Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/A escolha de Gastão

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A ESCOLHA DE GASTÃO


Fez verdadeiramente o que se chama escandalo, em todas as salas da alta roda, o casamento do filho do visconde das Lagôas.

O visconde, cujo nome primitivo era João do Moinho Novo, e que depois não sei porque artes se appellidava João Silveira, fôra para o Brazil muito moço, creio que com dezoito annos, e voltára de lá com cincoenta e archi-millionario.

Rosnava-se muito ácerca das origens d’esta nebulosa e extraordinaria fortuna.

Uns fallavam de escravatura, alguns de contrabando, todos de negocios pouco lisos e pouco licitos. No fim de contas, porém, o principal é que uma pessoa seja muito rica.

Lá o como e porquê são questões secundarias, com que se preoccupam muito os invejosos, e um pouco os escrupulosos.

O resto das pessoas, e já se vê que são muitas, essas nem para ahi voltam os olhos.

Acham este esmiuçar impertinente das vidas alheias além de enfadonho pouco aristocratico.

O visconde passava o verão na provincia do Minho, n’uma povoação perto de Vianna, onde comprára um velho palacio, cuja frontaria ennegrecida elle mandára cuidadosamente caiar.

O portão do palacio era encimado pelo brazão d’armas da familia arruinada a que pertencêra. O visconde, que não quizera conservar mais nada intacto, teve a caridosa lembrança de o conservar a elle.

Mandou-o limpar das hervas e dos musgos damninhos que se tinham introduzido entre as fisgas da pedra, e dos ninhos que a phantasia errante das andorinhas alli armára no estio.

Depois de limpo pareceu-lhe um ornato sympathico e nada contradictorio com os seus gostos plebeus, e deixou-o alli ficar, com tenção firme de o cobrir de crepe, no caso de lhe morrer algum dos seus.

Foi depois d’isto que se decidiu a pedir ou por outra a comprar, dos poderes publicos complacentes o seu titulo de visconde.

O mais modificou-o e transformou-o á sua vontade.

Detestava as ruinas por instincto.

As vastas salas apainelladas e forradas de custosos pannos de Arrás, mandou-as estucar á moderna, de côres claras e alegres, vendendo a um amador de curiosas velharias, — o mais caro que poude, já se entende — aquellas colgaduras ennegrecidas e esfiadas, cujo merito não havia nunca logrado perceber.

Vendeu igualmente a velha mobilia, que punha como que um perfume de grandeza extincta no arruinado casarão, as credencias marchetadas, os tremós de espelho partido ao meio, e em cuja moldura dançavam estranhas figurinhas, as cadeiras abbaciaes de couro e pregaria amarella, os cofres de pau santo, os tamboretes de carvalho, as reliquias d’um mundo que desabára.

Os dominios do visconde depois de transfigurados pelo seu opulento proprietario perderam aquelle aspecto desolador, saudoso e melancolico que os recommendava aos artistas e aos... morcegos.

Ninguem por mais phantasioso e poeta que fosse, seria capaz de evocar na sombra dos longos corredores claustraes, uma d’aquellas figuras que são a graça mysteriosa do passado.

Uma castellã pallida e esguia, sustendo nas suas mãos de marfim o missal de ricas illuminuras... Um pagem louro e namorado, embevecido no sonho de longinquas aventuras e de impossiveis amores... Um vulto de abbade austero e glacial, trazendo para o meio do mundo a gelida mortalha da sua piedade monastica...

Nenhuma d’essas visões podia agora evocar-se.

Foram derrubadas as arvores silvestres cuja sombra envolvia o palacio n’uma austera solidão; arrancaram-se as heras possantes que cobriam com o manto vigoroso da sua folhagem verde-negra os muros gastos e esburacados; calçaram e ladrilharam os pateos por onde a herva crescia indomada e livre, e onde fontes enormes choravam dia e noite com uma triste e somnolenta melopeia.

Um jardineiro inglez veio de proposito cortar as moitas de buxo espesso do jardim, onde umas estatuas de pedras mutiladas e musgosas pareciam ainda relembrar no desamparo da sua nudez friorenta, uma vida inteira que o passado abysmára.

Aquella desolação das ruinas e aquelle indomito luxo da natureza entregue a si, foram substituidos por todas as graças e coquettismos da moderna jardinagem.

Uma estufa de plantas raras, de extranho colorido, de fórmas phantasticas e inquietadoras, de cheiro irritante e acre; taboleiros de gazon d’uma frescura esmeraldina, camelias, rosas, trepadeiras floridas, tudo que as tyrannias da arte teem misturado nas liberdades da Natureza.

O visconde depois de haver-se rodeado de tudo que póde tornar aos ricos a vida não só aprazivel o que é pouco, mas invejavel o que é muitissimo, começou a grangear relações, e a receber com bizarra hospitalidade os amigos que durante o inverno adquiria nas salas da capital.

Em Lisboa não era menos rica, nem menos confortavel, a habitação do millionario.

Vastos salões ricamente mobilados, equipagens de alto estylo, criadagem insolente e ociosa, escadarias alcatifadas, bailes e ceias onde toda a côrte concorria tão cheia de curiosidade como de gulodice, jantares aos quaes eram convidados os ministros, os titulares, os diplomatas estrangeiros e os funccionarios mais influentes, tudo emfim que póde dar á vida um aspecto opulento e principesco, tudo que constitue o orgulho supremo dos mediocres e a inveja brutal dos ambiciosos.

De resto o dono da casa era tão pouco conhecido da maioria dos frequentadores das suas festas, que mais d’um o tomou pelo criado de si mesmo, e lhe pediu com desdenhosa insolencia, o paletot, ou um copo de agua.

O visconde enviuvára antes de deixar o Brazil, e os que haviam conhecido sua mulher, não lamentavam que a pobre senhora fosse dispensada pela Providencia de assistir á espectaculosa mise-en-scéne da vida dos que tinham sido seus.

O visconde tivera do seu matrimonio, duas filhas e dois filhos.

Na epocha em que elle maior ostentação desenvolvia, teriam as meninas dezoito a vinte annos.

Tinham sido educadas em casa, por uma mestra franceza escolhida pelo pae. Vestiam-se da Aline, quando não mandavam vir directamente de Pariz as suas toilettes extraordinarias, e sempre muito além da moda.

Usavam tudo que havia de mais excentrico. Os chapeus mais pequenos, ou os chapeus de mais largas abas, os vestidos que deixassem vêr o pé todo, ou os vestidos cuja cauda roçagante lembrasse um manto de rainha... de theatro.

Havia tempos em que usavam na cabeça o cabello de uma duzia de mulheres, e outros tempos em que appareciam de repente de cabello cortado como os rapazes, encaracollado e de risco ao lado.

Timbravam em não se parecer com mais ninguem.

Mas não podiam eximir-se a um defeito especial que as fazia darem muito na vista. Occupavam-se extremamente de si.

Fallavam do seu boudoir, das suas toilettes, das meias de sêda de tres libras ou doze mil réis — as unicas que traziam — , do elegante edredon do seu leito, das finas perfumarias do seu toucador.

Isto fazia rir com riso amarello as amigas mais intimas, que diante de gente, costumavam puxar-lhes pela lingua.

De resto as filhas do visconde seguiam rigorosamente os preceitos e regras da alta-vida.

Tinham assignatura em S. Carlos, para serem vistas, e frequentavam assiduamente a egreja, para se parecerem com as filhas de condes pallidas e anemicas, cujo luxo superior é a devoção e a caridade, diluidas ambas as cousas em pequeninas praticas de todos os dias.

Sabiam conversar pouco mais ou menos sobre tudo, sendo no fundo d’uma crassa ignorancia ácerca de todas as cousas.

Como dissemos fôra franceza a mestra que as dirigira. Dera-lhes o verniz da educação, e mais nada.

De linguas sabiam o bastante para conversarem com os diplomatas; de musica, para criticarem o physico das cantoras; de artes para revellarem a cada instante a negação profunda que tinham para o bello.

Respeitavam e invejavam todas as superioridades sociaes; o dinheiro, a fidalguia herdada ou comprada, a posição, as honras, a formosura.

Desprezavam profundamente uma só cousa: a pobreza.

Quando viam alguem pobre, pouca ou nenhuma attenção lhe prestavam; mas se esse alguem tivesse a inaudita ousadia de apresentar uma ideia, uma opinião, um juizo, de contrarial-as, de escarnecer alguma das cousas que ellas acima de tudo reverenciavam viam-as então revellar um pasmo sincero, um espanto que tinha o seu quê de tragicamente ridiculo.

Um dia ouviu alguem a uma d’ellas este aphorismo extraordinario.

Quem é pobre não tem opinião.

E tinham um modo de levantar a voz, de alçar altivamente a cabeça, de sublinhar vigorosamente as palavras, que mais do que tudo confirmava que ellas como pessoas que possuiam duzentos mil réis por mez, só para os seus alfinetes, não tinham nunca imaginado sequer a possibilidade de não terem razão.

Era uma maneira não menos auctoritaria, porém menos correcta de dizer o que á senhora de Stael disse um dia a duqueza de la Ferté.

Il n’y a que moi, chère amie, qui aie toujours raison.

Ahi estão pouco mais ou menos as duas filhas do visconde.

O filho mais velho, que partilhara no Brazil os primeiros trabalhos e as primeiras luctas de seu pae, adquirira com a victoria d’elle, que era tambem sua, o mesmo ar de ingenua superioridade.

Tinham trazido do Brazil uma fortuna collossal, logo tinham o direito de dominarem onde quer que estivessem.

Toda a gente que frequentava a casa d’elles, que lhes aturava a impertinencia boçal, confirmava pela sua servil condescendencia esta convicção; porque é pois que não haviam de a sentir?

O primogenito do visconde occupava-se muito, com verdadeira alegria de seu pae, de cifras e de operações bancarias; jogava em fundos extrangeiros, tinha a vocação mercantil pronunciadissima, e nos intervallos que estas occupações transcendentes lhe deixavam, governava um carro, e mandava correr os seus cavallos.

Estivera em Londres, quando lá fôra deixar n’um collegio o seu irmão mais novo, e voltara com certas aspirações a gentleman rider.

Fallava pouco, com ar sacudido, apressado, sentencioso.

Usava suissas e vestia d’um alfaiate inglez. Queria ser homem sério, respeitavel, homem de pezo, e pensava n’uma candidatura como n’um pedestal proprio para as suas attitudes.

É no meio d’esta familia admiravelmente feita para a sua epocha e para a posição que tem, que vamos encontrar Gastão, o ultimo filho do visconde, um phenomeno destinado a contrariar tudo que se tem dito e escripto sobre a lei da hereditariedade.

Gastão tem vinte e um annos, é alto, delgado, d’uma constituição tão delicada e nervosa, que ao lado de suas irmãs com o seu ar masculino e as suas inflexões duras, elle é que parece a mulher e ellas é que parecem os homens.

Dizem os que um dia se atreveram a chasqueal-o pelo ar timido e suave que apparenta, que nos seus olhos azues, d’uma expressão triste e soffredôra, passou um relampago de colera, pouco tranquilisador para os que abusarem da sua excellente educação.

Gastão da Silveira, chegara havia pouco d’uma viagem que fizera pela Europa, depois de concluir a sua formatura n’uma Universidade de Inglaterra.

Da sua familia não sabia senão que era rica, e que vivia grandemente, como elle tinha visto viver os opulentos banqueiros inglezes, nas suas deliciosas casas dos arrabaldes da cidade, confortaveis e luxuosas.

Esta informação não lhe faltava porque seu pae, suas irmãs, seu irmão mais velho, nunca se cançavam de lh’a repetir em todas as cartas.

Isto porém não bastava a Gastão. O que elle desejaria profundamente, era conhecer a fundo o caracter dos seus, e o que d’esse caracter lhe revellavam as cartas seccas e laconicas de que fallamos, teimava elle na sua fé juvenil, em não o acceitar como prova ou como manifestação.

Tinha pelos seus amigos e condiscipulos conhecido a vida ingleza em relação á familia, fôra convidado para passar as ferias, em casa de ricos industriaes na companhia de alguns dos seus mais caros collegas de estudo, e podera conceber um ideal realisavel, de paz, de conchêgo, de conforto domestico, que anciava encontrar no seio da sua familia.

Tinham-lhe dito que seu pae ganhara pelo trabalho a grande fortuna que possuia, e Gastão habituado a observar a actividade enorme, incansavel, persistente, a fecunda actividade ingleza, sentira crescer o amor pelo visconde ao saber a tenacidade com que elle trabalhara.

Intelligente, d’uma intelligencia fina e delicada, a viagem que fizera desenvolvera-lhe o espirito, e afinara-lhe o gosto.

Voltava cheio de ideias, de factos, de noções praticas, respeitando acima de tudo a intelligencia, e a dignidade da vida.

Como homem educado ao contacto da vida inglesa, avaliava o dinheiro mas não como um fim, simplesmente como um meio, o mais energico e infallivel dos meios para chegar a grandes fins.

No dia em que Gastão conheceu seu pae e seus irmãos imaginem a dolorosa surpresa que elle sentiria.

No animo do visconde e de seus filhos excitou porém o apparecimento d’aquelle bello moço de maneiras distinctas, affavelmente dignas, de espirito superiormente cultivado, de conhecimentos scientificos excepcionalmente desenvolvidos, a mais agradavel das impressões.

Um irmão d’aquelles, um filho de tal maneira elegante e fino, dava-lhes honra, dava-lhes importancia e realce. Se fosse um extranho ter-lhe-hiam inveja, mas emfim, Gastão pertencia-lhes, era d’elles, a sua graça, a sua superioridade, a sua distincção communicava-se-lhes, destingia sobre as suas pessoas.

O visconde pensava que no fim de contas o que constituia o especial encanto do filho, a educação, fôra elle quem a comprára muitissimo cara.

Podia orgulhar-se de Gastão diante dos extranhos mas queria dominal-o, subordinar as opiniões d’elle ás suas, mostrar lhe bem claro, que o adorava pelo que elle transmittia a sua vida de elegante e de superior, mas que o considerava um objecto raro adquirido por muito bom preço, e do qual dispunha absolutamente.

As manas, essas não occultaram no primeiro momento de enthusiasmo que a posse de Gastão lhes dava muito mais chic do que a posse do seu coupé novo tirado por dois cavallos inglezes pur sang e cujos arreios irreprehensiveis tinham sido louvados pelo embaixador de França.

— Ora tu verás, dizia a mais velha para a outra, que as Pimentas em vendo Gastão ficam de fel e vinagre. Repara bem para a cara que ellas fazem, sobretudo se vierem acompanhadas do mano, d’aquelle Leopoldo, de olhos vesgos, de quem toda gente se ri, e que ainda não acertou a fazer uma conta de sommar.

E exhibiam o irmão pelas salas das suas amigas, sob pretexto de que não tinham quem as acompanhasse, e repetiam em segrêdo a todas as pessoas do seu conhecimento:

— Não fazem ideia! O mano Gastão é um poço de sciencia. Sabe todas as linguas. Eu creio que elle até sabe sanskrito. O papá gastou immenso, mas que educação que elle lhe deu!

E por aqui adiante uma ladainha em que se confundiam a sciencia do mano, os gastos do papá, a inveja que todos tinham d’ambos, e a gloria que a ellas provinha da inveja, dos gastos e da sciencia.

Gastão tornara-se o luxo superior da familia.

Foi por esse tempo que o visconde entendeu que era necessario casar o filho mais novo, visto que o mais velho dissera com desdem supremo que só se atiraria a esse abysmo do casamento, quando tivesse completado os seus folgados quarenta annos.

— Quando Gastão casar, as pequenas poderão frequentar mais os bailes, os saraus e os passeios.

Eu gosto de receber em casa; não me incommodo com isso, mas lá para andar sempre pelo meio da rua é que não estou. E depois Gastão póde fazer um casamento esplendido. Está n’esses casos por todos os motivos.

E foi resolvido em conselho de familia, que Gastão tomasse estado.

A casa do visconde das Lagôas tornou-se a mansão de todos os prazeres, como o bom do homem dizia na praça aos seus amigos titulares e merceeiros. Bailes, jantares, petites sauteries intimes, concertos, a fortuna!

A leôa d’estas reuniões, que os noticiaristas immortalisavam na secção da alta elegancia mundana, chamava-se Clotilde de Magalhães. O pae ambicionava um titulo que ainda não tinha podido alcançar dos governos, mas que mediante um avultado donativo a não sei que estabelecimento bafejado pelo favor da côrte, lhe fôra promettido para muito breve.

O conselheiro Magalhães dissera porém ao seu amigo o visconde das Lagôas, que essa promessa lhe não bastava, que o que elle queria e alcançaria decerto, visto que ao dinheiro nada é impossivel, era um titulo em duas vidas, um titulo que elle podesse transmittir a sua filha e portanto a seu genro.

O visconde ouviu e comprehendeu.

Desde esse dia as duas familias acariciaram como uma esperança lisongeira, o projecto de enlace entre Clotilde de Magalhães, a filha unica d’esse conselheiro millionario, e Gastão da Silveira, o elegante filho do visconde das Lagôas.

Clotilde tinha vinte e dous annos. Uma esplendida physionomia peninsular illuminada por um par de olhos negros, dos que ateariam incendios ha trinta annos no seio apaixonado dos tetricos trovadores.

Era intelligente o bastante para occultar o soberano orgulho, que lhe esterilisava o coração.

Tudo quanto a educação das salas tem de mais requintado e precioso possuia-o Clotilde em larga escala.

Manejava facilmente duas ou tres linguas, cantava com uma voz de contralto quente e apaixonada as arias mais enervantes dos mestres italianos, dançava com uma perfeição de attitudes que a tornavam celebre nos salões, vestia-se bem, sem excentricidades e sem plebeismos de mau gosto.

As filhas do visconde das Lagôas invejavam-na ardentemente conhecendo-lhe a superioridade dominadora, mas fingiam adoral-a, porque da frequencia de Clotilde em casa d’ellas, resultava grande animação para as suas soirées.

Clotilde que era caridosa em certas horas, e que ostentava o capricho da protecção, tinha em sua casa, como companheira, pupilla ou o que quer que fosse, uma parenta pobre de sua fallecida mãe.

Muitas vezes a levava comsigo ás reuniões mais intimas talvez por um refinado instincto de garridice.

Tão admiravel e triumphante era a belleza de Clotilde, como doce, modesta, soffredora, era a apparencia de Angelina. D’este contraste que a todos os olhos se impunha, resultavam sempre grandes alegrias de amor proprio para a elegante herdeira.

Angelina tinha pois uma dupla missão, inteiramente passiva. Fazer sobresahir a bondade de Clotilde e a sua formosura.

Quando Clotilde conheceu mais de perto aquelle que seu pae lhe promettera muito brevemente para esposo, comprehendeu logo, com a rara perspicacia que a distinguia, que o que na sua pessoa havia de mais brilhante e admirado pouca ou nenhuma influencia exerceria no coração d’elle.

Uma noite em que a filha do conselheiro Magalhães estivera mais rodeada de admirações lorpas e de cultos banaes, em que, ebria d’esse grosseiro incenso das salas, ella exhibira todas as suas raras e distinctas prendas de mulher bonita e de mulher garrida, ousou sorrindo perguntar a Gastão, que mais d’uma vez a tinha olhado com mal disfarçada ironia:

— Não me dirá qual é o seu ideal de mulher? Vejo-o sempre tão reservadamente cortez com todas as senhoras, que ainda não percebi o que é preciso ser para lhe agradar.

— Meu Deus! não ha nada mais facil — respondeu o moço fictando o olhar limpido e honesto no altivo olhar de Clotilde. — É preciso ser uma mulher em quem ninguem repare.

— Julguei que a mediocridade o não captivava a esse ponto — volveu Clotilde mordendo os beiços de colera.

— Mas é que não é ser mediocre ser modesta. É que a mulher que gosta de brilhar, não sabe o que é sacrificio e abnegação, é que para mim todos os encantos que se apreciam nas salas, não valem um bom e candido coração que saiba amar-me e viver só para mim.

Não se póde dizer que Clotilde adorava Gastão, mas emfim a verdade é que gostava muito d’elle. Achava-o superior, correcto, distincto, d’uma aristocracia innata que a encantava.

Achava-o digno de si.

Não lhe sacrificaria nenhum dos seus triumphos, nenhuma das suas vaidades, nenhum dos seus gozos, mas sacrificava-lhe com certeza todos os seus adoradores.

Ser mulher d’elle era para ella um sonho radioso.

Discordavam, porém, em tudo, nos gostos, nas ideias, nos sentimentos, na maneira de entenderem a vida.

Clotilde na arte preferia tudo que é brilhante e apparatoso; Gastão amava tudo quanto é grande e dedicado. Clotilde só vivia no meio das opulencias sociaes; Gastão tinha a ambição das alegrias intimas e ignoradas.

Ella gostava do incenso de todas as lisonjas por mais grosseiramente capitoso que fosse; elle mais d’uma vez dissera que achava ignobil da parte d’uma mulher consentir que um sujeito de casaca, engravatado e ridiculo, tivesse a audacia de lhe declarar perto do ouvido que a estava achando formosa e cubiçavel.

— Só digo finezas ás mulheres a quem desprezo. São as unicas que nos dão direito de lhes dizermos o que nos passa pela cabeça.

Um homem que diz cousas ternas a uma senhora, fazendo boquinhas e phrases romanticas, insulta-a d’um modo indigno.

Como é que as mulheres são tão absurdamente educadas que não percebem isto?

Um dia perguntaram a Gastão diante de Clotilde se gostava da musica italiana.

— Conforme! Gosto do bom que ha em todas as escolas. N’esse ponto sou ecletico e creio que todos o deviam ser. Agora a musica italiana das salas acho-a ridicula e pouco decente. Uma senhora a cantar arias em que se falla de amor, de paixão, de extasis inolvidaveis, etc., que diz io t’amo revirando os olhos ao primeiro sujeito que passa, perdeu o direito a que um homem serio a escolha para sua mulher.

Desde esse dia Clotilde deixou de cantar.

Gastão não percebeu o sacrificio, ou pelo menos não mostrou que o percebera.

Era um espirito logico e recto, e tinha o defeito de se guiar na vida pelas opiniões que professava.

Dançavam todos em casa do visconde das Lagôas, e junto d’uma pequena mesa de trabalho, no gabinete das filhas do visconde, uma figura loura e delicadissima, inclinada sobre um album de retratos, parecia ignorada e esquecida de toda aquella multidão que se divertia.

— Porque não dança, senhora D. Angelina? perguntou jovialmente a voz de Gastão. Se eu lhe pedir que seja meu par, recusa-me?

— Recuso, respondeu ella docemente, e uma côr viva tingiu-lhe as faces.

Recuso por muitas razões. Em primeiro lugar é um pouco extranho dançar quando se tem a posição que eu tenho, porque emfim eu não sou mais que uma dame de compagnie, uma aia, uma governante ou como queiram chamar-me, de casa dos meus caridosos parentes. — Ao dizer isto, talvez involuntariamente, na voz de Angelina havia umas inflexões de amargura resignada.

— Depois — continuou — não danço porque me faria mal. Dóe-me muito o peito!

Gastão sentiu dentro d’alma como que a brotar subitamente, um sentimento que lhe era desconhecido e em que havia dó, tristeza, admiração, um enternecimento sem nome que lhe embargava a voz.

Angelina era tão delgada, tão fragil, d’uma physionomia tão delicadamente melancolica!

Para tudo a fizera o destino, menos para combater e para luctar. A desgraça despedaçara-a sem que ella tentasse resistir-lhe sequer.

Como seria doce protegel-a, guial-a na vida, abrigal-a no peito contra os embates hostis da adversidade!

Era assim que Gastão havia sonhado uma adoravel e submissa mulherzinha, com aquelle olhar largo e limpido que lembrava um lago da Suissa, com aquelles louros cabellos ondados emmoldurando uma testa setinosa e côr de marfim.

Trocaram mais duas ou tres palavras, e depois separaram-se de novo. Angelina talvez ficasse a scismar, que nunca mais teria occasião de ver postos nos seus uns olhos onde se lesse tão doce e tão honesta sympathia.

O visconde das Lagôas convidou a familia do conselheiro para estar um mez na sua quinta do Alto Minho.

Angelina acompanhou naturalmente a sua gentil parenta e protectora.

No campo estabelecem-se facilmente intimidades que na cidade parecem inconvenientes e impossiveis.

Gastão entre aquellas duas bellas creaturas, d’uma belleza tão diversa como diversos eram os caracteres, poude apreciar e aquilatar a alma e o coração de ambas.

Durante um mez Clotilde foi a rainha acclamada e triumphante do solar provinciano povoado de numerosos hospedes que alternadamente chegavam, ou partiam.

Era ella quem organisava as festas, quem dirigia as partidas, quem inventava as distrações e os jogos. Activa, intelligente, soberanamente caprichosa, ser dominada por ella constituia uma seducção. Emquanto assim era o centro da animação festiva que se notava na opulenta casa do visconde, Clotilde empregava para captivar Gastão todos os seus artificios de sereia.

Envolvia-o no magnetismo irresistivel dos seus sorrisos mysteriosos, do seu espirito acerado e mordaz, da sua graça magestosa e altiva.

Punha aos pés d’elle todas as homenagens de que era objecto.

Ás vezes á noite, sentava-se á meza com o desleixo creoulo que sabia fingir, e punha-se a desenhar, com uma verve comica imcomparavel, as caricaturas dos galans suspirosos que a cercavam. Depois, conscia de que a sua mão valia um milhão, e sem attender aos desesperos que excitava, offerecia a Gastão os desenhos com um gesto ironico e submisso de que só ella possuia o segredo encantador.

Os serões animava-os com a sua presença, com a sua voz, com a sua mestria musical, com os seus conhecimentos variados adquiridos nas viagens e nas leituras.

Angelina voluntariamente occulta no canto mais escuro da sala, assistia a todo este jogo brilhantissimo com a silenciosa resignação de quem se sente para sempre expulsa de todos os prazeres da vida.

Nem sequer percebia que era para o lugar em que ella trabalhava, que os olhos de Gastão se dirigiam constantemente, e que elle tão desdenhoso e tão ironico para com as outras, lhe fallava sempre timidamente, respeitosamente, como os devotos fallam com o seu Deus, como as mães fallam com os seus filhos doentes.

Houve um dia em que uma resposta quasi insolente de Clotilde a fez padecer muito.

Arrazaram-se-lhe os olhos de lagrimas, levantou-se e foi encostar-se á varanda toda enredada de trepadeiras que dava sobre o jardim.

Não percebeu que a crueldade de Clotilde significava um despeito, um ciume, talvez uma agonia profunda de amor proprio! Pensou sómente que a herdeira rica e poderosa insultava diante da sua familia, diante do seu noivo, a orphã desamparada, e chamou baixinho por sua mãe, pedindo lhe que a levasse comsigo para o ceu.

Então uma voz grave, sonora e viril, a voz d’um homem de coração e de coragem, murmurou perto d’ella:

— Quer ser minha mulher, Angelina? Ha muitos dias que tenho vontade de fazer-lhe esta pergunta e não me atrevia!

É que se me recusar, juro-lhe que me dá um desgosto muito grande! Não faz idéa! Parece-me que a conheço desde que nasci, que nunca vi outra mulher, que nunca achei possivel ter outra esposa... Talvez não creia... mas olhe... hei de fazel-a muito feliz... hei de amal-a com uma devoção tão profunda...

Angelina não o deixou concluir. Tapou-lhe a bocca com uma das suas mãos diaphanas, e pallida, a tremer, deixou-lhe cahir a cabeça sobre o peito a soluçar..............................

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A familia de Gastão quando o moço lhe participou a resolução definitiva que adoptára, repelliu-o do seu gremio illustre com o mais indignado espanto.

Aquelle mesquinho enlace que vinha destruir tantas esperanças pomposas, era para todos uma vergonha.

O visconde, as duas manas, o irmão mais velho, o conselheiro Magalhães, tudo se revoltára contra o que chamavam o romantismo de Gastão.

Só uma pessoa o acceitou sem colera e sem protestos.

Foi Clotilde.

Quiz ella propria conduzir á egreja a sua juvenil protegida, e até á ultima hora teve para com ella e para com o homem a quem um dia no intimo do coração chamára — o seu noivo — uma attitude irreprehensivel de serena dignidade.

Gastão e Angelina vivem n’uma deliciosa casinha em Buenos-Ayres, onde ha dias os visitei.

Elle alcançou uma excellente collocação n’uma casa bancaria; ella tem o singular segredo de ser economica com elegancia e laboriosa com gentil dignidade.

São ambos felizes como dois leaes corações que se estremecem e se entendem.

No seu gabinete confortavel e artisticamente arranjado pelas mãos de Angelina, quantas vezes á noite no tranquillo recolhimento do serão commum, os dois noivos não lamentam a sorte dos seus parentes millionarios!

Clotilde não casou ainda nem casará talvez.

Apparece em todas as festas, em todos os bailes, em todos os theatros, sempre com o seu eterno sorriso mordaz nos labios empallidecidos.

Ha porém quem julgue lêr na sua bella physionomia altiva, uns toques de intraduzivel soffrimento.