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Contos e phantasias (Maria Amália Vaz de Carvalho, 1905)/O melhor somno do millionario

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O MELHOR SOMNO DO MILLIONARIO


Tinha ido para o Brazil ha muitos annos.

Ainda havia frades em Portugal e fôra até um seu tio frade que o acompanhara a bordo de um brigue e que lhe dissera com voz solemne e sentenciosa, no momento da despedida, estendendo os braços n’um largo gesto de pregador:

— Deus te leve a salvamento, Francisco!

O sr. Francisco Cerqueira lembrava-se de todos os pormenores e incidentes trabalhosos da jornada que elle fizera desde a sua pequena e risonha aldeia minhota até Lisboa.

Era um gosto ouvil-o á mesa, ao domingo, quando o armazem repousava na sua humidade claustral, e não se ouvia o estrepitoso labutar dos negros carregadores, a voz arrastada dos Mineiros freguezes da casa, e a melopéa das quitandeiras na rua.

Os socios muito mais moços que Cerqueira puxavam-lhe pela lingua conforme a pittoresca locução do povo, e á sobremesa, recostados, com os charutos accesos, ouviam-no discretear alegremente.

Lembrava-se de tudo o sr. Cerqueira. Era uma chronica viva. Recordava-se da sua aldeia, narrava historias da sua infancia, descrevia com rudes mas pittorescas phrases a aula de primeiras letras, o abbade da freguezia, as proezas do tio frade, que com um varapáo nas unhas era homem para varrer toda uma feira, e enternecia-se até ás lagrimas, quando tocava no assumpto de despedida da mãe.

— Ah! vocês não imaginam! Não me sahe d’aqui! Parece que tenho um nó na garganta, quando me lembro d’aquelle momento. Abraçava-me a chorar e a soluçar que era uma cousa por maior! Inda me parece que a vejo ao pé das carvalheiras do adro da igreja, estendendo-me os braços de longe e gritando suffocada:

— Ah! rico filho, rico filho da minha alma!...

Que idade terá ella hoje? Ora, espera, eu tenho cincoenta e seis; ella, pelas minhas contas, vem a ter os seus setenta bem puxados... quem me dera vêl-a!

— Mas, seu Cerqueira, nada mais facil! Por que se não resolve? Em dezoito dias está lá...

— Sim, é verdade.

E ficava triste e meditabundo por instantes...

— Mas tenho medo de chegar e de não a encontrar. O unico motivo que me leva á Europa, é ella, a pobre velhinha... É o unico parente que tenho, que não sei se vocês sabem, que da nossa familia restamos tão sómente nós, ella e eu... a minha terra é aqui, para aqui vim creança, e aqui me fiz gente... Que vou eu fazer á Europa, não me dirão?

Isto dizia o sr. Cerqueira; mas o que se lhe passava no intimo era bem diverso. Tinha saudades, tinha-as e bem fundas da aldeia em que nascêra e da casa em que se creára.

Porque a sua vida fôra um luctar sem treguas, um batalhar decidido e um inferno, á sahida do qual elle contava, como o mythologico Orpheu, rever as appetecidas Eurydices — a mãe e a patria...

Escrevia á mãe de tres em tres mezes, e nunca deixava de lhe recommendar que conservasse tal e qual como estava a casita, e que não mexesse nunca no leito em que elle dormira nos annos proximos á partida para o Brazil.

«Porque desejo morrer n’elle», escrevia Cerqueira á mãe amantissima.

E ia-se deixando ficar.

Por duas vezes os socios estiveram em Portugal, mas o nosso Cerqueira não se decidia.

Ás vezes parecia tomado de uma forte resolução, e, ouvindo as descripções das viagens dos socios:

— Homem, parece-me que sempre me resolvo!

No outro dia, porém, lá andava pelos armazens mourejando, dando ordens, e n’aquella atmosphera de trabalho vivificante e saudavel parecia transfigurado e como que esquecido da promessa que a si proprio fizera.

Um dia, quando o sr. Cerqueira encarapitado no alto banco de palhinha sobre a secretária, revendo se na sua bella letra ingleza e floreada, entrou no escriptorio um dos caixeiros annunciando-lhe que estava alli um sujeito que desejava fallar-lhe.

Cerqueira collocou a penna atraz da orelha, puxou do lenço vermelho, e abrindo a caixa enterrou unidos, no tabaco, o pollegar e o index, e mal acabava de absorver a pitada pela narina direita, tamburinando voluptuosamente com os restantes dedos na esquerda, quando lhe surgiu á porta um rapaz bem trajado e modesto, que figurava ter quando muito dezeseis annos.

— Creio que fallo ao snr. Francisco Cerqueira?

— É verdade.

— Cheguei hoje de Portugal e trago-lhe esta carta.

E o rapaz desabotoando o fraque, tirou do bolso uma carta que entregou respeitosamente ao negociante.

Olhou attento para a lettra do sobrescripto e sorriu-se; um bom sorriso beatifico e dourado de mocidade que lhe illuminou o semblante.

Depois abriu a carta, desdobrou-a e collocando-a ante o rosto começou a lêl-a devagar, como que saboreando cada palavra e cada phrase. Ás vezes parava, e como um namorado que espreita por cima d’um muro, erguia os olhos acima do papel e examinava attentamente o rapaz, que se conservava de olhos baixos, direito e tranquillo.

Chegando ao fim da carta, voltava de novo a lêl-a. Era como que um conversar com aquellas letras que vinham de longe e que lhe traziam um pouco de perfume das larangeiras do paiz natal, e um tudo nada das lagrimas de sua mãe.

— Queira sentar-se, disse benevolamente o commerciante ao mancebo.

E continuou a ler. A carta era pequena, mas n’aquellas letras arrevesadas e tremulas elle via um rosto, umas feições adoradas, e logo depois como nas tintas esbatidas e aereas de um sonho de convalescente, levantava-se uma figura de mulher ainda moça e vigorosa, ao pé de umas carvalheiras, e essa mulher estendia-lhe os braços e dizia-lhe de longe com uma voz entrecortada de lagrimas:

— «Ah! rico filho, rico filho da minh’alma!»

Arrancado d’aquella visão, o sr. Cerqueira dobrou a carta devagar com as mesmas dobras, abriu a larga carteira de marroquim vermelho e collocou-a com grande cuidado n’um determinado compartimento.

Em seguida levantou-se e pitadeando de novo:

— Olhe, o nosso guarda-livros vai espairecer até Buenos-Ayres, e creio que por lá ficará. Coitado! aquillo vai mal!... Quer o senhor occupar esse lugar n’esta casa?

O moço acceitou reconhecido, e ia a levantar-se quando um preto velho em mangas de camisa abriu a porta do escriptorio:

— O jantar está na mesa, nhônhô...

Passados dias notaram os socios do sr. Cerqueira que este não parava em casa um instante. Sahia frequentemente, andava mais contente e lepido que o costume. Pouco fallava ao jantar; de communicativo que era, tornara-se recolhido comsigo, mas no olhar lampejava-lhe uma doce e ineffavel alegria.

Ora que fazia o sr. Cerqueira?

Andava envolvido n'uma terrivel conspiração, queria desfazer-se, desligar-se dos queridos laços, creados pela sua longa e trabalhosa vida de perto de quarenta annos, n'aquella terra a que elle de entranhas queria, e aonde aportara pobre, desprotegido, sem recursos...

Logo pela manhã, depois de dar as suas ordens no escriptorio, mettia-se a caminho, percorria as ruas, examinando attentamente cousas que antes lhe haviam passado desapercebidas.

Entrando nos americanos, dirigia-se aos formosos arrabaldes da côrte..

Lembrava-se então das suas merendas saudosas e illuminadas pelo sol dos vinte annos, no morro de Santa Thereza, nas chacaras ridentes do Botafogo, á sombra das arvores do Corcovado.

E passava distrahido sem corresponder aos frequentes e affaveis cumprimentos que lhe faziam os conhecidos e amigos, do alto da imperial dos omnibus, ou da plata-forma dos americanos.

Alguns dos companheiros dos seus passeios e folguedos da mocidade tinham morrido, outros haviam deixado o Brazil e viviam na Europa, em Portugal.

— Como poderam elles deixar isto sem saudade? É verdade que eu gostava de morrer lá, onde nasci, na minha pobre aldeia, ao pé de minha mãe... pensava o sr. Cerqueira.

E á hora do jantar, já não havia o conversar, e aquelle teimoso questionar que tanto alegrava os dois socios!

É que o sr. Cerqueira continuava a fallar comsigo e a passar uma a uma pelos dedos as contas do mystico rosario das suas saudades...

Uma tarde os socios de Cerqueira bateram-lhe á porta do quarto. Houve uma certa demora em se abrir essa porta. Insistiram. Cerqueira veio emfim saber o que era.

Entraram os dous e recuaram surprehendidos ante a mudança que observaram.

No meio do quarto estava uma grande mala escura cravejada de pregos amarellos; em cima do canapé esgarçado avultavam montes de roupa branca, e pequenas malas inglezas com fechos dourados e reluzentes. As gavetas da commoda estavam corridas, havia n’aquelle quarto em fim a apparencia d’uma casa saqueada...

— O que é isto, seu Cerqueira?

— É o que vocês estão vendo. Ámanhã é o dia da partida... Resolvi-me emfim...

— E eu que tinha apostado aqui com o seu Fernandes que você nunca se resolvia...

— Pois, meu amigo, perdeu a aposta, cortou o Cerqueira, sorvendo sybariticamente uma pitada.

Na manhã do dia seguinte, no tombadilho d’um dos vapores da Companhia do Pacifico, emquanto os dous socios do Cerqueira riam e diziam facecias, deitando com ares de casquilhos atabalhoados as lunetas a algumas francezas, que, com os seus vestidos de fazendas claras animavam alegremente aquelle conjunto de pessoas possuidas de tão estranhos e contradictorios sentimentos, o nosso viajante olhava com os olhos de quem se despede de um sitio amado para os armazens, para os trapiches que se retratavam nas aguas da bahia, para as torres das egrejas que se arrendavam nitidamente no claro céo azul.

Em Lisboa pouco se demorou.

No hotel, alguns amigos quizeram prendel-o ainda, tentando-o com o theatro lyrico, com Cintra e com as poucas fascinações baratas de Lisboa.

Cerqueira resistiu, e n’uma bella manhã, mettido em uma diligencia que partia de Braga, dirigiu-se para Ponte de Lima. Aqui alugando uma cavalgadura endireitou para a aldeia em que nascêra.

A meio caminho apeou-se, despediu o homem que o acompanhara, e deitando ao hombro uma pequena mala que trouxera, encaminhou-se para o seu lugar.

Seriam quando muito duas horas da tarde. O calor era grande. Pouca gente na estrada. Cerqueira parou a contemplar o quadro.

De um dos lados do caminho viam-se algumas raparigas com largos chapéos desabados e saias apanhadas segando herva, á compita, e misturando o seu canto ao metalico e monotono cantar das cigarras...

Do outro lado, um rapazito meio nú, de carapuça, sentado no chão, estava de guarda a meia duzia de bois que pastavam tranquillamente na herva macia e tenra...

De vez em vez, quando um dos bois se approximava de algum castanheiro, o rapaz agarrava de um calhau, e atirando-lhe rasteiramente, gritava:

— Eh! malhado...

— Quantas vezes eu tambem guardei as vaccas da nossa casa! pensou Cerqueira.

— Seu moço, venha cá, disse para o rapaz, venha cá, menino!

O rapaz olhou para o forasteiro com um olhar estupido e embezerrado e deixou-se ficar.

— Venha cá, menino, que lhe não quero mal...

O pequeno não se movia.

— O rapaz é mouco, disse comsigo o viajante, e como quem conhece o coração humano, tirou a bolsa e mostrou-lhe uma moeda de prata.

— Queres isto?

De um salto o rapaz poz-se a pé, tirou a carapuça, e coçando a cabeça aproximou-se.

— Diga-me uma cousa, menino, é aqui do lugar?

— Saiba vossemecê que sim senhor.

— Conhece a tia Genoveva?

— Uma que é assim a modo bexigosa, e já muito velhinha?

— Essa mesma.

— Olhe, ainda ha pouco a vi passar da banda do rio... São horas de a topar em casa...

Cerqueira estava emfim tranquillo.

Desapparecera o receio de não encontrar a querida velhinha.

Verdade é que podia ter tido novas d’ella em Lisboa escrevendo ao abbade, mas queria fazer uma supreza, chegar de improviso.

Áquella hora as aldeias do Minho são silenciosas e calmas, e ha n’ellas como que a intima paz das fabricas ao domingo.

Os homens andam no campo, as mulheres, quando os não acompanham, estão nos lavadouros ensaboando, e poucas pessoas, a não serem os velhos e algumas creanças, ficam em casa.

Na sombria humidade das tabernas descobre se a taberneira fiando, emquanto no quinteiro proximo os porcos com os focinhos semi-enterrados na lama grunhem voluptuosamente.

Um ou outro cavalleiro que passa ás vezes pela estrada n’um choito endiabrado, com o páo de choupa apertado nos joelhos, levantando uma nuvem de poeira dourada. E é então que os cães acordam aquelle silencio, latindo e correndo atrás dos cavalleiros, e que apparecem ás janellas e ás portas as raras pessoas que ficaram em casa.

Quando Cerqueira bateu á porta da casa pulava-lhe o coração de um modo desusado.

— Quem é?

— Alguem é, respondeu o viajante.

— Pois empurre o postigo, puxe pela aldraba e entre, se isso o não incommoda.

Assim o fez o nosso Cerqueira e entrou na saleta em que a tia Genoveva dobava...

Ante aquelle homem estranho, a velha surprehendida parou, e pondo uma das mãos diante dos olhos como uma palla:

— Que me quer vossemecê?

— Um abraço e um beijo, balbuciou o que entrara com voz enternecida e expirante...

— Elle que diz? Ó Christo!

E levantando-se foi direita á janella para chamar por soccorro imaginando vêr-se a braços com um doudo.

— Olhe que não estou doudo, santinha! Venho de longe e trago-lhe um beijo e um abraço de uma pessoa que é muito sua amiga.

— Do meu Francisco? exclamou a velha. Venham de lá não só um mas muitos abraços, que elle no dinheiro é mais generoso, valha-o Deus! Um só abraço!

E a velhita apertou nos braços Cerqueira, que com as lagrimas nos olhos murmurava:

— E eu que pensei que me conhecia! Pois não me conhece, minha mãe? Eu é que sou o seu Francisco, sou eu, repare bem...

A velha então explodiu um alto e clamoroso grito, e chorando e rindo, cahiu nos braços do filho.

— Agora conheço, sim, estava tonta! Esta cabeça! Mas se tu eras uns dez réis de gente quando abalaste d’aqui... Onde está a tua roupa? Já jantaste? Cá a gente janta ao meio dia, mas arranja-se tudo, não tem duvida... a Joanna foi á cidade, vou eu mesma matar uma gallinha... Tens fome? deves ter, sim? A minha cabeça... a minha cabeça! O meu Francisco! Mas porque me não mandaste dizer que chegavas, rapaz? Valha-te Deus, manicanso!...

E a tia Genoveva no meio do seu contentamento sahia da sala para logo voltar, amontoando perguntas sem nexo.

— Gostas d’isto? gostas d’aquillo? Do que vaes gostar é do vinho, é do nosso caco de salsa e sahiu-me d’aquella casta! O presunto vamos com Deus, que tambem me sahiu bom. Vaes provar... Ora o peccado do rapaz que me não avisou de nada!

E sahia para d’ahi a pouco voltar com a mesma abundancia de perguntas e de phrases penetradas de amoravel reprehensão as medas levantadas no meio da sombria verdura dos campos...

Ia cahindo a noite, ouvia-se já na aldeia um certo borborinho de vida, vinham da estrada trechos ruidosos de conversações. Recolhiam do campo os trabalhadores.

E os dois a conversar ainda!

— E a Joanna que não chega da cidade! É sempre assim!

Quando ha pressa é que não vem... Queres tu dar uma volta pelo lugar, Francisco?

— Nada, minha mãe! Este dia é só para si. Inda bem que ninguem me viu, e que se não sabe que cheguei... Conversemos, tenho tanto que dizer, tanto que ouvir...

Entrelaçava-se de novo a conversa, e assim estiveram até que a velha disse:

— E então não querem vêr que o rapaz quer tirar-me dos meus habitos! São horas de deitar. Vou fazer-te a cama, está ahi quedo que eu já volto.

Voltou d’ahi a pouco com um candieiro de tres bicos. A luz batia-lhe no engelhado rosto cheio de bondade, e um sorriso de ventura brincava-lhe nos olhos e na bocca.

E, empuxado suavemente pela mãe, o brazileiro entrou no quarto que lhe estivera preparando.

varanda, as medas levantadas no meio da sombria verdura dos campos...

Ia cahindo a noite, ouvia-se já na aldeia um certo borborinho de vida, vinham da estrada trechos ruidosos de conversações. Recolhiam do campo os trabalhadores.

E os dois a conversar ainda!

— E a Joanna que não chega da cidade! É sempre assim!

Quando ha pressa é que não vem... Queres tu dar uma volta pelo lugar, Francisco?

— Nada, minha mãe! Este dia é só para si. Inda bem que ninguem me viu, e que se não sabe que cheguei... Conversemos, tenho tanto que dizer, tanto que ouvir...

Entrelaçava-se de novo a conversa, e assim estiveram até que a velha disse:

— E então não querem vêr que o rapaz quer tirar-me dos meus habitos! São horas de deitar. Vou fazer-te a cama, está ahi quedo que eu já volto.

Voltou d’ahi a pouco com um candieiro de tres bicos. A luz batia-lhe no engelhado rosto cheio de bondade, e um sorriso de ventura brincava-lhe nos olhos e na bocca.

E, empuxado suavemente pela mãe, o brazileiro entrou no quarto que lhe estivera preparando.

A velha abeirou-se da cama, desdobrou as roupas, ageitou a travesseirinha de largos bordados tesos e engommados, e voltando-se para o filho que examinava tudo curiosamente:

— Agora toca a deitar! Tenho tanta pena que me não trouxesses uma nora! pois eu creio que lá no Brazil ha muitas moças bonitas, pois não ha?

O brazileiro sorria-se, e a mãe incansavel enchia-o de perguntas, de mimos, de recommendações, até que sahiu abençoando-o com toda a sua alma, rude mas extremosa.

Francisco Cerqueira deitou-se, e ainda que lhe parecesse que o haviam de incommodar os pesados lençoes de linho duros e asperos, adormeceu profundamente.

Sonhou. Estava no Brazil, os socios tinham chegado da Europa, vinham queimados da viagem, mas contentes; contavam anecdotas e casos succedidos durante o passeio.

Que Portugal era um jardim, o Minho sobretudo! não se fazia ideia.

Narravam a maneira como tinham sido recebidos na aldeia natal, as festas, as alegrias da chegada, as noites de esfolhada, as romarias ruidosas... Cerqueira ouvia-os, e lá por dentro do coração, sentia a grande e plumbea nostalgia do paiz natal... Se eu pudesse lá ir! Mas para que? Estou velho... e depois póde ser que a velhinha já não viva!...

E continuava a trabalhar, a dar ordens no humido armazem sombrio entre os escravos...

N’isto saccudiram-no uma, duas vezes, tres vezes...

— Ó grande mandrião, pois isto são horas de dormir ainda? Olha que já estou a pé ha duas horas! Na cozinha vae tudo raso com trabalho! Arriba, homem! Não tens vergonha, dorminhoco?

E o brazileiro, estendendo os braços e esfregando os olhos com os punhos fechados, perguntou bocejando:

— Que horas são?

— Dez horas, grandecissimo perguiçoso!

— Ha quarenta annos que não durmo um somno tão bom, minha mãe!