á difficuldade de organisação dos nossos materiaes accumulados, de Contos, Casos, Historias, Exemplos, Facecias, Lendas, Patranhas, Ditos e Fabulas. Nas canções e romances existe a fórma metrica e assonantada, que coadjuva a memoria do recitador e dispensa do trabalho de redacção ao collector; porém, nos Contos e Casos a área é extensissima, a fórma é na prosa fallada, espontanea, pittoresca, descriptiva e dialogada, cujos effeitos não se podem reproduzir, nem se devem imitar. Para conservar-lhes o caracter de documento humano, como diria Zola, é preciso vêr n’estas narrativas mais do que um texto para estudo de dialectologia popular, e fugir dos rotoques artisticos; esse termo medio só se poderá achar visando a fixar o estado dos themas tradicionaes. Diante de uma tal difficuldade é que fomos adiando de anno para anno a nossa publicação. Lucrámos com a demora, tomando conhecimento da importancia scientifica que adquiriu na Europa a Novellistica popular, cujos problemas têm sido tratados com a maior lucidez por Grimm, Köhler, Afanasieff, Liebrecht, Benfey, Comparetti, Gubernatis, Pittré, Ralston, Gaston Paris, Cosquin, Estanislau Prato e outros. Resultou da demora o ampliarmos a collecção a ponto de reconhecermos a necessidade de uma classificação deduzida da propria complexidade das ficções.

Para alargarmos a colheita dos contos oraes por todas as provincias, servimo-nos da influencia pessoal de bons amigos, entre os quaes citaremos Reis Damaso, para a Novellistica do Algarve, Dr. Ernesto do Canto e o fallecido Dr. João Teixeira Soares para as ilhas dos Açores; em casa achámos bastantes tradições da antiga divisão provincial de Entre Douro e Minho, e do contacto com os narradores populares colhêmos directamente versões importantes, por onde vimos que era absurdo, senão impossivel, pretender sthenographar um ditado cheio de vacillações e sem nexo que prejudicam a comprehensão dos themas tradicionaes que se vão obliterando. Sobre o estado da tradição nos Açores, escrevia-nos o Dr. Teixeira Soares (Carta de 25 de novembro de 1875): «Aconteceu o outro dia passar aqui uma noite a Maria Ignacia. Chamei-a e á minha criada para junto d’esta meza de trabalho para as interrogar sobre contos populares a que o povo chama Casos. Desculparam-se da falta de memoria juvenil para entrarem francamente n’este campo; comtudo disseram bastante para me deixarem estupefacto. Que peripecias! que maravilhoso! que poesia! Affirmaram unanimemente que seria impossivel ao investigador mais diligente formar uma collecção completa de todos os Casos sabidos do povo: — Todos escriptos enchiam esta casa! — disse a Maria Ignacia. A lista junta mostra aquelles de que se recordaram e a que se referiram. Por ella verá o meu amigo a inexgotavel mina de Casos que aqui o espera:

«Do gado Gajão — Da Garoupinha — Dom José pequeno — Maria do paosinho — Maria Subtil — O rei que achava a quinta despedaçada — Canarinho verde — Rainha do verde — Os trez homens que queriam comer sem gastar — D. Philippe — A Duqueza — Rei Dom João — Rei d'Hostia — Filho da burra — A arvore que falla e o passaro que canta — O padre das mãos bonitas — A princeza que rompia sete pares de calçado de noite — A Branca Flôr — O filho do ladrão — O afilhado de S. João — O forte no meio do mez — O preto fingido — O monte de ouro — Sam Pedro — A vacca e o lobo — O parvo — O celleiro.» [1]

Os contos remettidos pelo sr. Dr. Ernesto do Canto, foram passados á escripta por uma criança, e traziam na redacção toda a ingenuidade da dicção popular. Cortadas as repetições usuaes, explicadas pela conhecida locução — Quem conta um conto accrescenta um ponto — fixámos uma redacção pura, sem a incongruencia do improvisador momentaneo, nem o artificio do litterato. Parece-nos este o verdadeiro meio de obter a fórma definitiva, simultaneamente ethnica e artistica do conto: fazel-os redigir por crianças, verdadeiro ponto de transição entre a alma popular e a intelligencia culta. Os contos passados á escripta por meninas adultas vêm eivados de divagações romanticas, taes como explicações dos actos, nomes de personagens e considerações religiosas. Assim encontrámos preciosos contos do Algarve, muitos dos quaes tivemos de regeitar da nossa collecção. O nosso excellente amigo Reis Damaso tambem nos descreve em uma carta o processo da investigação novellistica no Algarve, d’onde é natural: «Esqueceu-me tambem marcar-lhes a proveniencia, porque não obstante as tradições que entreguei ao meu bom amigo e mestre serem escriptas por trez senhoras, ellas não são todas da mesma terra. Acabo de receber uma carta do Algarve, em que se me diz que tem havido grandes difficuldades para se obterem os contos, porque as velhas não os querem narrar nem á mão de Deus-Padre. É preciso gastar dinheiro e tempo; paciencia, sobretudo, é que é muito precisa. Só o amor que tenho por estas coisas me força a fazer despezas extraordinarias, como uma correspondencia aturada para cá e para lá, quasi todos os dias, devendo tambem satisfazer a algumas exigencias de amigos. Um me diz, por exemplo, que teve de ir d’um para outro ponto distante, gastando na diligencia uns tantos réis, só para me obsequiar, e que uma velhinha de cem annos recebeu tambem uns vintensitos pelo trabalho de contar

Na exploração que fizemos na provincia do Minho soubemos da existencia de um patranheiro de fama, por alcunha o Cuco, quasi narrador de profissão; ouvimos-lhe muitos contos que passámos á escripta, mas a sua dicção era sobretudo notavel pelas construcções linguisticas, fórmas dialectaes, locuções de giria, com uma prolixidade de repetidos parallelismos e com uma incongruencia verdadeiramente infantil. Temos aqui representados os trez mais puros vehiculos das tradições populares, as crianças, como na ilha de Sam Miguel, as mulheres e velhas, como em Sam Jorge e no Algarve, e os homens do povo, como nos contos do Minho. O estylo prolixo dos contos foi conhecido por Soropita no seculo XVI, e Francisco Rodrigues Lobo imitou-o habilmente em um conto da sua Côrte na aldeia;[2] é este o vicio que amesquinha o alto valor tradicional dos Contos e Historias de proveito e exemplo, de Gonçalo Fernandes Trancoso, que pela primeira vez vulgarisamos, destacando-os dos exagerados preambulos e divagações do nosso quinhentista. Para completar a tradição portugueza nas suas ramificações coloniaes, poderiamos incorporar na nossa collecção alguns contos brazileiros publicados pelo sr. Sylvio Romero, [3] e fórmas metrificadas, colligidas na ilha da Madeira pelo sr. Dr. Alvaro Rodrigo de Azevedo no Romanceiro d’aquelle archipelago. [4] As fórmas metrificadas do conto são de uma extraordinaria importancia; em muitas versões ainda se conservam fragmentos em verso, sobretudo nas partes em que se reclamava mais attenção, e d’onde parece inferir-se que a redacção mais genuina e primitiva fôra em verso. Só na tradição da ilha da Madeira é que se tem encontrado com frequencia contos completos em verso, talvez de elaboração secundaria da tradição popular pela facilidade espontanea da formação da redondilha assonantada. Da ilha de S. Miguel tambem recebemos o Caso do tio Jorge, que é um fabliau da edade media, em fórma metrificada.

Na linguagem popular existem muitas designações para estas narrativas novellescas, como: Historias, Casos, Contos, Exemplos, Lendas, Patranhas, Ditos, Fabulas, synthetisando-se todas na locução de Contos da Carochinha, da mesma fórma que em França ha a expressão generica de Contes de la mère Oie e Contes du Vieux Loup. Embora o povo confunda essas variadas designações, existem entre ellas differenças conforme a narrativa é maravilhosa, anedoctica ou moral; em todos os povos europeus destacam-se estas trez cathegorias, como na Allemanha o MARCHEN, a que correspondem o Conto, Cuento, Conti ou Racconti das nações romanicas, e os Tales da Inglaterra; depois o SAGEN, ou a nossa Lenda, Historia, Storie, e com intuito moral o Exemplo, Exempi, Consejas; por ultimo o SCHWANK, a que correspondem as nossas Facecias, Patranhas, Ditos, Chistes e Contrafavole. Uma grande parte d’estas designações novellescas tomou sentidos especiaes; as Lendas tornaram-se agiologicas, os Exemplos converteram-se em sermões parabolicos, as Fabulas e Novellas tornaram-se exclusivamente litterarias, os Ditos entraram na exploração das encyclopedianas, vindo por ultimo as narrativas tradicionaes a serem designadas por uma expressão geral mas caracteristica.

Sobre esses trez typos Novellescos classificamos os complicados elementos da nossa collecção, separando os contos de evidente caracter mythico para um lado, as facecias para outro, e destacando os Exemplos de thema tradicional e fórma litteraria em que houve um manifesto intuito moral. A importancia d’estes elementos da tradição popular resulta do seu estudo comparativo, por onde se vê que a humanidade elaborou em todos os pontos do globo, entre differentes raças e diversos gráos de civilisação, um certo numero de themas phantasistas com que exprimiu as suas concepções dos phenomenos cosmicos e moraes. É incalculavel a somma de materiaes bibliographicos que existe hoje em todas as litteraturas para este processo comparativo.

A erudição sobre a Novellistica comparada está feita e ao alcance de todos; as notas opulentissimas de Reinhold Köhler, ás collecções das Novellas sicilianas de Laura Gonzemback, ás de Widter e Wolf, ás de Bladé e ás de Stephanovic, prestam-se a pôr em caminho todos os que investigarem contos que tenham paradigmas nas referidas collecções; para o elemento oriental temos as notas ao Pantchatantra de Benfey; a traducção de algumas Novellas de Straparola, por Schmidt, acompanhada por notas, bem como as notas de Grimm e as comparações com os contos russos por Gubernatis, não deixam ter vaidades sobre este indispensavel apparato critico. Ha monographias especiaes, como a de Gaston Paris sobre o Petit Poucet, de Comparetti sobre o Sindabad, de Max Müller sobre a Bilha de Leite e Baarlam e Josaphat; sobre Os dois irmãos, por Lenormant; a das Trez cidras do amor, por Stanislau Prato, bem como de Liebrecht sobre o mytho de Psyche. Hoje o difficil é não nos aproveitarmos do trabalho dos outros.

Os contos tradicionaes são immensamente sympathicos ás crianças, e já Platão os considerava como um excellente meio de educação. No seu tratado da Republica escrevia: «Tu não sabes que os primeiros discursos que se dizem ás crianças são fabulas!... Consentiremos que ellas ouçam toda a casta de fabula forjada pelo primeiro que se aproxima? Recommendaremos ás amas e ás mães para só contarem aquellas que forem escolhidas e servir-se d’ellas para lhes formar as almas com mais cuidado do que o que empregam em tratar-lhes dos corpos.» [5] Este emprego foi sempre seguido nas escólas greco-romanas, como se vê pela transmissão das fabulas esopicas, adaptaram-no os prégadores da edade media nos sermões com Exemplos, e ainda Mme De Beaumont o generalisou no fim do seculo XVIII. O intuito pedagogico desnaturou o conto com o exclusivo fim moral; perdeu-se a intuição da belleza tradicional, da singeleza popular, e a poesia espontanea do passado achou-se substituída pela invenção pedante dos mestres. Só depois da renovação da Pedagogia como sciencia applicada da Psychologia , é que os contos tradicionaes e os jogos infantis foram considerados como elementos de educação, aproveitando antes de tudo as primeiras curiosidades de espirito e a coordenação dos movimentos. Visámos tambem a este fim, velando a nudez de algumas narrativas, ou deixando fóra da nossa collecção contos cujas situações perturbariam a ingenuidade infantil. Para pôr a mão sobre este problema pedagogico é preciso uma grande pureza de alma, sem os rancores das mediocridades auctoritarias, que pensam mais em impôr-se do que em ser uteis. Se a importancia dos contos tradicionaes é evidente para a educação das crianças, é extraordinario o seu alcance como documento de psychologia popular. É no conto que se conservam os vestigios das concepções da intelligencia primitiva do homem emocional, como diria Spencer, ácerca dos phenomenos da natureza, personificados n’essa fórma tão complexa, tão variavel e tão pittoresca do Mytho, esse fundo de subjectivismo d’onde sahiram as religiões, as supertições, as epopêas, os contos, os proverbios, os enigmas e as fórmas symbolicas da arte e do direito. Pelo estudo comparativo dos contos, simultaneos e communs ás raças amarellas, kuschito-semitas e áricas, desde as tribus selvagens ás civilisações europêas, é que se descobre a importancia d’este documento ethnico, fazendo da Novellistica um importante capitulo da Psychologia collectiva, como a conceberam Herbart e Waitz.

Referências[editar]

  1. Muitos d’estes contos apparecem na tradição continental, d’onde foram colligidos para os Contos populares portuguezes, Lisboa, 1879; taes são: José pequeno (n.o 21), Maria Subtil (n.o 42), Duqueza (n.o 60), O filho da burra (n.o 22), Branca Flôr (n.o 14), O afilhado de S. João (n.o 19), Sam Pedro (n.o 28). Além d’estes, não incorporamos outros, posteriormente publicados na citada collecção de 1879, como: A cobra que ia dar destroço á cidade (n.o 49), O passo franco gallante (n.o 27), Os trez irmãos que iam vender fructa á cidade (n.o 45), Carvoeiro que vende as trez filhas (n.o 16), Pedreiro que foi pedir obra ao rei (n.o 24), Maria das Silvinhas (n.o 58).
  2. É extremamente curioso o Dialogo X: Da maneira de contar historias na conversação.
  3. Na collecção dos Contos populares do Brazil acham-se os seguintes com paradigmas no nosso presente trabalho: Os trez coroados, Rei Andrada, O passaro preto, Dona Pinta, A moura torta, Maria Boalheira, A Madrasta, João Gurumete, Manoel da Bengala, Cova da Linda-Flôr, João e mais Maria, A Formiga e a Neve, O Matuto João, A mulher dengosa. Este facto confirma as palavras de Barbosa Rodrigues sobre os contos brazileiros: «alguns contos tenho colligido, postoque tenham a singeleza infantil e mesmo uma poesia natural, não constituem lendas; são simples historias quasi todas eivadas de superstição e seladas com o cunho europeu, e raras vezes mesmo africano.» (Revista brazileira, t. X, p. 24.)
  4. Os contos em verso da tradição madeirense são: A mulher do almocreve (Rom., p. 321), As trez cidras do amor (Rom., p. 340), A gata borralheira (ib., p. 364), Os encantos da grande fada Maria (ib., p. 391), O macaco (ib., p. 454), A carochinha (ib., p. 457).
  5. Trad. Cousin, t. IX, p. 105 e 106. Du-Méril, Fable esopique, p. 32