Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/Duas faces de uma medalha
DUAS FACES DE UMA MEDALHA
Ella tinha já feito vinte e cinco annos, elle contava apenas vinte e dous.
Era uma creança triste e ambiciosa.
Sonhava no impossivel, e n’esse sonho creava forças heroicas para todas as luctas da realidade.
Margarida distinguira-o no meio de todos os homens ricos, elegantes, nobres ou poderosos, que a rodeavam e acclamavam rainha.
É que na fronte d’elle, já cavada por duas linhas profundas, lia o que não lera ainda nos outros — o pensamento e a energia.
Sabia, porém, que seu pae, o banqueiro millionario, só a daria com prazer a quem trouxesse mais lustre ou mais dinheiro á sua casa, e timida, melancolica, sem disposições para as luctas da vida, repugnava-lhe tudo que fosse combate ou resistencia.
Tinha sido doente desde pequenina, era um organismo nervoso e delicado, cheio de caprichos inconscientes, mais artistico do que reflexivo.
Gostava de musica, de flores, de versos, das cousas bellas e harmoniosas, tinha um vago desdem silencioso por tudo quanto via ser o enlevo e a preoccupação exclusiva dos seus.
O dinheiro! sempre o dinheiro!
Ninguem fallava em torno d’ella senão em dinheiro, e no entanto ella, que vivia n’um voluptuoso ninho de princeza de conto de fadas, tinha pelo dinheiro em si o mais soberano desdem.
Salvava-a isto da vulgaridade que mais ou menos contamina as mulheres ricas.
Margarida no inverno vivia em Lisboa.
Tinha então a vida futil e ociosa de todas as rainhas da alta vida.
Ia muito a S. Carlos, recebia n’uma certa noite da semana, presidia aos jantares dados por seu pae, ia passar muitas noites fóra, fazia compras, corria as modistas acompanhada sempre por miss Brown, uma correcta ingleza de sacca-rolhas côr de açafrão, que seu pae descobrira felizmente n’uma das suas viagens a Londres.
No meio d’esta vida artificial tão vazia e tão fatigante ao mesmo tempo, que lugar havia para que ella pensasse, sentisse, desejasse alguma cousa para fóra do circulo estreito que a encerrava?
Margarida deixava-se viver.
Um dia, porém, n’um baile, apresentaram-lhe Eduardo de C., e depois de meia hora de conversação sentiu por elle o que não sentira ainda por nenhum outro.
Ficaram conhecidos.
Elle na sombra, de longe, já se vê; ella lá em cima na plena irradiação da sua graça, da sua formosura, da sua opulencia, de todo o seu esplendor.
Cumprimentavam-se com uns toques de familiaridade, e n’um ou n’outro baile d’estes a que vae toda a gente, a boa e a má, tinham-se apertado a mão mutuamente, e tinham trocado algumas phrases affectuosas.
No verão, o pae de Margarida, que tinha propriedades em varios pontos de Portugal, consultava a filha para que lhe indicasse a quinta em que mais gostaria de passar as calmas do estio.
Pouco tempo depois do encontro com Eduardo, Margarida, disse a seu pae, que a consultava como de costume:
— Este anno vamos para o Minho, sim? Sinto-me tão fraca, tão doente! O ar do Minho ha de por força fazer-me bem.
É verdade que nas vesperas, n’um baile, Eduardo dissera-lhe, approximando-se d’ella:
— Peço licença para apresentar a v. exc.a as minhas despedidas. Alcancei uma collocação em Vianna do Castello, e parto para alli um dia d’estes.
— Vianna! pensou Margarida emquanto dous raios de alegria se accendiam nas suas pupillas de um azul sombrio.
— É em Vianna a nossa quinta.
Partiram.
Na provincia a intimidade estabelece-se forçadamente entre pessoas que não pertencem ás mesmas camadas sociaes.
Para se admittir um sujeito em qualquer sala de provincia exige-se simplesmente que tenha uma educação limpa, e que possua alguma prenda de sociedade.
Em Vianna, na sala do grande banqueiro tão altivo e tão inaccessivel, reuniam-se não só os fidalgos mais primorosos das cercanias, como tambem os humildes funccionarios do Estado, que por aquellas regiões se achavam accommodados.
Margarida, com o seu porte de soberana, o seu sorriso altivo e distrahido, a graça ondeante da sua gentil figura, recebia a todos com a mesma benevola indifferença.
Todos a contemplavam fascinados e quasi medrosos.
Ninguem se atrevia a dirigir-lhe finezas banaes: de tal modo o olhar d’ella sabia tornar-se glacial, logo que adivinhava a pretenção de um namorado na amabilidade um tanto desastrada de algum dos seus convivas provincianos.
— Não ha aqui um empregado chamado Eduardo de C.? perguntava um dia na sala a elegante filha do banqueiro.
— Ha. Um rapaz muito estudioso, muito concentrado, que desenha muito bem, acudiu espevitadamente d’alli uma menina que fazia as delicias das soirées de Vianna, pela sua voz de falsete sempre prompta a torturar os ouvidos do proximo. Conhece-o?
— Foi-me apresentado este inverno em Lisboa; respondeu Margarida.
E accrescentou mentalmente: — Quem me dera que elle aqui apparecesse! Como me distrahiria de tudo isto que me cérca.
Isto era uma duzia de cavalheiros da provincia acompanhados das suas respectivas esposas ou manas, tudo gente preoccupada dos interesses mais mesquinhos, das pequenas intrigas mais pueris, fallando, gesticulando, dançando, tocando, cantando, murmurando e constituindo a unica diversão das noites de Margarida.
Não sabemos de que traças usou a gentil lisboeta: sabemos que algumas noites depois d’esta, Eduardo de C. era apresentado por um fidalgote, aspirante e litterato, na sala do banqueiro.
Desde esse dia elle e Margarida formaram em commum uma especie de refugio contra a frivola banalidade d’aquellas noites.
Eduardo desenhava com muito chiste caricaturas e graciosos croquis, que Margarida guardava contentissima; ella cantava com a sua voz meiga e flexivel algumas simples melodias allemãs, ou tocava as musicas dos velhos mestres classicos, tão queridos de Eduardo.
Fallavam a respeito de tudo com a liberdade de pessoas que se entendem e apreciam.
Discutiam litteratura, musica e versos.
Ás vezes fallavam ambos do futuro.
— Que tem tenção de fazer? perguntava Margarida.
— Ora! Não sei bem. Com certeza hei de fazer alguma cousa. Ando a crear forças para a lucta. Ha de ser tenaz, ha de ser terrivel, bem sei, mas eu hei de vencer!
— Quer que lhe dê um talisman para entrar no fogo?
Elle envolveu-a em um olhar ardente; depois, baixando a vista, respondeu quasi com violencia:
— Não brinque comigo. Olhe, que me faz muito mal.
Margarida sabia que era amada.
Tambem ella sentia por elle o que nunca sentira, mas não tinha coragem para resistir ás ordens de seu pae.
Por esse tempo andava elle a arranjar o casamento da filha com o conde de V., um moço que tinha nas veias o sangue dos reis godos, e na cabeça a mais crassa estupidez de que ha memoria desde o tempo dos ditos.
Margarida sabia ou suspeitava do caso, mas deixava-se ir n’uma indolencia de crioula á mercê dos acontecimentos da sua vida.
Ao pé de Eduardo sentia-se bem, e quando elle a fixava com o seu bello olhar de ambicioso e de pensador, Margarida esquecia-se de tudo que não fosse a delicia de ser preferida por aquelle homem.
N’uma noite em que os hospedes habituaes estavam na sala, e em que junto da meza redonda do serão Eduardo e Margarida liam esquecidos de tudo que os cercava, felizes, despreoccupados como os dous amantes do florentino, ouviu-se o rodar de uma carruagem que parava á porta do palacio.
O banqueiro levantou-se rapidamente da banca do voltarete e sahiu da sala relanceando para a filha um olhar de esconso.
Margarida, sem saber porque, fez-se pallida como uma morta.
— Ó meu amigo — exclamou n’um impeto ardente, irresistivel, que não soube conter, — chegou o fim da nossa felicidade!
Eduardo olhou para ella desvairado.
— Que diz? que é isso? a que se refere?
N’este momento entrava na sala o pae de Margarida dando a direita ao ultimo herdeiro de nobres avoengos.
— O sr. conde de V... pronunciou com o orgulho humilde dos burguezes ambiciosos de honrarias sociaes, apresentando o recem-chegado a toda a companhia.
Margarida accolheu-o com um sorriso gelado.
Conhecia-o, sabia que o pae queria pôr-lhe sobre a cabeça loura e altiva uma corôa de condessa, e sentiu que dentro d’alma lhe estalava uma corda que nunca mais tornaria a vibrar!
D’alli a seis mezes todos os jornaes annunciavam na secção do high-life o casamento da filha do banqueiro opulento com o neto dos heroes medievicos.
Os noticiaristas fundavam as mais ardentes esperanças n’este consorcio que alliava o sangue nobilissimo e a fortuna collossal, e contavam com grandes minudencias as pompas d’aquella festa principesca, os presentes riquissimos que a noiva recebera, a toilette d’esta, a alegria dos numerosos convidados, etc., etc.
O que ninguem sabia é que esse casamento despedaçára duas vidas!
No fim de dez annos o conde de V... déra cabo do dote da mulher, e da vida do sogro, que morreu amaldiçoando-o.
Continuava, porém, la vie à grandes guides, que tinha começado no dia seguinte ao seu noivado, e já havia quem calculasse muito pela rama por quanto tempo podia durar ainda a desenfreada orgia d’aquella existencia de Marialva estupido.
Em casa da condessa o luxo não se modificára com as aproximações da pobreza.
No olhar d’ella divisava-se uma profunda e desdenhosa indifferença da vida.
Nem o amor maternal conseguira salval-a do desespero.
Ligada a um homem que desprezava do intimo d’alma, entristecida para sempre por uma d’estas recordações que lavram dia a dia, e que por fim se apossam de uma existencia inteira, Margarida procurava esquecer-se de si, aturdir-se no turbilhão das festas mundanas.
Os filhinhos estavam entregues ao cuidado d’aquella pobre miss Brown que ao vêr o abandono dos pobres anjos, innocentes das culpas de seus paes, se dedicára por elles com a abnegação profunda de que só é capaz uma ingleza feia!
Margarida passeava de carruagem, ia ao theatro, ao paço, aos bailes, ás festas de beneficencia, vendia nos bazares de caridade elegante, fazia e recebia visitas, e de vez em quando, se no meio d’este turbilhão avistava o marido, media-o de alto a baixo com um olhar de profundo e inconcebivel tedio!
Eduardo durante estes dez annos tambem soffrera grandes modificações na sua vida.
Luctara como um homem, e soubera vencer a mediocridade do seu nascimento e da sua posição.
No instante em que aquella que elle um dia amara como a noiva estremecida da sua alma, sentia vagamente afundar-se no sorvedouro negro da miseria, elle recusara altivamente uma pasta de ministro e uma noiva brazileira, possuidora de duzentos contos fortes, isto depois de uma sessão legislativa, em que a sua palavra viva, nervosa, eloquente, colorida e artistica havia deslumbrado o paiz.
— Não me vendo por dinheiro, nem pelas honras mentirosas com que os tolos lançam poeira á cara uns dos outros; respondera a quem o interrogava espantado ácerca d’estas duas recusas.
Alguem, que me contou este vulgar episodio da vida moderna, mostrou-me o fragmento de uma carta que Margarida escreveu doze annos depois de casada a uma socia das suas antigas alegrias.
«É a ti que prefiro escrever. Conheceste-me solteira, feliz, idolo de um pae, que, ai de mim! se perdeu e me perdeu pela vaidade. Has de ter dó de mim.
«Tenho dois filhos e preciso ganhar honestamente o pão que elles hão de comer!
«Presinto o teu espanto, as tuas interrogações, os brados afflictivos da tua surpreza!
«Não me perguntes nada.
«Pergunta-o se quizeres, a essa Lisboa, que assistiu ao louco esphacelar de uma fortuna enorme, com o sorriso banal e adulador que ella tem para todos os perdularios.
«Sabes a educação que recebi.
«Creio que seria uma mestra capaz de cumprir com a minha ardua missão.
«Em nome dos teus louros pequeninos, tão fartos de gulodices e de beijos, arranja-me algum meio de ganhar um pedaço de pão para os meus filhos.»
Dava lições!
A brilhante Condessa de V..., a filha adorada de um dos homens mais ricos de Lisboa, a rainha dos salões luxuosos, a estrella mais fulgurante do alto mundo, dava lições para sustentar os dous filhos que lhe restavam, unicos vestigios de um passado de pomposas mentiras.
O infortunio nobremente supportado transfigurara aquelle rosto desdenhoso e soberbo de garrida mundana.
Deixára de ser rainha e levantára-se martyr!
Levantava-se de manhã muito cedo, bebia á pressa uma chicara de café, que a sua fiel Miss Brown, companheira dos triumphos e das desventuras lhe preparava por suas proprias mãos, e sahia, modestamente vestida de preto, a cumprir a sua improba tarefa.
Só voltava a casa de noite.
Divulgára-se rapidamente a noticia d’aquella excepcional desventura, e muita gente, que vira com desprazer a prodigalidade da caprichosa condessa, compadecia se agora, sem pensamento reservado, d’aquella digna e santa expiação.
Margarida tinha muitas discipulas.
Fazia pena vel-a, muito delgada, quasi diaphana, com os olhos pisados, as faces córadas pelo cansaço e pela febre, e um sorriso triste resignado, humilde, n’aquelles labios que tinham sabido tregeitar com tão altivo desdem.
Era sempre a mesma alma sem energia.
Não esperava cousa nenhuma da terra senão a morte, levando a consciencia de ter expiado os erros do seu orgulho.
Cumpria uma penitencia, não encetava uma lucta heroica de que esperasse sahir vencedora.
N’uma tarde do mez de janeiro, chuvosa, humida e fria, Margarida subia a muito custo a calçada de S. Bento, em Lisboa, onde morava uma das suas discipulas.
A rua, viscosa e lamacenta, inspirava-lhe aquella repugnancia patricia, que a infeliz ainda não soubera vencer.
A atmosphera plumbea e carregada dava-lhe ao coração uma dose de invencivel tristeza.
Sentia-se predisposta para as recordações cruciantes para as inuteis fluctuações de um sonho que se extinguira.
Comprehendia com angustia que lhe faltava coragem para levar a cabo o doloroso dever que a si propria impuzera.
Oh! ella bem sabia que a sua alma não era da tempera das que luctam e se sacrificam!...
N’isto uma carroagem elegante descia a calçada ao passo de dous formosos cavallos inglezes.
Margarida, vendo a alguns passos o correio agaloado, percebeu que era um ministro e, sem querer, movida por um impulso subito, levantou os olhos e fitou os no homem que ia dentro do trem.
O que ella sentiu não se explica.
O ministro era Eduardo de C.
Os olhos dos dous encontraram-se.
Margarida quiz saborear a voluptuosa tortura de vêr n’esses olhos o brilho de um satanico orgulho, de um triumpho sinistro e mau.
Não viu!
Eduardo teve tempo de inundal-a em um d’estes olhares doces, unctuosos, cheios de misericordia, de doçura, de perdão; em um d’estes olhares que só podem comparar-se ao olhar do Christo redimindo a Magdalena!
Só de longe a tinha visto de vez em quando nas salas do alto mundo: nunca lhe fallara então; não quiz humilhal-a fallando-lhe agora!
Ella sentiu que se lhe despedaçara no peito alguma cousa indispensavel á vida.
Apertou em torno do corpo friorento e emmagrecido as pregas do seu pobre chale preto, abaixou a cabeça instinctivamente, como se fizesse pender para a terra um pezo estranho, e continuou a subir devagarinho, arrimando-se á parede, aquella eterna calçada, cheia de agua e de lama.
Cahia uma chuva fria e miuda que lhe encharcava o fato.
Um mez depois, da casa pequenina de Margarida sahia um enterro aceiado e modesto.
Era o enterro d’ella.
Miss Brown explicava que a pobre senhora voltara uma noite muito constipada das lições, que teimara em sahir ainda no dia seguinte, mas que tivera de recolher-se á cama, onde penou pouco menos de um mez.
O enterro de Margarida levava por acompanhamento unico uma carruagem sem brazão.
N’essa carruagem ia Eduardo de C.
Margarida, antes de morrer, escrevera-lhe uma carta cujas supplicas dolorosas iam apagadas pelas lagrimas.
Os dous orphãos de Margarida estão agora a educar-se em um dos melhores collegios de Lisboa, e todas as despezas da sua educação são pagas por um protector invisivel e mysterioso.
Ha quem dê a essa Providencia ignota o nome sympathico e hoje glorioso e querido de Eduardo de C.